quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13680: Manuscrito(s) (Luís Graça) (40): Selfies /autorretratos: o meu amigo F..., pintor, e eu... Queria que fôssemos, a salto, até Paris, em 1965...



Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Junho de 1969 > O fur mil armas pes inf Luís Manuel da Graça Henriques, CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71).

Fotos e texto: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.


Luís (*):

Eu tinha nascido no ano zero. 1945.
Lembro-me de teres escrito isso,
muitos anos depois, 
no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI... 
Lembras-te, em 1965 ?!... 
Ainda pensámos em dar o salto até Paris, 
éramos vagamente existencialistas, 
anticolonialistas 
e anti-imperialistas, 
eu sonhava com Montmarte,
a boémia
e as copines das belas artes
(o meu lado mulherengo!),
enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre!...
Tinhas a mania da filosofia e eu da pintura...
Não conseguimos convencer o nosso gestor de conta 
a financiar este inconsistente projecto de aventura.
Tu eras mais politizado 
e, sobretudo, mais realista do que eu:
– E os nossos pais ?
E a PIDE (, mais tarde DGS) à perna ?
E a Guardia Civil antes de chegares aos Pirinéus?
E os dez contos de réis para dares ao passador ?
E vais fazer o quê, em Paris ?
Trabalhar como maçon ?
E dormir no bidonville ?
E comer baguetes com marmelada ?

1945… 
Ano zero da idade atómica, 
escreveste tu no catálogo do SNI.
Hiroshima. 
O cogumelo. 
O horror. 
Mas também o fim da guerra. 
Libération!, proclamavam, eufóricos,  os franceses. 
O fim do pesadelo da ocupação nazi. 
O direito à esperança,
em toda a parte, incluindo a nossa terra.
O recomeço da humanidade… 
As palavras continuam a ser tuas,
que sempre tiveste muito mais jeito para a escrita do que eu,
e vinham no meu catálogo 
que até estava bonito,
não estava ?! ... 

Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, 
o fim de uma época, o início de outra… 
Que ilusão, meu amigo, 
tu que me chamavas o Renoir de Montemuro… 
só por que eu andava no 1º ano das Belas Artes
e fazia umas coisas démodées,
vagamente impressionistas,
já a caminho do abstracionismo... 
Enfim, aprendiz de Renoir, 
talvez imitador da Vieira da Silva,
de que só conhecia umas reproduções de má qualidade.
Ainda ganhei uns tostões com serigrafias,
havia gentinha com dinheiro fresco
que comprava tudo...

Na minha cédula pessoal, 
um nota a lápis já meio sumida,
letra talvez de regedor, de merceeiro, de padre 
ou de conservador do registo civil...
Qualquer coisa como 
mais uma boca com direito a senha de racionamento. 
Milho, açúcar, farinha, azeite… 
Havia racionamento de géneros por causa da guerra, 
a II Guerra Mundial. 
Lembras-te ? 
Talvez não,
nasceste depois, já em 47,
na Lourinhã (, se bem me lembro,)
já não apanhaste esses tempos que foram duros 
para os nossos pais e irmãos mais velhos.

Nesse mesmo ano e mês em que nasci, 
acabava de regressar da Índia 
(da Índia portuguesa, como então se dizia, 
englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) 
o filho do francês
o cabo chefe da aldeia 
e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. 
Tinha uma pensão do ministério da guerra,
fora gaseado na Flandres, 
regressara tuberculoso e herói de La Lys. 
Admirava o Pétain, o Franco e o Salazar. 
Vociferava contra  a malta do reviralho,
os que eram contra a situação, como então se dizia. 

Era meu padrinho.
Por favores que lhe deviam 
(e deferências que lhe prestavam) 
os meus pais, 
nunca soube quais, 
nem nunca quis saber. 
Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, 
passei a detestar as relações de clientelismo e dependência 
que vigoravam na minha aldeia. 
Na minha aldeia da Serra de Montemuro, 
uma aldeia de pastores 
que não era muito diferente de tantas tabancas fulas 
que depois irei conhecer na Guiné, no Gabu… 
Ainda hás-de visitar a minha aldeia, 
num próximo verão em que fores lá cima ao Norte… 
Em agosto, no teu querido mês de agosto,
como tu lhe chamas,
num escrito, algures, que eu li no teu blogue…
Mas já nada tem a ver 
com a aldeida da minha infância
nem com as invernias agrestes daquele tempo.

Havia sempre festa na aldeia 
quando um filho regressava das colónias, 
mais tarde, do Ultramar. 
No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. 
Quando puto, imagina, 
ainda sonhei ser missionário, 
e ajudar a converter os pretinhos 
lá nas missões de Além-Mar. 
Problemas de pulmões impediram-me de seguir 
essa vocação precoce...
Estás-me a imaginar de sotaina branca
e longas barbas pretas,
não estás ?! 
E acabar, santo e mártir,
frito no caldeirão de uma tribo de canibais!... 
Ah! Como era rica e delirante a nossa imaginação de putos!…
Não sei quem me metei essa ideia maluca na cabeça,
por certo o padre da freguesia, a catequista ou a professora...
Mas a serra de Montemuro,
Resende, Cinfães, Arouca, Castro Daire, Lamego,
deu muita gente para as colónias 
e depois para a guerra,
mas também para a emigração.

Em 45,  os tempos ainda eram bem duros, 
escondia-se, dos fiscais do Governo, 
na serra, nas minas,
o milho, os cabritos e os anhos,
como sempre se escondera
de todos os invasores e usurpadores. 
Isso contavam os meus pais. 
Mesmo assim fazia-se festa rija. 
O foguetório não era como hoje, 
nesse tempo era um luxo. 
Lançavam-se uns petardos, 
de pólvora seca,
não havia dinheiro para mais nada. 
Só no São João,
era a altura em que se fazia algum dinheirito. 
Os cabritos e os anhos do São João
ajudavam a compor o tísico orçamento das gentes da minha aldeia. 
Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro, 
ou até nos barcos rabelos, 
embarcados no ancoradouro de Porto Antigo,
à boleia de algum patrão, amigo, compadre ou conhecido.
Ainda não havia as barragens, 
e o Douro era belo, puro, duro e selvagem… 
Hoje está completamente amansado.

O francês, meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. 
Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. 
Negociante de gado ou, melhor, intermediário.
Antes disso, ganhara muito dinheiro
no garimpo e no contrabando do volfrâmio,
com um sócio de Moncorvo,
seu antigo camarada de armas,
também "francês". 
Era, além disso, o dono da única mercearia da aldeia, 
com um anexo, misto de café e tasco, 
onde se podia ouvir a Emissora Nacional, 
através do único rádio existente ali e nas redondezas… 
Enfim, uma espécie de rádio, uma galera… 
Ele era engenhocas. um homem de vida, 
e, sobretudo, dava-se bem com gente graúda: 
por exemplo, um tal major de Porto Antigo, 
que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto 
e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época. 
A esposa desse tal major mandava cartas ao Salazar, 
contava a minha mãe, sempre atenta a 
(mas não menos temerosa de) 
os fios com que se costurava o poder. 
Nem por isso o meu padrinho metera uma cunha 
para livrar o filho da tropa,
durante a II Guerra Mundial. 
O rapaz esteve em Goa, como expedicionário,
com muito orgulho do pai 
e maior mágoa da mãe.

Já doente, com setenta e muitos anos, 
o meu padrinho soube da minha partida para África,
em 1968,
depois de eu ter chumbado em Belas Artes.
Eu nunca lhe pedira nada,
e muito menos agora 
lhe iria pedir que me safasse de ir parar à Guiné. 
Nem ele era homem
para aceitar um pedido desses, 
mais do que humilhante, 
inconcebível, para ambos.

Proibi, inclusive, os meus pais de o fazerem por mim. 
Tinha a mania dos princípios, dos valores, da palavra dada,
e da coerência, 
coisas que hoje não vejo ser valorizadas 
pelos mais novos, 
por exemplo os meus filhos e sobrinhos.

Quando voltei, deficiente, no verão de 1970, 
já ele tinha acabado de morrer. 
Ele e o Salazar,
que eu penso que ele nunca terá conhecido pessoalmente,
mas de quem era um admirador completamente acrítico.
O seu maior desgosto na vida 
terá sido um dos netos 
que devia seguir as peugadas do pai, 
advogado no Porto, bem de vida. 
Numas férias de verão, em meados de 60,
o neto ficou em Londres, a lavar pratos,  
e em setembro estava na Suécia. 
Foi dado como refratário ou desertor, 
não te sei dizer ao certo, 
que eu de RDM fiquei farto até aos cabelos. 
Como estava a estudar na Faculdade de Direito,
em Coimbra, 
beneficiava do adiamento da data de incorporação,
tal como eu, de resto.
Eu sei que nessa época ninguém escapava à guerra, 
até filho de general era mobilizado, diziam. 
Nunca conheci nenhum, 
nem general nem filho,
a não ser o Schulz e o Spínola,
mas não sei se esses tinham filhos em idade de ir para a tropa.
Imagino que, na pior das hipóteses, 
ficariam na guerra do ar condicionado: 
em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques…

O avô, pelo menos publicamente, 
viu na traição do neto uma desonra para a família,
e para a terra,
que ele,  abusivamente, considerava
uma extensão da família. 
Coimbra, a república dos estudantes, 
dera-lhe a volta à cabeça, lamentava-se. 
Para mais era o seu neto querido, 
o mais inteligente, 
o mais parecido com ele.
Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça
concluía o meu padrinho, 
quando o fui visitar, nas minhas férias em julho de 1969. 
Sua bênção, padrinho!
foram as primeiras palavras que lhe disse, 
desde há anos… 
– Já o pai não prestava, 
era um fraco
arrematava ele, entre dois ataques de tosse. 
As melhoras, padrinho! – 
foram as últimas palavras que lhe dirigi… 
Julgo que eram sinceras, 
que nada tinham de cínico. 
Impressionou-me a sua decadência, 
a sua descida do pedestal, 
desgastado pela doença,
acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… 
A família a desmoronar-se,
o Salazar a morrer,
a Pátria a esvanecer,
a aldeia a minguar com a emigração… 
Não podia ouvir falar do Marcelo Caetano, 
que era para ele o coveiro do Estado Novo.
Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois,
respeitado mas não amado. 
Durante décadas fora pai, padrinho e patrão, 
um verdadeiro capo,  cabo chefe,
de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal…
Era um régulo, se quiseres...

Gustavo, o neto do meu padrinho, 
ainda me escrevera um dia para o meu SPM,
quando eu estava em Nova Lamego.
Éramos amigos, 
ou melhor, mais conterrâneos do que amigos, 
tínhamos brincado juntos, quando garotos, 
nas férias de verão. 
Havia aquela cumplicidade de putos,
pesem embora as diferenças sociais.
Estudara em colégio particular, 
vivia no Porto, na Foz, em zona fina, 
passava esporadicamente férias na aldeia. 
Agora, em Estocolmo, na Suécia, 
militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer 
e angariava dinheiro para o PAIGC. 
Dinheiro que tanto servia para comprar livros e medicamentos 
como armas e munições, questionava-me eu. 
Irritou-me a sua missiva, 
cheia de metáforas, 
clichés, 
prosápia,
slogans,
frases pomposas, 
retiradas do livrinho vermelho do camarada Mao 
(Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo)…

As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC,
algo quixotescas,
guevaristas, 
desvaneceram-se 
com os imperativos da camaradagem na caserna 
e a prova de fogo na  frente de batalha. 
Não se podia objetivamente estar do lado de cá, 
fardado de camuflado,
e equipado com a G3,
a comandar 30 homens,
e ser-se um simpatizante, 
vagamente romântico, 
daqueles que nos combatiam,
de Kalash na mão
(e que nós combatíamos, objetivamente falando)… 
Além disso, chocavam-me os métodos de terror
usados pelo PAIGC 
contra os fulas, na zona leste.
Fiz alguns amigos guineenses,
quando passei pela região do Gabu,
em tabancas onde estive destacado
(Não me perguntes quais,
que os nomes varreram-se-me da memória)...

Nunca lhe respondi. 
Achava-o um puto mimado, burguês e provocador. 
Não me admirei de o vir a encontrar,
depois do 25 de Abril, 
num dos partidos do poder. 
Andará hoje  (ou andou) por Bruxelas,
segundo me disseram. 
Tinha-se casado com uma sueca, 
mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. 
Secretamente, invejava-lhe a sorte, 
ele ali no bem bom da Suécia 
e das suecas louras, de olhos azuis,
que faziam parte do nosso imaginário de machos latinos… 
e eu a gramar a pastilha
de uma comissão de serviço militar na Guiné. 
Achei que o mundo não era justo,
mas mesmo assim não me podia queixar,
estava vivo,
e os primeiros tempos, 
passados entre Bafatá e Nova Lamego,
até nem foram maus de todo. 
Ainda fiz o gosto ao dedo 
e pintei alguns quadros 
que até tiveram um ou outro comprador. 
Outros ofereci, 
a um família de comerciantes
cuja casa costumava frequentar,
e que tinha uma filha que ainda andei a catrapiscar. 
Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. 
Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta,
uma deceção...
Nunca me perdoei, de resto, ter chumbado nas Belas Artes
e de ter sido chamado para tropa...

Passei por uma crise existencial,
ou lá o que queiras chamar, não sou psicólogo,
ainda tive, uma vez, 
uma única vez, 
depois de ter despejado uma garrafa de uísque no bucho, 
a pistola Walther apontada ao céu da boca.
Senti a atração da morte, 
a vertigem do nada,
a comiseração da autodestruição,
a autopiedade...
Mas, mesmo anestesiado, 
era demasiado cobardolas para resolver, 
com um tiro mortal, 
as minhas contradições, 
pequeno-burguesas, dirias tu em 1965,
agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, 
que ainda tu ainda chegaste a conhecer, 
no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, 
a bela menina-família do Funchal, 
que estava a estudar serviço social, 
ali no Campo de Santana, em Lisboa, 
tinha-me trocado...
por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… 
Ainda trabalhara uns tempos,
na Misericórdia de Lisboa, 
num dos projectos de realojamento 
de população de um bairro de lata. 
Não esqueço a última carta que ela me mandou, 
de despedida. 
Era um encanto de miúda, 
delicadíssima, 
linda de morrer,
com pele de veludo e blusinhas de renda,
mas com pouca margem de decisão 
em relação à sua vida pessoal.

O clã é sempre quem mais ordena. 
O pai, tanto quanto percebi, 
era um homem do regime, 
da média burguesia funchalense, 
mas com problemas financeiros, 
por negócios mal sucedidos, 
na área do import-export, 
bananas, frutas tropicais, flores, ou coisa do género. 
Família numerosa, católica, um bando de filhos. 
Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora, 
nunca pensara, de resto, em pedir-lhe a mão, 
muito menos depois de conhecer o inferno na terra 
que foi a Guiné. 
Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão, 
achava-me no direito de a ter como namorada 
e madrinha de guerra e confidente...
Fui surpreendido 
quando um dos meus amigos do Funchal 
me veio lembrar que seria bom decidir-me, 
porque havia mais pretendentes na fila...
Foi um choque,
não estava preparado para tomar nenhuma decisão, 
muito menos para decidir 
quem deveria ser a mãe dos meus filhos. 
Estava na Guiné,
estava na guerra,
a milhares quilómetros da minha terra,
sem saber o que fazer ao certo da minha vida… 
sem saber sequer se iria chegar à meta, 
que era cumprir a minha pena, de 21 meses, 
de “perigos e guerras esforçados, 
mais do que prometia a força humana”, 
a pena a que fora condenado 
sem ter cometido nenhum crime… 
a não ser o de ter nascido em 1945, em Montemuro...
No mínimo, queria chegar à meta,
inteiro, de cabeça, tronco e membros.
Ainda tentei telefonar-lhe,
dos correios de Nova Lamego,
horas a fio à espera por um ligação para Lisboa... 
Em vão. 
A chamada caiu, 
nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido 
com a minha noiva,
que afinal nunca o fora. 
Acabei, já em Lisboa, bancário,
por casar com uma galega de Orense, 
que nunca chegarás a conhecer, 
pela simples razão de que já fomos,  
cada um de nós,
à sua vida.
É apenas a mãe dos meus filhos.

Depois, meu amigo, 
veio o rol de desgraças que me aconteceram:
a descida aos infernos,
a cafrealização, à maneira do Rimbaud, 
a porrada do segundo comandante no Gabu,
a ida para o sul, 
de casttigo, em rendição individual,
a mina anticarro 
que me mandou, mais de um ano e tal, 
para o estaleiro,
com passagem pela Estrela, Alcoitão, Hamburgo.
Poupo-te os pormenores,
um dia contar-tos-ei,
se tiveres tempo e pachorra,
eu próprio só agora ando a desenterrar esses esqueletos
guardados no armário da minha memória…

Tentei esquecer a Guiné durante décadas,
(o que é difícil quando se tem uma prótese...)
até ao dia em que, 
não sei porquê, 
por mero acaso,
vi o teu nome na Net 
a tua cara, 
os teus óculos, 
vi o teu nome associado a Bambadinca, 
um dos poucos sítios,
de passagen obrigatória para malta do leste,
de que guardava algumas, poucas, boas memórias…
Reconheci-te, numa foto antiga,
sem barbas, 
em tronco nu,
de óculos esfumados,
a G3 ao ombro,
em pose turística...

Em suma, desencontrámo-nos na Guiné. 
Eu nem sequer sabia que tu também lá tinhas estado,
podíamos ter ido a sorte de dar de caras um com o outro,
em Bafatá,
onde devemos ter estado alguma vez,
no mesmo dia e hora,
embora em sítios diferentes.
Mas achei piada ao teu jogo de palavras,
no mail em que me respondeste ao meu olá:
“o Mundo é Pequeno 
e a nossa Tabanca … é Grande”.

Um dia prometo telefonar-te
para marcarmos um encontro
e matar saudades.
Preciso de ganhar coragem.
Confesso que tenho medo de revisitar o passado.
E por agora ando a recuperar o tempo perdido,
depois de uma vida de idiota atrás de um balcão de um banco.
Até lá, um alfabravo,
como vocês dizem,  
do tamanho do nosso Rio Geba.
Parabéns pelo teu blogue
de que sou apenas um fortuito visitante.

Assina este relambório
o teu falhado amigo pintor, 
e, pior do que isso,
frustrado companheiro da viagem a salto
até Paris, 
viagem que nunca passou de um devaneio
de umas tantas tardes de verão 
em que estivemos, juntos, em 1965, 
no SNI, o Secretariado Nacional de Informação,
ali no Palácio Foz,
a preparar uma exposição que foi a minha vernissage,
entre copos de ginjinha nos Restauradores. 

Teu F...
o Renoir de Montemuro.

PS – Nunca mais voltei aos Restauradores 
para beber uma ginjinha… 
E perdi-te o rasto depois que fomos cada um para seu lado.. 
Mas pago-te uma ginjinha, com todo o gosto,
quando voltar a Lisboa.
Afinal fiquei com uma boa pensão de DFA,
a par da  reforma do banco.

Nota de L.G.:

Ainda estou para beber a tal ginjinha,
prometida pelo meu amigo F...
Nunca mais deu sinal de vida, 
depois que falámos longamente ao telefone,
há uns anos atrás.
Deve ter mudado de mail e de telemóvel.
Sei que adora(va) viajar.
E que tem(tinha) um filho, 
casado, arquiteto, 
a viver nos arredores de Paris. (**)

Adaptação livre, fixação e revisão de texto: LG


______________

Notas do editor


(*) Último poste da série > 26 de setembro de  2014 > Guiné 63774 - P13654: Manuscritos(s) (Luís Graça) (39):Portugueses pocos, pero locos... Ou como vemos (e somos vistos por) os outros...O que fazer com tantos clichés, estereótipos e preconceitos idiotas ? E não se pode exterminá-los ?

(**) Vd. também os postes já publicados da série "Selfies / autorretratos":

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13634: Selfies / autorretratos (1): por que é que fomos à guerra... (Vasco Pires / Luís Graça / Francisco Baptista / José Manuel Matos Dinis)

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13638: Selfies / autorretratos (2): filho único, com pai emigrado no Canadá, podia também ter saído do país, aos 17 anos... Passei pela universidade de Coimbra e lutas académicas, tendo decidido participar na guerra colonial, contrariado e sabendo ao que ia (Manuel Reis, ex-alf mil cav, CCAV 8350, Guileje, 1972/74)

30 de setembro de 2014 >Guiné 63/74 - P13669: Selfies / autorretratos (3): Em 1966 o meu pai preparou tudo para que eu fosse a “salto”, seguindo assim o trilho de milhares de portugueses (Juvenal Amado)

8 comentários:

Luís Graça disse...

Meu caro F...

Não tenho a certeza se alguma vez vais ler este texto, que resume o essencial que eu sabia de ti mais o que passei a seber da nossa última (e única) conversa ao telefone, à distãncia de 40 e tal anos...

Mas sempre te direi que ninguém é feito de uma só peça, nem muito menos a nossa história (individual e coletiva) é escrita a preto e branco.

Foi o nosso autorretrato possível (ou "selfie", como se diz agora) para este blogue que tu não segues, por que és daqueles que pôs (ou gostava de pôr) uma pedra (tumular) sobre o passado...

"O passado (e nomeadamente, o meu tempo na Guiné) está morto e enterrado", acho qyue foi a tua resposta ao meu convite para integrar a nossa Tabanca Grande, há uns anos atrás...

Respeito a tua decisão, esperando que não seja definitiva... Por isso também não te identifiquei... Mas, como eu costumo, dizer a nossa Tabanca Grande, não tenm portas, nem cavalos de frisa, nem arame farpado...

Se (ou quando) passares por aqui perto, faz-nos uma visita... Eu, pessoalmente, ficarei radiante. Por mim, por ti, pela nossa velha amizade de juventude.

Como a vida é feita de surpresas, talvez a gente ainda se encontre, em agosto, nas portas de Montemuro... E a própósito, nunca me chegaste a dizer qual é a tua aldeia. Da tabanca de Candoz até à tua tabanca, do outro lado do rio Douro, vai um tiro de obus 14...

Um abraço fraterno... Luis

Luís

Antº Rosinha disse...

Luis, talvez tenhas feito aqui o retrato do que ia na alma da maioria dos jovens da incorporação militar, das nossas gerações.

Se tu nasceste no ano da bomba atómica, outros já foi essa a primeira data que aprenderam a escrever e estranhavam aquele nome para uma bomba, quando nós nem a FBP fabricavamos ainda.

Talvez os milicianos sonhassem mais com suecas e suiças e os praças sonhassem mais com a colher de pedreiro para a reconstrução da França e Alemanha.

Mas que este blog está a contar história, não só da guerra da Guiné, mas de toda a guerra colonial e um dos momentos mais clarificadores do quem nós somos como povo, poucos um dia porão em dúvida.

E o desenrascanço de quem foi para a europa de assalto, está bastante documentado às páginas 500 e tal na "História da Oposição à Ditadura" de Irene Flunser Pimentel.

Aquele sonho com Suecas e direito a bolsa de estudos numa "feroz" luta de uns aspirantes milicianos, com nomes e tudo, contra Salazar, isso sim foi desenrascanço.

Alguns oficiais milicianos e até do quadro tentaram atravez do PCP outros atravez do PS, esse tal desnrascanço.


Alguns o próprio PCP mandava-os dar uma "voltinha ao bilhar".

E embora Irene Pimentel não registe, sabemos de alguma "burguesia" coimbrã e de outras universidades, que se desenrascaram de "a salto" com direito a mesadas de papás e até bolsas da Gulbenkian e outros com lata para serem aceites como exilados políticos.

Luís, nem aqueles que aderiram um dia a Junot ou a Wellington, e outros a Filipe III ou a D. João IV foram tão bem retratados como a nossa geração está a ser retratada neste blog.

Luís Graça disse...

1. Neste "selfie", o falante não sou eu mas sim o meu amigo F... a quem fiz (escrevi) o catálogo da sua primeira exposição de pintura, no Palácio Foz, nos Restauradores, onde funcionava o SNI, o Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo ...

Este organismo. a que esteve ligado o António Ferro (, o único ministrop de Salazar que não era doutor...) foi criado em 1933, e chamava-se então Secretariado de Propaganda Nacional (SPN)... Foi rebatisado, em 1945 como SNI em 1945. E depois comn Marcelo em 1968 foi transformado na Secretaria de Estado da Informação e Turismo (SEIT).

2. Temos um ano e picos de diferença, ele é de finais de 1945 e eu de princípios de 1947... Tenho pena de ter perdido esse catálogo, qeu começaava com uma frase do género:

"F... N..., nascido em 1945, ano zero da idade atómica..."

3. Na realidade, o mundo nunca seria mais como dantes. A nossa geração também viveu os pesadelos da guerra fria, sem as contrapartidas do(s) miçagre(s) económico(s) europeu(s)... O nosso chegou tarde e a más horas... Vivemos a adolescência com o medo da bomba atómica, e fomos vítimas da guerra fria, também em África, com as duas superpotências "incendiando o capim"...

4. O meu amigo F... queria ser pintor e ir para para Paris, não sei se por causa das "belas artes", se das "copines", se da "guerra"... Acho que queria juntar o útil ao agradável...

As francesas, na década de 60, estavam na moda, e muitos de nós aprenderam com elas (e eles), nas nossas praias, a dizer o calão da altura, expressões como "meto, boulot, dodo" (casa, ttrabalho, casa...) ou como o "vachement bête!" (muito estúpido ou idiota), de "vache", vaca (funcuonado aqui como adverbio de quantidade, sinónimo de grandemente, muito...) + bête (besta, estúpido)...

5. Era uma geração mais desinibida e desenvolta que os nossos jovens (e sobretudo as nossas garotas, ainda muito recatadas, sem garnde acesso à educação e à cultura...). Foi a geração que fez o maio de 68, nas universidades, escolas e fábricas...

Em suma, a malta nâo sonhava só com as suecas... As "copines" estavam mais à mão e o francês era mais fácil de aprender...

manuel carvalho disse...

Meu caro Luís está aqui muito de muitos de nós.As nossas aldeias daquela época os seus habitantes o que pensavam, está aqui um grande retrato de muita gente.
Também sou da fornada de 45 e dar o salto também foi uma das coisas em que pensei mas faltava muita coisa inclusive dinheiro e até coragem , que também fazia falta porque quem fosse sabia que provavelmente nunca mais veria a família enfim era uma decisão muito dificil de tomar.
Li isto com alguma emoção porque tive um amigo do qual me desencontrei durante o tempo de tropa e acabamos por viajar para a Guiné no mesmo barco sem nos encontrarmos (ele era da 2382) e soube já depois do regresso que ele tinha morrido lá de acidente.Enfim este escrito retrata muito bem aqueles tempos.Um abraço.

Manuel Carvalho

Anónimo disse...


Em complemento dos números que o Ze Martins já aqui publicou, no 1º poste da série "Os últimos anos
da guerra da Guiné Portuguesa (1959-1974), vejam-se as estatísticas disponíveis no portal "Guerra Colonial", da A25A: o que se contata é que, ao longo do tempo, aumentam as necessidades em efetivos para os teatros de operações, baixam os ingressos na Academia Militar e chega a 20% e mais nº de faltosos à inspeção em cada ano, nomeadamente na 2ª parte do período de guerra.

Muita desta gente que falta está ma emigração: no total são os tais 200 mil que já vimos no quadro estatístico do Zé Martins.

LG

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http://www.guerracolonial.org/graphics_detail?category=2


ESTATÍSTICAS - EFECTIVOS

Estatísticas sobre Efectvos: recrutados na Metrópole ou localmente, por ano e por Teatro de Operações …

INGRESSOS NA ACADEMIA MILITAR

A partir do início da Guerra Colonial o total de ingressos não parou de diminuir

TOTAL DE CAPITÃES

O total de capitães dos quadros permanentes tem tendência a decrescer com o passar do tempo

TOTAL DE EFECTIVOS

As necessidades em efectivos nos três teatros de operações não deixou de aumentar com o decorrer da Guerra.

FALTOSOS À INSPECÇÃO

O número de mancebos que faltou à inspecção foi sempre muito elevado durante todo o período da Guerra Colonial.

Anónimo disse...

Manel:

pões o dedo na ferida... Era preciso coragem e dinheiro... A emigração clandestina foi uma epopeia...

Essa época (os anos 60/70) foi propícia ao desenvolvimento de uma rede tentacular de apoio à emigração clandestina, verdadeiras máfias ... Sempre foi e será assim, em todo o lado...

Havia engajadores e passadores profissionais, por todo o lado. A colocação de um homem em Paris custava no mínimo 6 meses de ordenado de um trolha... A malta não tinha dinheiro mas tinha "crédito": na base da palavra dada, ficava-se a pagar às máfias durante os primeiros meses, ou mesmo durante um ano... Felizmente o trabalho não faltava, mesmo sendo-se explorado até ao tutano pelos empregadores que, em França, recorriam à mão de obra clandestina...

Estas redes, poderosas, beneficiavam de cumplicidades internas e externas: GNR, PIDE/DGS, Guarda Civil, Gendarmerie...

Um abraço para a geração da colheita dos anos 40...

Luis Graça

Anónimo disse...

Mais uma achega para compreender este período... LG


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Emigração maciça dos anos 60. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-10-03].
Disponível na www: .


Emigração maciça dos anos 60

Na década de 60, Portugal assistiu a um crescimento económico que se traduziu num aumento significativo do investimento e numa certa abertura à economia externa. O turismo evoluiu positivamente e as remessas dos emigrantes contribuíram, em grande medida, para equilibrar a balança comercial.

Contudo, persistiam inegáveis dificuldades económicas resultantes, essencialmente, do acréscimo das despesas públicas. A Guerra Colonial era um sorvedouro dos DINHEIROS do Estado e um das principais razões para uma problemática quebra da mão de obra agravada pela forte vaga de emigração, provocando o aumento salarial.

A crise petrolífera de 1973 debilitou ainda mais a frágil economia nacional na década seguinte. Tudo isto significou que o crescimento económico desencadeado nos anos 50 não fora suficiente. Portugal afastou-se ainda mais dos países europeus que lhe estavam mais próximos, as assimetrias regionais agravaram-se e a agricultura não conseguiu acompanhar o ritmo de crescimento de outros setores económicos.
A emigração não é um fenómeno exclusivo deste período, mas nesta década os valores atingidos em Portugal foram bastante alarmantes, pois causaram a desertificação das regiões mais carenciadas do país, onde os números da emigração atingiram valores mais elevados.

Os fatores determinantes para esta emigração massiva foram: a crise do setor agrícola, a total incapacidade dos outros setores económicos absorverem a população rural que abandonava os campos, a falta de mão de obra em muitos países da Europa e a fuga à Guerra Colonial e à repressão política. A agricultura continuava a ser um setor tecnicamente atrasado, que sofria os efeitos de uma deficiente distribuição da propriedade e do êxodo da população rural para os centros urbanos, mas que não foi absorvida pelos outros setores económicos. Esta população, oriunda do campo, foi compelida a procurar novas OPORTUNIDADESno exterior. Alguns países da Europa, como a França, que no pós-guerra conheceram uma fase de prosperidade económica, atraíram milhares de Portugueses, que aí procuraram vantajosas condições salariais e uma melhoria da qualidade de vida. Outro ponto fundamental da análise deste fenómeno é a situação política do país. Muitos cidadãos procuravam fugir não à miséria, mas à terrível guerra colonial e à forte repressão política desencadeada pelo regime contra os seus incómodos opositores.

Este surto de emigração teve reflexos imediatos na economia portuguesa. Conduziu à redução e ao envelhecimento da população, sobretudo nas regiões do interior, provocou uma diminuição da mão de obra e operou uma mudança cultural e material no país com as remessas dos emigrantes. Nos países de acolhimento os emigrantes tinham um nível de vida mais elevado, apesar da emigração, em especial a clandestina, se ter efetuado em condições extremamente difíceis.
Campo de investigação ainda em grande medida por concretizar, a emigração portuguesa (juntamente com a espanhola, cronologicamente coincidente e com motivações algo idênticas), marcou (e marca) fortemente a feição da sociedade portuguesa. O seu peso e as suas implicações, a todos os níveis, são até hoje questões essenciais da vida nacional e remontam todos os programas governativos.
Os principais destinos foram a França e a Alemanha, onde o esforço de reconstrução face à destruição gerada pela Segunda Guerra Mundial se mantinha, a Suíça, a Bélgica e a América Anglo-Saxónica, e em menor escala a Austrália. A Venezuela, o Brasil e a África do Sul foram também países de acolhimento dos emigrantes portugueses. Apesar da Guerra Colonial, muitos foram os que debandaram também para Angola e Moçambique.

Antº Rosinha disse...

Luís, é verdade, desde a PIDE e até os presidentes de Junta de freguesia e Padres e Regedores, promoveram desde os anos 50 antes mesmo da Guerra do Ultramar, a "fuga" clandestina para a França.

O interior do país, beiras e Trás os Montes, foi um investimento tão bem organizado, que hoje, 2014, nesses interiores rurais são festas com foguetes e todos os santinhos em romaria durante 3 meses de verão.

Hoje essas gerações já reformados da segurança social, alemã, francesa e Suíça, não deixam que haja crise e fome naqueles 3 meses de verão no interior abandonado.

E como eles, (nós) emigrantes dizíamos... Portugal é bom é para férias.

O BES, Banco Espírito Santo, já em 1955/6/7 etc. tinha nas aldeias de certos concelhos do interior, um barbeiro, ou merceeiro ou um taberneiro reciclados para canalizar as remessas do pessoal que vinha de vacanças.

E se Salazar pensava ou não neste resultado económico e social, não sabemos porque era muito calado, mas Marcelo procurou atravez dos consulados na Europa, apoiar e ajudar essa emigração, líamos nos jornais.