Mostrar mensagens com a etiqueta Buba. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Buba. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 16 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25396: Humor de caserna (58): O anedotário da Spinolândia (IX)... O "Fugitivo", por Manel Mesquita ("Os Resistentes de Nhala, 1969/71", s/l, ed. autor, 2005, pp. 130/132)


Capa do livro do Manel Mesquita, 
"Os Resistentes de Nhala", ed. de autor, 2005, s/l, 2055, 144 pp. 
(Gráfica: Quadra - Produções Gráficas Lda, Vila Nova de Gaia.)
(Contactos do autor: tel 22 762 07 36 | telem 963 525 912)


1. Não havia só as anedotas do "Caco Baldé", ou do "Gasparinho"... Havia uma Spinolândia, do Cacheu ao Cacine... Naquela guerra, todos os bons pretextos para um gajo se rir ajudavam a passar o tempo e amenizar as agruras do arame farpado e das operações no mato (*)... 

Há "cromos" que ficam para a eternidade, "grafados" no papel. Outros vão desaparecer dos neurónios da nossa memória.  Já aqui citámos alguns dos "heróis" do livro do Manel Mesquita,   "Os Resistentes de Nhala, 1969/71" (ed. de autor,  s/l, 2005, 144 pp.), como por exemplo o Mário...

O Mário já estava farto de estar na Guiné e um dia encheu-se de coragem e interrompeu o general, em plena parada, em Aldeia Formosa, para expor a sua situação: "Vossa Excelência, meu general, dá-me licença ?" (**)...

O general deu-lhe "licença" e o Mário ganhou um "bilhete" para regressar a casa  no primeiro barco... A história foi contada pelo Manel Mesquita, o autor dos "Resistentes de Nhala",  soldado da CCAÇ 2614 / BCAÇ 2892 (Bissau, Nhala e Aldeia Formosa, 1969/71). 

O nosso crítico literário já lhe dedicou em tempos, ao livro e ao seu autor (que conheceu a caminho de Fátima), duas saborosas e generosoas "notas de leitura" (***)

(...) "Este testemunho deixa-me emudecido, o Manel é um coração pacífico, nunca mais esquecerá Nhala. E o que ele vai registar de tipos humanos, camaradas que encontrou, gente inesquecível, é surpreendente." (...) 

Nessa galeria de figuras humanas, do tempo da Spinolândia, está o "Fugitivo"... Merece figurar aqui num poste, na montra grande do nosso blogue. Não sei se o Spínola o conheceu, mas deveria, por certo, de gostar de o conhecer. Nós gostámos e pedimos licença ao Manel Mesquita para partilhar o seu retrato-robô com os nossos leitores. É um retrato feito a traço grosso, convenhamos. Mas o leitor vai-se rir a bandeiras despregadas, como nós rimos. 

É uma figura bem típica da "literatura  pícara" da nossa guerra. Como é nosso timbre, não fazemos juízos de valor sobre os nossos camaradas... A verdade é que "a tropa mandava desenrascar"... E o "Fugitivo" era um militar desenrascado... À letra, desenrascado é alguém que se sabe "livrar de um perigo, de apuros, de dificuldades."...

Reproduzimos aqui, com a devida vénia, essas duas páginas do livro. É também uma homenagem aos "resistentes de Nhala", os bravos da CCAÇ 2614.


O "Fugitivo"

por Manel Mesquita

O "Fugitivo" era natural e residente no concelho de Sintra. Era fisicamente muito baixo e entroncado, um artista a jogar futebol, preferia o lugar de médio atacante.

Quando fomos para a recruta, rodava na televisão uma série com o nome "O Fugitivo". Ele assentou praça com um braço ao peito por fratura. Como havia outro, o outro levou com a alcunha de "Maneta". E o nosso Manuel Pedro M... levou com a alcunha de "Fugitivo". 

Nunca se importou. Era uma pessoa alegre e com sentido de humor. 

(i) A tomar banho, um dia, deu nas vistas o seu curto pénis, foi motivo de chacota durante toda a comissão, principalmente na presença de mulheres africanas. Ele não desarmava, dizia que era proporcional ao corpo.

(ii) Quando veio de férias, gabou-se e passou a constar-se que andava com uma determinada moça jeitosa e com dote. Tinha barba muito forte, uma manhã foi ao barbeiro, todos os cumprimentaram o recém-chegado e deram-lhe a vez. 

Quando o barbeiro lhe passava a navalha de barba pela parte da frente do pescoço, perguntou-lhe:

− Então você é que é o tal que se gaba que anda a comer a minha filha?!

O Manel Pedro (como é lá conhecido) perdeu o sentido de humor, quase perdia a fala:

− Eu?!..., na, na, eu não!... É mentira. Isso é uma grande mentira..., eu até nem gosto de mulheres!!!...

O barbeiro voltou-se para a sua mesa de trabalho, passando a navalha pelo assentador.

O "Fugitivo" mostrou  por que lhe chamavam tal nome: levanta-se da cadeira, larga as toalhas e, junto da porta, grita para dentro:

− Eu... eu até sou paneleiro!

Fugiu da barbearia com a barba meia feita e meia por fazer e toda por pagar, nunca mais  por ali ele quis passar. 

Mostrou, mais uma vez,  que não foi por acaso  que o batizaram como "Fugitivo". Ficou então a saber a que a tal Maria do Carmo era a filha do barbeiro...

(iii) Quando convidado para um petisco, era sempre o primeiro a aparecer. Era um bom garfo! Para trabalhar e para as saídas (para o mato) era sempre o último. Quando preparávamos a saída, o alferes perguntava se estava o "Fugitivo"; se sim, estava tudo, podíamos sair.

Escapava-se,  sempre que podia,  às faxinas e outros serviços de quartel.

(iv) Um dia segredou a um de nós que a namorada se queixava que nos aerogramas e cartas não lhe mandava palavras doces... Então o "Fugitivo" encheu-lhe uma aerograma de palavras como: marmelada, geleia, mel, açúcar, compostas, etc., isto para o pequeno-almoço;  para o almoço: laranjas, tangerinas, etc.; para  o lanche, marmelada, mel, geleias, etc.; para o jantar:  uvas, figos, maçãs, pêras, etc. 

(v) Um colega estava com uma máquina fotográficas na mão, ele meteu-se  todo dentro de um bidão e... pediu-lhe:

− Tira-me uma fotografia de corpo inteiro para mandar à moça.

(vi) Num dos patrulhamentos, parámos para descansar junto à "Bolanha dos Passarinhos". Tirou a carga para descansar e,  quando levantámos, nunca mais se lembrou que deixara ali no chão o cano suplente da HK 21. 

Quando chegou oa aquartelamento deu pela falta. Preocupado, disse a todos a enrascada  em que estava envolvido, que tinha que ir lá  buscar o cano. 

Como raramente falava a sério, ninguém se acreditou. Era noite, preparou-se e começou a ir sozinho. Foi aí que o pessoal se acreditou, e apareceram voluntários a comunicar e a pedir autorização ao capitão para ir ao local.

O "chefe" comprendeu a aflição do soldado e mandou uma viatura. Soubemos que havia correio em Buba, aproveitámos  e fomos lá buscar o que para nós era importante receber. A viatura avariou, e não havia mecânico. Desenrascámo-nos, mas chegámos ao aquartelamento era quase meia-noite, sem jantar e sem comunicações com ninguém, mas já com o cano que era considerado material de guerra.

(vii) Dizem que um dia mandou dizer à mãe (não sei esta é verdade, ele nega; "lerpar" era um calão que queria dizer, para nós, morrer)... Ter-se-á referido a um colega duma aldeia vizinha, nestes termos:

− Minha mãe, o ... (nome do fulano) lerpou. Vai antes do tempo. Um dia destes ele vai chegar aí, num barco.

Na volta do correio, a mãe respondeu-lhe:

− Meu filho, vê se lerpas também, para vires mais cedo daí! 

(Revisão / fixação de texto para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG)

Fonte: in Manel Mesquita, "Os Resistentes de Nhala", ed. autor. s/l, 2005, pp. 130/132.
(Gráfica: Quadra - Produções Gráficas Lda, Vila Nova de Gaia.)

 ______________

Notas do editor:

(**) Vd. poste de 26 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25308: O Spínola que eu conheci (36): A história do Mário, da CART 2478, contada pelo Manuel Mesquita, da CCAÇ 2614 ("Os Resistentes de Nhala: 1969/71", ed. autor, 2005)

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25368: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (33): Na Praia de Varela, pescando para o prato em dia de Sexta Feira Santa...

Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Praia de Varela >  29 de março de 2024 > Pescando para o  prato... e mostrando também o avanço do mar e a erosão costeira, que o Patrício tem denunciado há muito... Mas é a sua praia de eleição (*).

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2024) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. O Patrício Ribeiro não se esqueceu de nos mandar votos de Boa Páscoa. No passado dia 29 de março, às 17:46, há treze dias atrás... 29 foi sexta feira, Sexta Feira Santa para os cristãos. E o Domingo de Páscoa foi a 31... 

Nós é que não conseguimos, em tempo oportuno, fazer o devido poste e agardecer-lhe as "amêndoas"... Do incumprimento pedimos desculpa ao "pai dos tugas", um dos "homens grandes" da Guiné-Bissau, e nosso colaborador permanente.


A mensagem era do seguinte teor:

Boa Páscoa para todos.
Junto uma foto da praia de Varela.
Por aqui, sempre está mais quente e sem chuva.
Como estamos ainda estamos na Quaresma, há que pescar para o prato.
Abraço


Aqui fica o registo possível, com a nossa boa vontade e votos de boas pescarias...Aproveitamos para publicar mais um poste na série "Bom dia desde Bissau"... O último foide 15 de janeiro (**).

2. No passado dia 8 de março, eu tinha-lhe mandado um pedido, esperançado que ele já estivese por Bissau, mas afinal não estava:


Data - 8 de março de 2024, 16:44
Assunto - Joaquim Pinto Carvalho: Hotel Coimbra, Bissau, de 9 a 13 do corrente

Patrício, "pai dos tugas":

Não tens dado notícias... Imagino que estejas a passar o "inv(f)erno" em Bissau... Sempre é mais "quentinho" do que em Águeda... A menos que tenhas vindo "botar" aqui no "Puto", no dia 10....

Se sim, partindo do princípio que estás em Bissau, vou dar o teu contacto, ou melhor, o da tua empresa a um amigo meu e nosso camarada, membro da Tabanca Grande, que vai aí uns dias, em "romagem de saudade"... Ele foi alf mil nos idos anos de 1971/73, em Buba (CCAÇ 3398) e em Bedanda (CCAÇ 6). Hoje é advogado, meu vizinho e "amigo do peito". Nome: Joaquim Pinto Carvalho (...). Tem mais de 60 referências no nosso blogue:

Ele vai, com mais uns antigos graduados da companhia de Buba (CCAÇ 3398) (que fez a IAO em Bolama), incluindo o capitão, hoje coronel (Filipe Ferreira Lopes), mais um alferes e uns tantos furriéis. Vão estar alojados no Hotel Coimbra. E têm uma visita, creio que de um dia, a Buba (e, se der, a Bedanda). Penso que também querem revisitar Bolama, que tu conheces bem... Partem amanhã de manhã, de avião, e regressam na 4ª feira.

Dou ao Joaquim o teu contacto sem ter falado contigo antes. Sei que tu és sempre, nestas circunstâncias, o nosso "embaixador da amizade e da camaradagem" e seguramente a melhor e a mais fidedigna fonte de informação sobre a Guiné-Bissau.

É apenas um "contacto de emergência" ou de "agência", no caso do grupo precisar de alguma informação ou "dica" especial da tua parte (por ex, onde comer um "pitchipatche" ou caldo de ostras).

Eles nunca mais voltaram aí, desde há 50 anos... Se for preciso, o Joaquim pode contactar-te a partir do Hotel Coimbra, cuja gerência tu conheces bem... E até pode acontecer chegarem a conhecer-se, apesar da agenda apertada do grupo (que ficará, todas as noites, no Hotel Coimbra).

Mantenhas. 
Luís

No mesmo dia, na volta do correio, às 20:20, o Patrício respondeu-me com conhecimento ao Joaquim Pinto Carvalho:

Boa noite, Luís.

O teu email foi parar ao lixo só agora o vi. Este ano não fui passar o Carnaval a Bissau, foram já 39.

Ainda estou em Pt, quase sempre por Águeda. Algumas consultas e outros assuntos.

Como deixei de ser solteiro, faz agora 50 anos..., também não os podia passar sozinho...

Vou para a semana para Bissau, o meu filho está lá.

Sobre os teus amigos:

O Miguel Nunes do Hotel Coimbra e a sua família vão tomar bem conta deles.

Também devem ir fazer algumas refeições no restaurante o Porto, em frente do hotel, do casal meu amigo Federico e Anabela, onde se come muito bem. O resto é mato, conforme eles sabem.

Têm alguns hotéis para dormirem em Buba. Para a comida fazem como eu... no restaurante, pedem a perna daquela cabra ainda viva... e mandam assar no carvão, ao fim de uma hora está pronta.

De Buba podem ir diretos para Bolama..."grande canseira" com a picada, mas chegam vivos.
Regresso, ou de canoa, ou voltam via Sr. João para Enchudé, onde apanham o barco de carreira para Bissau.



3. Comentário do editor LG:

O Pinto de Carvalho e os seus/nossos camaradas da CCAÇ 3398 lá estiveram na Guiné-Bissau, de 9 a 13 do corrente, hospedados no Hotel Coimbra e foram a Buba, com passagem pelo Saltinho, que não conheciam.

O Pinto Carvalho não conseguiu ir a Bendanda (onde esteve na CCAÇ 5, em 1972/73), porque eram mais 3 horas para cada lado e em picada em mau estado.

O Patrício, mesmo à distância, e desta vez no "Puto", continuou a mostrar que não deixa os seus créditos por mãos alheias. As suas dicas e conselhos são sempre úteis. E toda a gente sabe que ele em Bissau é sempre um "porto de abrigo"... para os amigos e camaradas da Guiné. Obrigado, "homem grande". E vai continuando a dar-nos notícias dessa terra quente e verde-rubra.
__________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 9 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22443: Memória dos lugares (424): a bela e interminável praia de Varela, a 5 horas de Bissau... (Patrício Ribeiro)

terça-feira, 19 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25288: O Cancioneiro da Nossa Guerra (16): "Aldeia Formosa" e "Adeus Aldeia Formosa" (CCAÇ 2614 / BCAÇ 2892, Nhala e Aldeia Formosa, 1969/71)


Guiné > Região de Quínara> Buba > 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Bula, 1973/74) > Proteção aos trabalhos de construção da nova estrada Buba - Aldeia Formosa (via Nhala).

Foto (e legenda): © António Alves da Cruz (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. No seu singelo ļivro de memórias "Os Resistentes de Nhala, 1969/71" (ed. de autor,  s/l, 2005, 144 pp.) (*), o nosso camarada Manuel Mesquita (CCAÇ 2614 
/ BCAÇ 2892, Bissau, Nhala e Aldeia Formosa, 1969/71) transcreve a letra de duas canções, que se cantarolavam em Aldeia Formosa:

(...) "Em Aldeia  o pessoal canta, para esquecer a saudade, ou porque já estamos perto do fim. Pegaram na melodia da marcha do Bairro Alto, vencedora em 1960 (talvez), 'Bairro Alto e seus amores tão delicados'...) (op. cit, pág, 120). 

Nenhuma das duas letras em título...  Mas também circulam por aí como "Aldeia Formosa" e "Adeus, Aldeia Formosa"...  A primeira é uma paródia às colunas auto na temível picada Buba - Aldeia Formosa (que no final da guerra passou a aser uma estrada alcatroada)... Vamos acrescentá-las ao Cancioneiro da Nossa Guerrra  (**).


ALDEIA FORMOSA 

Aldeia e as colunas a seguir
Para Buba,  com a malta,
Sujeita a ir para não vir
Com aquilo que nos falta.

São emboscadas e minas,
Bolanhas e covazinhas,
Viaturas rebocadas.
Deitaram - nos isto à sorte
De procurarmos a morte
Nestas tão reles estradas,

Refrão:

Viaturas velhas, mesmo a cair,
E, mesmo assim, a malta tem que seguir,
São tristes chaços, em procissão,
Andam mecânicos com as chaves de mão em mão.


(Nota: Na página "A viola é do fado", lê-se que "esta marcha data de 1938 e é da autoria de Carlos Neves. Diz-nos Daniel Gouveia, no seu excelente livro ' No fado tudo se canta' que a letra original de Nuno de Aguiar foi várias vezes alterada pelos fadistas. Sugere-se, a esse respeito, a leitura da variante cantada por Carlos do Carmo."). 

2. A segunda letra é já relativa ao fim da comissão, e ao  "regresso"  do pessoal da CCAÇ 2614, que se vai processar, numa primeira fase,  em coluna auto,  de Aldeia Formosa até Buba, passando por Mampatá, Uane e Nhala (que ficou no coração dos "resistentes")  (op. cit, pp 124/125).


ADEUS, ALDEIA FORMOSA

Adeus, Aldeia,  Formosa mas feia,
Com turras a atacar,
Adeus, Aldeia, que eu levo na ideia
De não mais cá voltar.

Despedi-me das bolanhas sem igual, 

Das bajudas da Tabanca, 
Dos alfaiates do rio Corubal,
Antes quero a minha branca.

Ai, ai, ai!...,
Não me importo de ir à toa,
O que eu quero é ver Lisboa
E a terra que eu cá sei.

Ai, ai, ai!...,
Já deixei as matacanhas, 
Pântanos e montanhas
E a Nhala que eu amei.

(Nota: A letra encaixa-se na  música da "Canção da Papoila", do filme "Maria Papoila", de Leitão de Barros, 1937: música de Raul Ferrão, letra de Alberto Barbosa, José Galhardo e Vasco Santana; Lisboa, Sassetii & C.ª Editores, 1937. Fonte: Museu do Fado)

(Seleção, revisão / fixação de texto, notas: LG)



Capa do livro do Manel Mesquita, 
"Os Resistentes de Nhala", ed. de autor, 2005, s/l, 2055, 144 pp. 
(Gráfica: Quadra - Produções Gráficas Lda, Vila Nova de Gaia.)
(Contactos do autor: tel 22 762 07 36 | telem 963 525 912)
____________

Notas do editor:

segunda-feira, 11 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25261: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (21): O pão que o diabo amassou

Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Setor de Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da Ponte de Caium, guarnecido pelo 3º grupo de combate, "Os fantasmas do leste". Na foto, o sold Cristina, municiador do morteiro 81, que as circunstâncias obrigaram a tornar-se padeiro... Como muitos outros, espalhados pelos duzentos e tal aquartelamenntos e destacamentos da Guiné..."A necessidade faz o órgão"... Mas esta história que aqui se conta não tem nada a ver  diretamente com ele..., apesar de ter descoberto na ponte Caium a sua vocação e ter continuado  a ser padeiro pela vida fora.


Foto: © Jacinto Cristina (2010). Todos  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Contos com mural ao fundo (21) >  O pão que o diabo amassou 


por Luís Graça


− “Duque de Palmela”, imaginem!,  foi a alcunha que me puseram na tropa.

Muitos militares tinham como alcunhas os nomes das terras donde provinham. Assim era mais rápido distinguir os Silva, os Santos, os Ferreiras, os Carvalhos, etc. , em cada pelotão ou companhia. E sempre era mais fácil do que fixar o número mecanográfico, que na realidade ninguém sabia de cor, nem o próprio… Andava-se com ele ao pescoço numa medalha metálica, picotada:

− Em caso de um tipo lerpar, cortavam uma metade e entregavam-na ao cangalheiro..., não fosse mais tarde haver troca de urnas − esclareceu o meu interlocutor.

Santos era o seu nome, um antigo 1º cabo atrador de infantaria, que se emocionava uando falava  da Guiné:  dos camaradas que lá ficaram, uma boa meia dúzia; dos que regressaram e que ele nunca mais voltou a ver:  "da fome e da sede que raparam"; dos “embrulhanços”, das emboscadas no mato, das minas nas colunas logísticas, dos ataques e flagelações aos aquartelamentos,  destacamentos e tabancas… 

Emocionava-se ao falar do pão que amassou e cozeu em fornos, quase sempre improvisados… E, claro, das “beijudas”… E ainda da sorte que, afinal, só teve na guerra, ao trocar a G3 pela amassadeira e a pá de padeiro...

Ainda se emocionava, enfim, quando falava da sua infância e adolescência, marcadas pela pobreza e pela orfandade.

− Camarada, comi o pão que o diabo amassou!... Pode escrever aí!

Nasceu nas faldas da serra da Arrábida, perto da Quinta do Anjo, no concelho de Palmela. O pai, J. Santos, era de origem beirã, nascido "lá para as bandas da Serra da Estrela", em Gouveia. Fixou-se por ali, com a família, no início dos anos 30. Era pastor, quando, no período da II Guerra Mundial, foi chamado a cumprir o serviço militar obrigatório. Mobilizado pelo RI 11, em Setúbal, esteve como expedicionário, na ilha do Sal, em Cabo Verde. 

− Rapou fome e sede, apanhou o escorbuto por falta de fruta e legumes frescos, e nunca mais ficou bom dos pulmões. Regressou em 1943, casou em 1944, e teve o seu primeiro filho em 1945, que fui eu. 

Filho e neto de pastores, o J. Santos pastor continuou a ser, em regime de "parceria pecuária": tinha um rebanho de ovelhas que não era seu, era do patrão, um fabricante de queijo de Azeitão, um dos fundadores da cooperativa local nos anos 40.

No final do ano tinha direito a algumas crias que podia vender, mais tarde, como borregos, machos, em especial na altura da Páscoa, em que havia maior procura. O seu salário-base era uma miséria. Nunca conseguiu chegar a ter um rebanho seu.

Analfabeto, descobrirá, por si mesmo, a importância que era saber ler, escrever e contar. Em Cabo Verde, tinha que pedir ao seu 1º cabo, um rapaz do seu distrito, para lhe ler as cartas que recebia da namorada e dar-lhe a resposta na volta do correio (que só era de tantos em tantos meses, quando o barco lá passava).

De regresso à terra, casou e jurou a si mesmo que os seus filhos, se os tivesse e  fossem machos, teriam que ir à escola, custasse o que custasse. Só teve rapazes e todos fizeram a 4ª classe, ou andavam na escola quando ele morreu, cedo, aos 38 anos... De uma pneumia, mal curada. 

− Nunca ficou bom da 'doença dos pulmões' que trouxera da ilha do Sal, dizia-nos a nossa mãe.

Deixou viúva e 4 filhos menores. Estamos em 1958, o ano do ciclone político chamado general Humberto Delgado. Salazar continuaria sentado na cadeira do poder, mas o país nunca mais voltaria a ser o mesmo: no final dos anos 50 tinha começado a grande debandada rural…(Um em cada dois portuguesees ainda vivia na sua aldeia.)

O “Duque de Palmela”, o M. Santos, era o mais velho dos quatro irmãos. Tinha 13 anos. A mãe, viúva, ficou desamparada. Pouco ou nada tinha de seu. Vivia num casebre, com cobertura de colmo (como nase tabancas da  Guiné!), paredes meias com o rebanho, numa propriedade do patrão e, por esmola, lá continuou a viver com um pequeno pedaço de horta que lhe dava uma mancheia de batatas e couves…

Naquele tempo não havia Segurança Social. A não ser para uma minoria privilegiada de trabalhadores da indústria e serviços, cobertos pelas caixas de previdência, criadas no âmbito do sistema corporativo do Estado Novo. 

Os portugueses estavam então divididos em três categorias sociais, conforme o rendimento: pensionistas, porcionistas e… indigentes. Só estes, uma espécie de párias, tinham direito a internamento hospitalar gratuito nos hospitais públicos  que de resto se contavam pelos dedos (Hospitais Civis de Lisboa e poucos mais...). 

Hospital queria dizer, até então, local onde se acolhiam doentes pobres. Só os pobres iam para os hospitais para serem tratados e, em muitos casos, morrer. Os ricos tratavam-se e morriam... em casa.

O “Duque de Palmela” pegou numa sacola de serapilheira e aos treze anos, “homem já feito”, não teve outro remédio senão o de estender a mão à caridade dos ricos e remediados, metendo-se ao caminho para arranjar o sustento da família.

− Não tenho vergonha de o contar aos meus netos que hoje vestem roupas de marca, e têm, cada um, o seu belo carro: uma rapariga que ainda anda na universidade e um rapaz, que já ajuda o pai, na administração da Panificadora, depois de tirar o curso de gestão hoteleira ou coisa parecida.

Bateu casais e aldeias nas faldas da serra, desde Azeitão e Quinta do Anjo até à vila de Palmela, "estendendo a mão à caridade". Ao fim do dia sempre havia algum pão, queijo, chouriço, toucinho, etc., para fazer o caldo, e meia dúzia de tostões, para além da fruta e legumes que ia surripiando, aqui e acolá, à beira dos caminhos.

− Roubar para matar a fome não é  
crime, camarada... Os meus netos, uma vez, espantados, perguntaram-me se eu tinha passado fome… E eu respondi-lhes: ‘Não, meus queridos, eu, a vossa avó e os vossos tios não morremos de fome, graças a Deus… mas passámos muitas necessidades’… O que é diferente.

E, em jeito de conclusão, acrescentou:

− A roupa que tínhamos no corpo, aos mais novos, que ainda andavam na escola, valeu-nos a distribuição do pão, queijo e leite da Cáritas, para além do vestuário e do calçado em 2ª mão. Mas eu, aos 13 anos, fiquei conhecido como o “pé descalço”, porque as únicas botas que tinha, no tempo do meu pai, deixaram-me de servir…

− Camarada Santos, quantas histórias iguais à tua (vamos lá tratarmo-nos por tu como camaradas que fomos,  pode ser ?!) não poderiam contar muitos de nós que passámos pela Guiné ? Éramos um país de pobreza envergonhada! – interrompi eu.

− Diz bem, ou dizes bem, camarada: pobreza envergonhada!... Nos primeiros dias e semanas, custa muito um gajo estender a mão à caridade dos outros.. E eu já não era uma criança inocente… Corava de vergonha e baixava os olhos quando eram raparigas ou jovens mulheres que me vinham abrir a porta…

Depois a mãe pô-lo a trabalhar, por volta dos 14 anos. Teve vários ofícios. Andou a trabalhar à jorna no campo, na debulha do trigo, e foi aprendiz de moleiro. Só não quis ser pastor como o pai. Na altura cultivava-se muito cereal por aquelas bandas, e não faltavam também moinhos de vento.

Até que por volta dos 16 anos arranjou trabalho como ajudante de forneiro numa panificadora, num dos  concelhos vizinhos. Comprou uma “pasteleira” em segunda mão, ia e vinha todos os dias de bicicleta, fizesse sol ou chuva… Cerca de 20 e tal quilómetros, ida e volta.

Ainda se cozia o pão a lenha, nessa época, só mais tarde vieram os fornos a eletricidade e depois a gás. A ver os colegas a amassar, a estender a massa, a cortar e a enfornar, depressa aprendeu o ofício de padeiro. De resto, a sua mãe também fazia pão em casa, com sobras da farinha do moleiro  ou da Cáritas. Foi com ela que aprendeu mais alguns pequenos segredos da arte de padeiro.

Aos vinte anos foi chamado para a tropa. Pela primeira vez, saiu da região: a viagem que tinha feito mais longe fora até Setúbal. Lisboa ficava na outra margem do rio Tejo, e ele nunca tinha andado de barco. Mais longe era ainda o Porto, aonde se chegava de comboio.

Deram-lhe a especialidade de atirador de infantaria, foi mobilizado para a Guiné, formou companhia no Campo Militar de Santa Margarida. E numa madrugada fria de inícios do ano de 1966 chegou de comboio ao Cais da Rocha Conde de Óbidos para embarcar, com a sua companhia, independente.

Na instrução da especialidade, o M. Santos foi o primeiro classificado em quase tudo. Ninguém o batia na carreira de tiro, com a G3, nem os oficiais do quadro permanente que vinham da Academia Militar, e que tinham muito mais treino. 

Nas provas físicas, era o campeão. Fazia uma marcha  de 30 quilómetros, quase a brincar, deixando a “concorrência” a grande distância. Baixo, entroncado, com um boa caixa de ar, era o típico militar português, de origem rural, capaz de sobreviver a muitas provações e até desaires.

Vaticinava o segundo comandante da companhia, que tinha feito o “curso de operações especiais” em Lamego, ao mesmo tempo que evocava o exemplo do "Palmela" (mais tarde, já na Guiné, "Duque de Palmela"):

− Na hora do combate, debaixo de fogo inimigo, o “Palmela” será o primeiro a reagir, de pé, sem medo, o peito feito às balas… Nos ataques ao quartel, será o primeiro a saltar para as valas e a varrer o inimigo na orla da mata, ou junto ao arame farpado… À bazucada ou com tudo o que tiver à mão!...

− E assim foi – confirmou o “Duque de Palmela” −, na primeira emboscada que tivemos, logo numa das primeiras colunas logísticas, uma vez que fomos buscar mantimentos a Buba, eu fui o único que fiz fogo de pé, a varrer o capim… Valeu-me o capitão, a meu lado, que me obrigou a amochar os cornos… 

− Ah!, valente!...

− E no primeiro ataque a um dos nossos destacamentos, fui eu e o capitão que manobrámos o morteiro 81, o capitão punha as granadas, descavilhadas,  e eu aguentava o tubo com o ombro… No meio daquela confusão toda, não tínhamos o tripé, só o prato.

Ainda chegou a ser "aliciado" para os comandos:

− Chumbaram-me nos psicotécnicos, não sei porquê. Com números e letras é que nunca fui bom na tropa. Tirei a 4ª classe à rasquinha, não tenho vergonha de o dizer.

− E para os paraquedistas ? – atrevi-me eu a sugerir.

− Para os paraquedistas, nem pensar. Nunca me deu bem com as alturas! – explicou ele.

Ainda em Santa Margarida foi abordado por um oficial, português, com brilhante currículo em África, um dos heróis de Angola em 1961. O Santos disse-me o nome, mas por razões óbvias não o vou aqui citar. Andava ele, mais um cabo miliciano, e um primeiro sargento, a recrutar futuros voluntários para a Rodésia, a África do Sul e até para o  Vietname.

− 'No caso de regressares com vida e saúde, como esperamos, finda a tua comissão na Guiné, tens aqui o meu contacto. Podemos fazer um pré-contrato. Se quiseres, assinas já, sem compromisso’… Esperamos por ti! − disseram-me eles, à despedida.

Para o “Duque de Palmela” era a sua independência económica, " o prémio da lotaria" que nunca lhe calhara, porque também "nunca tivera dinheiro para jogar”!, exclamou ele, com um brilhozinho nos olhos.

Sobretudo, no Vietname, um 1º cabo de infantaria era capaz de ganhar tanto ou mais do que um capitão na Guiné, garantia-lhe um dos engajadores.

Começou a fazer contas por alto, e a ficar baralhado com os números. A cabeça nunca mais teve sossego. O risco era “um gajo lerpar e ficar por lá”. Mas isso também podia acontecer na Guiné, logo aos primeiros tiros. Era só preciso “confiar na estrelinha da sorte” e “rezar, todas noites, ao anjo da guarda", conforme a mãe lhe recomendara.

Confessou-me que nessa altura nunca ou raramente pensava na morte.

− Quando um gajo tem 20 ou 21 anos, não pensa sequer na morte. Tem a vida toda à frente dele. 

− É verdade... E nem sequer é capaz também de imaginar o sofrimento daqueles que o amam… e que estão longe, à espera de uma carta ou de um aerograma!

Por outro lado, quando embarcou em Lisboa, com destino à Guiné, os seus sentimentos eram muitos diferentes de boa parte dos seus camaradas:

− Para alguns deles
 era como ir para a forca! Outros iam com cara de enterro. 
Havia até quem chorasse baba e ranho. Havia-os já casados e já com filhos… Eu até compreendia, Mas, para mim, não!... Solteiro, sem compromissos...
 
E explicou-se melhor: 

 Não vou dizer que fiz uma festa a bordo, longe disso... Mas não conseguia esconder que estava algo excitado com a ideia de ir para a a guerra, a milhares de quilómetros de casa.

− Excitado ?!... Mas também com saudades, não ?!...

− Claro, tive saudades da minha mãe e irmãos, ficaram cá dois para ajudá-la. O outro, a seguir a mim, já tinha cavado para França, a salto, e mandava-nos algum dinheiro.

E depois fez-me uma confidência:

− Nunca contei isto a ninguém, muito menos à família. Eu parecia um puto a quem deram um brinquedo, neste caso a G3. Mal comparado, era como o cão de caça,  um perdigueiro, excitado pela algazarra dos homens e animais, antes dos caçadores e das matilhas largarem para a caça…

−És ou foste caçador ?

− Tenho poucos vícios, mas este é um deles…

− Em suma, convenceram-te que eras um bom soldado e um grande português!

− E era, sem peneiras! Oxalá todos fossem como eu, ontem e ainda hoje! A vida foi-me madrasta até aos vinte e tal anos, mas depois compensou-me. 

− ... Compensou-te ?!

− Sim, posso bem dizê-lo: passei um terço da minha vida, até aos vinte e tal anos, a viver mal e porcamente,  a comer o pão que o diabo amassou… E os outros dois terços a viver menos mal, graças a Deus. Claro, a trabalhar 12 horas e mais por dia na Panificadora…

A sua ideia fixa era ganhar dinheiro, "manga de patacão",  para depois montar o seu negócio quando voltasse:

− Estava a apontar lá para os 30 anos… Nessa altura, arrumava a farda, a espingarda automática, as cartucheiras e as botas… Juntava o pé-de-meia de soldado da fortuna e regressava à terra, casava-me, constituía família, tornava-me um gajo decente, comprava um carro… Abria um café com fabrico próprio de pastelaria, em Palmela ou nas terras próximas…

Está grato a duas pessoas que lhe tiraram da cabeça “essa maldita ideia de ir para a África do Sul ou para o  Vietname”. 

Estava a ser uma obsessão. Nos primeiros tempos de Guiné, não se coibiu de partilhar o “segredo” com alguns dos seus camaradas mais próximos. Não sabe bem porquê, nem exatamente quando, começou a convencer-se de que poderia ficar “rico” se enveredasse pela vida de “mercenário” ou “legionário”. Impacientava-se, ainda tinha quase dois anos pela frente até acabar o raio da comissão na Guiné. 

Chegou a mesmo a arquitetar um plano para “desertar”, fugindo para a Guiné-Conacri. Afinal, a fronteira era ali tão perto. Bastava, numa noite de luar, ir à tabanca, e não voltar ao quartel, despedir-se da sua “beijuda” e, por volta das 3 da madrugada, rezar ao seu anjo da guarda e… zarpar!

Começou a estudar os trilhos que levavam à fronteira, em Aldeia Formosa, e que eram conhecidos dos gilas, os comerciantes ambulantes. O problema é que não tinha nenhum mapa do país vizinho. E depois havia a língua, as comunicações, os transportes, os papéis, o risco de ser apanhado pelo PAIGC ou pelas autoridades da Guiné-Conacri… 

− E, claro, encostado a um poilão para me limparem o sebo, como fizeram a alguns desgraçados depois da independência!

Por outro lado, interrogava-se ele, como é que voltaria a contactar o grupo dos engajadores, que de resto eram portugueses e militares do exército português?!... Que história é que ele lhes iria contar ? … 

A par disso,  ele sabia que a estadia na Guiné, em zona de guerra, era fundamental para fazer currículo, "ganhar calo", e se poder depois  alistar num exército estrangeiro… E, por certo, eles não iriam querer um “desertor" no seu lote...

O seu sonho começou a cair por terra, como um castelo de cartas, à medida que se avolumavam as dificuldades para pôr em prática os seus planos de fuga… Começou a ter problemas de “consciência” e a “dormir mal”: desertar era, afinal, virar as costas aos seus camaradas de armas, alguns dos quais eram já seus amigos do peito. 

E, depois, se fosse apanhado, pelo lado português, tinha a vida estragada, apanhava uma porrada, uns bons anos  em presídio militar… Até o poderiam fuzilar, alguém lhe tinha dito que, numa situação de guerra, podiam levar um desertor a um tribunal marcial, condená-lo à morte e fuzilá-lo, sem apelo nem agravo…

Enfim, a coisa estava a tornar-se feia…


Na altura tinha várias madrinhas de guerra, mas havia uma com quem simpatizava mais. Era alentejana, “ali de Santiago do Cacém”.

− Olhe, acabaria por ser a minha senhora… Casámo-nos passado um ano e tal, depois do meu regresso da Guiné. Foi ela quem me tirou da cabeça essa “ideia maluca” de ir para a África do Sul ou para o Vietname... Também me falavam da Legião Estrangeira’mas os sacanas dos franceses pagavam pior que os sul-africanos e os americanos...

E a outra pessoa a quem ele ficou “grato para o resto da vida”, foi o capitão, o seu comandante de companhia.

− Um pai, um amigo!,,,

Era miliciano, teria pelo menos dez ou  doze anos a mais do que a maioria dos graduados da companhia, os alferes e os furriéis. Nunca confessou a ninguém o que pensava daquela guerra, mas estava lá porque fora “obrigado como a grande maioria do pessoal”… 


Aceitou a missão de comandar aqueles 160 homens e jurou, perante eles, todos formados na parada do Campo Militar de Santa Margarida, na véspera de partirem de comnboio, para o embarque no Cais da Rocha Conde de Óbidos, fazer tudo para os trazer de volta, "sãos e salvos", de regresso a casa e às suas famílias…

Sabia-se pouco sobre ele e a sua vida, se era casado, se tinha filhos, o que fazia na vida civil… Não era pessoa de muitas falas… Mas a verdade é que nunca se deixou intimidar quer pelo inimigo quer pelos superiores hierárquicos. Soube sempre defender, tanto quanto possível, os interesses e os bem-estar dos seus homens, pese embora a companhia ter feito uma boa parte da comissão às ordens do batalhão de Aldeia Formosa.

− E lá, fomos carne para canhão!... O primeiro ano foi duro… E tivemos os primeiros mortos… Depois ficámos em quadrícula, espalhados por alguns destacamentos e a ajudar a reforçar a autodefesa de algumas tabancas fulas da região do Forreá.

O capitão acabou por saber do “segredo de Polichinelo” do “Duque de Palmela”… Às tantas só faltava publicar na “ordem de serviço” um requerimento dele a pedir a autorização para se alistar nas tropas do Tio Sam…

Como o capitão o achava “temerário”, para não dizer "maluco" ou  "prematuramente apanhado do clima”, na melhor ocasião retirou-o do 1º pelotão, com o acordo expresso do respetivo alferes com quem, de resto, o nosso 1º cabo Santos, o “Duque de Palmela”, não fazia “farinha”…

− ‘Antes que o gajo faça alguma maluqueira e nos estrague a vida a todos’... – terá dito, na altura, o capitão.

Sabendo da sua profissão na vida civil, pôs o “Duque de Palmela” na padaria. Para qualquer outro no seu lugar, seria um prémio, uma promoção, um alívio.  Mas, não,  para o nosso homem, foi uma tremenda desconsideração, quase uma despromoção… 

− Padeiro era básico, tal como o cozinheiro… Nessa noite apanhei uma 'cadela de todo o tamanho'…

− Básico ?!... O pãozinho de todos os dias é que não podia faltar, ó  Santos!

− … Foi isso que acabou por me convencer... E no dia aprazado já lá estou eu, no meu posto, bem ataviado, a substituir o padeiro da companhia que, vim a saber mais tarde, tinha sido transferido para Bissau… 


De facto, o rapaz, que o Santos foi substituir,  fora pai, e logo de dois gémeos. Alguém meteu uma cunha à Cilinha, a patroa do Movimento Nacional Feminino. E o rapaz lá foi para o “bem bom” do quartel de Santa Luzia, em Bissau. Apesar de continuar a exercer a sua especialidade, que era a de fazer pão para a tropa...  
 
O “Duque de Palmela” não se deu mal com a “nova vida”, a de padeiro ... Deixou de fazer colunas, operações e serviço de guarda, etc.,  mas tinha que trabalhar de noite para ter pão fresco todas as manhãs para cerca de bocas, entre militares e civis, incluindo o chefe de posto e a família...

E a verdade é que a malta se habituou ao pão fresco todas as manhãs. E isso também ajudou a levantar o moral da tropa. 

O "casqueiro" era, reconhecidamente,  um parte importante da ração a que cada homem tinha direito. Cabia nos 24 escudos e 50 centavos que eram atribuídos a cada militar, do soldado básico ao general, para efeitos de alimentação. Quem era arranchado, recebia em géneros, quem era desarranchado recebia em espécie, sendo no caso dos africanos, muçulmanos ou animistas, que não comiam a comida dos brancos, um importante complemento do salário: dava para comprar um saco de arroz de 100 kg ou mais.

− Comia-se mal e porcamente. Faltavam as batatas. E os frescos só os havia quando, uma vez por outra, vinha uma avioneta de Bissau. Massa com cavala era o prato do dia. O vinho era pouco e 'batizado'. Que não faltasse, ao menos, o pão nosso de cada dia…

O Zé Soldado era "pãozeiro", como qualquer bom português de origem rural. O padeiro, por sua vez, em conjunto com o vagomestre, responsável pelos géneros,  tinha que saber gerir muito bem o “stock” de farinha (e fermento…), sobretudo no tempo das chuvas em que as picadas no sul da Guiné se tornavam autênticos rios. O  abastecimento era então irregular e incerto. 

− Em Buba, quando lá estivemos, apesar de tudo, tínhamos a lancha da marinha a abastecer-nos.

Na realidade, ficavam isolados muitos aquartelamentos, destacamentos e tabancas. As colunas tornavam-se um pesadelo, às vezes chegava-se a andar um quilómetro por hora (!) e praticamente não se fazia mais nada do que tentar assegurar, a todo o custo, no final do tempo seco e no início do tempo das chuvas, a autossuficiência da tropa em matéria de abastecimentos (munições, comes & bebes, outros géneros de primeira necessidade, etc.). 

A farinha e a cerveja era dois géneros alimentares de “primeiríssima necessidade”… Ainda bem que a atividade operacional ficava mais reduzida, sobretudo de julho a setembro, meses de maior pluviosidiade, tanto para as NT como para o PAIGC. Em boa verdade, a guerra parava...

O nosso homem tinha, nesse aspeto, um bom entendimento com o vagomestre e com o capitão. E nunca houve, até ao primeiro ano, falta de farinha para fazer o pão.

− No novo 'posto', eu tinha durante o dia tempo e vagar para ir passear à tabanca, fazer a 'psico',  e, ao lusco-fusco, ir caçar galinhas do mato e lebres, na orla da bolanha. Arranjei uma espingarda de caça e ganhei um vício que não tinha…


− A caça ?!...

− Sim, a caça... Dava para fazer o gosto ao dedo e sempre se arranjava carne para o petisco. Matei a malvada a muita gente, incluindo alferes e furriéis… Uma vez por outra convidava o capitão, mas ele nunca aceitava… Acho que não se queria misturar com os subordinados, o que eu hoje entendo... 

− Não queria dar confiança aos subordinados, compreende-se... 

− Por outro lado, ele não gostava nada que eu saísse fora do arame farpado, mas lá ia fechando os olhos… E eu também não era mau cozinheiro, diga-se em abono da verdade… Uma vez por outro fazia-lhe uns miminhos, como um cabritinho assado para a messe. Ou um leitão, iguaria que era mais difícil de arranjar, só indo roubá-la aos 'turras'...

A coroa de glória do “Duque de Palmela” foi quando a companhia, a dois grupos de combate, ficou com as calças na mão, mum medonho ataque a um dos seus destacamentos, lá para os lados de Aldeia Formosa, já na segunda parte da comissão, em inícios de 1967, em  plena época das chuvas.

− Os gajos atacaram-nos,  às tantas da noite, e usaram metralhadoras pesadas 12.7, com balas incendiárias. Acordei sobressaltado. Em pouco tempo, a tabanca, fula, com as palhotas muito juntas umas às outras, foi pasto das chamas. Nunca tinha visto um incêndio como aquele, a não ser quando se deitava fogo ao capim, no tempo seco. Valeram-nos as valas onde o pessoal se entrincheirou e resistiu até de madrugada. Eu, mais o capitão que teve o azar de lá estar nessa semana, agarrámo-nos com unhas e dentes ao morteiro 81. A companhia tinha apenas uma secção de morteiros. E dessa vez estava colocada, em reforço, noutro destacamento, não muito longe do nosso. Mas tínhamos, aqui, um morteiro 81. Foi o que nos valeu.  Apoio de artilharia não havia.

O nosso padeiro conta que ia ficando com as mãos queimadas se não fora as luvas que apareceram no espaldão, "por milagre".

− Granadas não faltavam, graças a Deus. E foi a nossa sorte. Os gajos retiraram com mortos e feridos, a avaliar pelos rastos de sangue que deixaram nos abrigos individuais junto ao arame farpado. Até mioleira lá deixaram!... Por minha conta, devo ter mandado alguns para o inferno. Em contrapartida, tivemos dois mortos e vários feridos graves. 

E só por milagre, é que a população se safou. Teve apenas alguns feridos ligeiros.  Mas a tabanca ficou praticamente calcinada. 

− E com ela perdemos também os nossos haveres e os improvisados abrigos onde tínhamos os géneros alimentícios, bem como as outras palhotas que tinham sido cedidas à tropa. Ficámos só com a roupa que trazíamos no pêlo.

A descrição não poderia ser mais pormenorizada:

− A tabanca estava sobrelotada. Era pressuposto ficarmos ali temporariamente em reforço do sistema de autodefesa.  Havia suspeitas, fundadas, de colaboração com o inimigo, por parte de alguns elementos da população, 'puta-fulas', e que por isso estavam de debaixo de olho do comandante do pelotão de milícias e do régulo.

− 'Puta-fulas' ?!... Queres dizer futa-fulas... Os fulas eram leais à nossa tropa…

− Nem todos, junto à fronteira, eram mais permeáveis à propaganda e às ameaças do PAIGC – respondeu-me o M. Santos.

− Quer então dizer que, dessa vez, vocês ficaram de tanga…

− Ficámos de calções e chanatas. Só com a G3 na mão, e as cartucheiras à cintura… Alguns ficaram só em cuecas!... A malta dormia prtaicamente nua, por causa do calor... A minha mala ardeu. Houve malta que perdeu tudo, tinham trazido os parcos pertences com eles, convencidos que iam passar ali umas ricas e merecidas férias… O tanas!... 

− Medonho, hã?!

−  O mais grave é que ficámos sem comes e bebes, incluindo as rações de combate. Lá se aproveitou uma ou outra maldita lata de cavalas ou de conservas de pêssego da África do Sul… Claro que a população também pilhou o que não ardeu... Nestas situações, os seres humanos são todos iguais, sejam brancos ou pretos: há sempre uns tantos que tiram partido da desgraça dos outros...

De Bissau vieram, de helicóptero, trazer alguns reabastecimentos mais urgentes: caixas de munições, por exemplo. A coluna só chegou ao fim do segundo ou terceiro dia. E trazia alguns sacos de farinha. Mas como fazer pão se até o pequeno forno do destacamento, em adobe, também tinha sido destruído?

− Com bidões cortados ao meio, na vertical, improvisei um forno e fiz o milagre dos pães, para meia centena de homens esfomeados… mais a as milicias e a população. Tive um louvor do Schulz, e outro do comandante do batalhão, sob proposta do meu capitão. Mandei ampliar e emoldurar o louvor do general Schulz. Está no escritório. Ou estava, agora já passei a pasta ao meu filho mais velho. Reformei-me da Panificadora.

A padaria a que o “Duque de Palmela" se refere, foi a que ele criou, depois do seu regresso da Guiné em finais de 1967, e que ajudou a crescer, nos últimos 50 anos, "com mais algumas dezenas de colaboradores" (sic).

Com a construção e a inauguração da Ponte Salazar, unindo finalmente as duas margens do Tejo, entre Lisboa e Almada, o distrito de Setúbal conheceu um enorme surto de desenvolvimento, em termos urbanísticos, industriais, económicos e demográficos.

 Com algum dinheiro que poupou em África e um pequeno empréstimo bancário e mais uma ajuda de um dos irmãos que fora 'a salto' para França, fugindo à tropa, e que agora estava lá bem, perto de Paris, o “Duque de Palmela" comprou a quota de um seu antigo patrão, que se reformara, e que fazia parte de uma cooperativa de panificação num dos concelhos vizinhos. Essa Panificadora deu muitas voltas, depois do 25 de Abril, passou a sociedade anónima, até que o M. Santos se tornou o acionista principal, com o filho e com o irmão que estava em França.

Hoje é uma empresa de referência, no seu ramo, faturando  "manga de patacão" , e tendo uma razoável rede de clientes, incluindo superfícies comerciais, em todo o distrito de Setúbal. O “Duque de Palmela”, outrora o “pé descalço”, o 1º cabo que queria "ser mercenário e ir para o Vietname", tem hoje motivo de orgulho no legado que deixa aos filhos e netos.

− É sobretudo um exemplo de vida, tenho pena que o meu velhote já não esteja cá, há muito, para ainda poder ver a obra do filho. Ou dos filhos, há um irmão meu que também é sócio, minoritário.... O meu velhote e minha pobre mãe que ficou viúva tão cedo...

Enxuga uma lágrima furtiva… Pediu-me uns minutos para ir a casa, uma bela vivenda ali ao lado das instalações fabris da Panificadora, para ir buscar uma foto que tinha com o general Schulz e mostrar-me o louvor, emoldurado.

− Não conheci o Spínola, o meu comandante foi o Schulz. Só tenho a dizer bem dele. Visitou-nos por duas vezes. Esta é a foto dele comigo, eu a enfornar o pão. E chegou a levar do meu pão para o palácio do Governador, em Bissau. Em troca deixou-me uma caixa de cerveja “para os padeiros e cozinheiros”...

Infelizmente, o “Duque de Palmela” tinha enviuvado há dois ou três anos e lamentava não poder partilhar, com a “duquesa” (como ele, carinhosamente, tratava a sua alentejana de Santiago do Cacém), a alegria que fora a “transferência de poderes” para o filho, seu sucessor, e agora o maior acionista da Panificadora e seu administrador.

− Afinal, é a ela que eu devo tudo ou quase tudo. A ela e ao meu capitão. Foi, na Guiné, um pai para mim. Fiquei-lhe grato para o resto da vida. Vim a descobrir, entretanto,  que trabalhava nas Alfândegas de Lisboa, há uns dez anos atrás, quando ele se reformou. Nessa altura, fiz-lhe uma grande homenagem. Fizemos aqui o convívio anual da companhia. Foi memorável. Faltaram muitos mas mesmo assim consegui juntar uns sessenta camaradas. Com as mulheres, filhos e netos, éramos quase um centena de convivas. Fiz questão de ser eu a oferecer o almoço. Arranjei uma empresa de “catering” e o borreguinho assado foi feito cá nos fornos da Panificadora. Por coincidência, comemorávamos também nesse ano os 40 anos do regresso da Guiné.

E acrescenta, com alguma euforia:

− Foi um dia de alegria, um dos maiores da minha vida. Esse convívio ficou na memória da malta toda. E quem não veio, ficou com pena… Infelizmente, o capitão morreria uns tempos depois, ainda a minha mulher era viva.


Falando do seu sucesso empresarial, disse-me em tom de confidência:

− Tive sorte nos negócios, não vou dizer que não. Mas fui sempre um homem decidido e determinado. Umas "furão" ... Tinha pouco a perder e tudo a ganhar. Se fosse alferes ou furriel, com estudos, teria arranjado um reles emprego,  num banco, num escritório, nas finanças, nas caixas de previdência, aqui ou em Setúbal. Hoje sou patrão, ajudei a criar cinquenta postos de trabalho, são outras tantas famílias que dependem do bom andamento da empresa. Não tenho luxos, tirando a caça, que é  a minha  amante (mais cara que uma amante!), continuo a ser um gajo simples…

 Pelo que vejo e pelo que me contam...

−  O que é queres que eu te diga mais, camarada ?!... Põe aí, no teu canhenho,  que sei dar valor ao dinheiro e ao trabalho, e sou amigo do meu amigo, camarada do meu camarada!

Curiosamente, eu conhecera este homem, não na Guiné, mas por ocasião de um estudo europeu sobre condições de trabalho e absentismo por doença, nos anos 90.

 A Panificadora tinha então ganho um prémio de segurança no trabalho, e poderia ser um potencial estudo de caso de “boas práticas”… Conheci o pai e o filho através do médico do trabalho que tinha uma avença com a empresa e que fora meu aluno. Conversa puxa conversa, acabei por saber que o "patrão velho" tinha estado na Guiné, antes de mim, mas não longe dos sítios por onde passei e penei…

Já nessa altura eu gostava de dizer que o mundo é pequeno e que um dia voltaria a tropeçar na guerra da Guiné. Também eu, como muita gente, precisava de exorcizar os fantasmas do passado.

− Chegou a hora do repouso do guerreiro, camarada! – disse-lhe eu, da última vez que estivera com ele, já depois de enviuvar.

− Esse é um dos problemas da malta da nossa geração… Muitos nunca tiraram férias, passaram a vida a trabalhar e a poupar, não gozaram a vida… Falo por mim… Como saber que estamos a chegar ao fim da picada ? Ainda gostava de lá ir, à Guiné, antes de me dar uma macacoa, mas não sei se tenho força nas canetas…

− Mas já agora diz-me porquê e para quê voltar à Guiné?!... Se a pergunta, claro, não te ofender… – pedi-lhe eu.  

Pesou a pergunta antes de responder:

− Porquê ?... O criminoso gosta sempre de voltar ao local do crime – respondeu-me com  um misto de bonomia e malícia. 


− E para quê, já agora ? – voltei a insistir.

− Olha, sempre ouvi falar do Saltinho e dos rápidos do Corubal, até se dizia que era a parte mais bonita da Guiné… Andei por lá perto, mas nunca lá fui, nunca vi sequer o rio Corubal. O rio Grande de Buba, o Geba também, mas não o raio do Corubal... Era um dos sítios da Guiné que gostava de visitar… E, depois, se conseguir fazer alguma coisa por aquela gente, tanto melhor.

Demos um grande abraço de despedida… e eu prometi a mim mesmo  escrever a história de vida deste homem…  


Soube depois, pelo médico do trabalho meu conhecido,  que o Santos acabara por concretizar o seu sonho de voltar à agora Guiné-Bissau e ainda encontrara gente do seu tempo, nas tabancas por onde andara… 

E, ao que parece, deixou, a uma ONGD, a operar na zona, uma "nota preta" para ajudar a construir uma  pequena escola na antiga tabanca onde estivera destacado, e que ardera em 1967. Julgo que quis fazer as pazes com o passado, tal como alguns de nós.

Faltou-me na altura, por lapso ou talvez por pudor, perguntar-lhe a origem da alcunha “Duque de Palmela”… Não tive lata ou faltou-me o tempo, se bem que ele nunca tivesse rejeitado, bem pelo contrário, a alcunha que lhe puseram na tropa e na guerra. 

Vim a  a saber, afinal, que era seu hábito estender a mão, muitas vezes, aos amigos dos seus amigos, quando se apresentava,  dizendo com graça: 'O Duque de Palmela, para o servir!'... Inclusive tratava a esposa por “duquesa… de Santiago do Cacém”. Tinha sentido de humor.

Um antigo camarada, furriel, da sua companhia, explicou-me, ao telefone, a origem da alcunha:

− Em Santa Margarida, no IAO, já toda a gente o tratava por “Palmela”… Acho que não havia mais ninguém daquelas bandas… Ao que parece, no barco, quando fomos para a Guiné, é que apareceu o “Duque”… Ele gostava de jogar às cartas, para passar o tempo, como boa parte dos militares embarcados. Mas não tinha sorte ao jogo… ‘Só me saem duques’, queixava-se sempre que perdia… 

− Afinal, foi um camarada com azar ao jogo e sorte aos amores e aos negócios  − conclui eu.

− Quando chegou a Bissau, já toda a malta o tratava por “Duque de Palmela”… E acho que é também uma justa homenagem, visto o filme ao contrário, da frente para trás…

− E, olha, é uma figura ilustre da nossa história, o 1º Duque de Palmela, político, militar e diplomata, um patriota do tempo do liberalismo − acrescentei eu. − Não nasceu em Palmela, mas para o caso pouco importa. No tempo da nossa monarquia constitucional davam-se títulos nobiliárquicos honoríficos por razões nem sempre nobres...  aos amigos e correligionários. Homenageavam-se homens e terras.  Dizia o povo, com sarcasmo: "Foge, cão, que te fazem barão!... Mas para onde se me fazem visconde?!"... 


Aqui para o leitor, que ninguém nos ouve: não me admirava nada que num próximo 10 de Junho a gente ainda vá a tempo de ver, na televisão, o nosso ex- camarada M. Santos a receber a Comenda da Ordem do Mérito... 

Não seria nada de mais justo, de resto, ver um antigo "pé descalço" (que não tinha vergonha do seu passado!), um  ex-combatente da Guiné, um antigo padeiro e agora  um industrial de panificação  de sucesso  a ser tratado pelos "grandes do Reino" como  comendador,  depois de ter comido o pão que o diabo amassou.  

Afinal, mudam-se os tempos, mudam-se  as vontades, as honrarias e as mercês...

© Luís Graça (2019). Revisto em 10 de março de 2024.

___________

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25209: Por onde andam os nossos fotógrafos? (21): António Murta, ex-alf mil inf MA, 2ª C/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74) - Parte VII: Patrulhando a estrada Buba-Nhala, em construção

 

Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5

Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8


Foto nº 9

Guiné > Região de Quínara > 2ª C/BCAÇ 4513 (Nhala, 1973/74) >  Abril de 1974 > Estrada de Buba - Nhala em construção


Fotos (e legendas): © António Murta (2015). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


António Murta. Vive em Buarcos, 
Figueira da Foz


1. Continuamos a selecionar (e a reeditar) algumas das melhores fotos  do álbum do António Murta, ex-alf mil inf, Minas e Armadilhas, 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74).


Legendas (António Murta):

Foto 1 > O 3.º e o 4.º Grupos de combate da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 transportados em viaturas pela estrada Buba-Nhala, iniciam depois um patrulhamento apeado comandados pelo alf mil Tibério Barros e por mim, respectivamente.

Foto 2 > As viaturas regressam a Nhala. Os grupos prosseguem até se embrenharem na mata, lá mais à frente, para interceptarem o carreiro da guerrilha que cruza aquela zona. Repare-se que a estrada continua por alcatroar, tal como noutros troços, por falta de alcatrão.

Foto 3 > O meu grupo de combate aguarda que se ganhem distâncias para poder avançar. À frente vai o 3.º grupo. Em primeiro plano, de costas, o soldado Frade de Coimbra. Creio que era o único casado do grupo.

Foto 4 > Ainda na estrada, imagem agora colhida da frente da coluna, vendo-se os homens do 3.º grupo de combate.

Foto 5 > Pessoal do 3.ºgrupo, trilhando o carreiro da guerrilha.

Foto 6 > Regresso a Nhala pela velha e saudosa picada. Na imagem, homem da bazuca do 3.º grupo e, em segundo plano e à direita, o Furriel Pastor do meu grupo.

Foto 7 > Ainda do mesmo ponto de vista, em primeiro plano o radiotelegrafista Bento seguido do 1.º cabo maqueiro Baptista Custódio, ambos do meu grupo.

Foto 8 > O meu grupo de combate, quase sem baixas, a gozar o merecido descanso. Nesta imagem faltam os dois furriéis.

Foto 9 > O 3.º grupo de combate também a descansar. O alferes Barros é o do lenço azul e à sua esquerda a olhar para o fotógrafo, o furriel Félix.

Excertos do poste P15504 (**)

(...) Desde o início da construção da estrada Aldeia Formosa-Buba, em outubro de 1973, até quase ao final de maio de 1974, é recorrente na HU do BCAÇ 4513, o seguinte registo: 

“Forças do Batalhão e de reforço continuam a dar segurança aos trabalhos de Engenharia, assim como a executar patrulhamentos para as regiões de fronteira e contra-penetrações nos tradicionais corredores de passagem IN”

A maioria desses patrulhamentos, para as regiões frequentemente vigiadas, não me deixaram grandes memórias. Eram as rotinas. Mas os que fiz por caminhos nunca antes calcorreados, para regiões que me eram indicadas no mapa da sala de operações, pelo contrário, deixavam-me quase sempre memórias indeléveis. Por isso, ainda hoje, sou capaz de os descrever sem necessidade de recorrer a notas escritas. Mesmo que não acontecesse nada de grave, e eu tive quase sempre a sorte de não me acontecer nada, (faço por esquecer o que penámos enquanto Companhia de intervenção nos chãos massacrados de Cumbijã, Nhacobá e arredores), às vezes bastava uma pequena descoberta, deparar-me com um sítio estranho ou uma paisagem desconcertante, e não esquecia mais. (...)

(...) Muito mais fácil e sem tensões, foi um patrulhamento que fizemos em bigrupo, iniciado pela estrada nova em direcção a Buba em viaturas, depois calcorreando um trilho da guerrilha e regressando pela picada Buba-Nhala. Com o meu grupo, o 4.º, saiu o 3.º grupo do alferes Barros. Como tudo correu bem e, no final deste patrulhamento rotineiro, (ou contra-penetração?), podíamos dizer que fora um belo passeio. Refiro isto como pretexto para deixar aqui mais algumas fotografias, até porque não tenho muitos registos fotográficos de saídas em bigrupo. (...)

____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 20 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25190: Por onde andam os nossos fotógrafos? (20): António Murta, ex-alf mil inf MA, 2ª C/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74) - Parte VI: O Rio Grande de Buba

(**) Vd. poste de 24 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15404: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (30): Abril de 1974

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25194: Historiografia da presença portuguesa em África (410): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
O Tenente Costa Oliveira estava muito longe de ser um ilustre desconhecido na Guiné. Antes de ser nomeado comissário para a demarcação das fronteiras, o que ocorreu em 1888, acompanhara as obras do presídio de Bolor e, como se verá num texto posterior, trabalhou a cartografia da Guiné, dedicou mesmo um artigo sobre a matéria ao seu amigo Luciano Cordeiro. O que ele descreve em jeito de considerações finais e conclusão, e que dita o final do seu trabalho, que aqui se resumiu, tem muita matéria para reflexão, fica-nos mesmo a impressão de que se estava a candidatar a governador: pronuncia-se sobre os efetivos militares indispensáveis para manter os indígenas a respeito, propõe mesmo embarcações à prova de bala, é a favor da mudança da capital para Bissau, sugere concretamente nomes de locais a ocupar, antevê a prosperidade económica da colónia na cultura do amendoim. E nas conclusões emite mesmo um juízo drástico: a Guiné ou é rica ou não é, ou se aposta no seu florescimento ou ela continuará a ser um sorvedouro de dinheiros e um matadouro de funcionários - neste caso o melhor é ofertá-la à França, é potência próspera, está ali mesmo à volta, será perda indolor. Para que conste, também assim se pensava em 1888

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhe um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, Comissário do Governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. 

Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa. Depois de curta estadia em Bolama, seguiu para o Casamansa. No final do seu importantíssimo documento vai tecer considerações e elaborar uma conclusão que nos deve merecer a melhor atenção.

As suas observações decorrem do facto de ser um conhecedor da realidade guineense, anteriormente a esta missão da demarcação de fronteiras já estivera na Guiné. Agora as suas considerações são tanto de caráter político-militar como deixa explicitamente recados ao modelo de desenvolvimento do território que muda em Portugal a imagem da colónia. Em termos militares dirá coisas como esta:

“Geba, Farim e Cacheu são Praças de guerra só no nome, pois com as suas muralhas rotas, peças de ferro em deplorável estado e apeadas, guarnecidas por meia dúzia de soldados indisciplinados e mal-armados, estão completamente à mercê do gentio, admirando-nos até como o nosso prestígio, e não outra coisa, tem contido em respeito as tribos próximas.”

Reportando-se à natureza das embarcações indispensáveis para a navegabilidade dos rios, escreve:

“Permitam-me agora descrever rapidamente as lanchas que conviriam ao serviço da Guiné, devem satisfazer as seguintes condições:

 1) Demandar desde 30 até 50 centímetros de águas; 
2) Terem fundos chatos por causa dos encalhes; 
3) Poderem conduzir até 50 praças com o respetivo armamento, etc.; 
4) Terem velocidades superiores a 8 milhas por hora; 
5) Terem duas máquinas independentes e separadas por uma divisória longitudinal, acionando duas rodas na popa; 
6) Um aparelho de luz elétrica; 
7) Costado de aço impenetrável às balas de qualquer espingarda, com tombadilho e castelo, e o intervalo entre estes protegidos também por chapas de aço; 
8) Guarita couraçada para abrigo do comandante e homem do leme; 
9) Armamento – metralhadores e peças de tiro rápido; 
10) Finalmente, que possam queimar indiferentemente lenha ou carvão.”

Nas considerações gerais, dá prioridade à escolha da capital da província, é contrário à opinião que a capital esteja no rio Grande de Bolola, é a favor de Bissau, e explica porquê:

“Está situada no ponto mais central da província e na embocadura do rio Geba, de cujas margens e dos sertões por onde corre se deve esperar toda a prosperidade da colónia; tem um porto excelente e de fácil acesso para navios de grandes dimensões e tonelagens, com um ilhéu fronteiro, o ilhéu do Rei, de salubridade incontestável e cuja situação eminentemente favorável deve ser aproveitada para se construir ali o sanitarium, enfermaria militar, aquartelamentos, etc.; com outro ilhéu próximo, o de Bandim, onde se deve instalar o lazareto.” 

E propõe mesmo medidas para modificar as condições climatéricas de Bissau, desde arrasar o muro que cerca a vila até proibirem-se os correios e chiqueiros dentro dela, havendo de fazer o plano da nova cidade, ele não deixa de fazer sugestões sobre praças ajardinadas e como deve ser a residência do governador.

Há alguns aspetos curiosos das suas sugestões, por exemplo:

“Em Cacheu ou Buba fabricava-se tijolo e telha. Julgamos indispensável fazer renascer essa indústria para acudir às necessidades da província. Todos sabem que nos plainos da Guiné não há pedra; mas a Holanda também a não tem, e o tijolo é quem a substitui até nos passeios laterais de algumas ruas de cidades formosas e importantes. Também se nos afigura convenientíssimo montar em Cacheu uma serração de madeiras. 

Assim que a nova Bissau estiver nas condições de receber o chefe de província e de mais funcionários, a sede do governo será transferida de Bolama, ficando ali só a ala esquerda do batalhão, e delegações da Alfândega, Capitania dos Portos e Correio. Haverá que proceder a ocupações: ocupar S. Belchior e mandar pôr o forte em condições de poder resistir a qualquer ataque pelo gentio, depois tomar posse de Sambel-Nhantá e cuidar de Geba, bem como ocupar um bom número de povoações no Corubal".

Mas o Tenente da Armada Real não se fica por aqui. Tem opiniões próprias sobre as alfândegas, a Capitania dos Portos, as missões, as cadeias, os hospitais e enfermarias, o dispositivo militar. Não se compadece com a míngua do que existe na agricultura, indústria e comércio, é a favor de todo o apoio à cultura da mancarra, mas também da purgueira, cana do açúcar, tabaco e algodão. Recorda que no anexo do seu relatório vem o traçado completo da delimitação do território tal como foi definido pela convenção luso-francesa. Recorda a quem o lê que se impõe atuar em continuidade para que haja paz no território, e escreve:

“Para tranquilidade da Guiné, e para se poder desenvolver agrícola e comercialmente, deve o chefe da província obstar por todos os meios ao seu alcance, incluindo os da força, às guerras entre as tribos que povoam o território chamado português. Desde que se delimitaram as fronteiras da província, as suas condições políticas mudaram consideravelmente; por exemplo, outrora não convinha por forma alguma intrometermo-nos na política gentílica, atualmente é uma necessidade. Os Fulas ocupam há muito terrenos pertencentes aos Biafadas; o bom senso aconselha que se convide Mamadu Paté, atual chefe do Forreá, a abandoná-los, e como esta ocupação não se poderá fazer sem Mudi-Yaiá pugnar os seus imaginários direitos sobre aquele território, será conveniente ouvir a França que também deve desejar fazer iguais arranjos.” 

O tenente da Armada Real tem uma tese muito própria sobre a independência do Forreá, era a favor da independência do Forreá português e francês, havia também que delimitar os territórios dos Biafadas e Nalus, auxiliando aqueles que se mantivessem sossegados e fiéis à nossa bandeira, castigando os conflituosos, demitindo o prendendo os chefes, e nomeando outros à nossa escolha.

E chegamos assim às conclusões: 

"pretendemos demonstrar que a Guiné portuguesa, apesar de tudo quanto dela se diz, é uma colónia de futuro comercial brilhante, se cuidarmos da sua organização interna. O nosso país é pobre, bem sei e não pode nem deve arriscar capitais imprudentemente; todavia, deste dilema ninguém poderá sair – ou a Guiné é rica ou não é. Se é rica e pode ter ainda um futuro brilhante, dê-se-lhe o que for preciso para a fazer desenvolver, prosperar. Se não é rica e o défice cresce anualmente em progressão assustadora, e é um sorvedouro dos dinheiros da metrópole e um matadouro de funcionários, ceda-se à França".

Em suma, não se pode dizer que este documento escrito por quem foi não tem algo de profético e ressuma uma mentalidade muito própria do seu tempo, um olha imperial onde não falta o empirismo, o conhecimento científico e um inequívoco fervor, apostando no futuro da Guiné. Resta esclarecer o leitor que voltaremos a Costa Oliveira e a um outro importante documento, a cartografia da Guiné.
Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
Antiga Sede do Banco Nacional Ultramarino em Bolama, posterior Hotel do Turismo, hoje completamente desaparecidoAtual edifício do Centro de Formação Pesqueira de Bolama. Imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia.

____________

Nota do editor

Último post da série de 14 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25172: Historiografia da presença portuguesa em África (409): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (6) (Mário Beja Santos)