terça-feira, 25 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17283: Efemérides (248): 25 de Abril: Um regime em conspiração (Carlos Matos Gomes, Cor Cav)


"Brigada do Reumático"


1. Mensagem do nosso camarada Carlos Matos Gomes, Coronel Cavalaria Reformado (ex-2.º CMDT Batalhão de Comandos da Guiné, 1972/74), escritor e historiógrafo da guerra colonial, com data de hoje, 25 de Abril de 2017:


Meus caros amigos e amigas.
A propósito de mais um 25 de Abril escrevi um artigo na plataforma Medium sobre o impasse da questão colonial, que conduziu à ruptura violenta dentro do regime do Estado Novo.
O 25 de Abril de 1974 resulta da convicção de todas as instâncias do poder de que a guerra estava perdida - por isso todos conspiravam. São os registos de alguns dos actos dessa conspiração generalizada para resolver o impasse da guerra sem solução que eu reuni. Quando o Presidente da República conspira contra o Primeiro Ministro, quando este conspira contra o Presidente e contra os generais, quando os generais conspiram entre si e com os seus capitães, quando os capitães conspiram contra o governo e os generais não se vive, certamente, um ambiente de vitória. Procuro recolocar os acontecimentos nas circunstâncias da época e não como podiam ter sido.

Um bom dia para todos do
Carlos Matos Gomes

Aqui vai o link para os que tiverem interesse e curiosidade

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2. Com a devida vénia, transcrevemos o artigo do Cor Cav Ref Carlos Matos Gomes

25 de Abril: Um regime em conspiração

A partir do Verão de 1973 o regime que Salazar criara e talhara dos pés à cabeça nos anos 30 do século passado, plasmado na Constituição de 33 e retocado com a integração do Acto Colonial em 1951,  era um ninho de vespas em conspiração total, um jogo de todos contra todos e salve-se quem puder.

A partir do Verão de 1973 todas as fações do regime, todas as personalidades marcantes e todas as instituições conspiram uns com os outros ou contra os outros. A partir do Verão de 1973 todas as fações do regime tinham uma consciência comum: a questão colonial caíra num impasse e era necessário sair dele. O regime assente na ditadura e no colonialismo esgotara-se e chegara ao fim.

É impressionante a lista de acções conspirativas no interior do regime a partir do Verão de 1973:



Guiné > Algures > Maio de 1973 > Costa Gomes, Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, dá início, a 25 de maio de 1973, a uma visita ao Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG), para se inteirar do agravamento da situação militar e analisar medidas a tomar com vista a garantir o espaço de manobra do poder politico em Lisboa. Na foto, vê-se o Gen Costa Gomes à direita de Spínola, falando com milícias guineenses. Foto do francês Pierre Fargeas (técnico que fazia a manutenção dos helis AL III, na BA 12, Bissalanca), gentilmente enviada pelo nosso camarada Jorge Félix (ex-alf mil piloto heli, BA12, Bissalanca, 1968/70).

Foto: © Pierre Fargeas / Jorge Félix (2009). Todos os direitos reservados.
Spínola, que já estava em rutura com Marcelo Caetano, demite-se de governador e comandante-chefe da Guiné. Deixa uma situação militar gravíssima, já tem pronto o rascunho do “Portugal e o Futuro”, que contesta a as políticas de Marcelo Caetano e de Américo Tomás. Em Lisboa, Spínola conspira com Kaúlza de Arriaga, demitido por Marcelo Caetano em termos que jamais haviam sido utilizados nas relações entre o governo e os militares pela sua incapacidade de controlar o agravamento da situação em Moçambique e pelos escândalos dos massacres de populações, que assumiram dimensão internacional. Kaúlza de Arriaga, um dos salazaristas mais intransigentes, regressou a Lisboa para conspirar contra Marcelo Caetano.

Os generais de África, do Exército e da Força Aérea conspiram. Os salazaristas, adeptos da intransigente defesa do ultramar, reunidos à volta de Américo Tomás, organizaram o Congresso dos Combatentes, em Junho, no Porto. Largos sectores de militares dos quadros permanentes reagiram com abaixo-assinados e telegramas de repúdio. Uma atitude reveladora do mal-estar e da conspiração interna que atravessava as patentes intermédias das Forças Armadas.

Os capitães conspiram, aproveitando o pretexto de uns decretos sobre promoções, a primeira reunião é a 18 de Agosto, em Bissau, a 9 de Setembro realiza-se uma outra em Évora, com grande adesão. A conspiração dos quadros intermédios alastra e revela a sua oposição ao regime, tanto na questão das soluções para a guerra, como na ausência de democracia.

A 14 de Setembro, os generais Spínola, Venâncio Deslandes, Kaúlza de Arriaga e Pinto Resende reuniram-se em Lisboa num almoço para discutir a hipótese de substituição de Marcelo Caetano. Estes encontros continuaram com diferentes actores, mas sempre com a presença de Kaúlza de Arriaga. Chegou a ser estabelecido um contacto com a organização dos capitães, que rejeitaram qualquer hipótese de colaboração.

A agitação dos capitães e a forma como o ministro da Defesa, Sá Viana Rebelo, lidou com o assunto, foram a causa, ou o pretexto, para Marcelo Caetano remodelar o governo, transitando Silva Cunha do Ultramar para a Defesa e entrando Rebelo de Sousa para o Ultramar. Esta remodelação, conjugada com a nomeação, ainda em 1972, do engenheiro Santos e Castro para governador de Angola têm sido apontados como fazendo parte de um plano conspirativo de Marcelo Caetano para provocar uma independência unilateral de Angola. Um acto contra os sectores radicais do salazarismo.

Ainda no Verão de 1973, e após substituir Kaúlza de Arriaga, Marcelo Caetano abriu a possibilidade de uma solução política em Moçambique. Em Setembro, o engenheiro Jorge Jardim encontrou-se com Keneth Kaunda, presidente da Zâmbia, para estabelecimento de um primeiro acordo de princípios para resolver a situação de Moçambique, que ficaria conhecido por “Programa de Lusaca”, e que seria apresentado a Marcelo Caetano. O “Programa de Lusaca” era, em resumo, uma proposta de início de negociações entre Portugal e a FRELIMO para uma futura independência de Moçambique. Jorge Jardim apresentou esta versão a Marcelo Caetano seguida de uma outra no início de Fevereiro.

A 17 de Dezembro, numa aula no Instituto de Altos Estudos Militares, o major Carlos Fabião, em nome do movimento dos capitães, denunciou o golpe que Kaúlza de Arriaga estava a preparar, confirmando que não era a intensificação da guerra e o endurecimento do regime que os jovens militares pretendiam.

A conspiração estende-se ao topo da hierarquia do Estado e do regime. A 21 de Janeiro, Américo Tomás reuniu-se na Messe de Monsanto com os ministros militares e com o presidente da Junta Central da Legião Portuguesa, repetindo a reunião em Fevereiro, agora na base do Alfeite, num evidente processo de conspiração contra o chefe do governo.

Ainda em Fevereiro, o general Spínola, vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, publicou o livro “Portugal e o Futuro”, que contrariava as teses do governo sobre a questão colonial e a guerra. Marcelo Caetano faria mais tarde o seguinte comentário no seu livro de memórias, «Depoimento»: “ao fechar o livro tinha compreendido que o golpe de Estado militar, cuja marcha eu pressentia há meses, era agora inevitável”. Dois dias após ter terminado a leitura do livro, Marcelo Caetano convocou os generais Costa Gomes e António de Spínola e convidou-os a tomarem o poder, opção que estes recusaram.

A 28 de Fevereiro, Marcelo Caetano apresentou o pedido de demissão a Américo Tomás, que este não aceitou. Seria um dos três pedidos de demissão de Marcelo Caetano, como viria a revelar mais tarde.

A 11 de Março, Américo Tomás convocou Marcelo Caetano e impôs-lhe a exoneração de Costa Gomes e Spínola. O chefe do governo respondeu que, tendo autorizado a publicação do livro, não tinha moral para aplicar qualquer castigo. Horas depois de ser recebido por Américo Tomás, Marcelo Caetano enviou mais uma vez ao Presidente a sua própria carta de demissão. Américo Tomás respondeu: “já é tarde para qualquer de nós abandonar o cargo”.

A 14 de Março, um numeroso grupo de generais dos três ramos da Forças Armadas, que ficou conhecido pela “Brigada do Reumático”, reuniu-se no átrio do palácio de São Bento para se manifestar de acordo com a política ultramarina do governo. No dia seguinte, os generais Costa Gomes e Spínola, que não participaram na reunião, foram demitidos dos seus cargos.

Em reacção a estes acontecimentos, a 16 de Março, a unidade militar das Caldas da Rainha saiu em direcção a Lisboa, numa tentativa frustrada de levantamento militar, com a participação de militares próximos de Spínola.

Por outro lado, a 26 de Março, um enviado de Marcelo Caetano, o diplomata José Manuel Villas-Boas Vasconcelos Faria, encontrou-se secretamente em Londres com uma delegação do PAIGC, para negociações sobre o problema da Guiné. O ministro dos Negócios Estrangeiros não foi informado. A 4 de Abril, Marcelo Caetano enviou secretamente,  a Paris, Pedro Feytor Pinto, director-geral dos serviços de informação do governo e seu homem de confiança. Feytor Pinto reuniu-se com Jacquers Foccart, Monsieur Afrique, responsável pelas relações com África no Palácio do Eliseu, com o objectivo de conseguir uma terceira via para a questão de África, através de Senghor, do rei Hassan II, de Marrocos, e Félix Houphoet-Boigny, da Costa do Marfim. O governo foi mantido à margem deste encontro. Anteriormente, já Marcelo Caetano tinha desenvolvido outras iniciativas secretas de contactos com o PAIGC, o MPLA e igrejas protestantes, sempre à margem dos membros do governo, do Presidente da República e das Forças Armadas.

O partido do regime, a Acção Nacional Popular, estava dividido em três facções, os salazaristas, reunidos à volta de figuras como Cazal Ribeiro, tendo o patrocínio de Américo Tomás; os marcelistas, que tinham como porta-voz, Guilherme Melo e Castro; e a «Ala Liberal».

As Forças Armadas também estavam divididas entre os adeptos da solução militar, reunidos à volta de Kaúlza de Arriaga e com o apoio de Américo Tomás, os que procuravam soluções políticas para a guerra e uma evolução do regime, reunidos à volta de Spínola e de Costa Gomes, e ainda os capitães, como adeptos de uma ruptura com o regime e com a sua política colonial e de ditadura.

O 25 de Abril de 1974 resultou do confronto e das alianças que se estabeleceram entre estes grupos no interior do regime. Foi um golpe de que saiu vencedora a aliança entre os militares spinolistas e os capitães adeptos da independência das colónias e da democratização do regime. Vindos do interior do anterior regime, transitarão para a nova situação os políticos da «Ala Liberal».

Esta era a situação nas vésperas do 25 de Abri de 1974. Contra os factos, contra a realidade da História, mantêm-se ainda hoje resquícios de saudade da ditadura e do colonialismo que apresentam o golpe de estado do 25 de Abril como uma ação de um grupo de jovens militares, de patentes intermédias, politizados (comunizados) pelos estudantes que prestavam o serviço militar como milicianos e não queriam fazer a guerra.

Uma leitura em que o 25 de Abril é apresentado como a ação de um grupo exterior ao regime, de opositores ao governo de Marcelo Caetano e à política colonial, designada como ultramarina pelo Estado Novo. Para esses irredutíveis, existiria em 1974 uma maioria nacional e patriótica, defensora do Portugal pluricontinental e plurirracial, que foi vencida por uma facção vinda do exterior, o movimento dos capitães, depois Movimento das Forças Armadas.

Esta leitura mantém-se ainda hoje com várias tonalidades, desde a que defende não estar a guerra perdida — como se a recusa de uma parte decisiva das tropas em continuar a combater não materializasse a vitória do inimigo — à que fantasia as glórias e as grandezas de um império que nunca foi politicamente estruturado, nunca foi economicamente viável, nem sequer criou aos portugueses condições de riqueza e bem-estar, impelindo-os à emigração para outras paragens que não o mítico império.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17099: Efemérides (247): Poema de Maria Amado dedicado a seu pai João Amado, Soldado Auxiliar de Cozinheiro da CCAÇ 3489/BCAÇ 3872), morto em combate faz hoje 45 anos (Maria Amado / Juvenal Amado)

3 comentários:

Cherno AB disse...

Caros amigos,

Aproveito para agradecer ao Carlos Matos Gomes por mais esta licao de Historia sobre a Guerra colonial ou Guerra do Ultramar. O texto ajudou-me a fazer a compreender muito sobre um periodo complexo da historia de Portugal e com este texto, para os que querem acreditar, acabou com o mito, a ilusao ou o insuportavel paradoxo da Guerra que nao foi perdida, mas que, tambem, nao foi ganha.

Obrigado amigo Carlos pela licao que acaba de nos dar numa analise bem formulada.

Um abraco amigo,

Cherno AB

antonio graça de abreu disse...

São bem conhecidas as opções políticas e ideológicas (pós 25 de Abril, até hoje!) do nosso camarada Carlos Matos Gomes. Opções que se notam, naturalmente, em tudo o que escreve. Vejam-se os seus claros textos no Facebook. Na minha insignificante opinião, Carlos Matos Gomes, em vez de fazer a História,sem paixão ideológica, olhando-a bem de frente,desvia-se sempre para a esquerda, enviesa o olhar.Está no seu pleníssimo direito.
E também diz e escreve coisas com que eu, humilde alf. mil. 1972/74,em Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, concordo. Com certeza, a guerra estava politicamente perdida desde o primeiro dia, e era surreal a inépcia da ditadura mole que nos governava.

Abraço,

António Graça de Abreu

Manuel Luís Lomba disse...

Protesto a mais elevada consideração pelo camarada Carlos Matos Gomes, na sua evidência de soldado valente e de escritor prolífico e sério; mas tenho para mim que os avatares de combatente profissional, a reflexão e a auto-crítica o terão impulsionado a irmanar-se com as "motivações" do PAIGC.
Portugal, império pluri-continental e multirracial foi mais que um sonho - foi uma temerária longeva ousadia dos portugueses, durante 500 anos!
A Guerra da Guiné estava politicamente perdida a partir do momento em que lá pusemos os pés - previsão dos "Velhos do Restelo", percepção de Nuno Tristão (na sua eternidade) e do MFA (em 1973).
Ela estava militarmente perdida em 5 de Março desse ano (o momento da metamorfose do Movimento dos Capitães corporativo em Movimento das Forças Armadas conspirativo)?
Alinho com as análises e conclusões coevas dos generais Costa Gomes e Bethencourt Rodrigues.
Ab.
Manuel Luís Lomba