segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12181: Notas de leitura (527): "As Minhas Memórias de Gabu 1973/74", por José Saúde (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Agosto de 2013:

Queridos amigos,
Lera o que José Saúde ia publicando na nossa rede social. Dá gosto relê-lo, expõe-se com uma simplicidade tocante, fosse outro contexto e até se podia insinuar que estávamos perante uma prova de elevada gabarolice, quando, com toda a modéstia, o José Saúde conta sem qualquer ênfase muito mais coisas dos tempos de paz que a guerra havida, terá sido pouca e pouco funesta. Percebe-se o orgulho que tem nas suas recordações, fez muito bem em compartilhá-las connosco, não custa a crer que foi um ano vibrante e de trajetória na sua vida.

Um abraço do
Mário


As minhas memórias de Gabu, por José Saúde

Beja Santos

O nosso confrade José Saúde teve a amabilidade de me enviar as suas memórias referentes ao período 1973/74. Tocou-me a simplicidade e o louvor que encerram as suas lembranças.

A obra reúne o seu acervo de recordações de furriel Ranger colocado na CCS do BART 6523, Agosto de 1973/Setembro de 1974. E são mesmo recordações vibrantes, singelas, no que toca ao desvelar da sua intimidade, os seus lazeres, o olhar à volta, a interpretação do meio. São textos despretensiosos, não há para ali farronca, o desfiar de atos de bravura, não se ampara na guerra que os outros fazem, descreve os patrulhamentos, com grande sobriedade nessa placa giratória que era Nova Lamego. Di-lo naturalmente: “A Guiné apresentou-se, para mim, como um universo de pesadelos vividos nos verdes anos da minha adolescência”.

Foi esta a Guiné que lhe coube cumprir. O seu relato, sempre económico, ganha logo foros de universalidade: a chegada e o bafo de calor, o encontro de gentes do mesmo curso e depois a dispersão; volta atrás e conta onde assentou praça e as etapas seguintes até chegar ao Gabu; depois, no dia 23 de Novembro de 1973, o contacto com a guerrilha, entre Nova Lamego e Piche; e o deslumbramento dessa Guiné que lhe coube, com pudor vai abrindo o seu álbum de memórias, os passeios à futrica, porque o Gabu era uma minúscula imitação de cidade, digamos que o último centro urbano digno desse nome, no Leste.

De modo suave e dialogante, fala dos “filhos do vento”, tem mesmo a fotografia com a menina de Gabu nos seus braços: “A menina, linda, possuía um ar tremendamente europeu. Quem não conhecia o seu cruzamento de sangues, talvez não imaginasse a sua originalidade. Desencontros sanguíneos, fruto do acaso…”. Mais adiante tem a confirmação de que a menina morreu e mostra a fotografia da menina de Gabu, uma mãe de porte senhoril, olhar melancólico. Fala do sexo na guerra, onde e como se praticava. Acompanhamo-lo nas ações da psico e como ele procurou dirimir conflitos. E o papel das lavadeiras nas nossas vidas, e o Alberto, um puto desenrascado que gozava um estatuto supremo, sempre cordial. E acrescenta: “Guardo religiosamente uma foto com o benjamim Alberto e interrogo-me do que será feito do senhor Alberto”.

E o Natal de 1973, profusamente ilustrado. E o batuque, que tanto o deliciava. E uma referência às colunas de reabastecimento, Piche, Pirada, Canquelifá, Buruntuma, Madina Mandinga, Cabuca, viaturas avariadas, chatices suplementares. E o Damásio que teve uma morte estúpida na pista de aviação, numa descrição contida: “Numa manhã, o soldado Damásio integrou um grupo cujo objetivo passava por descarregar bens alimentícios provenientes de Bissau e que vinham a bordo de um avião. Fez-se o habitual cordão para facilitar o serviço, sendo que o Damásio se colocou entre as duas viaturas destinadas ao carregamento. Num ápice, uma das viaturas tentou a aproximação a outra que se encontrava estacionada por perto e numa manobra arriscada – marcha atrás – embateu na traseira da outra viatura, sendo que o embate ficou marcado pela morte imediata do Damásio que se encontrava entre as duas viaturas. Morreu esmagado”.

Há saudades das colunas a Bafatá, o encontro com as gentes pelo caminho, episódios impressionantes e chocantes. A guerra aparece entremeada entre episódios pícaros, como se José Saúde assim suavizasse a morte e os feridos, seus camaradas, como o drama vivido pelo Fanado.

A jactância está sempre arredada destas impressões que o conduzem à escrita: Jaló, o milícia, era um convicto pedinchão, fazia e prestava favores, com intrincadas remunerações: “As lérias do camarada africano enterneciam o mais descuidado militar se porventura não meditasse de imediato no seu doce e embalador palavreado. Mostrava-se acolhedor a fazer favores e, de seguida, propunha como recompensa: cobrar alguns pesos ou uma dádiva de arroz”.

Bafatá baila-lhe na memória e mostra o cais do Xime, que já não existe. Não tem rebuço em descrever os lazeres com futebol, conversas com homens grandes, as crianças das tabancas. Mostra o seu camarada o furriel Ramos que desertou para o PAIGC. Ramos, diz ele, cedeu ao que o seu coração lhe pediu. A sede é tema obrigatório, a sede e o acolhimento nas tabancas, guarda mesmo o nome da fonte do Alecrim, na saída da estrada que conduzia a Piche, era a nascente do reabastecimento do quartel.

O tema da fé religiosa vem à baila, não se escusa. E chegou a hora da despedida, de três para quatro de Setembro entregaram-se as instalações ao PAIGC, arreou-se uma bandeira, içou-se outra, era o ponto final. É extremamente contido quanto à chegada do PAIGC e simultaneamente deixa claro a grande ansiedade em que viviam aqueles que estavam convictos, sob a bandeira portuguesa. Na despedida, e depois de exaltar as imagens que obteve na sua máquina fotográfica Olympus mostra imagens do Gabu em 1999 e despede-se: “Estas são as minhas memórias do Gabu que tiveram o condão de passarem, em parte, ao lado dos conflitos armados no terreno”.

Percebe-se que José Saúde andou ligado ao jornalismo, dá provas neste livrinho íntimo que põe à nossa consideração, controlando a exuberância e nunca escondendo a saudade dos tempos do Gabu.

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Nota de José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523, Nova Lamego, 1973/74:

"GUINÉ-BISSAU AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU 1973/74", dia 26 de Outubro, sábado, pelas 15h00, na Casa do Alentejo em Lisboa* 

Camaradas
Com a distância do tempo a imperar sobre corpos gastos por uma longevidade que já vai longa, mas que teima em preservar neste universo terrestre homens com histórias hilariantes de guerra para contar, lancei um olhar subtil sobre a nossa comissão militar na Guiné, sendo que dessa descida à realidade vivida em Gabu, procurei indagar nas minhas memórias conteúdos reais observados, concluindo que estes foram transversais a outras gerações de camaradas, não obstante a data que coube a cada um de nós percorremos naquele território distante.

Um território, aliás, fustigado pelos matos adensados, capins enganadores e desafiantes, bolanhas q.b. infestadas de mosquitos, os tons avermelhados da estéril terra, o pôr de sol alaranjado e sempre encantador, as chuvas intensas que não davam tréguas, o cacimbo que arrepiava as nossas almas, bem como o calor africano sempre excessivo constatado, entre outras circunstâncias que nos deixarão saudades e eis-nos no presente perante um reviver de imagens, algumas ténues, que teimam em bater com o nosso ego.

Sublinho, com ênfase, que fui um dos muitos milhares de militares que cruzaram a guerra com a paz e que conheceu a realidade de um tempo que confirmava então o fim do domínio português naquela antiga província ultramarina, assim como o exaltar de um jovem país que resplandecia e se afirmava no continente africano como nação independente.

GUINÉ-BISSAU AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU 1973/74 é uma obra que atravessa estilos semelhantes ao longo dos anos de luta, sendo certo que as exequíveis verdades presenciadas fazem parte de um espólio das nossas vivências em solo guineense.

Revejo as agruras de uma guerra no seu auge e que se deparou, posteriormente, com o emblema da paz. Uma dualidade visionada de posições anteriormente opostas, mas que marcarão eternamente o nosso sentir no decisivo momento do adeus àquela terra que muito nos marcou.

Os textos expostos neste volume, não longos mas sucintos, mostram o essencial de um olhar atento sobre o contexto de uma guerra cruel que não dava folgas e que se predispunha a autênticas incertezas num terreno que, para nós, se apresentava, a meu ver, diametralmente desigual, tendo em conta que o IN conhecia perfeitamente os terrenos que pisava e a razão da sua luta.

Fui ao fundo do baú do meu passado, e beneficiando de uma memória que teima em manter-se em absoluta atividade, soltei as amarras dos tabus e eis-me a mergulhar livremente no planalto da saudade, trazendo a público as mais diversificadas conjunturas por mim vividas em terras de Gabu.

Não me refugiei, por uma questão de ética e de honra, nos sons estridentes dos tiros ou no desenhar de puzzles que conduziam à preparação de estratégicas operações trabalhadas no palco do conflito. Não ajuizei pretensos cenários em confrontos diretos com o IN. Procurei, isso sim, mexer com assuntos que implicitamente escondiam, e escondem, o clamor da peleja. Somos humanos e como tal as análises feitas por cada um de nós obedecem a opiniões por vezes diferentes. Neste contexto, não desafio atos de bravura, cinjo-me, sim, a singelas dissertações que mexem com foros literalmente verídicos e que nos brindam com assuntos por nós vividos.

Adianto, porém, que não tranquei em exclusivo a minha caixa de pandora com os problemas vividos em campos de batalha, mas lancei ecos noutras direções que trazem evidentes burburinhos sociais, costumes tribais, entre outras temáticas registadas que mexem, em particular, com a intimidade de jovens militares entregues então ao destino.

Camaradas, nas minhas memórias de Gabu relato, também, a forma como a hierarquia tribal impunha regras tacitamente herdadas dos seus antepassados. A ordem de partilha imposta pela tribo. A maneira hábil como uma população sabia viver encaixada com duas frentes de guerra. O sexo praticado ao longo da campanha. Os filhos do vento com a menina de Gabu. O djubi Alberto, meu companheiro. A festa tradicional nas tabancas indígenas com o fanado. As colunas. As noites no mato. O Natal de 1973. As lavadeiras. O batismo de fogo. Motes interessantes, entre muitos outros, para puxar pelas nossas memórias mesmo frágeis que elas porventura hoje se apresentem.

Nesta apresentação da obra que farei na Casa do Alentejo em Lisboa, no próximo dia 26 de outubro, sábado, a partir das 15h00, contarei com a presença de camaradas que comigo dividiram o conflito na Guiné e deixarei, obviamente, dicas para que todos, em conjunto, apreciarem e tirarem ilações contundentes, espero, de um pedaço das nossas vidas que marcaram, inquestionavelmente, os verdes anos da nossa juventude.

Luís Graça, autor do prefácio e fundador do nosso blogue, será o camarada que dissecará os ventos trazidos pelo livro GUINÉ-BISSAU AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU 1973/74, numa tarde cultural onde os sons do Alentejo se farão ouvir.

Lisboa é uma região onde abundam antigos camaradas que percorreram os trilhos da Guiné. E é justamente a eles que dirijo o meu convite para uma profícua presença de gentes que continuam a navegar, tal como eu, no campo da saudade.

Até breve!

Em novembro, provavelmente, estarei no Museu Militar do Porto.

José Saúde

(*) Vd. poste de 2 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12110: Agenda cultural (285): Apresentação do livro "GUINÉ-BISSAU AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU 1973/74" na Casa do Alentejo, em Lisboa, dia 26 de Outubro de 2013 (José Saúde)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12165: Notas de leitura (526): "Um Novo Caminho: Os Congressos do Povo da Guiné", por Manuel Belchior (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Luís Graça disse...

Zé, lá estaremos. E esperamos que a malta do blogue, que vive na área da Grande Lisboa, se associe à tua/nossa festa... Afinal, vens de longe, da nossa querida Beja, e mereces um valente "quebra-costelas"!... Motivo adicionald e interesse, há muitos camaradas que não conhecem a Casa do Alentejo. Merece uma visita.

Está instalada no Palácio Alverca, uma construção que remonta aos fins do séc. XVII.

(...) "O palácio apresenta um planta quadrangular e três pátios. No interior existem elementos de azulejaria, com destaque para as salas do restaurante. Contém peças neo-góticas, neo-árabes, neo-renascentistas, neo-rococós e de Arte Nova, assim como elementos do barroco". (...)



http://pt.wikipedia.org/wiki/Pal%C3%A1cio_Alverca


R. Portas de Santo Antão, nº 58, Lisboa, Portugal 1150 - 268
telef 21 340 5140-

Vd,l também:

https://www.facebook.com/palacioalverca