quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1020: Stress pós ou pré-traumático ? (João Tunes)

Post do João Tunes (um camarada que já não precisa de apresentação):

Caro Luís,

Confesso que já começo a ficar saturado de te elogiar a árdua labuta. Porque se não se deve embirrar com alguém estando sempre a expor os seus defeitos, isso do elogio perpétuo também não é coisa boa. Porque por este andar, tens por aí, tarda nada, numa qualquer parada de um quartel, ainda a salvo da passagem a condomínio privado, uma estátua e peras (e uma pêra nessa estátua, diga-se, esteticamente falando, até não descondizia com a ilustre personagem na reprodução do seu marcial recorte facial).

E, acho eu, a última coisa que um homem deseja, enquanto vivo (depois, é como diz o outro - façam o que quiserem que já não estou cá para me ralar), é virar feito pedra, bronze ou platina que seja. Assim, desculparás se, um dia destes, conseguir lobrigar defeito teu, daqueles de monta ou mesmo sem monta (que nenhum de nós foi de Cavalaria), como são os da condição humana, e to despeje por aqui. Não será por mal nem menor consideração, toma nota desde já. Apenas a amizade sincera de não permitir que entres na galeria dos mitos, o que deve ser aborrecido até dizer chega. Que mais não seja pelas péssimas companhias que obrigatoriamente lá se devem ter por falta de direito a escolha.

Ainda não é desta que te descomponho o porte impoluto de castrense miliciano de gema e, mais uma vez, vai um elogio e um agradecimento. Refiro-me à tua boa inspiração de descobrires e transcreveres a excelente entrevista do nosso camarada Luís Carvalhido ao Jornal de Barcelos. Ela revela um saber de profundidade serena, em que a acutilância e o grito não se perdem. Sobretudo na forma inspirada como nos mostra a essência do conflito entre o que foi o nosso estar, no que vivemos e no tempo restante em que defrontamos a memória, sempre em desarranjo continuado com uma sociedade que tão mal sempre viveu com o seu passado, pronta a cantar o hino com os sucessos e as glórias e metendo para debaixo do tapete as patifarias, sobretudo as mais grossas. Gostei particularmente, se o realce me é permitido, da passagem em que o nosso camarada Luís Carvalhido disse:

Na altura éramos todos meninos de nossa mãe. Não tínhamos sido ensinados a fazer mal, não tínhamos, sequer, sido ensinados a resistir ao mal. Na recruta fomos muitas vezes despersonalizados até ao mais pequeno pormenor. Os oficiais tentavam preparar homens para uma guerra - não sei se da melhor ou da pior maneira - e o que é certo é que o faziam duma forma que agredia sistematicamente o indivíduo. Isto aumentava o tal stress, mas havia outros. Fazíamos a recruta, a especialidade e ficávamos já com outro stress que era ficar à espera dos dez dias fatídicos. Sempre que nos ofereciam dez dias de férias sabíamos que era o caminho para a guerra. E depois perguntávamos: eu vou para a Spinolândia? A Spinolândia era a Guiné, porque estava lá o Spínola, e a Guiné era um Vietname. Era o terror de quem tinha 20 anos

E se apreciei particularmente este trecho do falar lúcido do nosso camarada, isso prende-se a ele colocar os pontos nos ii quanto ao chamado stress pós-traumático dos ex-combatentes, localizando, com rigor, o início do distúrbio. Pela minha experiência pessoal e vivencial colectiva, tudo começava onde ele colocou a génese - a militarização forçada, depois a espera do resultado da roleta da mobilização, na esperança de lhe não calhar a bola mais preta (a Spinolândia), que, afinal, a tantos calhou em desdita. De facto, o stress maior não foi com o desembarque nem com os azares nos caminhos e nas bolanhas (qualquer gajo, como animal de hábitos que é, a tudo se adapta, melhor ou pior). Ali, julgo que só nos agravámos.

Falando por mim. Estava eu na santa vida quarteleira do Regimento de Infantaria 1, na Amadora, perto de casa, com transporte à porta e horário de funcionário público, casadinho de fresco para mais, quando num dia que marcou - no negro - a minha vida, me chamam ao comando, entregam-me uma licença para gozo imediato de férias pré-mobilização e uma outra guia, esta de marcha, para me apresentar, após as férias de nojo, no quartel de Porto Brandão e embarque breve num Batalhão de Caçadores destinado à Guiné.

Pelo que soube então, o Batalhão em que era incorporado já estava a terminar o IAO tendo acontecido que o alferes de transmissões, um qualquer Chico mas daqueles bons e felizes, insatisfeito por tão reduzida prestação guerreira que lhe queriam calhar na lide com rádios, antenas e criptografia, se havia oferecido para os rangers e haviam resolvido fazer-lhe a vontade. Assim, o alferes Chico largou o IAO e foi direito a Lamego cumprir o treino da sua ambição guerreira e, com o rolar da escala, calhou-me substituí-lo.

O repentino da sucessão breve no tempo até embarcar no Niassa representou duas das semanas mais negras da minha vida. Havia o espectro da Guiné e a falta de tempo de adaptação. O mundo pareceu-me que tinha caído à minha volta. Casado há um ano, senti perder sentido tudo aquilo que tinha projectado em partilha com a minha companheira. E senti-me, verdade seja dita, uma rês a caminho do matadouro. Ou um palerma incoerente por ser contra a guerra colonial e ir fazê-la contra Amílcar Cabral, um dos ícones da minha juventude. Apeteceu-me desertar, depois sobrou-me o sentimento de cobardia de não o fazer, por não ter tido a coragem de largar um lar ainda em parto entusiasmado do começo. Foi ainda neste sofrimento fresco, contra a guerra e contra mim próprio, que subi as escadas do Niassa em Maio de 1969. Depois, o contacto com a guerra limitou-se a agravar a nódoa original. Que não foi pouco. Afinal, nós tínhamos mesmo o nosso Vietname.

O famoso stress levou-me a cometer uma loucura que me marcou a vida para sempre. Na visão alucinada da morte que julgava prometida, nesse medo humano de deixar corpo e alma aos vinte e poucos anos de vida, egoisticamente, entendi que não ia deixar o canastro na Guiné, morrendo e matando contra uma minha causa, sem deixar no mundo uma semente que me continuasse a vida, aquela que eu temia perder. E foi assim, emocionalmente, que convenci a minha companheira que engravidasse durante as minhas primeiras férias.

Desse acto egoísta, de desespero vital, nasceu a minha filha Catarina. Não me arrependo da obra saída, ela é uma mulher que me encheu e enche parte importante da minha vida (e estou a dever-lhe um neto que não é coisa pouca), mas não me perdoo, ainda hoje, de, pelo meu egoísmo desesperado, ter colaborado em metê-la no mundo para depois, conhecê-la fugazmente com dois meses, numas segundas férias, e tê-la para educar e amar já com mais de um ano de idade, sendo recebido com a repulsa com que, nessa idade, se recebe um estranho que entra casa dentro. Claro que custou mas ... foi. Quanto à marca do egoísmo meu, essa ficou-me sempre. Até hoje. Talvez porque, felizmente, tenha sido a marca mais perdurável de ter passado pela guerra na Guiné. Ou seja, cada qual com as suas dores.

Perdoem o pessoalismo da partilha. Abraço para ti. Abraços para todos os estimados tertulianos.

João Tunes

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