quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10239: Estórias avulsas (61): A minha viagem de Bissau para Catió (António Melo)

1. Mensagem do nosso camarada António Melo (ex-1.º Cabo Rec Inf, BCAÇ 2930, Catió e QG, Bissau, 1972/74), com data de 7 de Julho de 2012 com a continuação da sua viagem começada em Lisboa, no aeroporto de Figo Maduro, Poste 10042*, até chegar a Catió:


A MINHA VIAGEM DE BISSAU PARA CATIÓ

Depois de ter chegado a Bissau no dia 28 fevereiro 1972 passei uns dias a aguardar embarque nos Adidos em Brá, que de verdade me souberam a pouco porque todos os dias ia visitar o meu irmão Jaime que estava a cumprir serviço militar na BA 12 em Bissalanca na Força Aérea como Policia Militar. Comia com ele na Base o que me fazia pensar estar em férias porque não fazia nada, comia e bebia, que maravilha.

No dia 9 de março este periquito fazia 22 anitos, que linda idade, e com o meu irmão mais dois amigos que eu já conhecia da metrópole compramos umas coisas, desenrascamos outras como pudemos, e lá fez um jantar de aniversário junto ao depósito da Base que era o local onde os militares da desta costumavam fazer as petiscadas. Depois de um bom jantar, bem regado com cerveja, começam as anedotas e o tempo vai passando até que a determinada altura, cerca da meia noite, e quando já estávamos bem contentes, se ouve um rebentamento e logo pensamos que alguém me estava felicitando com ruído, mas durou muito pouco porque imediatamente nos demos conta que o fogo era lançado do fundo da pista das tabancas que aí existiam.

Como baratas tontas começamos a meter-nos por onde podíamos mas não passou de um susto porque aquilo durou pouco tempo. Foi o meu baptismo de fogo porque os senhores do PAIGC quiseram festejar comigo, só que o poderiam ter feito de outra forma porque eu não gostei nada.  Haveria outras formas para felicitar um aniversariante, por exemplo com uma prenda ou um bolo. Finalmente pude hoje expressar publicamente a minha indignação ao PAIGC que me ia estragando tudo.

Três dias depois, manhã cedo, transportado num Unimog, desloquei-me para o Pidjiguiti, despedi-me do condutor e carregando a minhas trouxas para apanhar um barco para Catió. Ia encantado com o destino que me tinham traçado. Dirigi a um sargento que estava a ordenar o embarque que me disse: Nosso Cabo o seu lugar é ali naquele barco. Eu muito espantado mirei fixamente e disse parra mim: Será possível? Porque aquilo não me parecia um barco mas qualquer coisa que imitava um barco ou uma canoa, mas enfim eram aqueles barcos de madeira que estavam ao serviço das forças armadas e quase todos os que por lá passamos andamos neles. Chegada a hora partimos rumo ao destino. Quatro Fuzileiros montaram uma metralhadora e puseram tudo a postos para alguma eventualidade. Começamos a navegar, ia uma LDM à frente, três daqueles barcos velhos e robustos de madeira e outra LDM atrás.

Assim seguia o cruzeiro de Bissau para Catió até que passadas umas horas chegamos a Bolama onde se fez um alto pois um dos barcos tivera uma avaria e já ia rebocado por uma das LDM. Como era preciso que viesse uma peça de Bissau para se proceder à reparação do barco, os Fuzileiros informaram-me que tínhamos de pernoitar ali e se eu quisesse, à saída da Ponte Cais, à esquerda, havia uma piscina onde podia dar uns bons mergulhos. Não me fiz rogado e, de fato de banho e toalha, lá fui como de um turista se tratasse. Passei um resto de tarde muito feliz e só regressei ao meu cruzeiro à hora de jantar. Fui ao saco buscar ração de combate que me haviam dado não sei se nos Adidos ou no cais e, junto a cabina do piloto, começo a comer que nem um rei.

Olhando com mais atenção, um fuzileiro vendo o que era o meu jantar, diz-me: Oh nosso Cabo, venha para aqui e coma do nosso jantar pois isto chega para todos porque o cozinheiro faz sempre comida a mais contando com a tropa que viaja connosco, e como somos só quatro, isto vai chegar pela certa. A princípio, com vergonha, diga-se a verdade, não aceitei e agradeci, mas os fuzileiros insistiram e me disseram que quem pagava eram a Armada, logo não ia comer nada que fosse deles.  Lá me juntei a eles que me serviram um prato cheio de comida que estava muito boa. Terminado o jantar ajudei a lavar a louça com água do mar.

Entretanto um deles foi ao interior do barco para ir buscar uma garrafa de whisky Ballantines, nunca mais me vou esquecer, um outro prepara uma saladeira de alumínio e acto seguido pôs-lhe um pano branco em cima da saladeira enquanto outro com a faca de mato inclina a garrafa um pouco por encima da saladeira, lhe dá uns golpes até que se parte o gargalo da garrafa. Filtrado o whisky começaram a beber o que me fez confusão. Perguntei se aquilo tinha a ver com algum rito ao que me responderam que aquela operação era para apresentarem os gargalos das garrafas intactos, como partidas na viagem, e assim conseguirem outras para beberem. Mais uma que aprendi com estes bons amigos. Noite dentro e tinham uma monumental bebedeira. Eu não bebi porque ainda hoje, com a idade que tenho não bebo porque se bebesse duas cervejas seguidas, como não estou acostumado, começava-me logo a cabeça a andar de roda. O melhor é nem tocar na bebida.

No dia seguinte passámo-lo todo em Bolama esperando a peça e um mecânico para arranjar a avaria que tinha o paquete de cruzeiro, pelo que só saímos no terceiro dia. Depois de algumas horas viajando, e chegados a foz do rio Cumbijã, paramos e aí dormimos a bordo porque se continuássemos, ao baixar da maré, ficaríamos de noite no rio por não haver já temo suficiente para chegarmos a Cufar. Seria muito perigoso ficarmos de noite metidos no rio sem água suficiente para navegar.

Ao outro dia pela manhã seguimos viagem rio Cumbijã acima até Cufar. Chegados, dirigi-me ao quartel, que mais parecia umas tabancas,  e eram de verdade, só sei que me disseram para que estivesse no outro dia pela manhã para seguir viagem com os operacionais para Catió. Voltei para o meu navio de cruzeiro que agora estava assente na lama porque já não havia água, com os nativos a descarregar tudo o que levávamos nos barcos destinado a abastecer o quartel de Cufar e as casas de comércio que vendiam aos nativos, como a Casa Gouveia e outras. Falo na Gouveia porque me lembro que existia, não sei se também em Cufar.

Vista aérea de Cufar  

Foto: © Jorge Simão (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.

Voltei a comer com os fuzileiros e no dia seguinte à hora marcada estava com as coisas que devia levar, e do quartel, ou do que diziam ser um quartel, até ao cais ainda era uma distância considerável e eu já estava cansado porque a minha bagagem pesava no mínimo uns vinte quilos.

Quando cheguei de imediato me mandaram para um pelotão que estava para sair e que estava armado até aos dentes.  Aí sim se me arrepiou todo o corpo e vi que de verdade estava numa frente de guerra. Colocaram-me em quarto da frente para trás e começou a marcha. Seguiam todos armados menos eu que carregava os meus pertences. Ainda pensei: Que vai ser de mim acaso isto dê para o torto, ao primeiro que possa roubo-lhe a arma.

Levávamos já uns quilómetros, só sei que olhava para trás e só via dois ou três, então ganhava coragem e avançava mais, daí a algum tempo estava quase em ultimo. Depois de uns sete o oito quilómetros nesta luta atrás e adiante, vejo que começo a ficar sozinho e pensei: Que se está passando, não me querem? Sou mau mas por favor não me abandonem que eu prometo que não serei mais uma pessoa má e que me portarei bem.  Se for necessário até irei dar milho aos pombos do Rossio, aos corvos dos Alpes ou aos morcegos de Bolama, mas por favor não me abandonem.

Foi quando dei conta que estávamos no lugar indicado e o Alferes que comandava o pelotão me disse para caminhar mais uns duzentos metros na direcção das árvores cortadas pois estavam a abrir a estrada de Cufar a Catió e esse pelotão estava a fazer a segurança aos trabalhos. Caminhei na direcção indicada e comecei a ouvir ruídos que me causaram calafrios. De repente saiu de entre os arbustos um militar branco claro que se me dirigiu, e creio eu que a brincadeira foi de propósito pois sabiam que vinha um periquito, e devem ter pensado que me iria borrar de medo. Na verdade conseguiram.

O militar, que mais tarde vim a saber que era Alferes, disse-me para andar mais uns 150 a 200 metros e encontraria uma viatura do Exercito que me levaria ao quartel de Catió. Assim que cheguei ao local subi para a Berliet que de seguida começou a andar. Quando chegou a Catió, uns sete a oito quilómetros adiante, entrou na parada, mal desci da viatura vem um cabo que me diz: Sou o Manuel Gomes do Pelotão de Rec Inf, vem comigo que eu tenho instruções para te alojar e te guiar nos primeiros passos.

Indicou-me a minha cama que era ao lado da sua e disse-me que eu estava ali porque ia a render o Cabo Coelho que havia sido raptado num golpe de mão feito na pista.

Assim terminou a minha viagem de Bissau a Catió.


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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 16 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10042: Estórias avulsas (59): A minha ida para a Guiné (António Melo)

Vd. último poste da série de 16 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10043: Estórias avulsas (60): Gazelas em Mansambo (António Eduardo Ferreira)

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