terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10785: Do Ninho D'Águia até África (34): Aquela garotada (Tony Borié)

1. Mais um episódio, enviado em mensagem do dia 8 de Dezembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (34)

Aquela garotada 



Quase sempre ao domingo, e quando estava de folga e livre das suas tarefas, o Cifra dava o seu passeio habitual pela tal aldeia, com casas cobertas de colmo que existia próximo do aquartelamento. Parava aqui e ali, já conhecia alguns habitantes, e as crianças andavam sempre em seu redor, pois sempre trazia no bolso rebuçados que comprava na loja do Libanês.


Atrás das crianças, foto com o Cifra acima, vinham os adultos e sempre se passava um pouco de tempo, falando disto e daquilo, e algumas “bajudas” eram uma companhia agradável, mas por favor, não sejam mal intencionados nos vossos pensamentos, pois o Cifra, sempre respeitou a dignidade e o forte carácter dos naturais, que muito admirava, alguns até o tratavam por “irmão”, e sempre seguiu as leis, as ordens e os ensinamentos dos “homens grandes” que, com toda a sua sabedoria, e com muitas “chuvas” no corpo, que deviam de ser anos, apontando com uma espécie de bengalim, com que afugentavam algumas moscas, e batiam nos cães, que famintos se aproximavam das “moranças”, que eram as suas casas cobertas de colmo, e que entre outras coisas, pronunciavam num português acrioulado, que o Cifra compreendia perfeitamente, e não se podia duvidar das suas palavras, pois eram sinceras, e para mais vindas de um “homem grande” para o “irmão Cifra”, e diziam, olha aquela ali... “cabaço ká tem”... anda para aqui... aquela “bajuda” além... “mama firme”... porque depois de... “tem manga di sabe sabe”... ela precisa de... está na altura de... “conversa giro”... e o irmão Cifra é que... fica no Guiné, “ca bai” no Portugal..., e quando se despedia, agarravam-lhe na mão e diziam, Cifra “ca bai”, e davam-lhe “mantenhas”, e às vezes até ficavam “tchora”. Bem, é melhor ficarmos por aqui, pois o Cifra, está com um pressentimento, que os seus amigos antigos combatentes e não só, já estão a sorrir com alguma maldade e a pensar coisas, que não eram.


Mas adiante, pois já nos estamos a desviar do principal, que era aquela garotada.
As crianças tocavam em tudo o que reluzisse da farda do Cifra, como por exemplo a fivela do cinto, os emblemas da boina, os ilhós das botas, os botões, o relógio de pulso, que algumas vezes usava, e faziam mesmo guerra, entre elas para andarem em redor do Cifra. Numa dessas vezes, estando elas em pleno convívio, e com alguma algazarra própria de crianças, de repente, desaparecem, começando a correr, cada uma para junto da sua “morança”.


O Cifra admirado com esta situação, abre os braços e pergunta a uma das “bajudas” que estavam presentes, qual o motivo desta atitude, e uma logo lhe respondeu, numa linguagem que se compreendia perfeitamente:
- O lobo do mato que come criança, anda por aí!

Fazendo um gesto em círculo com o braço, e o lobo do mato, a que se referia a “bajuda”, era uma hiena que há algum tempo andava a rondar a aldeia, e diziam que já tinha levado um bebé a uma mãe menos cautelosa.

O Cifra, como não tinha ouvido nenhum ruído, nem nenhuma movimentação em seu redor, ficou admirado como era possível as crianças, foto com o Cifra em cima, terem dado pela presença da referida hiena. Ainda hoje não sabe, só tem uma explicação, talvez o olfacto ou o instinto natural de protecção que um ser humano tem, mas só sensível em alguns. Era mesmo uma hiena, pois passados uns minutos ela passou um pouco ao longe, com o rabo curto, caído e quase entre as patas traseiras.

O Mamadú, um caçador que costumava passar as madrugadas esperando que os animais viessem beber a uma pequena bolanha que havia para os lados de Porto Gole, onde caçava as suas prezas, um dia apresenta-se no aquartelamento, dizendo:
- Pessoal vai buscar lobo do mato que está morto e não come mais criança!

E lá foi a caminho da casa do Libanês, levando outra preza que era uma gazela morta, pendurada à tiracolo, pela levou uma nota de cinquenta pesos, embrulhadinha e metida na sacola do seu farnel, onde não faltava coca que mascava quase vinte e quatro horas por dia.

(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10773: Do Ninho D'Águia até África (33): O Grupo do Cifra (Tony Borié)

2 comentários:

JD disse...

Ói Tony,
Se te parecer uma troca de galhardetes, arreda a avaliação, porque já antes o referi, os teus quadros sobre a Guiné são de grande vivacidade e humanidade, valorizados desde quando introduziste as imagens. Hoje, a propósito da criançada, e com um desvio pelas bajudas, quem vai avaliar-te com rigor, vai ser o Chico, um puto atento às manobras militares.
Gostei do flagrante da hiena, o que muito me surpreende, pois é um animal gregário, que costuma deslocar-se em família, ou em pequenas alcateias, pelo que essa seria a resistente de algum grupo dizimado, ou andaria perdida. A aproximação à aldeia será compreensível, pois andaria em busca de alimento (cão, galinha, cabrito). A guerra terá provocado a debandada dos animais autóctones para zonas mais pacíficas e além fronteiras.
Um abraço
JD

Cherno Baldé disse...

Caros amigos JDinis e TBorié,

O Cifra, que era bom soldado mas mau guerrilheiro, pela sua aparência fisica, é muito parecido com o meu amigo Almeida comando, a quem já dediquei aqui algumas palavras de estima e de apreço com muita saudade.

Mas o Almeida, no ímpeto brutal da sua bravura desmedida e louca, em parte forzada nas oficinas do regime colonial, não namorava com guerrilheiras, se calhar, matava-as, a bem da nação.

Por culpa dos criptos como o Cifra, durante muito tempo, na minha aldeia, deixaram de existir pessoas que respondiam pelo nome de Alfa, os vivos fugiam, os mortos ficavam inquietos e os recém-nascidos recebiam outros nomes, tudo porque nas suas rádios de recados secretos, passavam horas a fio a chamar: Alfa..., Alfa bravo... alfa assado, alfa cozido que, a dada altura, os indigenas, não sabendo do que se tratava e desconfiados que o Alfa X estivesse metido numa grande alhada com o regime e seguindo o bom principio de que mais vale prevenir do que remediar, simplesmente mandaram todos os Alfas para o Senegal e baniram este nome da sua lista de baptizados, não fosse o diabo tecê-las.

Um grande abraço aos dois,

Cherno Baldé