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quarta-feira, 27 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25311: Historiografia da presença portuguesa em África (416): O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, as suas referências à Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
Estava eu em doce remanso a alinhavar a sequência cronológica dos primeiros textos fundamentais sobre a presença portuguesa na Guiné quando dei, atónito, pela lacuna de Esmeraldo de Situ Orbis, relato de cosmografia de primeiríssima água não só como documento para o que então se sabia como descrição dos habitantes da região. Houve que reler o Esmeraldo, ter em conta o que sobre ele investigou Joaquim Barradas de Carvalho e selecionar os textos mais relevantes sobre as Etiópias da Guiné. Bem curiosa é a biografia de Duarte Pacheco Pereira, tem um palmarés bem singular como cabo de guerra em terra e no mar, geógrafo, cosmógrafo e roteirista, lendo o Esmeraldo fica claramente visto o que se conhecia, de acordo com relatos de navegações anteriores sobre o continente, o autor chega mesmo a dizer que o rio Senegal era o braço que o rio Nilo lançava pela Etiópia inferior (região correspondente ao que iremos mais tarde chamar por Senegâmbia). Isto para dizer que a narrativa deste herói da Índia é uma peça indispensável em qualquer antologia da história alusiva à presença portuguesa na Guiné, pois não esqueçamos que ele foi encarregado pelo rei D. Manuel I, em finais de 1505, de escrever este relato, ao que parece que se manteve secreto, tratado como segredo de Estado, não convinha que outras potências conhecessem a geografia e a cosmografia das navegações portuguesas.

Um abraço do
Mário



O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, as suas referências à Guiné (1)

Mário Beja Santos

Agora, que estou a preparar os primeiros relatos fundamentais da presença portuguesa nesta região da África Ocidental que é tratada como Etiópia Menor, Rios de Guiné, Senegâmbia, entre outras designações, fiquei de boca à banda quando descobri que ao longo destes anos de colaboração privei o leitor das referências que Duarte Pacheco Pereira teceu à Terra dos Negros.

Este cabo de guerra em terra e no mar, como refere o historiador Damião Peres, explorador geográfico, cosmógrafo e roteirista, é o autor do célebre roteiro circum-africano cujo título é Esmeraldo de Situ Orbis, atenho-me à terceira edição editada pela Academia Portuguesa de História em 1954, com a introdução e notas do já referido Damião Peres. Duarte Pacheco, a quem Camões cognominou como Aquiles Lusitano, distinguiu-se pelos feitos militares na Guiné, assistiu à tomada de Arzila e à consequente ocupação de Tanger, estes sucessos de 1471; participou na fundação da feitoria-fortaleza de S. Jorge da Mina, em 1482, e na exploração dos litorais e do interior das terras que hoje apelidamos como guineenses; dada a craveira dos seus conhecimentos na geografia e cosmografia, D. João II incluiu-o no grupo de técnicos que acompanharam os emissários da negociação do Tratado de Tordesilhas; embora com muitas interrogações e o profundo ceticismo de muitos investigadores, admite-se que tenha percorrido a costa brasileira a mando de D. Manuel I, em 1498, está tudo no campo das hipóteses ou conjeturas, há mesmo quem admita que tenha chegado à Florida.

Também não se sabe se tomou parte na segunda armada da Índia, a de Pedro Álvares Cabral, e no Esmeraldo não se fala da viagem de Cabral. Acompanhou Afonso d’Albuquerque, distinguiu-se pela sua bravura e cobriu-se de glória na defesa de Cochim contra o samorim de Calecute; recebeu, no regresso da Índia, em 1505, o convite de D. Manuel I para escrever o livro a que se chamou Esmeraldo de Situ Orbis; em finais de 1508, foi encarregado de comandar uma frota para procurar e combater o corsário francês Mondragon, o encontro das duas frotas deu-se no cabo Finisterra, em janeiro de 1509, Duarte Pacheco saiu novamente vitorioso; em 1519, obteve o cargo de capitão do estabelecimento de S. Jorge da Mina, que desempenhou até 1522; veio trazido a ferros por ação disciplinar, sairá ilibado; morrerá, segundo a lenda, em extrema pobreza, mas há historiadores que contraditam esta informação.

Vamos agora às referências que Duarte Pacheco tece às Etiópias da Guiné. No prólogo, deixa uma lembrança do Infante D. Henrique, que “mandou descobrir a ilha da Madeira e a mandou povoar; e assim descobriu mais por Guiné, que antigamente se chamava Etiópia, começando dos promontórios de Não e Bojador até à Serra Leoa”.

É no capítulo 5.º do primeiro livro que alude às quatro bocas que o Nilo faz e refere textualmente o grande braço que corre por meio da Etiópia Inferior, o rio Sanaga (Senegal). Recorda-se ao leitor que a exploração das partes em que ele divide a África resulta dos conhecimentos limitados que se possuíam da geografia do continente.

No capítulo 22.º, intitulado Como Deus revelou ao virtuoso Infante D. Anrique que descobrisse as Etiópias a Guiné por seu serviço e daqui por diante comece o seu descobrimento. Sem margem para dúvida que Duarte Pacheco descreveu a glorificação do terceiro filho de D. João I. E, seguidamente, descreve a causa que moveu o Infante a descobrir estas Etiópias de Guiné. “Jazendo o Infante uma noite em sua casa, lhe veio a revelação como faria muito serviço a Nosso Senhor descobrir as ditas Etiópias; na qual região se acharia tanta multidão de novos povos e homens negros, quanta do tempo deste descobrimento até agora temos sabido e praticado; e que destas gentes muita parte delas haviam de ser salvas pelo sacramento do santo Batismo; sendo-lhe mais dito que nestas terras se acharia tanto ouro como outras tão ricas mercadorias, com que bem e abastadamente se manteriam os reis e povos destes reinos de Portugal, e se poderia fazer guerra aos infiéis inimigos da nossa santa fé católica.” E pormenoriza a viagem de Gil Eanes e a passagem do Cabo Bojador.

Estamos agora no capítulo 24.º, intitulado Das rotas e conhecenças de Cabo Branco em diante para o Cabo Verde. Vejamos o que ele diz: “Do Cabo Branco em diante começas os baixos de Arguim, os quais duram trinta léguas de longo e vinte de largo. E quem houver de vir para cada um dos Rios de Guiné, estando junto com o Cabo Branco, faça o caminho do Sul e da quarta do Sueste, e irá ter na angra das Almadias que está sete léguas aquém do Cabo Verde; e ali, indo para Sudoeste, haverá o dito cabo. E este caminho deve fazer-se fora dos baixos de Arguim, que são muito perigosos.” E faz a alusão de que o Cabo Branco confina com esta ilha de Arguim, pelo caminho estão muitos baixos de pedra e areia, “e quem por aqui for, deve ir sobreaviso que não dê em seco”.

Estamos agora no capítulo 26.º, intitulado Do caminho que se deve fazer de Arguim para Cabo Verde até ao rio Senegal e dali até ao Cabo Verde por dentro, pela enseada. Então lê-se no capítulo 27.º De onde vem o rio Senegal e das coisas que nele há e das duas Etiópias. Escreve assim: “Primeiramente, é de notar como aqui é o princípio das Etiópias e homens negros; e porque são duas Etiópias, bem é que se saiba como esta primeira se chama Inferior ou Etiópia Baixa Ocidental, na qual é certo e sabido que nunca nele em algum tempo morressem de pestilência. E esta primeira Etiópia corre e se estende, por costa, do dito rio Senegal até ao Cabo da Boa Esperança, 34 graus e meio de ladeza (latitude). E do dito rio até este cabo são 1340 léguas. A qual, por outro nome, Guiné chamamos.” Agora a narrativa aproxima-se da região que foi conhecida até ao século XIX por Senegâmbia: “No rio de Sanaga (Senegal) são os primeiros negros que aqui é o princípio do reino de Jalofo. E da parte do Norte, pelo rio de Sanaga, parte (confina) com os Azenegues, e da parte do meio-dia ou do Sul se demarca com Mandinga.”

E tece considerações sobre este reino de Jalofo: “Porá em campo o rei de Jalofo dez mil de cavalo e cem mil de pé. E toda esta gente anda nua, senão os fidalgos e homens honrados e se vestem de camisas de pano de algodão, azuis, e ceroulas do mesmo pano de algodão; são circuncisos e macometas (muçulmanos).” E não esconde que há muita coisa ainda por saber: “É incógnito onde nasce o Sanaga, parece que é o braço que o Nilo lança pela Etiópia inferior.”

A imagem mais conhecida do autor, a quem Luís de Camões chamou o Aquiles Lusitano
Duarte Pacheco Pereira na filatelia
Carta de Stefano Bonsignori, de 1580, mostrando parte de África Ocidental, incluindo os atuais países do Senegal, Guiné-Bissau, Mali, Serra Leoa, Libéria, Costa de Marfim e Burquina Fasso
A casa dos escravos na ilha de Goreia, hoje Património da Humanidade

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25290: Historiografia da presença portuguesa em África (415): Cuidados a ter quando se lê a "Crónica dos Feitos da Guiné", de Gomes Eanes de Zurara (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 25 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25307: Os 50 anos do 25 de Abril (4): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Março de 2024:

Queridos amigos,
É um livro de memórias onde logo nas primeiras páginas se dá a entender que estalou uma rebelião espiritual entre a aprendizagem e o sentido da ordem e o tremendo enganador equívoco de uma guerra sem sentido, o militar que vai participar numa grande operação apregoada como aniquiladora da resistência da guerrilha descobre o completo sem sentido da mesma, a operação não passa de um ato de vaidade para fazer esvoaçar as asas do pavão; de Angola para Moçambique, formando uma companhia de comandos e depois de um compasso de espera de novo num batalhão de comandos africanos, desta feita na Guiné, a consciência está plenamente desperta, a guerra caminha para o abismo, e daí um militar conjugar esforços com outros e vamos ouvir a história da formação do movimento dos capitães da Guiné. As memórias continuam, o capitão aderiu ao PREC, dele tirará os seus ensinamentos, como conversaremos a seguir.

Um abraço do
Mário



Porventura o testemunho mais eloquente sobre a guerra colonial e o depois,
Palma de ouro para a literatura nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (2)


Mário Beja Santos

Carlos de Matos Gomes é o romancista Carlos Vale Ferraz, autor do romance mais influente de toda a literatura de guerra colonial. Agora muda de rosto, volta a ter perto de 20 anos, faz comissões em Angola, Moçambique e na Guiné, prepara muita gente para a guerra, pertenceu ao grupo mais ativo do MFA na Guiné. Posteriormente, envolveu-se no processo revolucionário, chegou a hora de fazer um balanço do que viveu e do que se lembra.

Acaba de sair o seu livro de memórias "Geração D - Da Ditadura à Democracia", agora é, sem margem para equívocos, Carlos de Matos Gomes, Porto Editora, 2024, um assombroso ecrã sobre as primícias da guerra, os seus bastidores, o funcionamento da hierarquia castrense, a burocracia, sobretudo o exame de consciência do que é que um oficial do quadro permanente ia assimilando nas matas e nos quartéis quanto ao tremendo equívoco que era procurar até ao desespero urdir uma ficção sobre a propaganda doutrinal do Estado Novo sobre uma “guerra justa” para aquele império com pés de barro. É esta a parte das memórias construídas com uma assombrosa arquitetura literária que aqui se procura, aos poucos, desvelar.

É na região de Tete, em maio de 1971, que aquele capitão, comandante de uma companhia das tropas especiais, fez a pergunta do que efetivamente estava a fazer naquele fim do mundo. O poder destas memórias de Carlos de Matos Gomes assenta na sinceridade com que fala das razões por que escolheu a instituição militar, como foi descobrindo que se estava a hipotecar uma juventude em nome de um puro devaneio imperial, sem qualquer sustentação temporal, confrontado com decisões operacionais de opereta, caso da Operação Nó Górdio iniciada em 1 de junho de 1970, e que lhe dará alimento fecundo para essa obra-prima que é o "Nó Cego".

 Não apóstrofa, não incensa os condimentos do horror, exprime-se naturalidade quando fala dessa fada-madrinha que dá muito jeito na guerra, a sorte. Há para ali a explosão de uma morteirada, provocou muitos feridos, mas ele tece louvores à sorte:

“A minha sorte é que rebentou no pé de uma árvore de bom diâmetro, precisamente do lado oposto à minha posição. Mesmo assim, apesar da sorte de a árvore ter ocultado parte da explosão e estilhaços, fui atingido ainda por alguns deles, felizmente pequenos, um dos quais me partiu o dedo mindinho da mão esquerda, outros quatro alojaram-se nas costelas e osso do antebraço direito. Ainda hoje aqueles estilhaços encontram-se alojados nas minhas costelas e antebraço direito. Outros estilhaços muito pequenos espalharam-se pelas costas sem graves consequências.” Bem dita árvore!

Aquelas grandes operações não serviam para nada, não solucionavam a guerra.

“A minha geração cumpriu até concluir que não lhe cabia cumprir a ordem de sacrificar a sua nação.” 

Partira para Angola em 1969, regressava a Lisboa no verão de 1971. É também para isso que servem os livros de memórias, para contarmos de onde vimos, a nossa ancestralidade, por onde andamos na juventude, como chegou à Academia Militar. E como se ofereceu para a Guiné, não escondia a curiosidade de encontrar nas atividades do General Spínola uma resposta que podia ajudar a esclarecer as suas questões e com o regime. 

Ofereceu-se para assessorar uma companhia de comandos africanos, decidira que esta seria a sua última comissão em África, enquanto militar profissional não acreditava na vitória militar e enquanto cidadão não aceitava que se continuasse numa guerra sem que os portugueses se pronunciassem sobre ela.

Spínola e um direto colaborador, o Major Almeida Bruno, congeminaram a constituição de um Batalhão de Comandos Africanos. Spínola deu uma explicação a Matos Gomes:

“As tropas europeias assegurariam o apoio de fogo e de combate, enquanto não existissem quadros locais para as guarnecer. A Força Aérea e a Marinha continuariam a cumprir as suas missões, mas integrando o maior número de quadros locais que lhe fosse possível. O Batalhão de Comandos Africanos seria a principal unidade de combate ofensivo. Spínola pretendia criar um exército guineense, tendo como objetivo final umas Forças Armadas da Guiné, em que os militares portugueses fossem quadros técnicos.”

O novo centro de instrução de comandos é localizado em Mansabá. Matos Gomes ambienta-se, comanda uma das operações típicas da manobra política e militar de Spínola, no Quínara, a missão consistia em atravessar a península que integra São João, Tite e Fulacunda. Houve fogo quanto baste.

“Aprendi na Guiné que o mais seguro é passar a noite na bolanha, porque a lama absorve as explosões das granadas, basta que não nos caiam em cima. O problema são as marés. A técnica de estacionar em círculo à noite também não era usada pelos comandos africanos – todos passávamos a noite em linha, primeiro de cócoras, depois de pé, à medida que a água subia.”

Assim decorreu a sua primeira experiência como assessor das tropas africanas em combate. Vai obtendo informações quanto às tentativas de negociação de Spínola com Léopold Senghor, Marcello Caetano rejeita tais conversações.

O autor reflete sobre os comportamentos um tanto paradoxais do carismático Spínola que na Guiné parecia um político capaz de ler o “tempo da História” e que depois do 25 de Abril cometeu erros absurdos, chegando a ligar-se aos radicais do Estado Novo, aos vigaristas reunidos no MDLP/ELP, e procura dar uma explicação:

L“Na Guiné ele agiu por desejo de glória, de ganho político, e para alcançar esses fins identificou-se, através de gestos de simpatia com a população, caso dos Congressos do Povo. Embora pelo que lhe diziam os seus assessores ele estivesse convencido do contrário, os portugueses não conheciam Spínola e depararam-se com uma figura anacrónica, que surgiu desfocada nos ecrãs a preto e brancos das televisões na noite de 25 de Abril de 1974.”

Naquele desesperante mês de maio de 1973, numa tentativa de romper o cerco em Guidage, terá lugar a Operação Ametista Real, que cumpriu o seu objetivo. E o autor dá-nos conta de como se vai dando a fermentação do movimento dos capitães na Guiné, quem é quem, onde se reúnem, e aproveita para nos dar um contexto de tudo quanto ia ocorrendo em 1973, o assassinato de Amílcar Cabral, a reação do PAIGC, tomara a iniciativa de forma espetacular, pois alcançara valores que eram os mais altos de sempre desde o início da guerra: 220 ações provocando às nossas tropas 63 mortos e 269 feridos.

É no aceso desta ofensiva do PAIGC que chega a notícia da realização de um Congresso dos Combatentes, impulsionada pela extrema direita, gera-se uma movimentação contra o congresso, não só na Guiné, em Lisboa também há descontentamento, é um movimento de contestação encabeçado por Ramalho Eanes, Hugo dos Santos e Vasco Lourenço, digamos que é uma ironia, mas aquele congresso realizou-se enquanto se desenrolava uma tragédia em Gadamael, que foi mantida mas onde os militares portugueses sofreram 24 mortos e 147 feridos. E Matos Gomes escreve:

“Durante o mês de maio de 1973, a guerra na Guiné entrou num ponto de não retorno. Ao atacar quase simultaneamente no Norte, em Guidage, e no Sul, primeiro em Guileje e depois em Gadamael, o PAIGC revelou o esgotamento do potencial de combate das forças portuguesas na Guiné e da capacidade de reação a ataques combinados de controlo do território, resistindo e mantendo-se em duas frentes. O PAIGC, do seu lado, ficou a saber que dispunha de capacidade para desencadear dois ataques em força e vencer um. Poderia repetir a manobra e iria fazê-lo no início de 1974 com o cerco a Canquelifá, onde o Batalhão de Comandos Africanos conseguiu resistir duas vezes; porém, se fosse aberta outra frente, já não haveria reserva quando os paraquedistas fossem empenhados.”

Costa Gomes chega à Guiné em 8 de junho, decide-se remodelar o dispositivo, trocar espaço por tempo, aprova-se um plano de retraimento do dispositivo militar que devia ficar com todas as unidades aquém da linha geral rio Cacheu-Farim-Fajonquito-Paunca-Nova Lamego-Aldeia Formosa-Catió, para evitar o aniquilamento das guarnições de fronteira. 

Costa Gomes considerou a situação da Guiné como controlada e o território defensável; no entanto, ela é a clara admissão de que as forças portuguesas abdicavam da posse de boa parte do território da Guiné e das suas populações para se concentrarem num reduto central. A soberania portuguesa seria assim apenas formal, militar e politicamente indefensável.” 

Em agosto, Spínola regressa definitivamente a Lisboa.

Matos Gomes dá a sua versão do nascimento do MFA, chega, entretanto, o sucessor de Spínola, o general Bethencout Rodrigues. Tece um apontamento dos acontecimentos de Canquelifá e assim chegamos à tomada do poder da Guiné de 26 de abril. 

PA 16 de junho de 1974, Matos Gomes está de regresso, temos agora o quadro preparatório que o vai transformar num ativista revolucionário, iremos ouvir falar no COPCON, no Batalhão de Comandos nº11, em Jaime Neves, no 28 de setembro, nas campanhas de dinamização cultural, na efervescência política do PREC, nos acontecimentos do 11 de março e a respetiva assembleia do MFA, nos gabinetes de dinamização das unidades, num bizarro oficial muito ligado ao MRPP, o major Aventino Teixeira, estamos em pleno verão quente, Matos Gomes anda esfusiante, ele e Jaime Neves demarcam posições, nisto surge o Documento dos Nove, com as suas propostas de moderação.

 Caminha-se para o precipício, Matos Gomes, com invulgar crueza e frieza, dá pormenores de como se chega ao 25 de novembro de 1975 e o depois, a caminhada que ele impôs a si próprio.

(continua)

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Nota do editor

Post anterior de 18 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25285: Os 50 anos do 25 de Abril (3): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 22 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25296: Notas de leitura (1677): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (17) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Março de 2024:

Queridos amigos,
Os autores procedem a uma análise do desempenho da Força Aérea na Guiné, nomeadamente no período de 1968 a 1971, o sistema de defesa antiaérea do PAIGC estava praticamente fora de combate, Spínola gostava tanto das operações conjuntas e o papel dos helicópteros tornava-se crucial, designadamente para o transporte das tropas especiais e evacuação de feridos; por outro lado, Spínola e o comando da Zona Aérea adaptaram o sistema instituído ao tempo de Schulz para as zonas de intervenção exclusiva, os bombardeamentos continuaram. Era incontestável que a capacidade agressiva dependia do apoio aéreo, em praticamente todas as situações. É esse o relato que aqui se condensa, houvera escalada da guerra, mas a supremacia aérea estava do lado português.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (17)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.




Capítulo 4: “A pedra angular”

Nos dois textos mais recentes, procurou-se dar conta dos problemas postos pelas defesas antiaéreas ao serviço do PAIGC e dos receios fundados, por parte do General Spínola, de intrusões aéreas oriundas dos países vizinhos e hostis. No fundo, problemas vindos do passado e que pareciam ganhar um novo realce o recurso de armas mais sofisticadas por parte da guerrilha.

Vimos como desde 1965 se procurou aniquilar a capacidade de defesa antiaérea, neutralizavam-se armas de defesa e os seus operadores, a Zona Aérea reivindicava ter destruído mais de 50 canhões antiaéreos ou tê-los seriamente danificado. Quando parecia que se tinha reduzido a quantidade de fogo antiaéreo reacendiam-se incidentes e, por exemplo, foram reportados 110 em 1966, não desapareceram completamente, mas, por exemplo, foram reportados 9 em 1971, número que subiu para 23 no ano seguinte. Como igualmente se referiu, a Operação Pérola Azul (julho de 1970) foi demolidora, o PAIGC adotou a estratégia de abrigar o seu armamento antiaéreo para lá da fronteira da República da Guiné.

A desmotivação afetou o PAIGC, havia comprovadas deficiências nesta batalha da defesa aérea, apesar de continuar a renovar-se o armamento eficaz e haver o apoio de peritos estrangeiros. Em 1971, Amílcar Cabral não escondeu as suas críticas pela falta de coragem para disparar contra os aviões. Recorde-se que a Força Aérea na Guiné entre 1965 e 1972 perdeu apenas uma aeronave devido a fogo hostil. Em 28 de julho de 1968, o Comandante do GO 1201, o Tenente-coronel Francisco da Costa Gomes, voava num Fiat para fazer reconhecimento fotográfico a norte de Guileje. Ao tentar localizar e fotografar posições antiaéreas ao longo da fronteira, o Fiat foi atingido por fogo de uma arma de 12,7 mm, supostamente a partir de território da República da Guiné. Os projéteis atingiram o depósito de combustível, incendiando o motor e a cauda, o comandante foi forçado a ejetar-se. O seu avião caiu a cerca de 4 km da fronteira, perto do quartel português de Gandembel. Depois de escapar às patrulhas dos guerrilheiros e aos perigos de campos minados, Costa Gomes conseguiu chegar ao quartel aonde um soldado que estava no turno em vigilância questionou aquela figura abatida e desconhecida, num fato de voo sujo, e pareceu-lhe velho demais para ser piloto. Tudo acabou em bem, o Tenente-coronel Costa Gomes voltou a Bissalanca sem mais incidentes.

Importa salientar que todo o esforço para aniquilar ou neutralizar o sistema antiaéreo do PAIGC constituiu uma pequena fração na atividade global da Força Aérea na Guiné. Desde que Spínola assumiu o comando, em 20 de maio de 1968, até final de 1972, os aviadores portugueses realizaram cerca de 12.408 missões de ataque, apoio de fogo e reconhecimento armado na Guiné, das quais apenas 67 (cerca de meio por cento) foram especificamente vocacionados para operações de aniquilamento dos referidos sistemas de defesa antiaérea. No entanto, este número de surtidas desmente a importância da luta da defesa aérea para ambos os lados do conflito.

O PAIGC tinha apostado muito na capacidade de conquistar e manter “áreas libertadas”, mas a validade das suas reivindicações diminuía com cada aeronave da Força Aérea que sobrevoava as ditas áreas libertadas sem serem molestadas. Em termos de tentar pôr a respeito a luta armada, confiava-se cada vez mais no poder aéreo para justificar que qualquer força militar podia chegar a qualquer ponto do território. Tudo conjugado, em meados de 1970 e uma inequívoca supremacia aérea, que obrigou o PAIGC a procurar uma resposta que pusesse em causa tal supremacia.


Capítulo 5: “Tudo estava dependente deles, de uma forma ou outra”

“Tínhamos, por um lado, 40 mil militares no terreno, que suportavam múltiplas dificuldades, o isolamento, o desconforto, o perigo constante… Por outro lado, 50 ou 60 pilotos, um máximo de 70. Tudo estava dependente deles, de uma forma ou outra.” – General Lemos Ferreira, Comandante da BA 12, 1971-1974.

Enquanto a batalha pela supremacia aérea se intensificava, a guerra terrestre expandia-se, em abrangência e intensidade. Em 1968, o PAIGC reivindicava o controlo de dois terços do território da Guiné, citava mesmo a decisão de Spínola é abandonar uma série de guarnições isoladas, as operações também se iam tornando mais letais: embora o total do número de ataque contra as forças portuguesas tivesse diminuído quase um terço entre 1969 e 1970, causaram cerca de 45% mais vítimas.

De acordo com o General Venâncio Deslandes, Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, a eficácia de combate do PAIGC refletia quatro desenvolvimentos complementares: reforço material, tanto qualitativo como quantitativo; reforço de mão de obra, incluindo o uso de especialistas estrangeiros; reorganização militar que melhorou o controlo tático e a flexibilidade; avanço no sistema de informações, planeamento e de liderança tática.

Estas melhorias refletiam o esforço contínuo do PAIGC de transformar o seu braço armado numa “estrutura militar convencional”. Confrontados com a necessidade de contrariar um movimento militar e sociopolítico devido às iniciativas de Spínola, bem como a entrada no terreno cada vez mais de armas pesadas, o PAIGC “remodelou completamente a sua estrutura durante 1970-1971. Deixou de se falar em guerrilha, substituindo essas unidades por Forças Armadas Locais, uma designação para falar de forças regulares”. O Exército Popular foi também dividido em unidades distribuídos regionalmente, compostas por dois ou mais bi-grupos, com secções anexas, conforme as necessidades. A análise de Venâncio Deslandes resumia assim a situação: “Têm infantaria, artilharia e foguetes, ganharam maleabilidade para conduzir o esforço de guerra de acordo com a estratégia decidida ao mais alto nível.”

Segundo o serviço de informações, avaliava-se a força global do Exército Popular num pessoal de 4800 sediados na Guiné e 1200 nos países vizinhos, divididos em 73 bi-grupos de artilharia e dois grupos dos Comandos. Para contrariar este poder militar do PAIGC, Spínola, tal como Schulz, voltou-se cada vez mais para os recursos da Força Aérea. Em 1969, a Zona Aérea montou apenas uma operação de ataque pré-planeada (ver apêndice VI): este número cresceu para 22 no ano seguinte e 45 em 1971. Essas operações envolveram quase 3000 operações de ataque, na sua maioria realizadas por Fiat ou T-6, responsáveis por um terço de todas as missões de ataque e apoio aéreo registados de 1969 a 1971. Sem surpresa, os ataques aéreos pré-planeados centraram-se em áreas de maior atividade do PAIGC, tanto no Sul como nos setores ocidentais onde a guerrilha estava mais ativa. Muitas das outras surtidas e ataque de apoio de fogo tinham a ver com a guerra de helicópteros. De 1968 até finais de 1971, a Zona Aérea levou a efeito quase 160 operações com helicópteros, tanto no Este como no Sul, mobilizando milhares de soldados em mais de 3000 saltos. Praticamente todas estas operações foram apoiadas por aeronaves de asa fixa e rotativa que realizaram reconhecimento, bombardeamento preparatório, apoio de fogo, comando e controlo e evacuação de feridos. Em 1971, os ataques combinados ar-terrestres tinham assumido um papel fulcral na estratégia de Spínola, como observou um jornalista, dizendo que “os Alouettes raramente estavam parados, não se passa um dia sem que os meios aéreos estejam a funcionar.” Estas operações conjuntas representaram mais de 40 mil incursões durante os primeiros três anos e meio do comando de Spínola (julho de 1968 a dezembro de 1971 – ver anexo II), atingindo um pico total anual de 11320 em 1971. As aeronaves com mais tarefas, no inventário da Base Aérea 12 durante este período, foram o DO-27 e o Alouette III, indicativo dos vários tipos de missões e demonstrativo da centralidade da logística aérea tanto para o esforço de guerra como para os seus programas de apoio civil.

Atividade do sistema de defesa antiaérea do PAIGC entre 1968 e 1972 (Matthew M. Hurley, com base em documentos oficiais portugueses)
O Fiat n.º 5411 poucos dias antes de ter sido abatido perto da fronteira da República da Guiné (Coleção José Nico)
Detalhe do Fiat n.º 5411 abatido pelo PAIGC (Casa Comum/Fundação Mário Soares)
Destroços do avião Fiat n.º 5411 a 4 km da fronteira da República da Guiné (Arquivo da Defesa Nacional)
Posições do sistema antiaéreo do PAIGC a cerca de 200 metros da fronteira com a Guiné Portuguesa, aquando no abate do Fiat nº5411 (Arquivo da Defesa Nacional)
Estrutura militar do PAIGC em 1971

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 15 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25276: Notas de leitura (1676): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (16) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 20 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25290: Historiografia da presença portuguesa em África (415): Cuidados a ter quando se lê a "Crónica dos Feitos da Guiné", de Gomes Eanes de Zurara (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
É facto que tem que se ler a Crónica dos Feitos da Guiné com sérias reservas, é opinião consensual de todos os investigadores da chamada expansão portuguesa. Fica-se ciente que este cronista-mor do reino não dispunha de elementos fundamentais dos relatos das navegações efetuadas no período henriquino, aí o historiador Duarte Leite fez críticas acerbas a erros e omissões, aqueles e estas incontestáveis. Joaquim Barradas de Carvalho lança o seu olhar numa outra dimensão, compara o que escreveu Zurara com o chamado "Manuscrito de Valentim Fernandes", este altamente depurado de considerações que seguramente o seu autor achava desnecessárias ou de duvidosa importância. Isto para dizer que o olhar de uma geração para uma outra anterior, um padrão cultural distinto (Zurara de cultura livresca, Valentim eminentemente pragmático) saldam-se em textos igualmente distintos, e o que Barradas de Carvalho procurava intencionalmente provar é hoje um dado incontestável, escreve-se de acordo com uma mentalidade, está-se marcado pelo tempo. A mim sobra-me a dúvida, vou apresentar Zurara como peça de abertura do meu trabalho ainda com mais reservas das que tinha antes de ler Joaquim Barradas de Carvalho...

Um abraço do
Mário



Cuidados a ter quando se lê a "Crónica dos Feitos da Guiné", de Gomes Eanes de Zurara

Mário Beja Santos

Ando entregue a uma empreitada de alguma dimensão, a antologia de obras imprescindíveis para conhecer a presença portuguesa numa colónia que se chamava Guiné, desde meados do século XV até ao fim da primeira metade do século XX, quando este território, mais do que fronteiras, ganhou organização e passou a ter um projeto consequente para o seu desenvolvimento (no sentido mais amplo), era seu Governador o Comandante Manuel Sarmento Rodrigues, o nome Guiné passara a ser mais do que um ponto das cartas e mapas.

Obviamente que é necessário procurar saber o rigor com que Zurara escreveu a sua crónica panegírico sobre os trabalhos do Infante. Comecei por ler alguns estudos de Vitorino Magalhães Godinho e dou com o ensaio de Joaquim Barradas de Carvalho na Revista de História n.º 15, julho-setembro, 1953, Ano IV, São Paulo, Brasil, publicação científica em que colaboraram alguns jovens historiadores portugueses marcadamente oposicionistas. O trabalho de Barradas de Carvalho é uma comparação entre o que escreveu Zurara e Valentim Fernandes, este um natural da Morávia, que se distinguiu como impressor em Lisboa, onde faleceu. A análise do historiador prende-se com a mentalidade, o tempo e os grupos sociais, é por isso que ele vai fazer o confronto entre os escritos de Zurara e Valentim Fernandes no que toca à "Crónica da Guiné" (o leitor mais interessado tem à sua disposição o texto integral no site: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/35728/38444).

Em 1837, na Biblioteca Nacional de Paris, Ferdinand Denis encontrou um manuscrito da "Crónica dos Feitos da Guiné", única obra contemporânea do Infante D. Henrique em que se relatam os seus descobrimentos africanos. A sua impressão ficará a ser devida ao Visconde de Santarém. Em 1847, é descoberto em Munique um códice que viria a ser editado pela Academia Portuguesa de História com o título "O Manuscrito Valentim Fernandes", onde há um texto intitulado “Crónica da Guiné”. Anos depois, em 1879, Ernesto do Canto revela a existência de cópias do manuscrito em Madrid e Munique, que se revelaram ser simplesmente cópias.

A "Crónica da Guiné" é posterior a 1460 (ano do falecimento do Infante), põem-se hipóteses altamente discutíveis quanto à organização do texto de Zurara, admite-se mesmo haver a junção do texto de Zurara com uma hipotética crónica de Afonso Cerveira, já que o texto não é homogéneo, mas o seu autor não faz menção de outros intervenientes. Zurara foi o cronista oficial e Guarda-mor da Torre do Tombo que sucedeu a Fernão Lopes, não se pode dizer que foi pessoa habilitada como investigador. A partir do século XX, os historiadores detetaram erros e deficiências no trabalho de Zurara. Uma das figuras gradas dos estudos da expansão portuguesa, Duarte Leite, identificou que esta crónica é pobre de dados sobre os produtos vindos da Guiné até ao reino, nada comenta do poder dos mouros ao longo do noroeste africano; não ficamos com a mínima ideia da configuração dos litorais, também a nomenclatura dos lugares sucessivamente achados é escassa, mas Duarte Leite não se ficou por aqui. Outro problema posto pelos historiados é conjeturar se a Crónica sofreu ou não censura quanto à política de sigilo, a opinião mais corrente é de que não houve censura, tais e tantas são as referências a estrangeiros que tiveram papel de relevo nestas viagens, como Cadamosto e Usodimare, acresce que se levaram para Veneza cartas de marear, eram relatados para Génova episódios das viagens, escreveram-se descrições como as Navegações de Cadamosto ou o "De prima inuentione Guinee", de Martim Behaim, a partir do relato oral de Diogo Gomes.

Jaime Cortesão, por seu lado, encontra duas espécies de deturpações na Crónica: umas feitas deliberadamente, outras provenientes da política de sigilo. Mas a generalidade dos historiadores considera imaginárias as conjeturas de Cortesão. Feita esta exposição de contextualização, Barradas de Carvalho alude aos quatro géneros de literatura de viagens (crónicas, descrições de viagens e de terras, diários de bordo e roteiros), e vai fixar-se exclusivamente no género crónica para comparar Zurara com o que posteriormente escreveu Valentim Fernandes.

O Manuscrito Valentim Fernandes, disse-se acima, foi descoberto em Munique em 1847. Dentro do acervo de escritos deste manuscrito há uma chamada “Crónica da Guiné”, dizendo o próprio Valentim Fernandes que foi dele autor Zurara. Os investigadores estão divididos quanto à autenticidade de tal manuscrito, há quem admita que é um resumo do códice de Paris ou cópia de Valentim Fernandes de um outro manuscrito. Dias Dinis é de opinião tratar-se de resumo e mutilação feita por Valentim Fernandes da obra de Zurara, Barradas de Carvalho também defende essa postura.

Mas o Estado de diferença dos dois textos de Zurara e Valentim permite observar duas mentalidades distintas: Valentim omite as razões pelas quais o Infante se sentiu movido a buscar as terras da Guiné, Zurara, para além de dar razões que hoje são estudadas como indiscutíveis, fala da astrologia judiciária como a mais importante das razões pelas quais o Infante se sentiu impulsionado às navegações da costa ocidental africana; Valentim não lhe faz uma só referência. Barradas de Carvalho toma posição. O resumo e arranjo da crónica feita por Valentim Fernandes assume um profundo significado. A mentalidade depende dos grupos sociais e depende do tempo. Valentim arranja a seu modo um texto de Zurara, homem que viveu noutro ambiente social e com uma outra experiência social. Há diferenças geracionais inequívocas. Sabemos que Valentim faz ressaltar, releva, no arranjo do texto de Zurara, ou mínima no mesmo texto, aspetos que definem duas intensões, duas valorizações das coisas e dos acontecimentos, dois graus de refinamento da utensilagem mental, haverá mesmo duas utensilagens. E, por isso, pergunta, quem foi Zurara e quem foi Valentim? Zurara foi um cronista palaciano em toda a aceção da palavra, cronista oficial e Guarda-mor da Torre do Tombo, cavaleiro da casa d’El Rei. Valentim, morávio, foi notário dos comerciantes alemães de Lisboa, a partir de 1503. Sabe-se ter sido editor e autor e um dos mais importantes, se não mesmo o mais importante dos impressores portugueses da época. São homens com experiência de vida, situações sociais e profissionais diversas. Valentim omitiu ou depurou textos da Crónica de Zurara, certamente pela simples razão de lhes conferir falta de substância; omitiu igualmente os textos transcritos por Zurara da Vertuosa Benfeytoria do Infante D. Pedro; Valentim substitui a quase totalidade dos algarismos peninsulares ou luso-romanos por algarismo árabes.

Em suma: Zurara era um cronista palaciano de mentalidade livresca e cavalheiresca; Valentim era um homem ligado à vida comercial do tempo, notado de mentalidade prática e com outra visão do mundo e das coisas.

Postas estas considerações sobre o que separava a mentalidade de Zurara de Valentim Fernandes, a mim fica-me uma questão fundamental por resolver e que tem a ver com a essência do escrito de Zurara, mais do que os seus erros este primeiro escrito sobre as navegações impulsionadas pelo Infante deixam-nos omissões de tomo, a despeito de se ficar com a ideia de que o Infante é visto inequivocamente como um senhor do seu tempo, entusiastas de cruzadas, ávido por saber os contornos do mundo desconhecido e ainda dotado de uma mentalidade medieval naquilo que hoje se configuram os direitos humanos.


Gomes Eanes de Zurara no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa
Marca do impressor Valentim Fernandes
Joaquim Barradas de Carvalho (1920-1980)
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Nota do editor

Último post da série de 13 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25269: Historiografia da presença portuguesa em África (414): A Guiné na Exposição do Mundo Português, 1940, Lisboa (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25285: Os 50 anos do 25 de Abril (3): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Março de 2024:

Queridos amigos,
É uma agradável surpresa, Carlos de Matos Gomes é ele próprio, com infância, vida familiar, a decisão tomada de ser oficial do quadro permanente, a sua passagem por Angola, como combateu em Moçambique, faz um compasso de espera em Lisboa e oferece-se para a Guiné, aí contribuirá para o desempenho do MFA. E irá contar como se processou a sua participação no processo revolucionário. O leitor será subjugado do princípio ao fim, eviscera-se a instituição militar com os seus valores, a sua burocracia, contam-se histórias hilariantes, perdas humanas, e aquele jovem capitão pergunta-se seriamente o que estava a fazer ali. Perguntado sobre o que o movia, responderá: "Não tinha um pensamento crítico organizado, e isso não dizia nada. A tropa é a tropa, é a malta. É o que a gente tem de fazer, vamos a eles e tal, aquela conversa. A seguir à primeira comissão, quando não estava na guerra, estava na Escola Prática de Cavalaria a dar instrução. O que dizia aos jovens que andavam a tirar o curso de oficiais milicianos: 'Vamo-vos preparar para vocês não morrerem. Vão para lá, são obrigados a ir, é preciso é que não morram e voltem." Um livro primoroso, um abençoado complemento para tornar mais cristalino o romance Nó Cego, a indiscutível obra-prima absoluta da literatura da guerra colonial.

Um abraço do
Mário


Porventura o testemunho mais eloquente sobre a guerra colonial e o depois,
Palma de ouro para a literatura nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (1)


Mário Beja Santos

Carlos de Matos Gomes é o romancista Carlos Vale Ferraz, autor do romance mais influente de toda a literatura de guerra colonial. Agora muda de rosto, volta a ter perto de 20 anos, faz comissões em Angola, Moçambique e na Guiné, prepara muita gente para a guerra, pertenceu ao grupo mais ativo do MFA na Guiné. Posteriormente, envolveu-se no processo revolucionário, chegou a hora de fazer um balanço do que viveu e do que se lembra.

Acaba de sair o seu livro de memórias "Geração D, Da Ditadura à Democracia", agora é, sem margem para equívocos, Carlos de Matos Gomes, Porto Editora, 2024, um assombroso ecrã sobre as primícias da guerra, os seus bastidores, o funcionamento da hierarquia castrense, a burocracia, sobretudo o exame de consciência do que é que um oficial do quadro permanente ia assimilando nas matas e nos quartéis quanto ao tremendo equívoco que era procurar até ao desespero urdir uma ficção sobre a propaganda doutrinal do Estado Novo sobre uma “guerra justa” para aquele império com pés de barro. É esta a parte das memórias construídas com uma assombrosa arquitetura literária que aqui se procura, aos poucos, desvelar.

Logo no arranque da obra, aquele jovem oficial é levado a pôr uma interrogação quem tem a espessura de um cataclismo moral, está no Tete:
“Num dia de maio de 1971, perguntei-me o que estava a fazer numa paisagem lunar, cinzenta e alaranjada, de rochas escaldantes, árvores de ramos secos, enquanto comia uma lata de conserva da ração de combate, sob uma temperatura superior a 40ºC, nas imediações dos morros de Cabora Bassa. Suava e afastava mosquitos. Não me queixava das condições da natureza. Prepara-me para a enfrentar e aos inimigos, mas chegara o momento das interrogações. Era um intruso. Que causas me haviam trazido até ali? Estar ali resultava da minha vontade e da minha liberdade, ou fora fruto de um conjunto de acasos, pelo que tanto podia estar naquele como noutro lugar ou situação, segundo o meu livre-arbítrio?”

E este jovem oficial que abriu o veio à consciência, apresenta-se:
“Tinha 24 anos, o posto de capitão comandante de uma companhia das tropas especiais, os Comandos, com o nome totémico de ‘Escorpiões’. Estava a terminar os dois anos de comissão. Chegara a Moçambique em 1969, como tenente, vindo do Centro de Instrução de Comandos de Angola, a casa-mãe daquelas tropas. Formara esta companhia em Montepuez com voluntários, havíamos combatido nas grandes operações do Norte em Cabo Delgado, no planalto dos Macondes. Os dirigentes da FRELIMO haviam decidido abrir a frente de guerra em Tete, e para ali viera eu enfrentá-los com os meus experientes, silenciosos e atentos comandos.”

Está para ali acompanhado de duas equipas de pisteiros rodesianos, é costume fazerem operações conjuntas. Acompanha-o um desses seres humanos sujeito a duas causas:
“Perto de mim, um negro esfarrapado, descalço, magro, sem idade identificável, quase uma múmia de pele seca e escamada. O guia que a PIDE me tinha envergado para me levar ao acampamento dos guerrilheiros, vindos do Norte, que haviam atravessado o rio Zambeze. O negro, sentado sob os calcanhares, amarrado pela cintura a um soldado, comia em silêncio o que lhe tínhamos dado – mastigava lentamente, com a boca de lábios rebentados pela pancada no interrogatório de há dois dias, numa tenda, na povoação de Estima, na base dos morros do Songo, no quartel-general do Comando Operacional das Forças de Intervenção.
Perguntei-me de novo o que fazia naquele fim do mundo, no interior de África, com um negro atado pela cintura a um soldado, transformando-o num moderno caçador de escravos e a mim num negreiro.
Aquela não era a terra a que eu pertencia. Nada me ligava àquele negro, nem àquelas rochas, nem àquele sol abrasador, nem aos mosquitos que entravam pela boca, nem aos rodesianos brancos que mandavam os seus militares combater ao nosso lado, no lado de cá da nossa fronteira, para evitar que os guerrilheiros anti-apartheid realizassem ações do seu lado.
Que causa me ligava àquele negro e aos homens que estavam sob o meu comando?”


A PIDE insistia na existência de uma base naquela região, a missão era aniquilá-la. Depois de muito caminhar encontraram-se na orla de uma mata no fundo de um pequeno vale, não havia base nenhuma, escreve o autor, manda o soldado soltar o preso, houve quem perguntasse ao capitão se o guia devia ser abatido, o capitão disse que não. E disserta sobre o Exercício Alcora, um protocolo estabelecido entre a África do Sul, a Rodésia e Portugal, os brancos da África Austral sonhavam com a criação de um bloco branco. Depois do 25 de Abril, o autor teve a oportunidade de ler os relatórios secretos dos aliados rodesianos, pouco generosos para nós: que tínhamos pouca vontade de combater, que não perseguíamos rapidamente as forças da guerrilha.

A graduação de memórias oscila entre o teatro de operações moçambicano e o curso que ele fez na Academia Militar, assim caminhamos para uma história brejeira, a da tropa de Lione, destacamento que distava poucos quilómetros em linha reta da fronteira com Maláui, vale a pena contar a história:
“A interpretação tática do comandante da companhia do Lione de não sair da quadrícula do seu aquartelamento, definida por uma ferrugenta rede de arame farpado pendurada em troncos apodrecidos, foi aceite como um facto pelo comando militar de Vila Cabral. Como tratar uma birra? O capitão miliciano comportava-se com a maior civilidade, revelava um espírito alegre, indiferença pela situação política, mandava vir revistas e jornais de Inglaterra e resumia o seu comportamento declarando que estava bem, na medida em que não podia estar pior. Se o punissem iria para outro local que seria, com elevada probabilidade, melhor do que o Lione.”

Carlos de Matos Gomes sai de Lione e vai em direção ao Malawi, cerca uma aldeia, quem lá vive não mostra temor, alguém se aproxima e se apresenta como polícia rural do Malawi. O capitão toma a decisão de pôr toda aquela gente numa coluna até Vila Cabral. Os comandos ficam petrificados quando dão conta do tremendo engano, aquela gente do Malawi após uma refeição oferecida foi reconduzida à sua terra-mãe.

Procede com ironia quando nos fala no Dia da Raça, muda de agulha quando a narrativa se prende com o primeiro morto em combate:
“Embarcámos numa lancha de desembarque pequena da base de Metangula, que oficialmente albergava o Comando da Defesa Marítima dos portos do lago Niassa. Desembarcámos numa pequena praia com o percalço de a lancha ter ficado presa num tronco, o que nos obrigou a sair com água pelo peito e a lancha a fazer muito mais barulho com o esforço dos motores para se libertar. O assalto correu como correm os assaltos: um grupo cercou a base e outro entrou a disparar. Os guerrilheiros deviam esperar-nos e responderam. O Armando, um negro robusto, sereno e de poucas falas, era sipaio da administração e servia de intérprete entre nós e o Zé Palangué (guerreiro capturado). Foi atingido no peito e caiu à minha frente. Julgo que os guerrilheiros o quiseram visar. Pertencia à tribo dos ajaua, um dos grupos étnicos da região. O Zé Palangué podia ter fugido, mas manteve-se connosco, não sei por que razão. Integrou-se na comunidade de Meponda e no espírito português de cumprir regras segundo as conveniências, apesar de islamizado preferia as latas de conserva de chouriço em óleo de mendubi às de atum ou sardinhas. Iniciámos o difícil regresso pelos montes e vales das margens do lago, com o corpo do Armando para o entregarmos à família, com toda a dignidade. Eu tinha 20 anos e também cumpri a minha escala de trazer o Armando às costas, na maca improvisada com dois troncos e panos de tenda".

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25279: Os 50 anos do 25 de Abril (2): O meu primo Luís Sacadura, furriel miliciano, natural de Alcobaça, hoje a viver nos EUA, estava lá, no RI 5, Caldas da Rainha, no 16 de marco de 1974, e mandou-me fotos dos acontecimentos (Juvenal Amado)

sexta-feira, 15 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25276: Notas de leitura (1676): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (16) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2024:

Queridos amigos,
Prossegue a narrativa alusiva ao esforço dos altos-comandos na Guiné para assegurar que o teatro de operações estivesse efetivamente protegido por eficazes sistemas de defesa antiaérea; sob o comando de Spínola e com o Coronel Diogo Neto no comando da Zona Aérea procuraram-se aeronaves mais potentes e até adequar os Fiat com melhores mísseis, como é sabido as negociações para adquirir aviões Mirage ainda decorriam em abril de 1974; a par de todas estas diligências, aqui se revelam as operações, mormente na Península do Quitafine, para aniquilar os sistemas antiaéreos do PAIGC, este recebe um novo canhão em 1970 e, entretanto, em sucessivas operações, vão sendo demolidos os sistemas defensivos, com a particularidade de renascerem como cogumelos.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (16)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.



Capítulo 4: “A pedra angular”

Procedeu-se no texto anterior a um histórico das intrusões no espaço aéreo guineense e as preocupações e medidas tomadas nomeadamente por Schulz e Spínola para proteger o aeroporto de Bissalanca e outros lugares críticos. Em 1970, Spínola apelou de um modo um tanto dramático para que houvesse aumento dos dispositivos antiaéreos, reconhecia-se a necessidade de um total de seis pelotões, que deviam ser distribuídos pelo Teatro de Operações. Nenhum reforço esteve disponível até, pelo menos, 1971, e o Comandante-chefe não escondeu a frustração de só dispor de um pelotão mal equipado. Para reforçar o sistema de defesa aéreo da Guiné, a FAP recomendou a aquisição de equipamentos portáteis, mísseis terra-ar guiados por infravermelho, os FIM-43 “Redeye”, de origem norte-americana. Este míssil estava ao serviço das forças norte-americanas desde 1967, tinham sido projetados para proteger as tropas da linha da frente de aeronaves táticas hostis, embora se tenham revelado apenas marginalmente eficazes contra jatos rápidos. Mas não se ignoravam as restrições de armas por parte dos Estados Unidos. O embargo norte-americano deu-se logo em 1964 com os F-86, demorou anos até chegar ao Fiat, em 1968, esta era uma aeronave de apoio tático, havia, portanto, que preencher a lacuna para dissuadir jatos de ataque.

Portugal tinha recebido 440 “Sidewinder” no início da década de 1960, especificamente para equipar os F-86. Em maio de 1969, Spínola concordou na necessidade de aumentar o armamento dos Fiat com Sidewinders, com a intenção de melhorar o seu potencial de combate. No entanto, os testes efetuados revelaram que o Fiat estava em clara desvantagem comparativamente ao desempenho de prováveis inimigos, nomeadamente o MiG-17. Durante os mesmos testes os mísseis Sidewinder revelaram-se ineficazes contra alvos a baixa e média altitude, o que fora provado nos combates ar-ar no Vietname. Em consequência, em abril de 1970, o chefe das operações da Força Aérea, Coronel António da Silva Cardoso, revelou-se contra novas tentativas para armar os Fiat com mísseis, o que gerou grande discussão na Força Aérea e no Ministério da Defesa. Em janeiro de 1970, a solução para colmatar as deficiências quanto ao combate aéreo na Guiné residia na aquisição de um novo caça. Na sua avaliação anual da situação, Spínola solicitou um mínimo de 16 aviões Mirage, projeto que exigia anos de negociações internacionais, formação de pilotos e melhorias de infraestruturas.

Mesmo um caça como o Mirage, reconhecia-se, seria inútil como intercetador sem aviso adequado de que havia um ataque. Embora dois radares de vigilância aérea AN/TPS-1D tivessem sido fornecidos a Bissalanca a partir de 1964, eles operavam com limitações e até paralisação. Eram reconhecidamente obsoletos e com problemas de manutenção, tudo agravado pelas dificuldades na obtenção de peças sobressalentes. Como resultado, um dos radares foi canibalizado para manter o outro em atividade. Dois conjuntos AN/TPS-1D foram posteriormente enviados para a Guiné, mas ambos acabaram inoperantes ou canibalizados. Além disso, mesmo em condições de bom funcionamento, o radar AN/TPS-1D dava apenas aviso entre quatro a sete minutos de um intruso a voar a 3 mil pés e 450 nós, a interceção chegaria tarde e a más horas. Esta era a situação em 1970, altura em que a Zona Aérea solicitou quatro conjuntos adicionais para implantar noutros lugares da província. A Zona Aérea procurava melhorar a proteção física das suas instalações. Em 18 de fevereiro de 1968, um grupo de guerrilha procurou ameaçar com um ataque aéreo Bissalanca; o Chefe de Estado-Maior da Força Aérea ordenou que se fizesse um estudo urgente para proteger as aeronaves contra possíveis intrusões aéreas. Dispersar os meios de defesa antiaérea era virtualmente impossível devido ao número de superfícies de estacionamento disponíveis; reconhecida essa impossibilidade, foi recomendada a construção de abrigos e plataformas em Bissalanca, que seriam complementados pelos radares de vigilância que tinham sido solicitados, bem assim como os aviões de combate que o Governo de Lisboa estava a procurar negociar. Em abril de 1970, uma missão conjunta do Exército e da Força Aérea renovou essas exigências de um Centro de Alerta Aéreo e Centro de Operações Antiaéreas na Base Aérea N.º 12. Estas melhorias recomendadas implicavam despesas muito além do orçamento da Força Aérea. Apesar de todas estas recomendações e repetidos apelos, não se deu satisfação ao provimento de adequados sistemas de defesa aérea.

Com Spínola continuaram as operações para procurar destruir as defesas aéreas do PAIGC. Em setembro de 1969, um reconhecimento aéreo revelou uma nova ZPU-4 em Cassebeche, o que mostrava que a guerrilha procurava reconstituir as suas defesas aéreas na Península do Quitafine. Três formações de Fiat visitaram aquele lugar em três dias consecutivos, de 24 a 26 de setembro, daí resultou a destruição do sistema antiaéreo da quádrupla. Mas o PAIGC continuou a comprometer os seus meios de defesa aérea em Cassebeche, e em 20 de janeiro de 1970, uma formação de Fiat relatou ter tornado ineficaz uma ZPU-4 e incendiado uma DShK. Seguiu-se a Operação Cravo Azul, lançada imediatamente, quatro Fiat partiram de Bissalanca com carga máxima e destruíram a ZPU-4 e duas DShK. O reconhecimento pós-ataque revelou que não havia sinais de atividade da guerrilha em Cassebeche. A tripulação portuguesa anunciou a Operação Cravo Azul como uma conclusão bem-sucedida dos 27 meses da “Batalha do Quitafine”.

Apesar de todo este otimismo, os pilotos dos Fiat relataram nove incidentes subsequentes com disparos de sistemas antiaéreos até ao final de 1970, incluindo sete na região do Quitafine ou ao longo da fronteira próxima com a República da Guiné. Além disso, houve o fogo das armas contra aeronaves leves e helicópteros, pelo menos em quatro ocasiões. Neste ano surgiu um novo tormento para os aviadores portugueses, o PAIGC começava a utilizar uma outra arma antiaérea, o canhão M1939 de 37 mm, também de fabrico soviético, duplamente mais potente que as armas anteriores. A sua presença foi revelada pela primeira vez em 12 de maio por pilotos de Fiat que patrulhavam a fronteira sudeste, observaram detonações antiaéreas enquanto voavam a uma altitude supostamente segura. Uma subsequente operação de reconhecimento confirmou a presença de quatro canhões antiaéreos de 37 mm, duas ZPU-4 e quatro antiaéreas DShK, nas proximidades de Guileje, armamento que presumivelmente utilizava a base transfronteiriça do PAIGC em Kandiafara.

Procedeu-se ao planeamento operacional, a Diamante Azul, que ocorreu em 13 de maio; duas vagas de quatro Fiat atingiram as armas montadas com 600 quilos de bombas específicas, na primeira vaga, e cargas de profundidade de 750 libras convertidas em bombas de demolição, na segunda vaga. Num reconhecimento posterior, revelou-se que as armas do PAIGC, ou o que delas restava, tinham regressado a Kandiafara. Em finais de junho de 1970, um Fiat identificou canhões antiaéreos de 37 mm em Sare Morso, junto da fronteira com a República da Guiné, a 14 km a nordeste de Guileje, o que levou à Operação Pérola Azul. 24 missões de Fiat atingiram o local na primeira semana de julho, com aparente sucesso, já que não houve mais avistamentos de armas antiaéreas de 37 mm ou da atividade do PAIGC até maio de 1972.

As Oficinas Gerais de Material Aeronáutico testaram os mísseis Sidewiner em Fiat, mas a combinação provou-se ineficaz (imagem das OGMA)
Soldado norte-americano manipulando um Redeye durante um exercício em 1963. O Governo português procurou desesperadamente obter este sistema, a despeito do embargo norte-americano (Arquivos Nacionais dos EUA)
Operações contra os sistemas de defesa antiaérea do PAIGC entre setembro de 1968 e julho de 1970 (Matthew M. Hurley)
Um canhão M1939 de 37 mm usado pelo PAIGC no Sul da Guiné (Casa Comum/Fundação Mário Soares)
Relatório da atividade da defesa aérea entre 1965 e 1972 (Matthey M. Hurley baseado em documentação militar do tempo)

(continua)
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Notas do editor:

Post anterior de 9 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25254: Notas de leitura (1674): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (15) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25263: Notas de leitura (1675): Capitães/MFA – A conspiração na Guiné (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25275: Os 50 anos do 25 de Abril (1): Nos 50 Anos de Abril... O Meu Herói de Abril: Cap Salgueiro Maia (António Inácio Correia Nogueira)


Salgueiro Maia - A partir de foto do Afredo Cunha (1974). 
Wikipédia (com a devida vénia...) 


1. Mensagem do nosso camarada António Inácio Correia Nogueira, Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 (CTIG, 1971) e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 (RMA, 1972/74), com data de 14 de Março de 2024:

Caros camaradas
Grato vos fico pelo gesto que tiveram p´ra comigo.[1]
Como agradecimento ofereço-vos esta despretensiosa poesia que acabo de produzir.

Abraço amigo
António Inácio Correia Nogueira





TESTEMUNHOS

Nos 50 Anos de Abril… O Meu Herói de Abril

P´la noite dentro, serena e de vagaroso espaço,
Trouxeste as G3, as Chaimites e os velhos tanques d´aço,
E muitos jovens estremunhados, mas de rosto novo; e Santarém deixaste.
Ó Maia tu nunca quebraste!

E ao som do rom-rom da coluna militar,
Numa mão agarraste a G3 e na outra a liberdade, e puseste-te a andar;
Nas sacudidelas da estrada sonhaste com a guerra em Guidage, na mártir picada,
P´ la tormenta do combate esburacada,
Da sua terra vermelha, salpicada de sangue, que trilhaste,
Nos senhores da Guerra, perversos, que encontraste.
Ó Maia tu nunca quebraste!

Chegou a hora, olhas o despontar da imaginada madrugada,
O casario lisboeta, as colinas e o mar dos Descobrimentos de espuma prateada;
Tudo já te parecia novo, libertado,
Enquanto os ditadores dormiam, o sono na tirania, sossegados.
Paraste, sem medo; puseste firme a bota na calçada e, logo a vitória vislumbraste.
Ó Maia tu nunca quebraste!

A Capital do Império, a Praça,
De repente ela é tua; o concebível revés, de repente é graça!
Sobes ao Carmo, o sangue da picada que lembraste, está de cravos vermelhos festejada,
O povo clama, arrebatado, liberdade, liberdade, liberdade!...
Embriagado, lança o mito o “povo unido jamais será vencido”.

As armas, lá longe no calor do capim, calaram,
Os soldados de além-mar regressaram.
O povo é todo teu,
Ai, quem diria, o ditador pereceu.
Porque tu, Maia, nunca quebraste!...
Fizeste tudo para além do que baste.

Tu és o herói, a essência, o corpo maior,
O âmago das coisas boas de Abril,
Da liberdade celebrada,
Há 50 anos.
Tu és um Salgueiro que não desfalece, não desalenta.
Eterno serás,
Porque não voltaste atrás.


Ó Maia, sabes, o meu herói de Abril és tu!... Sempre.
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Nota do editor:

[1] - Vd. Post de 7 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25247: O nosso livro de visitas (221): O nosso camarada António Inácio Correia Nogueira pôs à disposição da tertúlia a Tese que apresentou à Universidade Fernando Pessoa como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia

quarta-feira, 13 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25269: Historiografia da presença portuguesa em África (414): A Guiné na Exposição do Mundo Português, 1940, Lisboa (Mário Beja Santos)

Capa do livro sobre a secção colonial da Exposição do Mundo Português, mostra uma cena de Macau, pintura de Fausto Sampaio


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
Dei comigo a pensar que nos faltavam imagens e texto sobre a presença guineense na Exposição do Mundo Português. A dedicada bibliotecária da Sociedade de Geografia de Lisboa trouxe-me algumas preciosidades dignas dos mais exigentes bibliófilos, dou-vos conta do que até agora apareceu. Alguém um dia terá que se dedicar a este trabalho de arrumar as peças dos eventos imperiais e delas subtrair o que tange à Guiné. Os desenhos de Eduardo Malta são exímios, são estes que aqui se publicam e no álbum não há mais; quanto à secção colonial, é uma obra essencialmente divulgativa, a generalidade das informações prestadas são do amplo conhecimento dos leitores, seria redundante dar mais do mesmo. Mas o trabalho de procura vai continuar.

Um abraço do
Mário



A Guiné na Exposição do Mundo Português, 1940

Mário Beja Santos

Um dia destes dei comigo a pensar se o assunto da presença guineense nas grandes exposições do Estado Novo era um assunto esgotado. Creio que sobre a I Exposição Colonial Portuguesa, que decorreu no Porto em 1934, se esgotara o assunto quanto às referências bibliográficas mais significativas e ao uso das principais imagens; o mesmo ocorre dizer da Exposição Colonial Industrial que se realizou na área do Parque Eduardo VIII, em 1937. E dei comigo a pensar que era escassa e difusa a informação sobre a presença guineense em 1940; e há imagens de bustos de guineenses no Jardim Botânico Tropical, onde decorreram eventos da Exposição do Mundo Português. Mas havia que preencher lacunas. Graças à preciosa colaboração da Dr.ª Helena Grego, prestimosa eficientíssima bibliotecária na Sociedade de Geografia, pus-lhe o assunto e logo foi buscar o material alusivo à secção colonial.

Temos primeiro o livro que o visitante podia adquirir, alusivo às parcelas do império. Encontrei alguns dados curiosos, se bem que a generalidade das fontes seja do conhecimento do leitor, são obras já aqui referidas. Dá-se informação geográfica, ou seja, fala-se da situação e superfície, da orografia e considero bem observado o que se diz sobre a geologia: “O solo da parte plana da Guiné é formado exclusivamente por aluviões argilosos, misturados de sedimentos arenáceos derivados de fortes arrastamentos das terras altas do Futa Djalon, pela fusão das geleiras glaciares formando caudalosas correntes, como se depreende ainda hoje dos estuários dos principais rios e da localização do arquipélago dos Bijagós. Os aluviões argilosos constituem nos lugares baixos as bolanhas e lalas conforme são temporariamente ou permanentemente alagados. O óxido de ferro é abundante, dando às terras da Guiné uma característica cor avermelhada.” Depois na referência hidrográfica (território retalhado por uma rede de braços de mar), faz-se uma observação sobre o clima: “É equatorial oceânico. As condições meteorológicas e as terras baixas não dando fácil escoante às águas das chuvas, dão à Guiné as características de um clima insalubre, porém, os braços de mar e os ventos oceânicos modificam estas condições, beneficiando o clima.”

Dão-se informações que o leitor já conhece: capital em Bolama, a colónia dividida em dois concelhos e sete circunscrições, os concelhos de Bolama e Bissau e as circunscrições de Cacheu, Farim, Mansoa, Bafatá, Gabu, Buba e Bijagós. No tocante à informação económica, escreve-se que a Guiné está incluída no domínio vegetal do Sudão e os seus terrenos baixos e húmidos e de aluvião favorecem uma vegetação luxuriante e de grande porte. Eram assim as vias fluviais da época: as portas principais abertas à navegação de longo curso eram Bissau, Bolama, Bubaque e Cacheu; os portes de navegação de cabotagem ficavam em Bafatá e Farim. Quanto à indústria da época, havia a Sociedade Industrial Ultramarina que explorava uma fábrica de cerâmica, uma fábrica de gelo e de energia elétrica que abastecia Bissau. Mista, de comércio e indústria, era a Companhia Agrícola e Fabril da Guiné, concessionário em Bijagós com sede em Bubaque e explorando palmeiras. Depois os autores espraiam-se sobre a informação etnológica e etnográfica, guardei a seguinte informação: “Por quatro veias correu o sangue a alimentar o corpo das famílias a que pertencem os povos da Guiné Portuguesa. Pela Etiópia, do Iémen, pelo Alto Nilo (Egito), pelo deserto do litoral, líbico, e pelo Atlântico.” E depois espraia-se ao detalhe sobre a etnologia e a etnografia, considero matéria já aqui largamente tratada.

Capitão Henrique Galvão pintado por Fausto Sampaio, ele foi o grande arquiteto da secção colonial
Uma das muitas imagens referentes à Guiné nesta obra, aqui vemos um Felupe, os responsáveis pela publicação socorreram-se dos arquivos da Agência Geral das Colónias

Este álbum comemorativo é hoje uma preciosidade, andam os bibliófilos à caça e pagam bom dinheiro por o ter. Os desenhos são de Eduardo Malta, de facto um artista plástico que tinha um lápis invulgar, não tanto se dirá do que pintava. Reservou à Guiné estes desenhos, estou em crer que não tínhamos qualquer um deles e vêm enriquecer o nosso acervo de imagens, porventura o mais rico que existe em Portugal sobre a história da Guiné e a guerra colonial. Não dou por concluída a pesquisa sobre estes tempos de 1940, mas a paciência e a insistência são as armas do negócio, é provável que haja mais elementos. Deliciem-se com os desenhos do Eduardo Malta.
Maritime – Bijagós, desenho de Eduardo Malta
Mansata Bande (Fula) e Jenabá Mantânhadjalo (Mandinga) – Guiné, desenho de Eduardo Malta
Braima Sanhá (chefe Fula), alferes de 2ª linha – Guiné, desenho de Eduardo Malta
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Nota do editor

Último post da série de 9 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25252: Historiografia da presença portuguesa em África (413): O luso-colonialismo nunca existiu: para África, só desterrado ou com "carta de chamada" (António Rosinha / Valdemar Queiroz)