sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13795: (In)citações (70): África meteu-se-nos debaixo da pele (Juvenal Amado)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 23 de Outubro de 2014:

Carlos e Luis
Aqui vai mais um apontamento para publicar se tiver qualidade e interesse.
A foto não é grande coisa se tiverem melhor agradeço.

Um abraço para vocês e para toda a Tabanca Grande
Juvenal Amado


ÁFRICA METEU-SE-NOS DEBAIXO DA PELE

Pôr-do-sol no Rio Geba
Com a devida vénia a mundo do FRED

África é assunto infelizmente quase sempre por más razões. Para nós ex-combatentes é a nossa juventude, os nossos verdes anos, as recordações da nossa passagem à idade adulta, das nossas aventuras, das nossas partidas e dos nossos regressos. Quer obrigados ou por vontade própria, a verdade é que hoje a quase esmagadora maioria de nós celebra o ter lá estado e ter passado por aquela prova de fogo. Ninguém ficou incólume à terra vermelha.

O continente africano tem estado mais uma vez nas primeiras páginas, talvez pelo risco que causa aos países ocidentais, que de repente descobriram a gravidade do Ébola. Doença que mata nove em cada dez infectados e que é bem mais grave, pois acaba-se por descobrir que há bastante tempo atrás, esta misteriosa doença matava aldeias inteiras no Congo, onde se morria silenciosamente, escondendo os mortos e possibilitando e aumentando o contágio antes de se tornar notícia. Tornou-se mediática quando ficou comprovado que a doença embarcava com quem viajava para Espanha, Estados Unidos, Alemanha etc e, que não havia barreiras alfandegárias para ela. Depois apareceram os contágios de quem não tinha estado nos territórios afectados e as autoridades sanitárias apressaram-se a deitar as culpas para cima dos profissionais de saúde, dizendo que eles não tinham cumprido os protocolos. Enfim, cheira-me a desculpa de mau pagador ou sacudir a água do capote.

Mas esta crise tem também alguma utilidade, pois esta doença menosprezada na sua importância tendo por base a pouca mortalidade em comparação com a malária e outras pragas, encheu de medo desta vez o Ocidente e já se fala numa vacina a fazer em passo acelerado. Já com a SIDA aconteceu o mesmo mais ao menos, quando se pensava que ela só atacava os homossexuais e que a doença era um castigo de Deus para quem se dedicasse a esses comportamentos. Depois veio a verdade nua e crua de que ela atingia qualquer um com comportamento de risco, que é transversal a todas classes e credos. E também muita gente foi infectada por agulhas e transfusões de sangue.

Mas África com todas a suas misérias e belezas, meteu-se-nos debaixo da pele, ou melhor, debaixo da nossa pele também somos africanos?

Penso que é o continente onde o sofrimento do seu povo mais nos afecta, porque as notícias de lá sempre acompanham desgraças, fome, guerra, doenças e doí-nos todo aquele sofrimento.

Talvez haja relação com o facto dos primeiros homens lá terem nascido e todos nós sermos dali descendentes, o que faz de nós “pretos de pele clara” se assim se pode dizer sem ser considerado heresia como em tempos idos, pois por estranho que pareça, há menos de 100 anos um indivíduo preto não era considerado humano em muitas regiões das nossas “civilizadas sociedades”. Até aos anos 60 do Século XX, os cidadãos de cor em muitos estados do Sul dos Estados Unidos, não podiam frequentar as mesmas escolas, as mesmas igrejas, os mesmos cafés e, à cautela, não lhes era conveniente frequentar as zonas urbanas onde viviam brancos. Muitos pagaram com a vida o atrevimento de passarem em zonas dos brancos ou simplesmente por divertimento, como na agora celebre saga em filme ou em livro, que apaixona os nossos adolescentes chamada Os Jogos da Fome, onde se faz apologia à violência gratuita e irracional.

Com uma riqueza imensa, bem cedo aquele continente africano passou pelas mais difíceis privações. Os povos da costa Ocidental, a dois passos da América Latina, foram considerados mercadoria sem custos, sem responsabilidades e sem contas a prestar, tornando florescente a actividade dos navios negreiros.

Os escravos foram levados do golfo da Guiné e de Angola para as plantações do Brasil e para toda a América Latina, onde não havia índios para escravizar em quantidade suficiente, havia pretos fortes e guerreiros, que alucinados pelo que lhes tinha acontecido, não conseguiram reagir a tempo para escapar à desgraça que sobre eles caía.

Floresceu o comércio de escravos com entrepostos de onde eram embarcados e outros onde eram distribuídos, como no caso de Cuba e arredores, onde o domínio espanhol e a pirataria vária, faziam o negócio florescer com a recpeção e venda de escravos para toda a América Central e do Norte. Quando se começou a combater a escravatura, Cuba foi usada de uma forma muito ardilosa para rodear a proibição e os estados do Sul da América esclavagista, continuarem a receber escravos.

A dada altura foram criadas leis que proibiam a importação de novos escravos da costa africana, assim eles eram levados clandestinamente para Cuba e lá eram vendidos como filhos de escravos, pois a lei permitia que os senhores das plantações fossem donos dos escravos e da sua descendência. Dizem as más línguas, que as leis anti escravatura foram implementadas pelos ingleses como forma de estrangular as economias que vivam da sua prática. Não custa nada acreditar, pois ao mesmo tempo asfixiavam os estados do Sul segregacionista, com uma economia toda assente no trabalho escravo, deitavam o olho gordo para as colónias de onde eram embarcados os negros. No caso português isso durou até à entrada de Portugal na 1.ª Guerra Mundial pois os planos encaminhavam-se para o acordo secreto entre ingleses e alemães para dividirem entre si as nossas colónias. Com amigos destes quem é que precisava de inimigos?

Como se vê, em nome do humanismo e bons costumes, eternizava-se a condição dos que, mesmo nascidos homens livres, uma vez feitos escravos, transmitiam o seu estado às gerações vindouras. Mas os sofrimentos dos africanos não ficaram por aí.

À escravatura de exportação sucede-se a da colonização e aí os africanos passaram a ser escravos na sua terra. Mais tarde, quando finalmente se ilegalizou a escravatura, ela passou a “encapotada” e adquiriu o título de “contratados”.

Os “contratados” eram serviçais ilusoriamente livres, mas que dependiam do patrão para comer, dormir, da ferramenta com trabalhavam, que nunca estava paga, com o agravante de os prejuízos serem-lhe descontados a eles, que nunca tinham lucros.

A titulo de exemplo, em Angola em 1960 havia uma zona onde empresas algodoeiras que mantinham os negros num estado próximo da escravidão, (35 mil famílias) proibidos de transpor o perímetro, eram os trabalhadores obrigados a cultivar o algodão e a vende-lo ao preço da fome. A empresa limitava-se a fornecer as sementes, não lhes pagava salários, nem prestava qualquer apoio técnico, nem fertilizantes, nem pesticidas, nem compensações em caso de cataclismos, que eram normais em forma de secas ou cheias. Depois de um dia de trabalho duro, os agricultores viam-se obrigados a fazer vários quilómetros até pequenos pedaços de terra, para assim cultivarem os próprios alimentos, porque a empresa cercava as aldeias com plantações, sem deixar um palmo de terra que fosse para outra coisa que não fosse algodão. Na terra onde nasceram no meio de tanta riqueza, não eram donos de nada nem da esteira onde dormiam.

Mas vieram as guerras de libertação.

As potências coloniais foram obrigadas a reconhecer as independências à custa de muito sangue e sofrimento, mas o problema não ficou ai resolvido, porque aos movimentos libertadores sucederam-se golpes de estado, na maioria das vezes apoiados pelas antigas potência colonizadoras. Na maioria dos casos saiu a mão de obra qualificada branca e entraram mercenários e consultores militares. Aos governos corruptos, são os seus ditadores recebidos ou tolerados pelas nações ocidentais, que continuam assim a explorar as riquezas do continente semeando a escravatura, a tragédia, a miséria e as guerras. As fabulosas fortunas depositadas em instituições europeias e também dos USA nas suas contas (até há pouco tempo credíveis), tem como contra partida o fluxo de armamento, chegando ao inimaginável de só em Angola, com dez milhões de habitantes, chegou a haver uma mina antipessoal por cada angolano.

Aos maus governos sucedem-se as más guerrilhas e, a uns ditadores, sucedem outros ditadores, mas o trafico de madeira, marfim, diamantes, ouro, petróleo, colton, prata, cobre, etc nunca pára. Na Bélgica, na Inglaterra, na Holanda e nos USA, limpa-se o sangue de milhares de homens, mulheres e crianças, e convertem-se as pedras, em bruto, em gifts, que enchem as lojas mais chiques das capitais de todo o Mundo. É negócio sujo mas lucrativo, e as autoridades, hipocritamente, fecham os olhos ao que se passa no terreno, chegando os diamantes a serem exportados por países como a Libéria, que não são produtores e onde eles entram ilegalmente, para saírem de lá legais para o mercado europeu. Rodeia-se assim o adjectivo horroroso de “diamantes de sangue”.

África é um continente riquíssimo que vive permanentemente da caridade alimentar e medicamentosa, quando é detentora da maior área para produção agrícola disponível em estado virgem no Mundo.
Como é possível que não haja um fim para este estado de coisas?
Ninguém me tira da cabeça que seriam muito mais felizes se nunca por lá tivessem visto um branco, e nunca tinham dado pela sua falta. África não transforma praticamente nada do que lá é extraído, mas também não fabrica armas que aparecem como por milagre.

O povo vive em cidades super povoadas, para onde fugiram à guerra, na mais profunda das misérias humanas, sem água potável, sem saneamento básico, a que só as elites têm acesso.

Para o bem e para o mal, hoje África está nas mãos dos africanos, resta saber se eles saberão sacudir as últimas grilhetas e libertar finalmente o seu próprio povo.

Atrevo-me a transcrever o que José Saramago publica a dada altura num dos seus cadernos de Lanzarote - Diário V:  
“Tentei expressar neles a angustia, o medo e também a esperança de um povo vivendo sobre ocupação, primeiro resignado e submisso, depois, pouco a pouco organizando a resistência até à batalha final e ao recomeço da vida paga com mil mortes. Coloquei no futuro esse povo de um pais não nomeado - Imagem de quantos viveram e vivem sob o domínio e o vexame de outro mais poderoso -, pensando por ventura que estaria descrevendo os últimos sofrimentos da humanidade que enfim ia principiar a lenta aprendizagem da felicidade e da alegria, sabendo embora que nada de nós ficará debaixo da sombra que vamos projectando no chão que pisamos.
Nem os sofrimentos acabaram nem a felicidade começou. E, a estas horas, frase por frase, palavra por palavra, quantos povos no mundo, aqui e em toda a parte, não leriam hoje estas páginas como o livro da sua dor e da sua imortal esperança”.

Um abraço para todos
Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13733: (In)citações (69): Amigos das ONGD Ajuda Amiga e Tabanca Pequena, é importante abrir poços, mas se a água não for "Iagu Sabi", a população abandona-os (Cherno Baldé, Bissau)

4 comentários:

JD disse...

Olá Juvenal!
Boa reflexão sobre as injustiças sociais em diferentes planos históricos, e em diferentes níveis civilizacionais. A escrevatura, em diferentes manidestações de dominadores e dominados, situações que persistem, apesar de alguns esforços para garantir a dignidade.
E soluções para o equilibrio social e o alcance da equidade?
Durante o tempo colonial português, e até aos primórdios do terrorismo em Angola, referes vcom rigor o ambiente esclavagista nas áreas da Cotonang, mas irrompeu o terrorismo na região do café, e primou por matar, matar , matar indiscriminadamente brancos e pretos de outras raças. Sem qualquer organização política. O MPLA, cujos fundadores tinham recebido inspiração nos debates estudantis inspirados na igualdade entre os cidadãos, antes do golpe de Abril estava moribundo, dividido por rivalidades internas, mas, sobretudo, destroçado pelo desenvolvimento de uma sociedade com aumentos notáveis de escolaridade, de prestações sociais, e de integração de raças em função dos níveis de preparação de cada um face às ofertas de emprego.
Com a desistência do MFA para o prosseguimento dessa acção de desenvolvimento colectivo (não era o modelo socialista, mas havia nítidos indices de desenvolvimento, o MPLA recorreu à "solidariedade" da órbita sovietica, e conduziu vitoriosamente a guerra civil, marcada pelos mais ignóbeis ataques, vinganças, e chacinas. Permeáveis às benesses do poder, aqueles que lutaram pelo socialismo depressa cairam na tentação das luzes, e trocaram a solidariedade sovietica, pela americana.
Então, o problema não se situava na exploração colonial? A terra negra não era judiciosamente para os pretos? O que falhou?
Falharam os princípios, e o despreconceito nas relações de classe e raciais.
E como é que se ultrapassa esse estágio?
Não tenho a solução, mas tenho o convencimento de que sem educação cívica, a ministrar desde muito cedo nas escolas, no sentido de se privilegiar o interesse público relativamente aos modelos egoístas de acumulação, com especial incidência pelas práticas da igualdade e da solidariedade. com o objectivo de realizar aqules princípios que permitam a harmonização e justiça social, com garantias para o desenvolvimento em exclusiva dependência das necessidades colectivas.
Esta é a minha breve reflexão sobre a matéria que suscitas.
Com um grande abraço
JD

António Martins Matos disse...

Gostei.
Um abraço

AMM

ana oliveira disse...

Amigo Juvenal

Gostei da análise que fazes sobre as causas que levaram à situação de miséria em que viveram e vivem os povos africanos.

Um grande abraço

Francisco Baptista

Anónimo disse...

Caro amigo Juvenal,

Em 1973, quando cheguei aos EUA, a cidade de Boston e o estado de Massachusetts, considerados os bastiões da independência e do liberalismo americano, ainda viviam situações de racismo que me chocaram tremendamente. No ano seguinte o Juiz Federal Arthur Garrity assumiu o controlo do Conselho Escolar de Boston e obrigou a dessegregação das escolas de Boston. As escolas mais pobres foram fechadas, os alunos foram transportados para fora da sua área, professores de raça negra, até essa altura constituíam apenas 5 por cento do professorado, foram contratados.

A acção do Juiz Garrity desencadeou lutas raciais violentas que se prolongaram no ano escolar de 1974.
Sem julgar a sua acção, a verdade é que o que aconteceu em Bostou rapidamente se alastrou ao resto dos Estados americanos e a América nunca mais foi a mesma. Certamente que ainda há muito para fazer neste grande País de contrastes sociais, mas que aprende rapidamente com os seus erros. É salutar ver os cidadãos dos EUA elegerem um presidente de raça negra.

Um dia, creio, a África negra também será capaz de eleger alguém cuja pele seja diferente. Até lá será cómodo para ela continuar a culpar as potências coloniais e as multinacionais pela sua própria desgraça.

DApesar de considerar o teu artigo excelente, no meio de tantos culpados, há algo que foi omisso, a culpabilidade do destinatário final dos produtos de sangue, de escravatura: eu e tu! Porque quer queiramos ou não, somos nós, consumidores dos productos e serviços, que temos sempre a última palavra. Sem a nossa colaboração activa no consumo a corrupção que alegas não teria pernas para andar.

A corrupção é uma rua de dois sentidos, o que corrompe e o que se deixa corromper. O seu tabuleiro é constituído por todos os extractos sociais.Ou estarei errado?

Um grande abraço de amizade.
José Câmara