segunda-feira, 9 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9721: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (3): Na escola, com as crianças

1. Foi com esta mensagem de 28 de Março de 2012 que o nosso camarada Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) nos apresentou o seu trabalho de que hoje publicamos a terceira parte.

Meus caros Luís, Carlos e Eduardo:
Durante a minha vida militar na Guiné, tirando os quatro meses iniciais, sempre dei aulas, melhor dizendo, fiz alfabetização. Guardei sempre uma parte do meu tempo livre para proporcionar a muitos soldados a obtenção da quarta classe e, nos últimos quatro meses, trabalhei a tempo inteiro com soldados e com crianças. A minha "guerra" foi sublimada com este meu trabalho de que me orgulho e ao qual me dediquei. Talvez ingenuamente foi a procura dessa sublimação o que sempre me conduziu na minha atividade como combatente. Precisei desse objetivo mesmo sem saber ou pouco me importar qual o resultado final.

Titulei este trabalho com "Um professor na guerra". Professor e combatente fui de certeza. O título está para o"frouxo". Arranjam-me um melhor para este relato? Vai dividido em quatro partes. Se acharem por bem publicar é possível que prefiram uma outra divisão. Fica ao vosso critério.

Manuel Joaquim


UM PROFESSOR NA GUERRA

III - Na “escola”, com as crianças

Em 9 de janeiro de 1967 escrevia à namorada: “Já quase me faço compreender pelas miuditas a quem dou aulas todos os dias. É um trabalho que me está a agradar imenso. (...) Como sabes fui dispensado do serviço operacional. Aqui está com certeza a causa da minha maior satisfação (...).

Duas semanas depois: “Falar-te do meu dia a dia talvez tenha algum interesse para ti. Como já sabes não ando no mato. Sábados de tarde e Domingos não trabalho. Nos outros dias dou duas horas de aula da parte da manhã às crianças e outras duas da parte da tarde aos soldados. (...) Vistas bem as coisas é caso para andar bem satisfeito e ando, comparando a minha situação actual com a anterior. (...).

Eu (agachado, de boné) com um grupo de alunas. Atrás, o Fur Mil A.G. Correia

O Fur Mil F.G. Passeiro com o seu grupo e eu (de boné) à esquerda da foto

Fotos de F.G. Passeiro

Em 6 de fevereiro/67: (...)Há pouco estava a falar-te de barulho e é precisamente agora, já passa um pouco da meia-noite, que ele está a atingir um grau bastante chato. É a altura das bebedeiras. E o melhor é pôr-me pelo menos a fazer que durmo, já que tenho de me levantar cedo para ir aturar a minha catraiada. (...)

Vinte dias depois: (...)“A minha situação,(...), não é para grandes preocupações. Isto não quer dizer que esteja livre de perigo. No entanto ele é muito menor. Ainda agora chegaram os meus camaradas que passaram oito dias seguidos no mato sem vir ao quartel. Eu fiquei, está claro, em Mansabá, de volta das miuditas. E muito satisfeito, sem dúvida, livre desta prova de resistência e de perigo. (...)

Em seis de março/67 escrevi: “(...) às vezes tenho estados de espírito estranhos, tal como o de começar a ter saudades de alguma coisa que por cá existe. Refiro-me, muito em especial, às minhas pequenitas que todos os dias, eu a caminho da escola, disputam em corrida qual delas chega primeiro para me agarrar e dizer “bom dia!”. Elas ainda mal falam o português mas já me sabem dizer “adeus amor di mim”, “adeus querido di mim” e outras frases similares.(...)

Uma aluna leva-me a casa para me apresentar a mãe e os irmãos

Fotos de Manuel Joaquim

(...) Enfim, são uns tempos muito bem passados, estes em que lido com as crianças. Cá na terra toda a gente me conhece pelo nome. Passo pelas ruas e, às vezes, até chateia a frequência com que me dizem “Manuel Joaquim!” Não dizem, muitas vezes, mais nada e só esperam que me volte e sorria.Há pouco tempo aconteceu conversar com uma rapariga que me olhava um pouco intrigada e sem o à vontade que eu esperava. Soube que era nova cá em Mansabá. Quando lhe disse que era o Manuel Joaquim veio logo um “Ah, bó professor di bajuda” (...)”Manga di bom pessoal, bó mesmo” (...). Alegra-me saber que fiz algo de bom por aqui. E é, sim, com um pouco de saudade que vou deixar esta gente” (...).

Estas transcrições pretendem dar uma ideia do meu estado de espírito perante o trabalho que me obriguei a fazer. Tudo correu bem, o edifício escolar foi construído e os alunos ocuparam a sala de aula já equipada, todos contentes por terem saído da rua e eu ainda mais contente por não ser agora tão fácil distrairem-se face aos ruídos da rua. Aproximava-se a data da inauguração da escola. Não me lembro do dia mas foi num dos últimos dias de março/1967. Sei porque em 02/abril escrevi à namorada e referia-me ao facto de ter sido louvado pelo comandante de batalhão e este louvor ter tido como causa o que sucedeu na inauguração da escola, a que me referirei noutro capítulo. No final da inauguração, o repórter do PFA (o alferes milº M.F.Teixeira, meu amigo e companheiro de estudos), veio bisbilhotar-me que tinha ouvido o general perguntar, referindo-se a mim, “ já louvou aquele furriel?”

Tenho pena de não ter fotografias da escola e da sua inauguração. Não sei se foi erro meu, o mais certo foi ter sido. Temendo que algumas fotos pudessem infringir certos ditames político-militares da época, adiei a revelação dum rolo onde estavam também essas fotos para quando estivesse na “metrópole”. Ainda hoje me dói recordar a transparência do negativo quando quis levantar as fotos. Fotos, zero! Como diz o ditado castelhano “no creo en brujas mas que las hay las hay”.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9703: Um Professor na guerra (Manuel Joaquim) (2): Uma Escola em Mansabá

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