terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7431: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (35): Maravilhas do blogue... 36 anos depois (Nelson Herbert/Magalhães Ribeiro)


1. O nosso Amigo e Jornalista da Voz da América (VOA), Nelson Herbert (foto à esquerda), que acompanhou atentamente a série “Cerimónia da transição da soberania nacional na Guiné”, recentemente lançada nos postes P7388, P7393, 7400 e 7404, tendo prestado, a meu pedido pessoal, a sua melhor e imediata colaboração na identificação correcta das pessoas que aparecem em algumas das fotos, trocou comigo algumas profícuas e interessantes mensagens e, numa delas, dizia o Nelson a propósito da referida identificação: “Todas as faces da foto em questão, as três primeiras pessoas pertencem a uma mesma família mestiça... a família Sá, com profundas raízes em Mansoa...“.
36 anos depois

Logo que li o apelido da família “Sá”, fiquei espantado, pois o único homem do PAIGC com quem eu contactei e travei amizade em Mansoa, algures nos fins do mês de Agosto de 1974, e até tenho uma foto com ele, tinha como apelido Sá. 

“É demasiada coincidência” - pensei eu.
Nessa altura, por incrível que pareça, eu, um Operações Especiais, estava a substituir o vagomestre da companhia (que havia sido evacuado para a Madeira, de onde era natural, devido a doença hepática), quando um dia me bateu na porta um homem mulato e, fazendo a continência, pediu-me licença para entrar e falar comigo.
Olhei melhor para ele e para a farda e vi logo que das NT, ele não era!
Estendeu-me a mão cumprimentando-me efusiva e respeitosamente como se me conhecesse há uns anos, seguindo-se, mais palavra menos palavra, o seguinte diálogo:
- Bom dia, chamo-me Antero Sá e sou um comandantes operacionais do PAIGC, que actuava aqui na zona de Mansoa, em idos tempos de guerra.
- Ai sim? – disse eu, expectante.
Como eu ia começar a fumar ofereci-lhe um dos meus cigarros, que ele aceitou, agradecendo.
- Se achas bom, leva o resto do maço de tabaco (... SG ventil, devia ter uns 5/6 cigarros).
Voltou a agradecer e o modo respeitador, educado e de admiração, como ele aceitou os cigarros e me agradeceu aquele instintivo e espontâneo gesto jamais o esquecerei. Disse-me que os levaria para distribuir pelos seus homens que estavam acampados junto da Tabanca, aguardando que lhes entregássemos o quartel, comentando:
- Tudo o que nos chega, ou nos dão, distribuímos irmãmente entre nós todos. Se houver um só cigarro, um dos homens acende-o e vai passando para o outro, que dá a sua passa, e, por sua vez, passa a outro… e outro… até ele acabar. Com a alimentação também é assim, o que há para comer é dividido em partes iguais pelo pessoal.
Notei nas suas palavras que a fartura não era o forte para as bandas daquela malta do PAIGC. Por uma questão de constrangimento, respeito e dignidade, não lhe perguntei se estavam a passar dificuldades, nem era preciso fazê-lo.
Pensei: “Tudo o que aqui temos no depósito de géneros (na altura estava bem fornecido), quando formos embora, vai ficar a estragar-se e, tenho a certeza absoluta, estes 'gajos' estão a passar dificuldades.”
No dia seguinte, ao fim da manhã, estava eu a preparar uma sanduíche de chouriço, já quase havia esquecido o Sá, quando me vieram dizer que estava um turra à porta-de-armas que pediu para me falar.
Quando lá cheguei, vi que ele ali me esperava. Cumprimentamo-nos e ele puxou de um maço de cigarros NOPINTCHA, com 2 cigarros dentro, dizendo-me:
- Quero retribuir a oferta de ontem. O meu pessoal diz que o tabaco que mandaste, é muito macio e como vi que és um apreciador, vim-te trazer este para experimentares.
- Obrigado - disse-lhe eu.
Como não tinha mais nada que dizer, saiu-me:
- Acompanhas-me numa sandes de chouriço e uma cervejinha?
Ele olhou-me frontalmente e respondeu:
- Claro que aceito, vamos a elas!
No fim de comermos e cavaquearmos de assuntos trivialíssimos, evitando sempre aprofundar o tema guerra, perguntei-lhe se ele não queria levar o resto do delicioso chouriço para dar aos seus homens. Ele aceitou logo e voltou com a conversa da divisão:
- Levo sim, muito obrigado. Vou dividi-lo pelo resto da minha rapaziada.
Um dia, contou-me que havia sido incorporado no Exército Português, mas devido a desconfianças permanentes, interrogatórios pidescos e maus tratos por suspeitas da sua eventual colaboração (?) com o PAIGC, ele acabou por desertar e passar-se para as fileiras do PAIGC.



Na véspera da entrega do aquartelamento o Sá ofereceu-me, como prova da sua amizade o seu boné militar, o emblema do PAIGC, uma bandeirinha da Guiné-Bissau e as duas munições que estavam no topo dos carregadores das suas armas (uma de AK47 e outra de uma Simonov), que, felizmente, não chegou a disparar sobre as NT.
O tempo voou e até ao dia 9 de Setembro, em que entregámos oficialmente o quartel ao PAIGC, todos os dias conversávamos sobre as mazelas e consequências do violento passado e as melhores previsões do futuro da Guiné-Bissau.
Depois, nunca mais soube nada dele, até ao passado dia 9 de Dezembro de 2010.
Na foto pode ver-se eu e o Sá junto de um Unimog, que, por ordem superior emitida de Bissau, foi entregue ao PAIGC para as deslocações do seu pessoal e que o Sá, para evitar eventuais confusões, identificou com tinta na porta PAIGC. Em cima, sentado da parte de trás da viatura, está sentado creio que um dos filhos dele.
Magalhães Ribeiro

2. Em 9 de Dezembro o Nelson Herbert, enviou-me mais uma mensagem que dizia:

MARAVILHAS DO BLOGUE
SÓ HOJE, NAVEGANDO PELOS MEANDROS DO BLOGUE...CHEGUEI AO POSTE EM QUESTÃO... O COMANDANTE DO BIGRUPO DO PAIGC QUE ACTUAVA EM MANSOA... E CUJO PARADEIRO ESTOU TENTANDO APURAR, RESPONDE PELO NOME DE ANTERO SÁ... MEMBRO DE UMA INFLUENTE FAMÍLIA MESTIÇA, DE MANSOA, CUJO PATRIARCA, O SR. SÁ, ERA UM CONHECIDO COMERCIANTE PORTUGUÊS NAQUELA VILA OU CIDADE...
Guiné-Bissau > Região do Oio > Mansoa > O Eduardo com um quadro do PAIGC. Foto do nosso co-editor, reproduzida no Correio da Manhã, edição supracitada. Posteriormente, o Eduardo disse-me que se tratava do comandante do bigrupo de Mansoa, de nome Antero Sá  (a viver actualmente em Portugal).
Trata-se de um indivíduo mestiço, natural de Mansoa, que pertenceu às NT (exército, presumo), e que terá desertado para o PAIGC, na sequência de um alegado e grave conflito com um superior hierárquico.
O Eduardo conviveu com ele "ainda umas semanas"... Tornaram-se amigos: ambos eram "rangers", um do lado, outro do outro...
O Eduardo, quando substituiu temporariamente o furriel vaguemestre da CCS do BCAÇ 4612/74, chegou a arranjar alguma comida e cigarros para os homens do bigrupo do comandante Sá...

Espero que o Eduardo aceite o meu convite para escrever sobre este período de sobreposição das duas forças, em Mansoa, nas últimas semanas antes da sua partida para a Metrópole... Ele tem mais umas dezenas de fotos deste período de convívio com o inimigo de ontem, em Mansoa...
Nelson Herbert

3. Em 9 de Dezembro o Nelson Herbert, enviou-me mais uma mensagem que dizia:
Caro Magalhães

Sim o seu amigo da foto, responde pelo nome de Antero Sá... e esteve na guerrilha do lado do PAIGC... Pertence à mesma família mestiça da foto, alias creio ser o único homem... no meio de tantas mulheres da família Sá... Uma família mestiça, cujo patriarca, o Sr. Sá era português com uma mercearia e comércio em Mansoa... proprietário de alguns camiões... e sobre alguns membros da família sempre pairaram suspeitas de colaboração a guerrilha... isto pelo facto dos camiões da família, terem em varias ocasiões, ido poupados de ataques ou emboscadas do PAIGC... E isso só por si... suscitava as tais interpretações próprias da época...
O Antero Sá foi sim militar português...
Quanto ao seu paradeiro, já iniciei os contactos junto dos sobrinhos e espero localiza-lo brevemente e pô-lo em contacto consigo... Acredito no entanto que esteja a viver em Portugal!
Mantenhas
Nelson Herbert

4. Pois a concluir esta rocambolesca estória, o Nelson Herbert só sossegou quando lhe enviaram e ele me comunicou o número de telefone do Antero Sá, ainda a viver na Guiné-Bissau, (e que eu ainda vou utilizar esta semana a ver se consigo falar com ele novamente 36 anos depois), que lhe foi indicado por um grande amigo dele e a quem volto a agradecer aqui, publicamente, este gesto de amizade e camaradagem.
__________
Nota de M.R.:

- Segundo fui informado, com confirmação do próprio via telefone, após atribulada vida de guerreiro na Guiné, o Antero Sá vive desde 1975 em Portugal.

15 comentários:

Hélder Valério disse...

Caros camarigos

E assim, com calma e persistência, vai-se compondo o 'puzzle' da nossa memória, neste caso do Magalhães Ribeiro, mas também, por extensão, a do nosso colectivo.

Também por estas coisas o Blogue justifica cada vez mais e sua existência e utilidade.

Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Mais uma vez...como tudo poderia(e deveria)ter sido diferente se os nosssos geniais políticos tivessem tido uma,mesmo que bem pequena,visäo histórico-realista. Um abraco.

Cesar Dias disse...

Caro MR

Recordo-me da familia Sá em Mansoa,mais concretamente da Srª Emilia Sá, tinham uma casa de comercio na vila.
Um abraço
César Dias

Torcato Mendonca disse...

Magalhães Ribeiro

Hoje foi um dia em cheio no Blogue.
Vou fechar para ficar assim com a disposição em alta.

Vai um abração do Torcato

Anónimo disse...

Caro Editor Magalhães Ribeiro

Caro Nelson Herbert

Fico encantada com a descoberta quase diária da generosidade de uns, e a disponibilidade de outros, para ajudarem a fazer as ligações ao passado.
Que bonita a História!
Eu sei, que nas dificuldades há uma maior união!
As dificuldades unem as pessoas, enquanto a abastança as divide.
HÁ uma ternura maior ao recordar situações difíceis, vividas ou presenciadas. Perdura a união para além do tempo.
A lembrança que o próprio amadurecimento propícia, é mais consistente, mais valorizada.

Caro Magalhães Ribeiro, vê como não esqueceu o gesto do ex IN, que dividia pelos seus homens tudo o que havia, (o muito pouco que havia)!
Nesse grupo de homens ex recentes inimigos, a solidariedade era presença que mantinha a força, a coragem, a esperança.
É bom ler coisas destas.
Obrigada por no-las contar e partilhar-mos assim os sentimentos, que não duvido, são comuns a todos os homens.

A minha admiração pelos vossos registos, pelas vossas memórias.
Os meus respeitos pela vossa vivência.

Felismina Costa

Anónimo disse...

Grande ranger!...Um dia vais ter orgulho em contar aos teus netos esta história de grande nobreza humana. luís Graça

Joaquim Mexia Alves disse...

Oh Eduardo, olha que pela fotografia não sei quem tinha mais fome, se tu ou ele!!!

Estavas um magriçelas!

Grande história! Parabéns!

Um grande abraço

Luis Faria disse...

Amigo Magalhaes Ribeiro

Na verdade a vida é feita de "desencontros e encontros".

Realmente...como diz o Mexia Alves,pela foto,a fome parecia grassar por aquelas bandas !!

Talvez no meio de um turbilhão de sentimentos,nasce uma amizade.Belo estória que apresentaste.

Um abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

Camaradas,
Este é o M.R. de que gosto, que viveu o período da transição, e descreve,com grande carga humanista, embora pouco, de maneira cordata e singela, a relação digna de alguns dias com um dos inimigos.
Deixa-nos uma visão tu-cá, tu-lá, tão característica dos povos, mas tão distinta das atitudes daqueles que, encerrados em gabinetes, e rodeados de mentecaptos e subservientes, atingem níveis de poder para manipular gente boa contra os que lutam pela dignidade.
No caso da guerra colonial, já sabemos que boa parte da élite revoltada, deixou-se encantar pelo dinheiro e métodos dos interesses das nações desenvolvidas.
Claro, um rebuçado, é sempre um reboçado.
Abraços
JD

Luís Graça disse...

Pegando nas palavras do Zé Manel Dinis, o J.D., todos e cada um de nós somos capazes de revelar o nosso melhor, se não todos os dias, pelo menos em ocasiões especiais... Já o fizemos aqui, várias vezes, muitas vezes... O nosso blogue tem sido (ou procurado ser) uma espécie de gramática (e mais do que isso, lugar de exercício diário) da tolerância, da camarigagem, da aceitação da diferença, da gestão da memória, o que não é incompatível com rigor, procura da verdade, frontalidade, coerência...

O melhor de todos nós não é quando pomos a pata em cima do troféu de caça, mas quando conseguimos ver os outros como parte integrante da mesma humanidade a que pertencemos...

Nem sempre é fácil exprirmos, em gestos e palavras, o nosso lado melhor, luminoso, solarengo, emotivo, inteligente, solidário, relacional...

Mas há dias, como o de hoje, em que eu me orgulho ter gente fantástica a escrever, a fazer, a ler, a acompanhar, a comentar este blogue...

Manuel Reis disse...

Caro Magalhães Ribeiro:

Bonita esta tua história, esse relacionamento fraterno com o guerrilheiro do PAIGC, então inimigo.

Trouxe-me à memória uma situação idêntica, pela qual passei, no período de descompressão da guerra, antes da entrega do aquartelamento de Cumbijã.

Um dia encontrei-os (à volta de 20), exauridos de fome, e aceitaram uma tachada de arroz, que o cozinheiro, de imediato, se disponibilizou a arranjar.Nesse grupo vinha um irmão mais novo de um soldado nosso que a guerra havia separado e cujo reencontro nos trouxe alguma comoção.

Um abraço.

Manuel Reis

Anónimo disse...

Camarigo MR

Todas estas histórias sobre aqueles acontecimentos em Mansoa me tocam, tanto mais que, por muito que procure rebuscar no mais fundo da memória, pouco encontro do ano que lá passei. Mas qual a razão de tanto esquecimento?
O contemporâneo César Dias até se lembra ainda da Sr Emília Sá que tinha uma casa de comércio...e eu, olhando para o quartel lá vou rememorando algumas edificações, mas até a parada, onde tantas vezes tive de proceder ao render da guarda e prestar a continência à Bandeira, já que fiz muitos
serviços de Of. de Dia ao BCaç, me parece um lugar estranho.

A tua relação com um elemento do PAIGC, enobrece-te e poderá parecer, para alguns, anómala.
Mas devem compreender-te, uma vez que para ti não chegou a ser um verdadeiro IN, já que lá chegaste depois da tempestade e quando tinha chegado a bonança.

Abraço
Jorge Picado

Orquidea Sá disse...

Bom dia,
o meu pai, que não entende nada de internet, ontem viu estas fotos e disse que se lembra bem delas. Mas o nome dele é Antero Sá, Zeca é o irmão dele. Ele gostava muito de entrar em contato consigo, se quiser dou-lhe o telemovel dele. Ele vive em Setúbal.
Cumprimentos,
Orquidea Sá

Orquidea Sá disse...

Fio feliz por ouvir falar da minha familia.
Meu avô morreu muito cedo, deixou a minha avó viuva com 13 filhos para criar.
Depois do 25 de Abril vieram para Portugal, onde nasceram quase todos os netos dela.
Infelizmente ela ja faleceu ha mais de 8 anos.
Meu pai, o homem de que falam, chama-se Antero Sá e para além de muitas irmãs, tambem tem um irmão chamado Zeca, o que estão a confundir com ele por serem muito parecidos. Só não entendo porque é que esse sr. que se lembra tão bem da familia Sá, não se lembra que eram dois rapazes e não só um.
Cumprimentos

Unknown disse...

ORA VIVA, EU GOSTARIA DE DAR UMA ACHEGA AOS COMENTARIOS SOBRE A FAMILIA SA, DA QUAL FAÇO PARTE, CORRIGINDO ALGUMAS INFORMAÇOES. SOU SOBRINHO DO ANTERO SA, PRIMO DA ORQUIDEA, AMIGO DO HERBERT!
COMEÇANDO PELO MEU AVO, FOI SIM UM HOMEM DE MANSOA QUE TINHA UMA PENSAO, ONDE QUASE TODA A TROPA PORTUGUESA FREQUENTAVA! TALVEZ NAO SE DEVA SO PELA BOA REFEIÇAO QUE LA SE SERVIA, MAS PARA O ARREGALAR DE OLHOS SOBRE AS LINDAS FILHAS DO SR. JOSE DE SA!!! TENDO UMA SE CASADO COM UM MILITAR PORTUGUES! NAO TENHO RECORDAÇAO NENHUMA DE CAMIOES E DE SUSPEITAS SOBRE A FAMILIA NO QUE DIZ RESPEITO A GUERRILHA!!!
OUTRA CORREÇAO, DIZ RESPEITO AO NUMERO DE VAROES QUE O MEU AVO TINHA. NAO É UM E NEM DOIS, MAS SIM TRÊS!!! O MAIS VELHO DE TODOS ELES E CHAMAVA-SE CHICO SA QUE A MINHA PRIMA ORQUIDEA INFELIZMENTE NAO TEVE A SORTE DE CONHECER, MAS SE PERGUNTAR AO PAI, ELE O CONFIRMARA!
DE RESTO FIQUEI AGRADADO COM ESTA ESTORIA MUITO INTERESSANTE!
UM BEM HAJA A TODOS E UM FELIZ ANO NOVO!!
MARIO SA