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segunda-feira, 25 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25307: Os 50 anos do 25 de Abril (4): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Março de 2024:

Queridos amigos,
É um livro de memórias onde logo nas primeiras páginas se dá a entender que estalou uma rebelião espiritual entre a aprendizagem e o sentido da ordem e o tremendo enganador equívoco de uma guerra sem sentido, o militar que vai participar numa grande operação apregoada como aniquiladora da resistência da guerrilha descobre o completo sem sentido da mesma, a operação não passa de um ato de vaidade para fazer esvoaçar as asas do pavão; de Angola para Moçambique, formando uma companhia de comandos e depois de um compasso de espera de novo num batalhão de comandos africanos, desta feita na Guiné, a consciência está plenamente desperta, a guerra caminha para o abismo, e daí um militar conjugar esforços com outros e vamos ouvir a história da formação do movimento dos capitães da Guiné. As memórias continuam, o capitão aderiu ao PREC, dele tirará os seus ensinamentos, como conversaremos a seguir.

Um abraço do
Mário



Porventura o testemunho mais eloquente sobre a guerra colonial e o depois,
Palma de ouro para a literatura nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (2)


Mário Beja Santos

Carlos de Matos Gomes é o romancista Carlos Vale Ferraz, autor do romance mais influente de toda a literatura de guerra colonial. Agora muda de rosto, volta a ter perto de 20 anos, faz comissões em Angola, Moçambique e na Guiné, prepara muita gente para a guerra, pertenceu ao grupo mais ativo do MFA na Guiné. Posteriormente, envolveu-se no processo revolucionário, chegou a hora de fazer um balanço do que viveu e do que se lembra.

Acaba de sair o seu livro de memórias "Geração D - Da Ditadura à Democracia", agora é, sem margem para equívocos, Carlos de Matos Gomes, Porto Editora, 2024, um assombroso ecrã sobre as primícias da guerra, os seus bastidores, o funcionamento da hierarquia castrense, a burocracia, sobretudo o exame de consciência do que é que um oficial do quadro permanente ia assimilando nas matas e nos quartéis quanto ao tremendo equívoco que era procurar até ao desespero urdir uma ficção sobre a propaganda doutrinal do Estado Novo sobre uma “guerra justa” para aquele império com pés de barro. É esta a parte das memórias construídas com uma assombrosa arquitetura literária que aqui se procura, aos poucos, desvelar.

É na região de Tete, em maio de 1971, que aquele capitão, comandante de uma companhia das tropas especiais, fez a pergunta do que efetivamente estava a fazer naquele fim do mundo. O poder destas memórias de Carlos de Matos Gomes assenta na sinceridade com que fala das razões por que escolheu a instituição militar, como foi descobrindo que se estava a hipotecar uma juventude em nome de um puro devaneio imperial, sem qualquer sustentação temporal, confrontado com decisões operacionais de opereta, caso da Operação Nó Górdio iniciada em 1 de junho de 1970, e que lhe dará alimento fecundo para essa obra-prima que é o "Nó Cego".

 Não apóstrofa, não incensa os condimentos do horror, exprime-se naturalidade quando fala dessa fada-madrinha que dá muito jeito na guerra, a sorte. Há para ali a explosão de uma morteirada, provocou muitos feridos, mas ele tece louvores à sorte:

“A minha sorte é que rebentou no pé de uma árvore de bom diâmetro, precisamente do lado oposto à minha posição. Mesmo assim, apesar da sorte de a árvore ter ocultado parte da explosão e estilhaços, fui atingido ainda por alguns deles, felizmente pequenos, um dos quais me partiu o dedo mindinho da mão esquerda, outros quatro alojaram-se nas costelas e osso do antebraço direito. Ainda hoje aqueles estilhaços encontram-se alojados nas minhas costelas e antebraço direito. Outros estilhaços muito pequenos espalharam-se pelas costas sem graves consequências.” Bem dita árvore!

Aquelas grandes operações não serviam para nada, não solucionavam a guerra.

“A minha geração cumpriu até concluir que não lhe cabia cumprir a ordem de sacrificar a sua nação.” 

Partira para Angola em 1969, regressava a Lisboa no verão de 1971. É também para isso que servem os livros de memórias, para contarmos de onde vimos, a nossa ancestralidade, por onde andamos na juventude, como chegou à Academia Militar. E como se ofereceu para a Guiné, não escondia a curiosidade de encontrar nas atividades do General Spínola uma resposta que podia ajudar a esclarecer as suas questões e com o regime. 

Ofereceu-se para assessorar uma companhia de comandos africanos, decidira que esta seria a sua última comissão em África, enquanto militar profissional não acreditava na vitória militar e enquanto cidadão não aceitava que se continuasse numa guerra sem que os portugueses se pronunciassem sobre ela.

Spínola e um direto colaborador, o Major Almeida Bruno, congeminaram a constituição de um Batalhão de Comandos Africanos. Spínola deu uma explicação a Matos Gomes:

“As tropas europeias assegurariam o apoio de fogo e de combate, enquanto não existissem quadros locais para as guarnecer. A Força Aérea e a Marinha continuariam a cumprir as suas missões, mas integrando o maior número de quadros locais que lhe fosse possível. O Batalhão de Comandos Africanos seria a principal unidade de combate ofensivo. Spínola pretendia criar um exército guineense, tendo como objetivo final umas Forças Armadas da Guiné, em que os militares portugueses fossem quadros técnicos.”

O novo centro de instrução de comandos é localizado em Mansabá. Matos Gomes ambienta-se, comanda uma das operações típicas da manobra política e militar de Spínola, no Quínara, a missão consistia em atravessar a península que integra São João, Tite e Fulacunda. Houve fogo quanto baste.

“Aprendi na Guiné que o mais seguro é passar a noite na bolanha, porque a lama absorve as explosões das granadas, basta que não nos caiam em cima. O problema são as marés. A técnica de estacionar em círculo à noite também não era usada pelos comandos africanos – todos passávamos a noite em linha, primeiro de cócoras, depois de pé, à medida que a água subia.”

Assim decorreu a sua primeira experiência como assessor das tropas africanas em combate. Vai obtendo informações quanto às tentativas de negociação de Spínola com Léopold Senghor, Marcello Caetano rejeita tais conversações.

O autor reflete sobre os comportamentos um tanto paradoxais do carismático Spínola que na Guiné parecia um político capaz de ler o “tempo da História” e que depois do 25 de Abril cometeu erros absurdos, chegando a ligar-se aos radicais do Estado Novo, aos vigaristas reunidos no MDLP/ELP, e procura dar uma explicação:

L“Na Guiné ele agiu por desejo de glória, de ganho político, e para alcançar esses fins identificou-se, através de gestos de simpatia com a população, caso dos Congressos do Povo. Embora pelo que lhe diziam os seus assessores ele estivesse convencido do contrário, os portugueses não conheciam Spínola e depararam-se com uma figura anacrónica, que surgiu desfocada nos ecrãs a preto e brancos das televisões na noite de 25 de Abril de 1974.”

Naquele desesperante mês de maio de 1973, numa tentativa de romper o cerco em Guidage, terá lugar a Operação Ametista Real, que cumpriu o seu objetivo. E o autor dá-nos conta de como se vai dando a fermentação do movimento dos capitães na Guiné, quem é quem, onde se reúnem, e aproveita para nos dar um contexto de tudo quanto ia ocorrendo em 1973, o assassinato de Amílcar Cabral, a reação do PAIGC, tomara a iniciativa de forma espetacular, pois alcançara valores que eram os mais altos de sempre desde o início da guerra: 220 ações provocando às nossas tropas 63 mortos e 269 feridos.

É no aceso desta ofensiva do PAIGC que chega a notícia da realização de um Congresso dos Combatentes, impulsionada pela extrema direita, gera-se uma movimentação contra o congresso, não só na Guiné, em Lisboa também há descontentamento, é um movimento de contestação encabeçado por Ramalho Eanes, Hugo dos Santos e Vasco Lourenço, digamos que é uma ironia, mas aquele congresso realizou-se enquanto se desenrolava uma tragédia em Gadamael, que foi mantida mas onde os militares portugueses sofreram 24 mortos e 147 feridos. E Matos Gomes escreve:

“Durante o mês de maio de 1973, a guerra na Guiné entrou num ponto de não retorno. Ao atacar quase simultaneamente no Norte, em Guidage, e no Sul, primeiro em Guileje e depois em Gadamael, o PAIGC revelou o esgotamento do potencial de combate das forças portuguesas na Guiné e da capacidade de reação a ataques combinados de controlo do território, resistindo e mantendo-se em duas frentes. O PAIGC, do seu lado, ficou a saber que dispunha de capacidade para desencadear dois ataques em força e vencer um. Poderia repetir a manobra e iria fazê-lo no início de 1974 com o cerco a Canquelifá, onde o Batalhão de Comandos Africanos conseguiu resistir duas vezes; porém, se fosse aberta outra frente, já não haveria reserva quando os paraquedistas fossem empenhados.”

Costa Gomes chega à Guiné em 8 de junho, decide-se remodelar o dispositivo, trocar espaço por tempo, aprova-se um plano de retraimento do dispositivo militar que devia ficar com todas as unidades aquém da linha geral rio Cacheu-Farim-Fajonquito-Paunca-Nova Lamego-Aldeia Formosa-Catió, para evitar o aniquilamento das guarnições de fronteira. 

Costa Gomes considerou a situação da Guiné como controlada e o território defensável; no entanto, ela é a clara admissão de que as forças portuguesas abdicavam da posse de boa parte do território da Guiné e das suas populações para se concentrarem num reduto central. A soberania portuguesa seria assim apenas formal, militar e politicamente indefensável.” 

Em agosto, Spínola regressa definitivamente a Lisboa.

Matos Gomes dá a sua versão do nascimento do MFA, chega, entretanto, o sucessor de Spínola, o general Bethencout Rodrigues. Tece um apontamento dos acontecimentos de Canquelifá e assim chegamos à tomada do poder da Guiné de 26 de abril. 

PA 16 de junho de 1974, Matos Gomes está de regresso, temos agora o quadro preparatório que o vai transformar num ativista revolucionário, iremos ouvir falar no COPCON, no Batalhão de Comandos nº11, em Jaime Neves, no 28 de setembro, nas campanhas de dinamização cultural, na efervescência política do PREC, nos acontecimentos do 11 de março e a respetiva assembleia do MFA, nos gabinetes de dinamização das unidades, num bizarro oficial muito ligado ao MRPP, o major Aventino Teixeira, estamos em pleno verão quente, Matos Gomes anda esfusiante, ele e Jaime Neves demarcam posições, nisto surge o Documento dos Nove, com as suas propostas de moderação.

 Caminha-se para o precipício, Matos Gomes, com invulgar crueza e frieza, dá pormenores de como se chega ao 25 de novembro de 1975 e o depois, a caminhada que ele impôs a si próprio.

(continua)

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Nota do editor

Post anterior de 18 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25285: Os 50 anos do 25 de Abril (3): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25285: Os 50 anos do 25 de Abril (3): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Março de 2024:

Queridos amigos,
É uma agradável surpresa, Carlos de Matos Gomes é ele próprio, com infância, vida familiar, a decisão tomada de ser oficial do quadro permanente, a sua passagem por Angola, como combateu em Moçambique, faz um compasso de espera em Lisboa e oferece-se para a Guiné, aí contribuirá para o desempenho do MFA. E irá contar como se processou a sua participação no processo revolucionário. O leitor será subjugado do princípio ao fim, eviscera-se a instituição militar com os seus valores, a sua burocracia, contam-se histórias hilariantes, perdas humanas, e aquele jovem capitão pergunta-se seriamente o que estava a fazer ali. Perguntado sobre o que o movia, responderá: "Não tinha um pensamento crítico organizado, e isso não dizia nada. A tropa é a tropa, é a malta. É o que a gente tem de fazer, vamos a eles e tal, aquela conversa. A seguir à primeira comissão, quando não estava na guerra, estava na Escola Prática de Cavalaria a dar instrução. O que dizia aos jovens que andavam a tirar o curso de oficiais milicianos: 'Vamo-vos preparar para vocês não morrerem. Vão para lá, são obrigados a ir, é preciso é que não morram e voltem." Um livro primoroso, um abençoado complemento para tornar mais cristalino o romance Nó Cego, a indiscutível obra-prima absoluta da literatura da guerra colonial.

Um abraço do
Mário


Porventura o testemunho mais eloquente sobre a guerra colonial e o depois,
Palma de ouro para a literatura nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (1)


Mário Beja Santos

Carlos de Matos Gomes é o romancista Carlos Vale Ferraz, autor do romance mais influente de toda a literatura de guerra colonial. Agora muda de rosto, volta a ter perto de 20 anos, faz comissões em Angola, Moçambique e na Guiné, prepara muita gente para a guerra, pertenceu ao grupo mais ativo do MFA na Guiné. Posteriormente, envolveu-se no processo revolucionário, chegou a hora de fazer um balanço do que viveu e do que se lembra.

Acaba de sair o seu livro de memórias "Geração D, Da Ditadura à Democracia", agora é, sem margem para equívocos, Carlos de Matos Gomes, Porto Editora, 2024, um assombroso ecrã sobre as primícias da guerra, os seus bastidores, o funcionamento da hierarquia castrense, a burocracia, sobretudo o exame de consciência do que é que um oficial do quadro permanente ia assimilando nas matas e nos quartéis quanto ao tremendo equívoco que era procurar até ao desespero urdir uma ficção sobre a propaganda doutrinal do Estado Novo sobre uma “guerra justa” para aquele império com pés de barro. É esta a parte das memórias construídas com uma assombrosa arquitetura literária que aqui se procura, aos poucos, desvelar.

Logo no arranque da obra, aquele jovem oficial é levado a pôr uma interrogação quem tem a espessura de um cataclismo moral, está no Tete:
“Num dia de maio de 1971, perguntei-me o que estava a fazer numa paisagem lunar, cinzenta e alaranjada, de rochas escaldantes, árvores de ramos secos, enquanto comia uma lata de conserva da ração de combate, sob uma temperatura superior a 40ºC, nas imediações dos morros de Cabora Bassa. Suava e afastava mosquitos. Não me queixava das condições da natureza. Prepara-me para a enfrentar e aos inimigos, mas chegara o momento das interrogações. Era um intruso. Que causas me haviam trazido até ali? Estar ali resultava da minha vontade e da minha liberdade, ou fora fruto de um conjunto de acasos, pelo que tanto podia estar naquele como noutro lugar ou situação, segundo o meu livre-arbítrio?”

E este jovem oficial que abriu o veio à consciência, apresenta-se:
“Tinha 24 anos, o posto de capitão comandante de uma companhia das tropas especiais, os Comandos, com o nome totémico de ‘Escorpiões’. Estava a terminar os dois anos de comissão. Chegara a Moçambique em 1969, como tenente, vindo do Centro de Instrução de Comandos de Angola, a casa-mãe daquelas tropas. Formara esta companhia em Montepuez com voluntários, havíamos combatido nas grandes operações do Norte em Cabo Delgado, no planalto dos Macondes. Os dirigentes da FRELIMO haviam decidido abrir a frente de guerra em Tete, e para ali viera eu enfrentá-los com os meus experientes, silenciosos e atentos comandos.”

Está para ali acompanhado de duas equipas de pisteiros rodesianos, é costume fazerem operações conjuntas. Acompanha-o um desses seres humanos sujeito a duas causas:
“Perto de mim, um negro esfarrapado, descalço, magro, sem idade identificável, quase uma múmia de pele seca e escamada. O guia que a PIDE me tinha envergado para me levar ao acampamento dos guerrilheiros, vindos do Norte, que haviam atravessado o rio Zambeze. O negro, sentado sob os calcanhares, amarrado pela cintura a um soldado, comia em silêncio o que lhe tínhamos dado – mastigava lentamente, com a boca de lábios rebentados pela pancada no interrogatório de há dois dias, numa tenda, na povoação de Estima, na base dos morros do Songo, no quartel-general do Comando Operacional das Forças de Intervenção.
Perguntei-me de novo o que fazia naquele fim do mundo, no interior de África, com um negro atado pela cintura a um soldado, transformando-o num moderno caçador de escravos e a mim num negreiro.
Aquela não era a terra a que eu pertencia. Nada me ligava àquele negro, nem àquelas rochas, nem àquele sol abrasador, nem aos mosquitos que entravam pela boca, nem aos rodesianos brancos que mandavam os seus militares combater ao nosso lado, no lado de cá da nossa fronteira, para evitar que os guerrilheiros anti-apartheid realizassem ações do seu lado.
Que causa me ligava àquele negro e aos homens que estavam sob o meu comando?”


A PIDE insistia na existência de uma base naquela região, a missão era aniquilá-la. Depois de muito caminhar encontraram-se na orla de uma mata no fundo de um pequeno vale, não havia base nenhuma, escreve o autor, manda o soldado soltar o preso, houve quem perguntasse ao capitão se o guia devia ser abatido, o capitão disse que não. E disserta sobre o Exercício Alcora, um protocolo estabelecido entre a África do Sul, a Rodésia e Portugal, os brancos da África Austral sonhavam com a criação de um bloco branco. Depois do 25 de Abril, o autor teve a oportunidade de ler os relatórios secretos dos aliados rodesianos, pouco generosos para nós: que tínhamos pouca vontade de combater, que não perseguíamos rapidamente as forças da guerrilha.

A graduação de memórias oscila entre o teatro de operações moçambicano e o curso que ele fez na Academia Militar, assim caminhamos para uma história brejeira, a da tropa de Lione, destacamento que distava poucos quilómetros em linha reta da fronteira com Maláui, vale a pena contar a história:
“A interpretação tática do comandante da companhia do Lione de não sair da quadrícula do seu aquartelamento, definida por uma ferrugenta rede de arame farpado pendurada em troncos apodrecidos, foi aceite como um facto pelo comando militar de Vila Cabral. Como tratar uma birra? O capitão miliciano comportava-se com a maior civilidade, revelava um espírito alegre, indiferença pela situação política, mandava vir revistas e jornais de Inglaterra e resumia o seu comportamento declarando que estava bem, na medida em que não podia estar pior. Se o punissem iria para outro local que seria, com elevada probabilidade, melhor do que o Lione.”

Carlos de Matos Gomes sai de Lione e vai em direção ao Malawi, cerca uma aldeia, quem lá vive não mostra temor, alguém se aproxima e se apresenta como polícia rural do Malawi. O capitão toma a decisão de pôr toda aquela gente numa coluna até Vila Cabral. Os comandos ficam petrificados quando dão conta do tremendo engano, aquela gente do Malawi após uma refeição oferecida foi reconduzida à sua terra-mãe.

Procede com ironia quando nos fala no Dia da Raça, muda de agulha quando a narrativa se prende com o primeiro morto em combate:
“Embarcámos numa lancha de desembarque pequena da base de Metangula, que oficialmente albergava o Comando da Defesa Marítima dos portos do lago Niassa. Desembarcámos numa pequena praia com o percalço de a lancha ter ficado presa num tronco, o que nos obrigou a sair com água pelo peito e a lancha a fazer muito mais barulho com o esforço dos motores para se libertar. O assalto correu como correm os assaltos: um grupo cercou a base e outro entrou a disparar. Os guerrilheiros deviam esperar-nos e responderam. O Armando, um negro robusto, sereno e de poucas falas, era sipaio da administração e servia de intérprete entre nós e o Zé Palangué (guerreiro capturado). Foi atingido no peito e caiu à minha frente. Julgo que os guerrilheiros o quiseram visar. Pertencia à tribo dos ajaua, um dos grupos étnicos da região. O Zé Palangué podia ter fugido, mas manteve-se connosco, não sei por que razão. Integrou-se na comunidade de Meponda e no espírito português de cumprir regras segundo as conveniências, apesar de islamizado preferia as latas de conserva de chouriço em óleo de mendubi às de atum ou sardinhas. Iniciámos o difícil regresso pelos montes e vales das margens do lago, com o corpo do Armando para o entregarmos à família, com toda a dignidade. Eu tinha 20 anos e também cumpri a minha escala de trazer o Armando às costas, na maca improvisada com dois troncos e panos de tenda".

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25279: Os 50 anos do 25 de Abril (2): O meu primo Luís Sacadura, furriel miliciano, natural de Alcobaça, hoje a viver nos EUA, estava lá, no RI 5, Caldas da Rainha, no 16 de marco de 1974, e mandou-me fotos dos acontecimentos (Juvenal Amado)

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24826: Notas de leitura (1631): Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Insiste-se que a entrevista concedida por Carlos de Matos Gomes se mantém como peça modelar para analisar o processo de descolonização da Guiné a partir da formação do Movimento dos Capitães e depois do MFA na região, o entrevistado explica as razões por que se ofereceu para ir para o Batalhão dos Comandos africanos, pretendia conhecer a estratégia spinolista que lhe estava subjacente no contexto da africanização da guerra e numa lógica conducente à possibilidade de algo com o PAIGC. 

Fala-se da rotina das operações, da complexidade dos problemas pluriétnicos dentro desta tropa de elite, retoma-se a génese e a estruturação do MFA, esclarece que havia uma demarcação entre um grupo contestatário de que ele fazia parte e a linha spinolista, muito pouco presente depois de Spínola sair da Guiné, em agosto de 1973; fala-se do que aconteceu em 26 de abril e da descolonização que envolveu os Comandos e os Fuzileiros. É sem margem para dúvidas um documento que merece ser compulsado com diferentes testemunhos de Carlos Fabião e com o livro de Sales Golias, sobre esta temática.

Um abraço do
Mário



Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (2)

Mário Beja Santos

Li pela primeira vez este texto que vem integrado na obra Vozes de Abril na Descolonização, com organização de Ana Mouta Faria e Jorge Martins, uma edição do CEHC – IUL, 2014, provavelmente no ano seguinte, e fiz texto para o nosso blogue. Correu muita água debaixo das pontes, não se podia imaginar que a questão tivesse arrumada, é obrigatório que haja outras perspetivas sobre a descolonização da Guiné, mas o facto é que esta entrevista se mantém modelar e de indiscutível historicidade. 

Primeiro, porque este oficial do Exército não foi desmentido minimamente quanto ao processo organizativo na Guiné do Movimento dos Capitães/MFA; nenhuma opinião veio contrariar o que ele escreve sobre os acontecimentos do dia 26 de abril, fenómeno inédito comparativamente ao que se passou em Angola e Moçambique; e numa altura em que se retoma a questão polémica dos Comandos Africanos, com alardes de mentira descarada e de escamoteamento do rigor dos factos, até em pretensas teses de doutoramento, este oficial do Exército relembra tudo quanto se passou ao nível da desmobilização do Batalhão de Comandos Africanos e das duas unidades de Fuzileiros Africanos, preto no branco. Razões, parece-me, que justificam voltar ao texto da entrevista de Carlos de Matos Gomes.

Prosseguindo o teor da entrevista, e já contextualizado o tempo e o modo da génese da formação do Movimento dos Capitães e da MFA na Guiné, Carlos de Matos Gomes é questionado sobre o percurso de Marcelino da Mata, responde sem hesitações:

“O Marcelino da Mata é uma pessoa superiormente inteligente, uma pessoa informada, reage sempre em busca do seu interesse, sempre! Ele sabe que foi utilizado de determinada maneira, por determinadas pessoas, para fazer determinadas coisas, fê-las e foi, sempre, obtendo recompensas. Ele age, claramente, como um homem que sabe que está envolvido numa guerra que o ultrapassou, e vai procurar os aliados que lhe são mais convenientes em cada momento. Como era um homem superiormente inteligente e também corajoso, não tem as lealdades deles e a admiração e respeito é por aqueles que ele considera iguais ou superiores a ele. Por vezes, diaboliza-se o Marcelino da Mata, mas ele é exatamente igual aos comandantes de guerrilha, porque vem exatamente do mesmo sítio, tem as mesmas lógicas, os mesmos comportamentos”.

Desvela seguidamente os tipos de operações em que esteve envolvido, destaca a reocupação do Cantanhez, a ida às matas da Caboiana, a operação Ametista Real. A partir da retirada de Guileje quando o Batalhão de Comandos intervinha já era em situações críticas, afirma, tornava-se imperativo levar o batalhão inteiro. Era a resposta ao agravamento da situação militar, passar-se de operações com 50 homens para operações com várias centenas. Tece observações aos aspetos da etnicidade no recrutamento das tropas africanas, os Comandos e os Fuzileiros africanos tinham por base as milícias, os pelotões de caçadores, as companhias étnicas e caçadores locais.

“Havia tipos que chegavam aos Comandos já com vários anos de permanência, iam aprendendo, iam falando, ganhando uma consciência de militares portugueses que era a tentativa que nós fazíamos. Nós integrámo-nos nessa corrente de fazer o Estado através das Forças Armadas, isto aconteceu em quase todos os países africanos e era também a ideia do general Spínola”.

Os entrevistadores procuram apurar se as diferenças étnicas se esbatiam nessas unidades de elite, obrigatoriamente pluriétnicas, o entrevistado responde:

“Era uma gestão feita em cima do gume da navalha. Tivemos esse problema, mas o PAIGC também o teve e acabaram por se matar uns aos outros. Por exemplo, tínhamos o primeiro grande comandante de uma unidade de Comandos, o João Bacar Djaló, que era Fula. Fez exatamente esse percurso, foi comandante de milícias, foi depois militar e depois foi para os Comandos. O esquema de uma companhia de Comandos comandada por João Bacar Djaló tinha alguma coisa que ver com a organização militar portuguesa, com as Forças Armadas portuguesas, mas tinha muito que ver com a organização da sociedade islamizada.

Ele funcionava como comandante de Companhia, mas também como mestre, tinha um conjunto de discípulos que depois ia premiando. E como premiava? Promovia-os a furriel e depois promovia os furriéis a sargentos. Discípulos esses, que lhe pagavam, como se pagava na idade média, como nas corporações, e isso era assim em vários lados”
.

Depois de expor a sua visão sob a composição étnica existente no seio de batalhão de Comandos Africanos, e depois de recapitular a génese e a estruturação do MFA na Guiné, chegamos ao 25 de abril, as Forças Armadas na Guiné aderiram maciçamente:

“O 26 de abril estava previsto e pensado para, caso houvesse um problema grave aqui em Portugal, a ação de alternativa teria de ser na Guiné. Estou convencido de que, claramente, o general Spínola não estava interessado naquela ação na Guiné. Fizemo-lo sabendo isso, porque assim tornávamos irreversível o processo da descolonização e marcávamos uma posição no processo”.

E elenca as diligências efetuadas nas alterações dos Comandos, e abre espaço para a reflexão sobre as tropas africanas:

“A grande questão que se colocou logo desde o início era: há aqui dois exércitos. Há um exército africano da Força Africana de Spínola, que tinha um batalhão de comandos, as companhias africanas, as milícias, havia à volta de 12 mil homens e o PAIGC tinha menos. A questão era que estes homens não tinham perdido a guerra militarmente, combatiam de igual para igual. Eles, os nossos, não se sentiam, de modo nenhum, derrotados no campo de batalha. E nós, oficiais dos comandos – depois até fiquei como comandante – sabíamos disso e sabíamos que era muito difícil e seria sempre muito difícil estabelecer uma forma de convivência.

Eu penso que nos acordos, no Acordo de Argel está referida a situação dos militares e nós confiávamos que isso iria correr bem. Confiámos! Foi sempre dada a oportunidade a esses militares, principalmente aos quadros e aos tipos que tinham mais impacto, que tinham combatido mais anos contra o PAIGC de que, se quisessem, vir para Portugal. O que é curioso é que não optaram por isso e a mim não surpreendeu, porque sabia mesmo no Batalhão de Comandos, que era a elite das elites, 60 ou 70% daquela gente tinha contactos com pessoas do PAIGC”
.

Havia o entendimento entre os responsáveis portugueses e as principais figuras dos comandos africanos, que a convivência seria possível no futuro. E segue-se a conclusão dramática: 

“Daí que o processo trágico e dramático da eliminação destes homens, militares portugueses guineenses, penso eu, tenha sido uma fuga para a frente da elite dirigente do PAIGC. Esta elite vai encontrar sempre um inimigo externo para justificar as lutas pelo poder interno”

Foram o bode expiatório naquela tensão permanente entre cabo-verdianos e guinéus. O entrevistado recorda declarações de Luís Cabral que deplorava ter encontrado os cofres vazios, uma administração sem quadros, isto quando tivera oportunidade de negociar um período de coabitação com Portugal, até ganhar foros de autonomia, não quiseram, queriam ver-se livres da entidade colonial por pura ambição da chegada ao poder.

O Batalhão de Comandos foi extinto, ficara escrito que iriam ser reintegrados numas novas Forças Armadas, houve quem recusasse, caso do tenente Jamanca que foi pouco depois abatido.

E aqui se dá por concluído o essencial do texto da entrevista de Carlos de Matos Gomes a uma equipa de universitários que quiseram ouvir protagonistas que tinham estado na primeira linha no processo da descolonização nos 3 teatros africanos.


Carlos de Matos Gomes
Entrada do aquartelamento do Batalhão de Comandos da Guiné
Insígnia do Destacamento de Fuzileiros Especiais 21, a que pertencia Domingos Demba [Ensá] Djassi, 2.º Sargento
2.º Sargento Domingos Djassi
Capitão João Bacar Djaló em Catió, ainda tenente. Foi o 1.º comandante da 1.ª Companhia de Comandos Africanos
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24820: Notas de leitura (1630): Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24820: Notas de leitura (1630): Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
A vida ensina-nos, no campo da investigação e noutros domínios, que é salutar para a consistência das ideias revermos textos importantes, e no caso vertente a entrevista que Carlos de Matos Gomes concedeu a 2 investigadores do Centro de Estudos de História Contemporânea, do Instituto Universitário de Lisboa, revela-se como uma das peças indispensáveis para o estudo da descolonização da Guiné, que pensaram e como agiram aqueles oficiais na génese da sublevação, como se constituiu o Movimento dos Capitães e o MFA, como foi possível, ato inédito, o grosso dos escol das Forças Armadas na Guiné terem feito o que fizeram; e como é indispensável o seu olhar para se entender o que foi a desmobilização das poderosas forças do Batalhão de Comandos Africanos, como se verificará no próximo texto.

Um abraço do
Mário



Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (1)

Mário Beja Santos

Li pela primeira vez este texto que vem integrado na obra Vozes de Abril na Descolonização, com organização de Ana Mouta Faria e Jorge Martins, uma edição do CEHC – IUL, 2014, provavelmente no ano seguinte e fiz texto para o nosso blogue. 

Correu muita água debaixo das pontes, não se podia imaginar que a questão tivesse arrumada, é obrigatório que haja outras perspetivas sobre a descolonização da Guiné, mas o facto é que esta entrevista se mantém modelar e de indiscutível historicidade. Primeiro, porque este oficial do Exército não foi desmentido minimamente quanto ao processo organizativo na Guiné do Movimento dos Capitães/MFA; nenhuma opinião veio contrariar o que ele escreve sobre os acontecimentos do dia 26 de abril, fenómeno inédito comparativamente ao que se passou em Angola e Moçambique; e numa altura em que se retoma a questão polémica dos Comandos Africanos, com alardes de mentira descarada e de escamoteamento do rigor dos factos, até em pretensas teses de doutoramento, este oficial do Exército relembra tudo quanto se passou ao nível da desmobilização do Batalhão de Comandos Africanos e das duas unidades de Fuzileiros Africanos, preto no branco. Razões, parece-me, que justificam voltar ao texto da entrevista de Carlos de Matos Gomes.

Para os autores deste projeto, o móbil subjacente era o de contribuir para o conhecimento sobre a descolonização portuguesa na parte final, olhando-a sobretudo a partir das dinâmicas locais das três colónias africanas em guerra.

Antes de se referir propriamente ao seu itinerário militar e à forma como se associou, a partir de 1972, à análise da evolução da guerra e as possíveis soluções admissíveis, é recordado nas colónias, tal como em Portugal, o processo da mobilização política foi desencadeado no anúncio da realização do Congresso dos Combatentes, a decorrer no Porto no início de junho de 1973, um elevado número de oficiais prontamente detetou que aí se ia procurar legitimar a continuação da guerra. 

O protesto a partir da Guiné reuniu mais de 400 assinaturas. Estava esta contestação em curso e apareceu outra, face à legislação que procurava suprir a carência de oficiais profissionais através do acesso a uma rápida carreira proporcionada a milicianos com serviço de guerra. Há entendimento de que a campanha contra os decretos deve ser considerada como o acontecimento fundador do Movimento dos Capitães do Exército. Constituiu-se uma rede onde passaram a circular informações, comunicados, cartas de discussão política.

Lá para os finais de 1973 a rede do Movimento dos Capitães encontrava-se organizada em núcleos implantados nos 3 teatros de operações. O entrevistado observa que na Guiné, onde o núcleo dinamizador da discussão política se encontrava em funcionamento desde o segundo semestre de 1972, a fase do movimento organizado começou no verão de 1973. E dá notas precisas. A Comissão Coordenadora formou-se em Bissau com major Almeida Coimbra, os capitães Matos Gomes, Duran Clemente e António Caetano. O núcleo da Guiné do MFA estabeleceu-se em 15 de maio de 1974, possuía uma assembleia de representantes dos 3 ramos das forças armadas, uma comissão central, e haveria uma organização formada depois do 25 de abril, o Movimento Alargado de Oficiais, Sargentos e Praças. Foi nesse contexto que se publicou em 24 de maio a circular do chefe de Estado-Maior das Forças Armadas integrando representantes deste movimento na cadeia de comando das Forças Armadas.

Retomando ao itinerário curricular de Carlos de Matos Gomes, depois da Academia Militar enveredou na arma de Cavalaria, esteve em Moçambique e Angola, aqui frequentou o Centro de Instrução de Comandos, voltou a Moçambique, foi instrutor na Academia Militar, seguiu-se a comissão da Guiné. Foi duas vezes agraciado com a Cruz de Guerra de 1.ª Classe. 

O seu percurso depois de 25 de abril: comandante do Batalhão de Comandos, na Guiné, em Portugal participou nas campanhas de dinamização cultural; em 20 de novembro de 1975 subscreveu o Manifesto dos Dezoito, documento que congregava militares defensores do poder popular de base. É do domínio público todo o seu intenso percurso literário, tanto na ficção como em obras de História Militar.

“Ofereci-me como voluntário para os Comandos Africanos da Guiné na medida em que entendia que a guerra só por si não tinha nenhuma saída. Queria participar, observar a solução que o general Spínola estava a ensaiar na Guiné então como assessor. Spínola procurava a solução político-militar para a Guiné isto enquanto o PAIGC, após o assassínio do seu líder produzia operações de grande envergadura, o chamado Inferno dos 3 Gs”. 

E considera que a partir daí a situação entrara numa fase de grande degradação. “A Guiné foi o ninho ou embrião de tudo aquilo que veio a ocorrer aqui em Portugal”. Não deixou de aludir à sua consciencialização política e aos contactos que estabeleceu em Bissau com José Manuel Barroso e Jorge Sales Golias.

Refere-se depois à génese e estruturação do MFA no território. Tudo começou com um grupo que integrava o entrevistado, Sales Golias, José Manuel Barroso, Duran Clemente, um oficial da Força Aérea e um engenheiro do Exército, reuniam-se regularmente no Agrupamento de Transmissões. Este grupo irá contestar o Congresso dos Combatentes e fará aliança com os spinolistas. Não deixa de mencionar fatores contextuais que lhe parecem relevantes: o aparecimento do jornal Expresso e as diligências de Spínola à procura de negociação com Cabral. Tem uma palavra sobre a reocupação do Cantanhez, no final de 1972: 

“Nós percebemos que essa operação tinha para o general Spínola, como objetivo explícito, marcar uma presença. Para nós isso significava que ele queria apenas dizer que ia deixar a Guiné mais ou menos como a tinha encontrado, e é isso que irá acontecer”.

Dirá adiante que o mês de maio de 1973 foi revelador da incapacidade de sustentar uma situação apenas pelas forças militares. Spínola parte definitivamente, mas o grupo continuou a reunir-se, e manteve-se muito ativo na altura em que surgem os célebres decretos que agitaram a corporação. Adianta que as cartas enviadas para o governo iriam alimentar divisões dentro do regime, a situação revelou-se imparável, o 1.º decreto foi alterado por um novo decreto, aumentaram os vencimentos depois dessa mudança de ministro. 

Volta a mencionar a degradação da situação militar e diz que as nossas unidades que chegavam à Guiné eram cada vez piores na preparação e que o potencial militar estava degradado. Tem uma palavra para reconhecer o papel importante de Diniz de Almeida na transmissão de informações na placa giratória entre Lisboa e as colónias em guerra. Em Lisboa reunia-se um grupo na Academia Militar.

Considera que os militares na Guiné eram levados a pensar muito politicamente.

“Ali era perfeitamente patente que Portugal tinha uma colónia que não tinham o mínimo de viabilidade. Ficava muito claro que a política colonial portuguesa era irracional! Irracional, porque os grupos que nós queríamos agregar numa entidade política, num Estado-Nação, não tinham nenhuma coerência entre eles, não se identificam com essa identidade que nós queríamos criar. 

"No caso dos Fulas, eles eram inimigos dos povos dali e tinham ligações para o norte, com os Fulas do Senegal e para o interior, com os Fulas da Gâmbia e da zona da Guiné-Conacri. Daí que muitos dos nossos militares africanos tivessem famílias nos países vizinhos. Nós percebíamos que não havia nenhuma entidade política, nenhuma coesão política. 

"A Guiné, por outro lado, tinha um outro aspeto evidente para toda a gente, não tinha nenhuma viabilidade económica. E também não se percebia muito bem o que o PAIGC ia fazer da Guiné, de um território que não tem nenhuma riqueza. E isso punha em causa todo o colonialismo. Volto atrás: na Guiné havia essa consciência da incapacidade de fazer uma argamassa cultural e política daquele conjunto de povos”.

E a sua observação recai sobre os Comandos Africanos: 

“Eles faziam uma leitura como nós fazemos, como eu faço, de que a Guiné não tinha viabilidade como Nação. Eles, quando optaram por ficar com os portugueses, fizeram-no de uma forma muito consciente e, politicamente, muito informada, não por traição ao seu povo. Primeiro, eles não faziam bem a ideia de que povo eram, como, aliás, ninguém na Guiné fazia. Quem fala do ‘Povo Guinéu’, nem fala de guineenses, é o Spínola. Aquela gente que o vai procurar, e nomeadamente os Papéis, que são da ilha de Bissau, é fazer a ligação com aqueles que lhes podem dar alguma coisa e permitir que aquele espaço tenha alguma viabilidade. E era disto que nos falávamos, com franqueza, com o Saiegh e com o Sisseco e com alguns outros”.

(continua)


Carlos de Matos Gomes
Eu, Beja Santos,  e o Zacarias Saiegh, ambos no Pel Caç Nat 52, Bolonha de Finete, 1968
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24807: Notas de leitura (1629): "Memórias de um Combatente na Guiné de 69/71", por Diogo Aloendro; 5livros.pt, 2021 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24723: (Ex)citações (425): Ainda a propósito do Jornal Voz de Bissau, a atividade Política em Bissau no pós 25 de Abril (Victor Costa, ex-Fur Mil)

1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), com data de 27 de Setembro de 2023:

A atividade Política em Bissau no período pós 25 de Abril

Amigos e camaradas da Guiné.

Apesar de minha atividade profissional continuar intensa, acompanho as mensagens que os diversos camaradas vão escrevendo e por isso decidi escrever esta mensagem porque continuo a gostar da verdade, de História, Arquivo e papéis velhos.

Os artigos publicados no Jornal Voz da Guiné são interessantes e os factos e as questões colocadas pelo camarada Abílio Magro, ex Fur Mil Amanuense (CSJD/QJ/CTIG, 1973/74) no dia 16/09/2023 e seguintes, são pertinentes.

Se entenderem que o enquadramento desta mensagem fica mais explícita se for dividida em três, deixo à vossa consideração.

Apesar da esquerda e a direita serem duas maneiras diferentes de ver e viver a vida, há uma coisa comum que as torna iguais, trata-se da corrupção.

Com o passar dos anos verifiquei que a leitura evitou que eu perdesse o Norte depois dos 28 anos, como aconteceu a outros, hoje entendo que olhar para trás para o nosso passado Histórico, ler de tudo e comparar as políticas é o melhor remédio.

Li a "Mãe" de Máximo Gorky, mas também li também "O Sabor do Poder", traduzido Ladislav Mnacko do original Jak CHUTNÁ-MOC-1967, by Verlag Fritz Molden Viena-Munique.

O ano de 1948 anunciava-se particularmente agitado no plano internacional. A tensão crescia entre a URSS e os seus antigos aliados. O Golpe de Praga que expulsara do Poder o Presidente Benés entregava a Tchecoslováquia aos comunistas e não deixava dúvidas nenhumas sobre a vontade soviética de continuar uma política expansionista para Oeste. O chefe do Partido começou como revolucionário, organizou o partido e tomou o Poder à custa de corrupção, esta história acabou na chamada Primavera de Praga.

Os golpes de Estado correm sempre o risco de serem aproveitados por alguns em proveito próprio e por isso é um livro aconselhável.

Após o golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, os militares de bom senso tinham poucas possibilidades de vencer a tarimba e a atividade política pró-soviética, cujo objectivo visava minar, o dever e a disciplina, no seio das Forças Armadas, para tomar o Poder.

Consta da 1.ª página do Boletim Informativo n.º 1 de 1 de junho de 1974, publicado no Blogue em 22 de Abril de 2022, que o Sr. Tenente Coronel Almeida Bruno na sua deslocação à Guiné, em representação do MFA, dirigiu uma reunião sobre a reestruturação democrática do MFA e a preservação da disciplina e da hierarquia, que contou com a participação do Sr. Capitão Duran Clemente, nomeado entre outros para a Comissão Coordenadora do MFA na Guiné.

As ordens do MFA que o comandante Almeida Bruno tinha acabado de transmitir em Bissau no dia 7 de Maio de 1974 nunca foram cumpridas.

Tinham passado apenas 9 dias e já "aqueles soldados" da Guiné pediam ao diretor do Jornal Voz da Guiné, o Sr. Capitão Duran Clemente, que mandasse publicar um comunicado sem dizerem, quem eram, quando tinham sido eleitos, nem quem os tinha mandatado para tal.

Muita coisa se disse e diz em nome do Povo e dos soldados e não deixa de ser interessante o facto destes "soldados" escreveram um comunicado utilizando a letra "n" em vez de "m", mas não se esquecendo de terminar a mensagem, a 4.000 Km de distância do Povo com a devida palavra de ordem, "O Povo Unido Jamais Será vencido".

O Comandante Almeida Bruno e outros notáveis das nossas Forças Armadas eram homens de coragem, sabiam lidar bem com armamento e engenhos explosivos, mas infelizmente não conheciam o sistema de comunicações soviético nem o método e a forma de atuação destes engenhos políticos.

A publicação do artigo da LUAR no Jornal a Voz da Guiné merece o seguinte comentário:

O assalto ao Banco de Portugal realizado por Hermínio da Palma Inácio em de Maio de 1967 que contou com a participação de dois naturais da freguesia do Paião, um deles residente em França.

Parte do produto deste assalto, 1.500 contos foram encontrados debaixo da lareira de um deles, depois de serem recolhidos a seguir ao assalto numa das pontes de Maiorca da estrada nacional n.º 111 que liga a Figueira da Foz a Coimbra.

Que Operação cuidada esses "revolucionários" da LUAR fizeram, em vez de assaltarem os bancos capitalistas foram roubar o Banco do Povo, já só falta cruzar os cabos.

Abaixo os capitalistas, os seus Bancos e a democracia burguesa, vivam os Bancos do Povo e viva a União Soviética.

Junto cópia do artigo de António Jorge Lé, do Jornal Diário de Coimbra de 24 de Maio de 2023, sobre esta grande e cuidada "operação popular".

Clicar na imagem para ampliar


Ainda sobre o rebentamento da granada no Café Ronda:

Devido ao bom relacionamento da CCaç 4541/72 com o BCP12 eram frequentes as nossas deslocações conjuntas a Bissau, todos nós vestidos a rigor sem camuflados, que permitissem transportar "embrulhos" pesados e nocivos à vida.

Para evitar problemas em Bissau, a disciplina no BCP 12 em Bissalanca era clara, segundo o meu vizinho e amigo falecido (Sold. Pára) Américo Paiva, com quem me deslocava nestas andanças, não haviam máquinas de escrever nem papel no Quartel e as indisciplinas no BCP 12 eram tratadas no salão de treinos de Boxe, onde o seu comandante tinha fama de ser justo e bom lutador, nós seguíamos as regras.

Ao chegar a Bissau verificávamos que era mantido o bom o nível do alcatrão, ao longo da Avenida da República, que fazia soar o forte som das botas do render da guarda da PM desde a Amura até ao Palácio do Governador, mas não posso esquecer aquele furriel da PM que foi "condenado" a passar um mês de férias no mato, apenas para ver a diferença entre entre a vida no mato e o som do bater das botas na calçada da Avenida da República em Bissau. Assim, face ao "risco" que corríamos nas nossas deslocações a Bissau, não posso terminar sem enviar os meus sentimentos às famílias dos "soldados mortos em combate" na arriscada cidade de Bissau, nomeadamente desde o QG, passando pelo Quartel da PM na Amura, Avenida da República, onde se localizava o Café Ronda e o Cinema UDIB, e até ao Palácio do Governador.

Por isso, em nome da preservação da História, deve ser atribuído um louvor ao camarada ex-Fur Mil Amanuense (CSJD/QJ/CTIG,1973/74) Abílio Magro, por ter guardado esses recortes do Jornal "Voz da Guiné" publicados no dia 12 e seguintes do mês de Setembro de 2023.

Felizmente que ainda ficaram alguns "periquitos", que já liam livros de política e outros "velhos" que conheceram os locais, gostam de ler, vasculhar documentos e ainda conseguem manter o bom humor e rir dessas coisas.

Um abraço,
Victor Costa,
Ex-Fur Mil At Inf
CCaç 4541/72

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24662: (Ex)citações (424): Nas nossas já bíblicas idades os planeamentos a longo prazo são sempre eivados de 'relativismo'. Daí que nada melhor do que as bolas de cristal (José Belo, Suécia)

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24644: Documentos (43): Panfleto dos "Soldados da Guiné", datado de 16 de Maio de 1974, com um apelo às suas famílias para que não os abandonem (Abílio Magro)

1. Mensagem do nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense (CSJD/QG/CTIG, 1973/74), com data de 5 de Setembro de 2023, trazendo em anexo um panfleto dos chamados "Soldados da Guiné" com um apelo patético, digo eu editor, às suas famílias aqui na metrópole, para forçar o regresso imediato dos militares ali em serviço.

Bom dia caro ex-camarada Carlos Vinhal:

Espero que essas molas e esses amortecedores se encontrem em acelerada recuperação e que brevemente estejas apto a correr a meia-maratona de Matosinhos-Leça (para já só a meia, ok?).

Entretanto, tendo eu andado a vasculhar no baú encontrei dois pequenos jornais da Voz da Guiné de 7 e 10 de setembro de 1974, cujo director era um tal Duran Clemente que julgo tratar-se do capitão de Abril.

Se, por acaso, entenderes que o que por lá se dizia naquele tempo tem algum interesse para o blogue, diz que eu tentarei, por partes, digitalizar tudo ou transcrever os textos mais importantes.

Encontrei também um apelo escrito, assinado pelos “Soldados da Guiné” que envio em anexo.
Nestas andanças vieram-me à memória alguns acontecimentos que julgo poderem trazer alguma luz sobre a data da bomba no café Ronda.

Então é assim: recordo-me, muito ao de leve, de ter lido algures que o café que se situava na avª da República, um pouco abaixo do cinema UDIB e do outro lado da rua, não se chamava Ronda, mas que assim era conhecido e o nome foi sendo passado entre militares, mas também não me recordo de lá ter visto qualquer referência ao seu nome e que o verdadeiro café Ronda era um pequeno café junto (ou dentro?) do pilão onde aos fins de semana havia uns bailaricos com pouca gente.
Nesse café, em 1974, teriam rebentado duas granadas que poucos estragos fizeram e nunca mais ouvi falar no assunto.

No café “Ronda” da avª da República, por volta de setembro de 1973, rebentou uma bomba que se encontrava dentro de uma mochila que foi deixada abandonada.

Eu e o meu irmão Álvaro andávamos ali por perto. O ex-Fur. Mil Carlos Filipe Gonçalves estava de férias em Cabo Verde em setembro de 1973 e recebeu a notícia desse acontecimento e quando regressou de férias foi ver os estragos naquele café.

Um abraço,
Abílio Magro



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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24525: Documentos (42): "Acordo Missionário", de 7 de maio de 1940, celebrado entre a Santa Sé e a República Portuguesa

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24288: Notas de leitura (1579): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Continuamos à volta de uma narrativa de largo espectro investigacional, elaborada com uma comunicação acessível, bem estruturada, em que o recurso à diacronia permite ir conhecendo a agenda tumultuosa dos últimos meses do Estado Novo. É interessante verificar que ainda há gente saudosista que é capaz de se procurar convencer de que aquela guerra possuía sustentabilidade, o que contraria toda a documentação produzida ao nível das instâncias militares, os recursos humanos estavam por um fio, procurava-se desesperadamente comprar armas e aviões para manter o conflito em África, o ministro das Finanças estava encostado à parede, o aparecimento do livro de Spínola endureceu duas fações dentro do regime; os autores vão elencando os acontecimentos, logo o agravamento em Moçambique, a franqueza com que Bettencourt Rodrigues vai informando o poder político da gravíssima situação militar que vive. Caetano tenta uma porta de saída, pede uma moção favorável sobre a sua política ultramarina à Assembleia Nacional, convoca depois generais e almirantes (a Brigada do Reumático), para anuir à sua política ultramarina, o MFA entretanto organiza-se, há uma precipitação em 16 de março, a revolta das Caldas. Otelo Saraiva de Carvalho aprende com os erros. A operação seguinte será um êxito estrondoso, o Estado Novo cai aparatosamente, já não há ninguém que o defenda.

Um abraço do
Mário



Os últimos meses do Estado Novo, como a guerra colonial fez baquear um regime (2)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", Guerra e Paz, Editores, 2023, por José Matos e Zélia Oliveira, o primeiro investigador em História Militar, a segunda, jornalista e com uma tese de mestrado sobre a crise final do marcelismo. Estão aqui registados numa narrativa que prende o leitor do princípio ao fim os três últimos meses que antecederam o 25 de Abril. Basta ver a bibliografia para perceber que os autores consultaram centenas de documentos de arquivos nacionais e estrangeiros, temos aqui um olhar sobre aquele que terá sido o período mais tumultuoso do marcelismo, aqui se registam os principais ingredientes que conduziram ao seu colapso.

Estamos já em fevereiro de 1974, Costa Gomes regressara de Moçambique, elabora um relatório sobre a situação da província, a guerra agravara-se com a tentativa de expensão da guerrilha para sul, em Cabo Delgado a FRELIMO procurava aliciar as populações Macuas, e no Niassa registava-se também atividade da guerrilha. O potencial relativo de combate passara a ser menos favorável às forças portuguesas, era urgente a revisão das estruturas de comandos, organização das tropas e planos de operações para ganhar eficiência no combate à guerrilha. A cooperação com os regimes brancos da Rodésia e da África do Sul intensificara-se, entretanto, a FRELIMO irá receber o míssil terra-ar Strela, a Força Aérea em Moçambique já estava preparada para a chega do míssil e nenhum avião foi perdido na colónia. Em suma, a situação agravara-se.

E os autores debruçam-se sobre o problema da Guiné onde o míssil terra-ar Strela fez a sua aparição em março de 1973. Perante o abate de aviões e os acontecimentos de Guidage, Guileje e Gadamael, Spínola clama pelo reforço dos meios de intervenção e de armamento. O Chefe de Gabinete de Costa Gomes, o Coronel Ramires de Oliveira, pronuncia-se sobre o documento enviado por Spínola, e é bem claro: “O exame da situação estratégica leva-nos a concluir que se torna necessário rever as finalidades políticas a atingir, sabendo que o nosso potencial militar, com os meios que dispõe, não pode cumprir a missão que até agora lhe foi cometida.” Costa Gomes vai à Guiné, em 8 de junho haverá uma reunião de alto nível, o documento dessa reunião está hoje amplamente divulgado, cabe a Spínola a iniciativa de propor a saída das zonas de fronteira para posições mais recuadas. “Obviamente que este recuo teria consequências na segurança das populações, que ficariam entregues à sua sorte, mas isso era um problema que teria de ser visto no quadro particular de cada etnia e que podia ser resolvido com o recurso às milícias. Costa Gomes deu o seu aval à estratégia delineada, era a forma de economizar forças e evitar o aniquilamento das guarnições de fronteira. É interessante notar que, pouco tempo depois desta reunião, Spínola acabaria por mudar de ideias, quando, a 9 de junho, escreveu ao ministro do Ultramar, Silva Cunha, discordando do abandono das zonas de fronteira e das respetivas populações, que ficariam sem proteção militar. O retraimento do dispositivo entrava em contradição com os compromissos que teria assumido perante aquelas populações, não lhe restando outra hipótese senão abandonar as funções que desempenhava na Guiné e regressar à metrópole.”

Marcello Caetano reúne com vários ministros e Costa Gomes e pergunta a este se a Guiné era ou não defensável, “ao que o general terá respondido que, se o inimigo não aparecesse na guerra com aviação própria, a Guiné era defensável. Nessa altura, existiam informações do lado português de que o PAIGC tinha um grupo de pilotos a receber instrução na União Soviética, e de que a guerrilha podia vir a dispor de aviões de origem soviética num futuro próximo.” O General Bettencourt Rodrigues é nomeado novo governador e comandante-chefe, duas companhias que iam para Angola (CCAÇ 4641 e CCAV 8452) foram reforçar as tropas na Guiné.

Os milhões de contos que a África do Sul prometia emprestar para cobrir grande parte das necessidades em armamento já estavam a ser discutidas. Os autores dão depois nota dos acontecimentos da declaração unilateral da independência, do reacendimento de ataques fronteiriços e do bom-sucesso da Operação Neve Gelada, realizada pelo batalhão de comandos africanos. Não obstante, os bombardeamentos a Canquelifá com morteiros 120 irão continuar, Bethencourt Rodrigues chegou a equacionar o abandono desta posição, tal como Buruntuma. Numa nota enviada em 20 de abril, “Bettencourt Rodrigues expressa profunda preocupação pelas informações que tem do uso de viaturas blindadas num ataque noturno a Bedanda e das consequências que a evolução do potencial de combate do PAIGC podia ter junto das guarnições de fronteira. A utilização de viaturas blindadas pelo PAIGC preocupava as forças portuguesas há vários meses, havendo informações de que estas viaturas tinham sido desembarcadas no porto de Conacri em princípios de 1974. Costa Gomes efetuava diligências junto do Chefe-de-Estado-Maior do Exército espanhol para o fornecimento de minas anticarro.”

A documentação de Bettencourt Rodrigues não ilude que o inimigo dispunha de iniciativa tática, melhor equipamento militar e um grande apoio logístico, isto enquanto Silva Cunha tentava, com o recurso do dinheiro sul-africano, dar seguimento às negociações com os franceses para a compra do sistema de mísseis Crotale, além da compra dos caças Mirage, e havia também a intenção de adquirir radares que permitissem uma boa cobertura do território guineense, para além da aquisição de morteiros de 120 mm. O Secretário-de-Estado da Aeronáutica pedia novos meios aéreos, todos contavam com o dinheiro sul-africano. A narrativa prossegue com o nascimento do MFA, o programa político começará a ser definido por uma reunião em Cascais, a 5 de março; um quadro de subversão alastra em várias unidades militares, mas também nas universidades.

Caetano entende que se deve dirigir à Assembleia Nacional, pretende que se vote uma moção que não deixei quaisquer dúvidas acerca da política ultramarina que ele prossegue. Em diferentes níveis, cresce a ebulição, no próprio regime constituem-se blocos, nas Forças Armadas procura-se avaliar o impacto do livro de Spínola, o MFA clarifica posições, escolhe para chefe do movimento Costa Gomes, internamente constituem-se comissões, na militar, sobressaem os nomes de Garcia dos Santos, Otelo Saraiva de Carvalho e Manuel Monge, na política Melo Antunes, Vítor Alves e Vasco Lourenço. A imprensa internacional, devido aos seus correspondentes em Lisboa, não deixa escapar as movimentações que aparentemente estão todas ligadas ao aparecimento de um livro chamado Portugal e o Futuro. A vigilância sobe as movimentações militares leva a que o ministro do Exército mande proceder a transferências compulsivas.

Na segunda semana de março de 1974, Caetano parece muito confiante com a sua política ultramarina, seguem-se reuniões com o Presidente da República, este insiste na demissão de Costa Gomes e Spínola, Caetano pede para não continuar na chefia do governo, escreve carta a Thomaz, este recebe-o ainda nesse mesmo dia, dir-lhe-á “já é tarde para qualquer deles abandonar o seu cargo, temos de ir até ao fim". E é nesse contexto que Caetano forja uma audiência a oficiais de todas as Forças Armadas a que só se recusarão estar presentes Costa Gomes, Spínola e Tierrno Bagulho, evento que ficará para a História com o nome de Brigada do Reumático. Forja-se uma remodelação do governo. E é neste ambiente que vai ter lugar a revolta das Caldas.


José Matos
Zélia Oliveira
Avião C-130
Avião P-3-Orion (Imagem Wikipédia)
Marcello Caetano recebe a Brigada do Reumático
Uma imagem esclarecedora do fim do regime

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 1 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24274: Notas de leitura (1577): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 2 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24276: Notas de leitura (1578). Lançamento do livro do ten gen ref Garcia Leandro, "O Balanço de Uma Geração" (Lisboa, Gradiva, 2023, 360 pp.)...Vídeo com a recensão crítica do Presidente da República

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24274: Notas de leitura (1577): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Trata-se de uma narrativa muitíssimo bem urdida, estribada na solidez da documentação, e se dúvidas subsistissem quanto à hierarquia dos problemas cruciais que levaram ao desmoronamento do Estado Novo, o rigor e a probidade deste estudo, a consulta de arquivos nacionais e estrangeiros, falam por si: como o livro de Spínola teve o poder de espoletar a discussão pública e no interior de regime quanto às soluções possíveis depois do prolongamento de uma guerra que conhecia, após 1973, um acirramento asfixiante. 

Naqueles últimos meses que precedem ao baqueamento do regime procurava-se desesperadamente comprar armas para manter a guerra, isto graças ao financiamento sul-africano. E acompanhamos a evolução do que podia parecer exclusivamente uma querela corporativa transformar-se numa vaga estuante, o MFA; e, mais facilmente se torna compreensível como praticamente ninguém tenha vindo defender o regime, que caiu num só dia, e com escasso derramamento de sangue. Mas ainda estamos no princípio, segue-se um corropio de peripécias até ao momento em que a PIDE/DGS capitula, na António Maria Cardoso.

Um abraço do
Mário



Os últimos meses do Estado Novo, como a guerra colonial fez baquear um regime (1)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", Guerra e Paz, Editores, 2023, por José Matos e Zélia Oliveira, o primeiro investigador em História Militar, a segunda, jornalista e com uma tese de mestrado sobre a crise final do marcelismo. Estão aqui registados numa narrativa que prende o leitor do princípio ao fim os três últimos meses que antecederam o 25 de Abril. Basta ver a bibliografia para perceber que os autores consultaram centenas de documentos de arquivos nacionais e estrangeiros, temos aqui um olhar sobre aquele que terá sido o período mais tumultuoso do marcelismo, aqui se registam os principais ingredientes que conduziram ao seu colapso.

15 de fevereiro de 1974, Marcello Caetano preside à última reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional. 

“Costa Gomes informa os presentes de que tinha sido assinado um contrato para a aquisição de uma bateria de mísseis antiaéreos, para defender Bissau, e que o governo procurava rapidamente adquirir armas anticarro, para enfrentar as viaturas blindadas que se dizia estarem na posse do PAIGC na fronteira sul da Guiné. As baixas causadas pela guerrilha às forças portuguesas na Guiné, em 1973, tinham sido de 347 mortos e 1007 feridos, o que representava um quantitativo muito elevado. Neste ponto da reunião, Marcello Caetano intervém para referir que o governo sentia grandes dificuldades em comprar armas nos mercados internacionais, dando, como exemplo, o caso dos mísseis antiaéreos franceses Crotale. O governo francês tinha concordado em vender os mísseis por 75 milhões de francos, na perspetiva de que eram armas de defesa e que não seriam usadas no combate às guerrilhas.” 

Costa Gomes passará em revista os teatros de operações de Moçambique e Angola, interveio o secretário de Estado da Aeronáutica, Tello Polleri, sublinhando a importância de prosseguir o programa de reequipamento da Força Aérea, havia que comprar caças Mirage.

Três dias depois desta reunião, Caetano recebeu um exemplar do livro "Portugal e o Futuro", lerá o livro na noite de 20, escreverá mais tarde que tinha compreendido que o golpe de Estado militar era agora inevitável. Os autores debruçam-se sobre as razões de fundo das razões de Spínola que levaram a escrever a obra, as peripécias um tanto tortuosas sobre quem autorizou a publicação, foi uma corrida ao livro que se esgotou no mesmo dia, os leitores aperceberam-se da bomba: a vitória exclusivamente militar era inviável. 

“Pretender ganhar uma guerra subversiva através de uma solução militar é aceitar, diante mão, a derrota, a menos que se possuam ilimitadas capacidades para prolongar indefinidamente a guerra, fazendo dela uma instituição. Será esse o nosso caso?” 

Costa Gomes e Spínola são convocados a 22 de fevereiro, Caetano sente-se desautorizado e sugere aos dois generais que deviam assumir as suas responsabilidades, que serão enjeitadas por estes.

Por essa altura, a 25 de fevereiro, a Comissão Coordenadora Executiva do MFA reúne-se em casa de Otelo Saraiva de Carvalho, é elaborado um texto, agenda-se um mini plenário para 5 de março. Os autores dão-nos conta do que desencadeara esta movimentação, uma legislação publicada no verão de 1973 que essencialmente procurava atrair oficiais milicianos à profissão militar, de acordo com a primeira legislação promulgada os oficiais milicianos mediante cursos rápidos passariam ao quadro permanente, a antiguidade dos oficiais deste quadro parecia posta em causa. 

“Os oficiais oriundos de milicianos iriam ultrapassar na carreira os oriundos de cadetes do quadro permanente, situação que se considerava ser uma injustiça.” 

Caetano encontra-se com o Presidente da República em 28 de fevereiro, pede a Thomaz que aceite a exoneração do executivo, Thomaz responde que esta não fazia sentido.

A situação internacional era manifestamente intolerável para a vida do regime, o ataque da Síria e do Egito a Israel a 6 outubro de 1973, teve consequências gravíssimas para a economia portuguesa, os grandes produtores árabes bloquearam o fornecimento dos hidrocarbonetos a Portugal, o abastecimento passou a ser feito no mercado livre, a um preço gravoso. Kissinger escreveu mesmo uma carta a Caetano em tom de Ultimatum, precisava da base das Lajes imediatamente, senão… Isto numa altura em que Portugal precisava de obter desesperadamente mísseis terra-ar portáteis, do tipo Redeye para proteger as tropas portuguesas na Guiné. 

Costa Gomes fizera uma análise na reunião de 19 de outubro no Conselho Superior de Defesa Nacional, chamara a atenção para uma possível escalada da guerra da Guiné, “uma vez que aquele país dispunha de caças MiG-15 e MiG-17 e havia informações de pilotos do PAIGC a serem treinados na União Soviética, que se podiam juntar aos da própria Força Aérea da República da Guiné. Costa Gomes refere ainda que a situação militar na colónia se tinha agravado devido às novas capacidades militares da guerrilha e à alteração do conceito de manobra que levou o PAIGC a fazer grandes concentrações à volta de três quartéis das tropas portuguesas, em zonas de fronteira, que isolou e bombardeou com elevado poder de fogo.” O general falou dos números decorrentes destas operações e do agravamento da guerrilha: “As nossas forças tiveram 125 mortos e 586 feridos até ao fim do período em análise, o que são números muito elevados (correspondem à perda de um batalhão), dos quais 96 mortos e 500 feridos só nos mês de maio.”

E os autores continuam: “A situação podia piorar ainda mais no caso de um ataque de aviação que, na opinião de Costa Gomes, poderia conduzir ao colapso militar das forças portuguesas naquele teatro de operações. Sendo assim, defendia que a nova ameaça exigia a existência de meios de defesa antiaérea apropriados para a cidade de Bissau, o que teria de incluir mísseis terra-ar e, complementarmente, aviões de caça modernos que podiam ser usados para retaliar sobre o país vizinho. A defesa de Bissau era prioritária, mas qualquer quartel na Guiné podia ser atacado, o que exigia também mísseis terra-ar portáteis para defender as tropas portuguesas. Sá Viana Rebelo, o ministro da Defesa, deu conta das negociações com a Africa do Sul de fornecimento de material de guerra, nessa altura considerava-se a possibilidade de um empréstimo avultado em dinheiro para reequipar as forças portuguesas que precisavam urgentemente de ser modernizadas.” 

E nesta reunião, Cota Dias, ministro das Finanças, informou não estar em condições de assegurar despesas suplementares.

É num capítulo intitulado “Uma questão de vida ou de morte” que os autores escrevem as conversações luso-norte-americanas para a aquisição de mísseis, veículos, aeronaves, equipamentos. Quando Kissinger vem a Lisboa em 17 de dezembro de 1973 recebe um memorando onde claramente se põem números para mísseis terra-ar, veículos modernos com sistema antitanques e aviões de transporte C-130, o secretário de Estado lembrou que o Congresso dos EUA iriam levantar inúmeros obstáculos, impunha-se encontrar soluções em intermediários, segue-se um período em que Washington andou a empatar até um dia o embaixador português ter recebido uma resposta de que os EUA iriam ofertar uma central nuclear.

No início de 1974 dá-se o agravamento da situação em Moçambique, uma família de agricultores brancos é atacada por guerrilheiros da FRELIMO, a mulher é morta, segue-se uma greve geral, apedreja-se a messe de oficiais do exército na Beira, Costa Gomes vai a Moçambique, é no decurso dessas reuniões que o general confirma as dificuldades decorrentes da dependência portuguesa, crescera o número de países que impediam a venda de armamento, acresce a falta de oficiais do exército para comandar a polícia. 

“As tropas no Ultramar e em instrução na metrópole tinham aproximadamente 200 mil homens, e em função desse número deviam existir 18 mil oficiais. Mas na verdade, no terreno, existiam pouco mais de 4 mil. Um estudo do Secretariado-Geral da Defesa Nacional, datado de março de 1973, já chamava a atenção para o problema referindo que era uma questão inadiável e que os oficiais em funções de combate estavam a atingir o limite da exaustão. No estudo podia-se ver que o número de oficiais que o Exército devia ter na metrópole, no Ultramar e de reserva para as forças de segurança estava muito abaixo do necessário. Em teoria, deviam ser 5650 oficiais na globalidade, mas em janeiro de 1972 existiam apenas 2872. Além disso, as carências eram mais graves ao nível de capitães e oficiais subalternos. Nas conclusões, o estudo alertava para a situação gravíssima e potencialmente perigosa que se vivia no Exército, e para a urgência de medidas de fundo a tomar rapidamente para não se correr o risco do Exército se desmoronar.”

José Matos
Zélia Oliveira
Notícias sobre o levantamento das Caldas, em 16 de março de 1974
Imagem de Guidage ao tempo em que o coronel Moura Calheiros e a sua equipa fora exumar os paraquedistas falecidos durante as operações de libertação do cerco, que ocorreram maio de 1973
Outra imagem de Guidage, da autoria de Albano Costa, publicada no blogue Dos Combatentes da Guerra do Ultramar, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24263: Notas de leitura (1576): Atitudes e comportamentos raciais no Império Colonial Português (2): "Relações Raciais no Império Colonial Português", por Charles Ralph Boxer, Tempo Brasileiro, 1967 (Mário Beja Santos)