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quinta-feira, 18 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25404: No 25 de Abril de 1974 eu estava em... (30): Em Bolama, à espera do meu "periquito"... Embarquei nos TAM, em meados de maio, a expensas minhas (João Silva, ex-fur mil at inf, CCAV 3404, Cabuca; CCAÇ 12, Bambadinca e Xime; CIM, Bolama, 1972/74)



 a título póstumo, nº 866, desde 22 de outubro de 2022


1. Comentário de João Pedro Candeias da Silva (1950 - 2022), ex-Fur Mil At Inf, CCAV 3404 (Cabuca, 1972), CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973) e CIM Bolama (1973/74), ao poste P 13078 (*):

Estava em Bolama no dia 25 do quatro (**)... e dias seguintes, onde pude aperceber-me da confusão, isto é, da falta de informação que chegava pelo menos aos furriéis.

Assim ficamos durante largos dias, vivendo de boatos, alguns mais tarde confirmados como a prisão do Comandante-Chefe.

Recordo que uns dias mais tarde, não é para rir, fomos informados pelo major Lima, uma bela peça, que poderíamos, se o quiséssemos, participar numa manifestação do PAIGC. 

Que me recorde,  tal sugestão não teve aderência.

Depois a bagunça que veio afectar os que,  como eu, aguardavam a chegada do periquito. Acabou por não chegar. A muito custo e depois de alguma insubordinação, lá fui para Bissau onde aguardei alguns dias no QG o embarque nos TAM.

No dia aprazado eu e muitos outros militares fomos informados de que não tínhamos lugar no avião porque este estava ocupado pelo pessoal da DGS (Direç ão-Geral de Segurança) e família. 

Eu,  mais dois furriéis, um deles de nome Spínola, fomos ao QG, e obtivemos uma autorização escrita do Major Freitas, responsável pelas companhias africanas, para regressarmos a Lisboa a extensas próprias, documento que ainda hoje tenho.

Fomos à TAP,  comprámos o bilhete e, no dia seguinte, já em meados de maio de 1974, aterrámos em Lisboa.

Penso não haver muitos militares que fizeram a viagem de regresso a sua casa pagando do seu bolso.

Foi a primeira benesse que o 25 de Abril me ofereceu.

João Silva ex-furriel mil, Ccav 3404, Cabuca, Ccaç 12, Bambadinca e Xime, CIM, Bolama.

2 de maio de 2014 às 15:45 (*)


2. Fichas de unidade > CIM - Centro de Instrução Militar

Identificação; CIM
Cmdt: Cap Inf José Manuel Severiano Teixeira
Cap Inf António Lopes de Figueiredo
Cap Inf António Ferreira Rodrigues Areia
Cap Inf Laurénio Felipe de Sousa Alves
Cap Inf António Feliciano Mota da Câmara Soares Tavares
Cap Inf João José Louro Rodrigues de Passos
Cap Inf Alcino Fernando Veiga dos Santos
Cap Inf António de Matos
Cap Art Samuel Matias do Amaral
Cap Inf Carlos Alberto Antunes Ferreira da Silva
Maj Cav Carlos Manuel de Azeredo Pinto Melo e Leme
Maj Inf Carlos Alberto Idães Soares Fabião
Maj Inf Fernando Jorge Belém Santana Guapo
Maj Cav José Luís Jordão de Ornelas Monteiro
TCor Inf Octávio Hugo de Almeida e Vasconcelos Pimentel
TCor Cav Raúl Augusto Paixão Ribeiro
Cor Inf Carlos Emiliano Fernandes

Divisa:

Início: Anterior a 1Jan61 | Extinção: 14Set74

Síntese da Actividade Operacional

Era uma unidade da guarnição normal, tendo sido criada inicialmente em
Bissau no aquartelamento de Santa Luzia, a partir de 17Mar59, com a finalidade
de ministrar instrução militar ao pessoal residente na Guiné e já recenseado
e com documentos de identificação nacionais. 

Inicialmente, com a designação Centro de Instrução de Civilizados, passou, a partir de 24Nov59, a ter a designação de Centro de Instrução Militar, ministrando também instrução a praças I(ndígenas).

Em 20Mai61, foi transferido para Bolama, tendo assumido a responsabilidade
do subsector respectivo, o qual englobava ainda as ilhas de Bijagós.

Para além da instrução básica e especial ministrada aos militares do
recenseamento local para formação de diversas especialidades, efectuou ainda a
IAO de unidades e subunidades metropolitanas, esta instrução especialmente a
 partir de meados de 1970, e estágios de Oficiais e Sargentos para enquadramento
de unidades africanas da guarnição normal. 

Efectuou também acções de patrulhamento e de contacto com as populações, garantindo ainda a segurança, protecção e controlo dos itinerários, dos aldeamentos e das populações, contribuindo para o seu desenvolvimento social, económico e cultural e superintendendo no funcionamento do Centro de Licenças de Bolama.

Em 14Set74, na sequência do plano de retracção do dispositivo e após
entrega do aquartelamento de Bolama ao PAIGC, o Centro foi desactivado e extinto.

Observações - Tem História da Unidade, referente a lJan72 a 30Jun74 (Caixa n.º 117 - 2ª Div/4ª  Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp. 683/684.
__________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de maio de  2014 > Guiné 63/74 - P13078: O golpe militar de 26 de abril de 1974 no TO da Guiné: memorando dos acontecimentos, pelo cor inf António Vaz Antunes (1923-1998) (Fernando Vaz Antunes / Luís Gonçalves Vaz): Parte I

(**) Último poste da série > 14 d abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25386: No 25 de abril de 1974 eu estava em... (29): Bissau, Depósito de Adidos, era oficial de justiça, na Secção de Justiça... e a viver com a minha mulher, em "segunda lua de mel"...( Joaquim Luis Fernandes, ex- alf mil, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973, e Depósito de Adidos, Brá, 1974)

terça-feira, 16 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25394: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (26): um país de gente porreira - II (e última) parte

 Palácio Nacional de Mafra: uma visão romãntica, em litografia de 1853, da autoria de João MacPhail (que morreu em 1856). Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal: http://purl.pt/12043

Imagem do domínio público, Cortesia de Wikimedia Common


Contos com mural ao fundo >  II (e última) Parte

por Luís Graça (*)


6B. Não te assustaste com o 25 de Abril.
Bem, não foi bem assim.
Não estavas a contar, deves dizê-lo.
O Ravasco também não,
e era bem mais imformado do que tu.
Tu tinhas algo a perder e, se calhar, algo mais a ganhar.
Claro, foi um desgosto para a tua mãezinha.
Para mais, o seu filho mais velho (esse é que era o "morgado",
e que também era professor  como ela),
apareceu-lhe um dia, em casa.
De barbas, cabelo comprido e cravo ao peito.
E com uma "flausina", uma namorada, de calças, e sem sutiã...
A pobre da tua mãezinha ia morrendo, de apoplexia.


A verdade se diga: ninguém a chateou por ser do Movimento Nacional Feminino, que acabou logo, dali a uns dias, por decreto da Junta de Salvação Nacional, onde estava o Spínola com quem tu, aliás,  até simpatizavas um bocado. Os outros não te diziam nada, com exceção talvez do Costa Gomes, que fora teu comandante-chefe em Angola (nunca o voste), e que também era nortenho como tu. Flaviense.

E, de resto, a tua mãezinha  já não dava aulas, tinha funções meramente burocráticas, na área da administração escolar. Logo que teve condições, isto é,  reuniu os requisitos legais, pediu a aposentação. Ainda bastante nova.  Percebeu que o seu tempo (e quiçá o seu mundo) havia acabado. 

Infelizmente ainda não tinha netos para cuidar. Mas dedicou-se ao seu jardim. Tinha uma cultura de camélias. E abriu a capela  da família, do séc. XVIII,  ao povo da freguesia. Sempre ornada de flores, camélias... Achaste um gesto bonito. E, afinal, inteligente. Democrático.  A capela até então estava vedada ao povo da aldeia, ali nos arredores de Ponte de Lima. O que era mal visto. Até para fazer um velório ou outro, as pessoas às vezes pediam-lhe e ela recusava.

Tinha muito orgulho, a tua mãezinha,  na capela onde repousavam os restos mortais de alguns dos seus queridos antepassados. Contrariando as leis de saúde dos Cabrais, ainda lá foram inumados, até tarde, até quase aos fins do séc. XIX, alguns dos teus avoengos.  

Claro que já nenhum padre lá ia  dizer missa. Os padres também aprenderam com a história passada, e, para o clero, sobretudo o mais jovem, era bom ser democrata (ou pelo menos aparentá-lo). Como o teu amigo de Mafra, mas esse já era democrata antes do 25 de Abril. Quer dizer, era do "contra".

A chatice maior que a família teve, no pós-25 de Abril,  foi com os rendeiros. "Poucos mas ingratos e velhacos", como já dizia o teu pai.  Recusaram-se a pagar a renda em géneros. Ainda se usava, e vinha desde há séculos,  o sistema da parceria agrícola (pagamento a meias ou ao terço, conforme os produtos eram da terra ou do ar). 

O teu irmão deu um jeito, resolveu o conflito. Chagou a cabeça a toda a gente da família.  Disse que "não, senhora,  minha mãe, que aquilo era senhorial, semi-feudal, pré-capitalista, que daqui a uns tempos  já se estava no ano 2000, e ainda  se lavrava a terra com os bois em Ponte de Lima!"... 

O teu mano era o "comuna" da família. Naquele tempo até dava jeito ter um "comuna" na família. Depois veio a lei do arrendamento rural e tudo se normalizou. Mas não foi preciso esperar muito para as terras ficaram sem rendeiros, nem bois, nem podadores, cobertas de mato. E a tua mãezinha voltou a ter que comprar batatas e cebolas no mercado. Mal dela se tivesse que viver das rendas dos rendeiros. E em anos ruins perdoava-lhes as rendas, depois da morte do marido. Nisso, era afinal um coração bondoso, e guerreiro, da estirpe da Maria da Fonte (que ela admirava).

O teu pai, um amanuense,  também dera a volta ao texto. Extintos os organismos corporativos, foi "reconvertido",  a nível profissional.  Os grémios da lavoura deram origem a cooperativas agrícolas. E tudo ficou como dantes. Ou quase. Não perdeu os seus hábitos, muito menos a sua tertúlia dos copos e dos petiscos. " E nunca quis mais saber da política!", confidenciou-te ele um dia. Mas morrerá cedo, coitado,  passados uns anos. 

Tu próprio também acabaste por "apanhar o barco" (ou, como se dizia na Ericeira, "surfar a onda"). Deixaste crescer o cabelo e passaste a usar uma boina basca.  Preta. Descobriste o teu lado (adormecido) de anarquista. E, confessavas, soube-te bem respirar o ar da liberdade que tu, em boa verdade, não tinhas tido quando nasceste no seio de uma família limiana tradicional.  Apesar de toda a gente ter um rótulo, tu recusaste-te  a revelar as tuas opções político-ideológicas, quer dizer, o partido em que votavas nas primeiras eleições. 

O Ravasco, muito mais à esquerda do que tu (acha que eras do PPM, o partido popular nonárquico), quis meter-te no sindicalismo, mas tu disseste-lhe  logo que "não senhor, muito obrigado, há coisas para as quais um limiano  de sangue azul como eu não tem jeito nem feitio nem vocação". Fizeras a tropa, já chegara esse tempo em que andaras "arregimentado".

A princípio, depois do 25 de Abril,  o Ravasco era o terror do "adjunto" e do "grupo das meninas", lá  na repartição  de finanças de Mafra.  Tens que o reconhecer, foi um gajo decente,  não houve saneamentos nem correu sangue, que era uma situação que tu detestarias, no caso de as coisas terem descambado para aí... Talvez por ter feito uma guerra, o Ravasco mostrou-se aos teus olhos surpreendentemente maduro e responsável.  

 A tua consideração por ele subiu mais uns pontos. Mas secretamente deu-te gozo ver aquele grupinho de sacanas baixar a bolinha. De um dia para o outro, a sorte mudara. Não vale a pena um gajo cantar de galo e montar as galinhas,  esquecendo-se que quem faz pintos também faz galuchos e garnizés. Mas não tiveste tratamento recíproco. A ti, continuaram a desprezar-te como "filho de Ansião"...

Ainda foste, com ele, no teu carro, a Peniche, ver a saída dos presos políticos, em 27 de abril. Não tinhas lá ninguém teu conhecido. Mas também não concordavas com as prisões políticas nem com a  censura à imprensa nem com os pides ... Nunca se discutia política lá em casa, mesmo que os teus pais fossem simpatisantes do Estado Novo (pelo menos votavam na União Naconal e depois na ANP, a tal Acção Nacional Popular, sem convicção, por dever de  ofício. ) 

Levaste também no teu Mini o Ravasco ao 1º de Maio, em Lisboa... Viste ao longe o Mário Soares e o Álvaro Cunhal.  Não sendo republicano, ficaste com um certo respeito por eles. Pelo menos, foram homens que lutaram pela liberdade dos outros, dando o corpo ao manifesto.  Mas nunca tinhas visto tanta gente junta, gritando palavras de ordem, de punho erguido.  Sempre tiveste a fobia das multidões. E daí nunca teres ido a desafios de futebol (nem a touradas e, muito menos, a comícios!).

Percebeste cedo que "aquela não era a tua praia", preferias a Ericeira e a Foz do Lisandro... Foi mais para fazer companhia ao Ravasco, um gajo de quem a pouco a pouco começaste, sem saber bem porquê,  a gostar como amigo, ou até talvez como o irmão que te fazia falta, a algumas centenas de quilómetros de casa... 

Foi ele que começou a tratar-te por tu, a seguir ao 25 de Abril. A princípio, custou-te, repugnava-te até, mas lá te foste habituando,  a pouco e pouco. Na família sempre houvera a norma do tratamento por você.  O respeitinho sempre fora muito bonito entre os teus. Chamava-te agora "pequeno-burguês", com hífen, qualificativo que tu nunca sabias muito bem o que queria dizer. Interpelavas o safado do Ravasco: "É por gostar das coisas boas da vida ? De gajas ? Ou ter um velho Mini com jantes especiais?"... 

Nunca to esclareceu... Sempre o achaste, nesse aspeto,  um bocado moralista. Rígido, em certas coisas. 

Em Braga irás conhecer o verão quente de 1975. Mas desse tempo não gostarias de   falar. Ficaste desgostoso com as posições radicais que alguns amigos e conhecidos teus, de um lado e do outro, tomaram, na altura do PREC.  A começar por católicos que se sentavam na missa, ao teu lado. Aí, sim, temeste que a coisa pudesse degenerar em guerra civil. 

A tua mãe, que sabia muito da História de Portugal,  falava-te dos horrores que haviam sido as guerras liberais, fratricidas. Na tua família parece que houve tanto "malhados" ou "jacobinos", partidários do Dom Pedro, como "corcundas", seguidores do Dom Miguel, estes talvez em maior número. E só se juntaram na "Patuleia", em 1847,  os "realistas" e os "setembristas" ou "progressistas", da Junta do Porto. Daí tu não te admirares de o teu mano ser "comuna do 26 de Abril". Houve muitos vira-casacas. Acontece em todas as mudanças de regime. E em todas as famílias. A tua, afinal, era como as outras.

Mais tarde voltaste a Ponte de Lima onde o teu mui amado tio-avô, materno, solteiro,  e que não tinha herdeiros diretos, te deixou em doação uma quinta. Uma pequena quinta, maneirinha, boa de se fazer. Tu eras o seu sobrinho-neto querido. Por causa da política, cortara relações com o teu mano, professor primário, esse, sim, o "senhor morgado", que ficou com as fracas terras da família, estoirando-as em pouco tempo...

Reformaste-te da função pública, no bom tempo. Fizeste uma formação em vitivinicultura. Descobriste os encantos da vida no campo.  E, para surpresa do Ravasco, não te casaste nem fizeste filhos (que tu soubesses), nem sequer escreveste um livro, mas plantaste árvores  e vinhas. E disso podes orgulhar-te.


7A. Uns tempos antes do 25 de Abril, ainda em Mafra,
o Bacelar havia-te apresentado ao padre, seu amigo,
de que espantosamente já não recordas o nome.
Simpatizaste, de imediato, com ele.
E depressa encontraste nele um homem
capaz de ouvir (e sobretudo de saber ouvir)
o relato dos teus “fantasmas” da guerra de África.



No fundo, ele acabou por ser o “confessor”, mais do que o simples confidente ou ouvinte passivo, de que tu estavas a precisar, ali, desterrado e amargurado. Na realidade, e até então, nunca falaras da guerra a ninguém, não tinhas sequer amigos íntimos com quem pudesse partilhar as tuas confusas e doridas memórias, da infância, do seminário, da guerra... A não ser, afinal, com o Bacelar.

Ao fim da tarde, antes do jantar, a meio da semana, tinhas por hábito juntarem-se, tu, o Bacelar e às vezes o padre, na tal "tasca dos jaquinzinhos" (na realidade era já um misto de tasca e  bar a virar para  modernaço)...  Tomavam a bica ou uma cerveja, davam dois dedos de conversa, comentavam as notícias dos jornais. Era uma espécie de tertúlia. Às vezes juntava-se à mesa um ou outro jovem estudante,  conhecido do grupo, ou das relações do padre. E noutras meses aparte, um ou outro cadete.

Talvez já em março de 1974, não sabes se antes ou depois do 16 de março, a revolta das Caldas, que  alvoraçou a malta do "reviralho" (incluindo o Bacelar que lá estivera uns anos antes como 1º cabo miliciano), a conversa foi parar, sem tu  dares conta, à Guiné e à guerra. Sabes que te perdeste e me abstraiste do que se passava à tua volta. Não te apercebeste sequer de quem estava na mesa do lado. 

O padre, mais velho do que tu uns anos, gostava de te ouvir e raramente te interrompia com um pedido para esclarecer este ou aquele ponto, e muito menos para manifestar a sua concordância ou discordância. Revelava, isso, sim, uma grande empatia, o que veio reforçar a confiança que ele te inspirava, logo desde o início. Em suma, sabia ouvir, o que era, quanto a ti, uma qualidade essencial num confessor. Os que tu tiveras, até perder a fé, eram mais inquisidores do que confessores….

Ficaste também com a ideia de que ele estava minimamente familiarizado com o meio castrense. Não te admiravas, estava  habituado  a lidar com a tropa numa terra como aquela. Talvez até ele tivesse sido capelão militar, antes de vir para aqui, conjeturavas tu.  Ou talvez ainda quisesse vir a sê-lo, a guerra do ultramar estava para dar e durar, pensava muito boa gente.  Estava, de resto, em idade para isso, para ser capelão. Teria cinco anos a mais do que tu, já a roçar os 30. Nunca lhe perguntaste a idade, por delicadeza. Vieste depois a saber que alguns dos seus paroquianos eram militares da EPI ou seus familiares.

Se bem recordas hoje, a quase meio século de distância, o teor da conversa (na realidade, um longo monólogo) girava à volta dos "prisioneiros" que a tropa fazia na Guiné. Ali não havia prisioneiros de guerra, garantias tu, ou se os havia não eram tratados como tal. Portugal não estava, técnica e legalmente, em guerra com nenhum país soberano, pelo que não podia haver prisioneiros de guerra. Mas tu nunca tinhas lido a Convenção de Genebra. Os guerrilheiros ou simpatisantes  do PAIGC quando aprisionados, no decurso da actividade operacional das nossas tropas, eram tratados como simples presos de delito comum. Ou seja, eram "turras". 

Sob tortura, davam informações relevantes sobre o dispositivo militar do PAIGC no setor ou região, bases ou “barracas” (acampamentos temporários), população, nome dos comandantes e dos comissários políticos, bigrupos, armamento, trilhos, depósitos de armamento, lojas do povo, locais de cambança, etc. Eram um "livro aberto"... E, claro, eram forçados a servir de guias para levarem a tropa até ao “objetivo”. 

Sempre fora assim, ainda antes do teu tempo,  e tu, como todos os outros graduados, quer do quadro, quer milicianos,  fechavam os olhos ou assobiavam para o lado. “Siga a marinha!", dizia o capitão. Nunca torturaste ninguém. Mas alguém tinha que fazer o trabalho sujo. Afinal, à guerra não era para meninos de coro.

Estavas a contar-lhes, ao padre e ao Bacelar (a tua atenta audiência),  as peripécias de uma operação em que tu comandavas a tua companhia, já com o teu capitão de baixa no hospital militar de Bissau. Havia outras forças envolvidas, e nomeadamente um pelotão de caçadores nativos e um pelotão de milícias que faziam parte do teu destacamento. 

A milícia seguia à frente a abrir caminho e  com o prisioneiro a servir de guia. Éram dois destacamentos, A e B, a avançar, numa manobra de envolvimento, “em tenaz”, para o “objetivo”, uma “barraca”, um acampamento onde estaria um bigrupo, ou menos (talvez cerca de 40 homens), situado a montante de um rio e na orla de uma mata espessa, de tipo floresta-galeria, ao longo da margem de um rio. Estavam bem armados, incluindo morteiro 81.

O prisioneiro era balanta, não falando uma única palavra de português. Era muito  jovem e bem constituído. O alferes de 2ª linha, que comandava o pelotão de milícias, mantinha com ele um difícil diálogo em crioulo. Tu seguias no seu encalce, dez metros atrás, com o teu guarda-costas, e o homem da bazuca. Percebest que o prisioneiro há mais de uma hora fazia tudo para despistar a tropa ou denunciar a sua presença, à medida que se aproximavam do objetivo.

Às tantas, foram detetados (o que era normal) por uma sentinela avançada, no alto de um bissilão,  que deu o sinal de alarme… O teu guarda-costas abateu-o, com um tiro certeiro, mas acabaram  por ser flagelados por fogo de armas pesadas.  De imediato, foram  vítimas de um brutal ataque de abelhas. 

Na confusão que logo ali se instalou, o prisioneiro ensaiou uma tentativa de fuga, mesmo algemado e preso a uma corda. O  milícia, que o conduzia foi suficientemente lesto para o impedir de se internar na mata, acabando por o alvejar no último segundo, já no fim de um dos  trilhos que levavam à “barraca”, e que ele devia conhecer, de olhos fechados.

Pelo PCV (Posto de Comando Volante), a avioneta onde estava o major de operações, receberam  ordens para abortar o assalto, uma vez gorado o efeito surpresa e o aparente desnorte das nossas tropas, dispersas pelo ataque de abelhas e a “morteirada” do inimigo. 

Reagruparam-se  na orla de uma bolanha, com o ferido a sangrar, enquanto os T-6 entraram em ação despejando bombas sobre o “objetivo”. E regressaram sob proteção do helicanhão.  

Foi nessa altura que o comandante da milícia, espumando de raiva, saltou sobre as costas do prisioneiro, como um verdadeiro felino, e rasgou-lhe a coluna vertebral de alto a baixo, com a sua faca de mato bem afiada. O prisioneiro caiu redondo no chão mas não teve morte fulminante. Ainda viste alguém, da milícia,  dar-lhe um tiro de misericórdia na nuca e cortar-lhe as orelhas, prática que, de resto, não era invulgar em circunstâncias com estas… Dizia-se que era um ritual guerreiro dos fulas, mas o Spínola deixou de achar graça, quando lhe meteram na cabeça que a guerra também se ganhava pelo charme, a "psico", o respeito pelo inimigo, blá-blá, blá-blá...


Ficaste sem pinga de sangue, nunca tinhas presenciado uma cena de guerra daquelas, nem nos filmes do faroeste onde era pressuposto os índios e os os cobóis tirarem o escalpe aos mortos. E não tiveste sequer tempo nem reflexos para impedir uma barbaridade daquelas. 

O mais grave é que, por cobardia ou para não arranjar chatices, omitiste esta cena no relatório que ajudaste a fazer com o comandante do outro destacamento, que era capitão.  Oficialmente, o prisioneiro-guia fora morto quando intentava fugir… E o alferes de 2ª linha  era um grande operacional, muito bem visto (e protegido) pelo comando do batalhão do setor. Falava-se já na sua próxima gradução em tenente, indo ao encontro da política de Spínola de "africanizar" cada vez mais a guerra. 

Estavas tu a acabar o relato deste triste episódio da tua guerra, quando da mesa ao lado salta um jovem que se dirige ao padre e diz com veemência:

 É tudo mentira, senhor padre!... Uma infâmia, uma calúnia!... Isso nunca poderia ter acontecido na nossa querida Guiné e muito menos por homens que envergam e honram a nossa farda. O senhor meu pai, oficial superior em Bissau [disse o nome, o posto , a unidade, etc.] , está lá, neste momento, rezo por ele todas s noites e  sei que ele nunca pactuaria com práticas indignas de um exército que defende a nossa pátria e os valores da nossa civilização cristã e ocidental!...

O padre, reconhecendo de imediato o jovem (ou talvez ainda adolescente)  e temendo pela tua integridade física, arrastou-o com força para um canto da sala e fez tudo para o acalmar… Não contaste os minutos, tu próprio estavas perplexo e chocado com toda aquela violência verbal, intempestiva e  gratuita… 

Passaram-se talvez uns bons vinte minutos,  foi longa (e áspera) a conversa do padre com o jovem… De copo de água na mão, o jovem parecia, no entanto,  estar a acatar a autoridade do padre, que o tentava acalmar… Por fim, lá saiu da sala, em passo estugado, mas não sem antes te voltar a fulminar com o olhar. Por certo que ficaste marcado, pensaste tu com os teus botões. Ficaste com a ideia de que, a partir daquele momento, tinhas ganho mais um inimigo naquela maldita terra.

O padre regressou à mesa, limpando o suor da testa, aliviando a pressão do cabeção no pescoço, ao mesmo tempo que pedia desculpa e tentava ensaiar uma explicação para aquele assomo de violência juvenil:


 É um paroquiano meu, excelente rapaz mas muito impulsivo. Conheço-o há uns boms anos. É filho de uma ilustre família de militares... Mas podemos considerá-lo “órfão de pai”, cresceu com o pai em África. Tem uma enorme admiração pela figura paterna e prepara-se para ingressar na Academia Militar, daqui a dois anos...

O Bacelar saiu contigo, mudo e calado. Mas incomado, tanto ou mais do que tu e o padre. Nunca mais os três falaram do  assunto.


8A. Epílogo


Infelizmente, o  Bacelar já não está cá, entre os vivos, para se poder continuar a manter esta espécie de monólogo a dois... 

 Como o tempo passou, meu Deus!

O Bacelar morreu num estúpido acidente de trator agrícola, há uns anos atrás, trinta e muitos anos depois de 1974. Numa vinha, nova, em socalco, que ele plantara e amanhara com uma paixão e um carinho que te comoveram, até às lágrimas, quando lá foste participar numa vindima, talvez por volta de 1997, se não erras, altura em que ele fez 50 anos. Tinha uma bela vinha com castas loureiro e alvarinho. "Era a menina bonita dos seus olhos"... Não tinha filhos, ficara solteiro...

“Contra todas as probabilidades”, como dizia ele, os dois ficaram  amigos para o resto da vida. E, no entanto, só conviveram em Mafra, menos de dois anos, separando-se já no final do verão de 1974, talvez em outubro.  Conseguiram a tão almejada transferência, tu para a Repartição Central do Imposto Complementar, em Lisboa, na Rua Braamcamp, e ele, para mais perto de casa, na cidade dos arcebispos e, mais tarde, para a sua terra.

Acabaste por tirar o curso de direito, em Lisboa, graças ao teu estatuto de trabalhador-estudante e beneficiando igualmente das regalias de antigo combatente. Cinco ou seis anos depois, no início dos anos 80, concorreste a um lugar de técnico superior de 2ª classe no Ministério do Trabalho e Segurança Social. Foste para uma área de que gostavas, e tinha a ver com as condições de trabalho, incluindo a higiene e segurança e matérias afins. Ajudaste  a elaborar diversos materiais de divulgação e sensibilização, fichas técnicas, brochuras, cartazes, etc. Interessaste-te, em especial, por sectores de elevada sinistralidade como as minas e pedreiras, a construção e obras pública, a agricultura e pescas, a metalomecânica.

Era um trabalho de algum modo pioneiro em Portugal, acabaste mais tarde por ir parar, com as sucessivas reestruturações do Ministério, sito na Praça de Londres, a um instituto que antecedeu a atual ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho.

Do sindicalismo das contribuições e impostos, já não tinhas saudades nenhumas. Ainda ajudaras a criar e a alimentar um boletim, "A Forja", que era tirado a "stencil". Aquilo acabou por descambar num sindicalismo corporativo, populista,  que é o que há hoje em Portugal, ainda com alguma força reivindicativa, dos professores aos magistrados, dos estivadores aos condutores de longo curso, maquinistas de comboios, pilotos da TAP, polícias e quejandos... São essas corporações, algo mafiosas (como os gajos da estiva),  que podem parar um país... Podem usar a bomba atómica, é certo, que é a greve e  a paralização de sectores-chave da economia, mas também têm que saber muito bem calcular e prevenir os seus efeitos de "boomerang"...

Com o tempo de tropa, e os 36 anos de função pública,  reformaste-te. E passste a  dedicar-te aos cães e aos netos. Tinhas um pequeno monte, não longe da terra onde foste parido, na freguesia de São João dos Caldeireiros, lá no cu de Judas, no "país profundo", com diziam os gajos politicamente corretos, e que tu não sabias o que queria dizer... Devia ser a forma eufemística ou cínica de chamar-lhe a periferia das periferias, onde só havia coutadas,  de meia dúzia de granjolas, e onde já chegara o pré-Saara, o deserto...que nos há de cobrir a todos.

Tens pena, hoje,  de nunca ter feito o estágio de advocacia, de modo a teres podido exercer a profissão a tempo inteiro. Entraste para a função pública, tramaste-te, não quiseste trocar o certo pelo incerto, tu que chamavas "pequeno-burguês" ao pobre diabo do Bacelar.  Mas, pelo que vês hoje, a profissão de advogado já não é o que era. São os grandes escritórios que fazem a lei... E o idealismo de outrora desvaneceu-se. Como tudo, de quando eu eras jovem e ainda sonhavas com um mundo totalmente diferente daquele em que nasceras, tu que eras filho de mineiro e neto de ganhão. 

Só esperas que não te dê tão cedo o badagaio. Querias morrer lúcido, em paz contigo e, se possível, com os outros, o que se calhar é pedir demais. Vais ter que negociar com o teu gestor de conta do além.

Não, não casaste com a rapariga de Beja, que estava à tua espera. Fartou-se de esperar e fez ela muito bem. Um dia encontrou na rua, ao virar da esquina, o primeiro namorado, do tempo de escola, e lá juntaram os trapinhos. Nada como a primeira grande paixão,  sempre ouviste dizer.  Só esperas que ela tenha sido mais feliz do que tu foste.

Já do Bacelar não sabias tantos pormenores do resto da  sua história de vida. Andou atrelado a uma francesa, no verão de 1974. Chegou a levá-la à sua terra, para escândalo da mãezinha. 

Aliás, andaram atrelados, os dois. Ela tinha uma amiga ou irmã,já não não te lembras bem. Despacharam os “copains”, que vinham com elas, e que foram atrás das portuguesinhas de Lisboa. Vieram, num “dois cavalos”, ver a “révolution des oeillets”, a revolução dos cravos, ao vivo e a cores. Portugal, país liliputiano,  que não cabia na geografia do mundo, passou a ser, nesse tempo,  uma espécie de jardim zoológico da Europa. Chegaram cá fotógrafos famosos, tiraram umas chapas e depois esqueceram Portugal e os portugueses por mais umas boas dezenas de anos.

O Bacelar, esse,  acabou por dar um salto até aos Alpes Franceses, já em setembro de 1974, na “rentrée”. As raparigas eram da região de Grenoble. Foi uma espécie de “summer school”, completa, mas sem direito a certificado em papel timbrado, com o “Capital” do Karl Marx, o “Kama Sutra”, os maços de cigarros “Gitanes”, e a garrafa de vinho do Porto Ferreirinha, enrolados nos lençóis encardidos. 

As tipas, finalistas de liceu, eram muito mais politizadas e "sabidas"  do que ambos. O Bacelar era obrigado a recitar o “livrinho vermelho”, a bíblia do maoísmo, antes de ir para a cama com a sua “copine”. A que te calhou na rifa era mais dada à poesia e à música de contestação, o Brel, Moustaki, o Leo Ferré… Nada de Dassin ou Bécaud, que eram pirosos, mas os únicos que o Bacelar e tu conheciam … 

Enfim, melhoraste substancialmente o teu francês de praia nesse tardio verão de 1974. Mas não acompanhaste o Bacelar nas aventuras em França, país de resto que tu já conhecias, do trabalho duro, de sol a sol nas vinhas de Bordéus… Trabalho de escravo branco, diga-se de passagem.

O argumento era o do costume, e fez-te recuar até à Guiné: 

− Bacelar, alguém tem de ter a cabeça fresca e  ir trabalhar… 

Na realidade, tu sentias-te mal por andarem os dois  com miúdas muito mais novas. Caiste na realidade. Aquilo não tinha nada a ver contigo. E lá foram os três no Mini! O "dom Juan" do Bacelar e as catraias... Não sabes como o Bacelar conseguiu a proeza, de ir e vir… num Mini já com muitos milhares de quilómetros no contador…

O “açoriano”, o chefe, levantou-lhe um processo disciplinar por faltas injustificadas. Nesse tempo ainda havia livro de ponto. Intercedeste pelo teu “amigo improvável”, usando (e talvez abusando de) as tuas funções, 
na altura, de delegado sindical, "eleito democraticamente", em lista única, de braço no ar (e com três ou quatro votos contra, como seria de esperar). E sobretudo fartaste-me de esgalhar para compensar o trabalho em falta do Bacelar. 

O tio-avô dele, já reformadíssimo, arranjou-lhe um atestado médico. E, com a “boa vontade de todos”, o caso foi abafado e a “ficha” do Bacelar voltou a ficar limpinha… 

O Portugal do pós-25 de Abril era  um país de gente porreira… Perguntas-te hoje por que razão é que o fizeste, por um tipo que afinal tinha poucas afinidades contigo… 

És capaz de responder que foi simplesmente por amizade (e quiçá por camaradagem), que veio na sequência da situação de “companheiros de infortúnio”,  quando colocados como "mangas da alpaca" na repartição de finanças de Mafra… Afinal, a política, a religião, a ideologia... não eram tudo na vida, foi a conclusão a que tu chegaste, da tua vivência desses tempos.

Nesse final de verão de 1974, ou já princícpio de outono,  descobriste de repente que, ao despedirem-se,  tinhas ganho um amigo, na realidade o primeiro amigo do peito que ganhavas em vida… Despediram-se com um valente  "quebra-costelas"  e uma indisfarçável lágrima ao canto do olho... Prometeram visitar-se um ao outro,  em próxima oportunidade. O que só viria a acontecer em 1977, três anos depois, por ocasião do seu (e dele) 30º aniversário natalício. Ele veio até Lisboa, dessa vez.

Entretanto, em 1974, depois do 25 de Abril, o  "grupinho do adjunto e das meninas" andava de crista murcha, mas não escondia a sua hostilidade crescente para com o “sindicalista”, que eras tu. O Bacelar apanhava por tabela, apenas por ser teu amigo...  

Disseram-te depois que, a partir do verão de 1975, voltaram a sentir-se de novo em casa, com a baiuca por sua conta. A paz voltou a reinar no convento, se bem que as alegres noitadas de da última sexta feira de cada mês já não se voltaram a repetir, tal como as "ceias de Natal do fisco"… A "madama" sumiu-se, os empresários tinham mais com que se preocupar...

Com o início da informatização das contribuições e impostos e da modernização administrativa, incluindo uma nova gestão de recursos  humanos, começou a imperar uma certa moralidade, rigor e transparência... 

Entretanto o “açoriano” fora promovido e regressara à sua ilha natal.   O jovem candidato  à Academia Militar  não sabes se chegou a concorrer e  a entrar, já com a "guerra de África" arrumada.  E do padre, teu amigo e do Bacelar,  também não nunca mais soubeste nada. E a história deste país, já quase com 900 anos,  lá seguiu o seu curso a caminho do novo milénio.

Em Mafra, não deixaste amigos, infelizmente, mas queres aqui reconhecer que era terra de boa gente, e sobretudo trabalhadora. Embora tu nunca te tenhas reconciliado com a "Máfrica", mas isso é outra história.

O mais triste de tudo  foi  a perda, afinal, de um grande amigo, morto estupidamente debaixo de um tractor que ele comprara, em segunda mão  e, por ironia, não obedecia às normas nacionais e europeias de segurança, faltando-lhe por exemplo as estruturas de segurança (nomeadamemte, o arco de segurança, rebatível)...

E tu que, da única vez que lá foste, à sua casa nos arredores de Ponte de Lima, a chamar-lhe a atenção: "Oh!, Bacelar, olha que um dia destes ainda cais de um socalco e ficas debaixo do trator!"... 

Meu dito, meu feito!... Tal como ao do teu pai, não foste ao seu funeral... Só soubeste da triste notícia uns largos tempos depois. Por um mero acaso. Quando passaste por Ponte de Lima e lembraste-te de perguntar a alguém por ele.


© Luís Graça (2021). Revisto em 15 de abril de 2024.


Nota do autor: Neste conto, os nomes (de pessoas e lugares) são fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

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Nota do editor:

(*) Poste anterior da série > 15 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25391: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (25): Um país de gente porreira - Parte I

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25391: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (25): Um país de gente porreira - Parte I


Palácio Nacional de Mafra: uma visão romãntica, em litografia de 1853, da autoria de João MacPhail (que morreu em 1856). Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal: http://purl.pt/12043

Imagem do domínio público, Cortesia de Wikimedia Common


Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, onde se integrava o Paulo Raposo, frente ao Convento de Mafra. O Paulo Enes Lage Raposo, que nada tem a ver com a história que a seguir se conta (os nomes são ficcionados, mas onde os factos são verdadeiros),  foi alf mil inf, MA, CAÇ 2405 / BCAÇ 2852 ( Mansoa, Galomaro e Dulombi, Guiné,1968/70), e o organizador  do histórico  I Encontro Nacional da Tabanca Grande (Ameira,  2006). A sua companhia perdeu 17 militares na travessia do Rio Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de fevereiro de 1969 (Op Mabecos Bravios). 


Foto (e legenda): © Paulo Raposo (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Contos com mural ao fundo (25) >  Um país de gente porreira (Parte I)


 por Luís Graça



1A. Conheceste o Bacelar em Mafra.
Em finais de novembro de 1972. 
Iam tomar posse na repartição de finanças.
Um mês antes do Natal.
Numa tarde fria e chuvosa...
E logo em Mafra. Logo ali, na ”Máfrica”,
como tu e outros que por lá passaram na tropa,
chamavam àquela terra desgraçada.
Tudo por causa da EPI,
a Escola Prática de Infantaria,
que se tornara a principal fábrica
de oficiais milicianos, alferes e capitães,
comandantes operacionais
com destino à guerra de África.

Ainda te soava aos ouvidos a frase  de uma canção de protesto, de um gajo de Coimbra, estudante de medicina, que deve ter chumbado a meio do curso, e que era do “reviralho”, cantava bem e tocava viola sofrivelmente : 

− Muita chuva, muito vento, muita merda… e um convento! − cantarolava ele na caserna, enlameado e estafado, depois do crosse semanal... Completamente "passado dos carretos"!

Por aqui passaras tu, cerca de quatro anos antes, como “feijão-verde”.  Tu, o teu antigo capitão miliciano e outros camaradas de que já havias perdido o rastro.  Para ti,  "criminoso" contra a a tua vontade, era como voltar ao “local do crime”. Foi dos regressos ao passado mais penosos da tua vida. Ao sítio onde não foras feliz, nem nunca o poderias ter sido. 

Afinal, foi aqui que recebeste a trágica notícia da morte do teu pai.  Prematura, sem ter completado os sessenta anos. Não te autorizaram sequer a ir despedir-te dele. Morrera na véspera do teu juramento de bandeira. Mandaram-te, da agência funerária, um telegrama em cima da hora. O tenente da tua companhia de instrução chamou-te ao gabinete e disse-te, seco e perentório, em resposta ao teu pedido para ir a Mértola, ao funeral:

 − O nosso soldado-cadete pode ir, o pai é seu, mas perde o juramento de bandeira, chumba no COM, vai parar ao CSM, a Tavira, às Caldas ou a Santarém, atrasa o seu embarque para o Ultramar em mais alguns meses… Enfim, a escolha é sua!”…

Sim, o pai era teu, mas a pátria era deles... Ficaste com um pó ao tenente... Enfrentaste,  nesse fim de tarde, um terrível dilema, dividido entre o teu amor filial, o teu dever de ir prestar a última homenagem ao teu pai, e a tomada de consciência,  naquele preciso momento, de que passavas a estar, doravante, na “linha a frente” e, ao mesmo tempo, a ser o sustento da tua família, da tua mãe e da tua irmã, mais pequena. 

Por outro lado,  davas-te conta da impossível escapatória  daquele sistema concentracionário, que era a “Máfrica”, representado pela nudez e a crueza daquelas paredes que te encarceravam. Mas, se não ficaras em França, não ías agora fugir do teu país...

Confessarás, mais tarde,  que choraste lágrimas de sangue no dia seguinte, enquanto juravas bandeira, na praça frente ao palácio, com a arraia-miúda,  muda e calada,  ao largo… Não tinhas ninguém a acenar-te, e muito menos a mostrar-se solidário na tua dor. 

Trágica ironia, juravas defender a tua Pátria (se necessário, até "à última gota do teu sangue”), no preciso momento que descia à terra o corpo do homem que te dera o ser. Lá longe, em Mértola, que o tenente nem sequer sabia onde ficava, a muitas léguas dali.

Passado pouco tempo estavas em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, a meio caminho de casa, e mais perto também da tua irmã mais velha, que vivia em Almada e cujo marido, soldador,  trabalhava na Lisnave. Foste lá fazer a instrução de especialidade. Atirador de artilharia: não sabias o que era... 

Aproveitaste uma licença de alguns dias  para dar um salto à tua terra e depor um ramo de flores silvestres  na campa, rasa, do teu velhote, morto pela silicose que lhe destruira os pulmões.

Mas o Bacelar não tinha nada a ver com isto, com o teu passado recente e muito menos com os teus dramas de consciência. Ele era apenas mais um “companheiro de infortúnio”  que tu tiveras o azar de encontrar em Mafra, desta vez no mesmo emprego. Claro que tu não o conhecias de lado nenhum. E, muito provavelmente, não  irias voltar mais a vê-lo,  a partir do dia em que cada um  fosse à sua vida, uma vez colocados noutros sítios, lá onde onde o fisco muito bem entendesse.  

Por estranha coincidência (ou supersticioso  como tu eras,  seriam mesmo coisas do destino ?!), tinham chegado, tu e o Bacelar, no mesmo dia, ao fim da tarde, com uma hora de diferença. Numa tarde fria e chuvosa, anotaras  na tua agenda. Ainda a tempo, contudo, de poderem “tomar posse” (era assim que se dizia na época) do lugar do quadro do pessoal  da repartição de finanças local. Como se o lugar fosse teu, "de pedra e cal", e para o resto da vida...

Mas tu devias estar, se não feliz, pelo menos aliviado por arranjar um emprego na função pública, com as habilitações literárias que tinhas, o 7º ano do seminário que só dava equivalência para a tropa e o funcionalismo público.  Mas não!... Logo por azar teu, as finanças estavam instaladas naquele pavoroso convento, o mesmo onde funcionava, nas traseiras,  a “Máfrica”, de triste memória para ti.

Tu tinhas chegado em cima da hora. O chefe da repartição, que te pareceu, à primeira vista, boa pessoa, afável, educado, com um típico sotaque açoriano, foi quem vos apresentou um ao outro, e ao restante funcionalismo.

Mas, dado o adiantado da hora, com a repartição a fechar, fez questão de deixar a cerimónia da tomada de posse para a manhã do dia seguinte, com a promessa de, no respetivo termo, constar a data da véspera. Ele era a amabilidade e a calma em pessoa. E fez questão de dizer a ambos, no seu sotaque de ilhéu, que não  queria, em caso algum, prejudicar-vos a “antiguidade”. E carregava na penúltima sílaba com evidente deleite.

Percebeste logo que também aqui, tal como na tropa, a “antiguidade” era um posto. Bem te tinhas lixado com essa da "antiguidade", tiveste de substituir o teu  capitão, na Guiné,  depois de ele ter sido evacuado para a “metrópole”, por motivo de doença,  que, toda a gente sabia, mas não dizia em voz alta,  era do “foro mental”.  

Nunca foram chegados, tu e o teu capitão, falavam apenas das coisas estritamente indispensáveis de serviço. Ele também não era de grandes falas.  Nunca te falou do seu passado. Devia ter mulher, filhos, um emprego, aos trinta e poucos anos.  Sabias  que tomava algumas drogas para o sistema nervoso, almoçavam  juntos na messe de oficiais. Tínham uma messe só para os oficiais,  o capitão e os quatro alferes milicianos. 

Na prática, a messe era igual, para oficiais e sargentos, mas havia uma divisória, uma espécie de biombo, a separar as duas classes. O resto da maralha, comia à parte, no refeitório geral. "Nobreza, clero e povo, / Cada um para seu lado; /  Na Guiné, nada de novo, / Saia um bife bem passado "..., ironizava o "baladeiro" da companhia, no "Fado do Vagomestre".

Alguém da companhia ainda o encontrou, ao capitão,  em Bissau, no HM 241, na “psiquiatria”. Era um verdadeiro  labéu para a reputação de um militar,  uma baixa psiquiátrica. Um tipo podia ser “apanhado do clima”, que se lhe desculpava tudo (ou quase tudo). Um gajo podia apanhar uma "borracheira", daquelas de caixão à cova, que logo lhe acrescentavam mais uns pontos no currículo de macho. Um gajo podia até ser "cornudo", coitado, que isso não acontecia só aos outros. Um gajo podia ser “maluco”, mas nunca podia dar “parte de fraco”, "dar baixa", neste caso ir parar à “psiquiatria”… Muito menos sendo um comandante operacional.

Antes de saírem para o conforto dos seus lares, os novos colegas das finanças, solícitos, se não mesmo afáveis mas algo premonitoriamente distantes, deram, aos recém-chegados, indicações sobre onde  jantar e pernoitar.... Que no dia seguinte logo se arranjaria melhor sítio para se ficar por uns tempos, já que quartos para alugar não faltavam naquela terra,  "saloia, dizem, mas acolhedora e hospitaleira" (sic). 

Não gostaste logo da cara de alguns, que pareciam os verdadeiros “donos da baiuca”.



1B. Conheceste hoje o Ravasco. 
“Ravasco, que raio de nome!”,
pensaste tu quando ele te estendeu a mão,
rugosa, de cavador de enxada…
”Será nome ou alcunha ?”,
tiveste a indelicadeza de lhe perguntar.
”Apelido, de família”, respondeu-te,
secamente, com cara de poucos amigos.
Ravasco, na tua terra, dizia-se 
de um homem libertino, "putanheiro"...


Dormiste, nessa noite, tu e o Ravasco, numa pensão, rasca, a condizer, numa daquelas  ruas que atravessavam o casario frente ao canvento,  e que o teu novo colega logo reconheceu do seu tempo de soldado-cadete. E que cheirava a grelhados, a serradura e a mijo de gato.  Ele fizera aqui a tropa há quatro anos atrás, em 1968, segundo te confidenciou. E ficara, desde então,  com um asco a Mafra.

Em conversa com ele, ao jantar, descobriste que ambos tínham regressado, ainda relativamente há pouco tempo, da guerra do Ultramar. Tu de Angola, ele da Guiné. Eram da mesma colheita, 1947, embora ele fosse mais novo uns meses.  Mas cada um, afinal, com diferentes memórias, experiências e até expectativas. As recordações que tu trazias eram até boas, as dele nem por isso.

Evitaste, deliberadamente, falar em demasia desse passado recente que vos aproximava. Talvez por pudor. E também porque não conhecias o Ravasco, ou melhor, tinhas acabado de o conhecer  há umas escassas horas. E, em boa verdade, não tinhas a certeza de poder confiar nele. Tiveste até o pressentimento que muitas coisas vos podiam separar. 

Nunca foste pessoa de fazer amizades logo à primeira vista. Sempre fora uma das recomendações da tua  mãezinha que era uma mulher sábia e com um formidável sexto sentido: nunca se enganava no primeiro juízo que fazia dos estranhos. Tirava-lhes logo a "pinta", pelas primeiras frases e gestos...

Para começar, o Ravasco era, seguramente, de famílias modestas ou humildes, como se diz na tua terra. Em contrapartida, era um antigo camarada de armas, se bem que tu, na época,  ainda não valorizasses muito essa condição. Agora era teu colega de trabalho. Mas tu, ao princípio,  atrapalhavas-te, tratavas o Ravasco ora por colega ora por camarada. Com alguma cerimónia, talvez nortenha.

E apercebeste-te logo que ele não gostava de tocar na tecla da Guiné. Tu puseste-te então a imaginar que ele teria passado um tempo pior, na Guiné, do que o teu, em Angola. Talvez tivesse até apanhado uma "porrada", ou coisa parecida.

 Toda a gente sabia que a Guiné era um duro osso de roer. Mas os gajos da Guiné também gostavam de cantar o "fado da desgraçadinha", como se em Angola (e até certo ponto em Moçambique, dependendo dos sítios) a malta tivesse só andado a brincar aos índios e cobóis. 

Percebeste logo, também, ti e ele eram diferentes, se calhar irredutivelmente diferentes, oriundos de diferentes regiões do País, e até de meios sociais  distintos. Tu, do Norte, ele, do Sul.

O Ravasco era alentejano de Mértola, e tu minhoto de Ponte de Lima. Do Alentejo tu só conhecias meia dúzia de anedotas, estúpidas, dirias hoje. E nenhum dos dois  conhecia a terra um do outro. O que não admirava: naquele tempo,  há meio século atrás, ainda era fraca a mobilidade espacial dos portugueses, viajava-se pouco, dentro (e, pior ainda,  fora) do País, embora tu já tivesses carro. Mas o mais longe aonde já tinhas ido, a Sul,  era até Lisboa, quando prestaste serviço no RI 5, nas Caldas da Rainha.

O Ravasco confessava que o mais a Norte aonde já tinha ido fora a Aveiro. Fora lá, de comboio, com uns camaradas, mobilizados para a Guiné, comer um ensopado de enguias. Um deles era da Murtosa ou coisa parecida.

Estivera menos de dois meses no Campo Militar de Santa Margarida, a formar companhia. Fora mobilizado para a Guiné pelo RI 2, o Regimento de Infantaria 2, em Abrantes. E não teve pejo em dizer-te que não sabia exatamente onde ficava Ponte de Lima, “lá no mapa do Minho”. O que para ti era  imperdoável, quase um insulto, não conhecer a geografia do país...

De facto, para ti, o Minho era a “joia da coroa” deste país à beira-mar plantado, o teu país. Era no Minho que começava Portugal, o Portugal do Minho a Timor, como havias aprendido na escola. Sempre tiveste  muito orgulho do teu Minho e, claro, do teu torrão natal, Ponte de Lima, que, segundo te ensinaram os teus avoengos maternos,  era a terra, a vila,  mais antiga de Portugal.



2A.Viste logo que o Bacelar era mais viajado do que tu.
Viera de Mini, de Viana do Castelo até Mafra,
um dia inteiro a conduzir.
Tinha um Mini Morris 850,com jantes especiais.
Mas também não fazia a mínima ideia
onde ficava Mértola, a tua terra natal.
Disseste-lhe que ficava na margem direita do rio Guadiana,
e que já vinha do tempo de fenícios, romanos, visigodos e mouros.
Não mostrou curiosidade em saber mais.


Na primeira noite, em que ambos se  conheceram, por sinal  uma noite desagradável por causa do frio e da chuva, falaram sobretudo do tempo. Falar do tempo é sempre uma solução airosa quando um gajo  não  tem assunto para conversa, ou não está afim de conversar, ou não quer mostrar logo o jogo, a sua maneira de ser e de estar, a sua história de vida, os seus pontos fortes e fracos… Falaram pouco das terras e das  andanças de ambos pelo país.

Simpático, o Bacelar mandou vir duas aguardentes velhas de vinho verde, "duas amarelinhas", que fez questão de ser ele a pagar. E estiveram ali os dois a falar, afinal amenamente, evitando, todavia,  tocar  em assuntos da tropa  e da guerra. O que era difícil, disseste para ti mesmo...

Na realidade, era como se estivessem ainda em África, a resguardarem-se da picada do mosquito  e a contar as noites e os dias que lhes faltavam para a “peluda”. Em geral, tu eras mais reservado, nunca ou raramente falavas da tropa e, muito menos, da Guiné. Por outro lado, tratavam-se por você (e assim continuaram até pelo menos ao 25 de Abril de 1974). Ele também era cerimonioso, mais do que tu, e talvez mais por educação do quer por feitio. 

Todavia,  já mais para o final da conversa, ficaste  com a ideia de  que ele tinha o "bichinho de África" e que hoje ainda estaria arrependido de não ter aceite uma boa oferta de trabalho em Luanda. No Banco de Angola, gabava-se ele.  De resto, não terão faltado outras propostas de emprego, menos aliciantes,  como por exemplo a de guarda-livros numa fazenda de café, a norte de Luanda. 

Não te explicou as razões por que voltara para a santa terrinha, ele que se gabava de ter alguns “grandes africanistas” na sua ascendência, do lado materno, um dos quais, militar, da Armada,  ainda conhecera o Zé do Telhado no desterro,   em Luanda, a caminho de Malanje. 

Mas as saudades, às vezes, falam bem mais alto do que a razão. E já que puxara a conversa, disseste-lhe que fizera bem, que haveria de continuar a fazer a sua vida na sua terra, que era Portugal, e que o futuro de Angola era incerto, tal como o de toda a África Austral, último reduto dos brancos, o mesmo era dizer, do colonialismo. E não te enganaste, o velho “apartheid” branco haveria de ruir em 1994, tal como já tinha antes ruído o muro de Berlim  e tudo o que ele representava, "dividindo o mundo em duas partes como uma maçã, mas de cores diferentes por fora.

Ouviu calado as tuas divagações. Foram-se  deitar cedo, estavam ambos cansados, o Bacelar tinha vindo a conduzir desde Viana do Castelo. Tu vieras de mais perto, de Almada, onde pernoitaras na casa da tua mana mais velha. (Era casada, ainda de fresco,  com um operário da Lisnave, estavam a montar a casa, viviam com dignidade mas com muito aperto, como as famílias operárias da época.) Vieste de cacilheiro para Lisboa para depois apanhar, na Rua da Palma, uma camioneta da Mafrense.

Tínhas guia de marcha para te apresentar até às cinco horas da tarde desse dia, para a “tomada de posse”. E o Bacelar também. Reparaste no olho azul dele. Soubeste, mais tarde,  que era oriundo de uma família de senhorios, donos de terras de um antigo morgadio com direito a brasão. 

Sempre invejaste, diga-se de passagem, quem tinha algo de seu, casas, montes,  terras. O teu pai construíra uma casinha de paredes de tabique no couto mineiro. Nada a que ele pudesse chamar seu. Os gajos do Sul, como tu, não tínham raízes telúricas e muito menos “pedigree”, brasão, árvore genealógica, antepassados, memórias,  referências, valores, ... E quem não tinha raízes na terra nem árvore genealógica para mostrar aos outros, era mais propenso às depressões, ouviste essa teoria da anomia ao alferes miliciano médico do teu batalhão, que deve ter seguido psiquiatria, era mais “apanhado do clima” do que os operacionais.

O primeiro emprego que o Bacelar arranjara, depois do regresso de Angola, fora numa repartição de finanças do distrito de Viana do Castelo. Um tio (ou tio-avô, materno) tinha (ou tivera) um cargo importante na Direção Distrital de Finanças do Porto. Teria sido, ao que parece, condiscípulo de diretor-geral das contribuições e impostos, o dr. Vitor Duarte Faveiro, natural de Ansião. Por isso, no gozo, tu chamavas-lhe  “filho de Ansião”… E o apodo ficou, quando os outros sacanas dos colegas mafrenses descobriram… “Dor de corno!”, pensaste tu. Quem tinha “cunhas” para entrar na DGCI, nas contribuições e impostos, era logo apodado de “filho de Ansião”, a terra do director-geral que toda a gente reverenciava e temia, sendo tido como uma referência  enquanto fiscalista. 

Tu não lhe disseste, por vergonha,  que também tiveras uma cunha, essa eclesiástica. De um cónego do cabido da sé-catedral de Beja. Teu antigo professor. De qualquer modo, tanto tu como o Bacelar, haviam feito, com sucesso, um concurso de provas públicas, como era norma no Estado Novo.  Eram já “concursados”… Consolava-te a ideia de teres entrado, por mérito, para a função pública,  não tendo roubado o lugar a ninguém.  

O Bacelar tinha a secreta esperança de ainda poder ser chamado para o Banco Nacional Ultramarino ou para o Banco de Portugal, se bem percebeste. Ou de vir a ficar mais perto de casa, no caso de  continuar nas finanças.

Se ele tinha defeitos que saltassem logo à vista, era essa de se gabar do seu “capital de relações sociais”, como se diz hoje…. A matriz  da sociedade portuguesa era ainda na época muito clientelar, nada se conseguia (empregos, negócios, casamentos, tropa, etc., ou um simples internamento no Hospital de Santa Maria ou de São João…) sem “conhecimentos”, o mesmo era dizer, sem “cunhas”. 

Mas não precisava de ser “cunha” de gente muito importante, às vezes até parecia que quem mandava mais neste país era a criada,o contínuo,  o motorista, a amante, a secretária, o sargento, o sacristão, o caseiro, o feitor, o maioral, enfim o chefe do pessoal menor… Nas zonas rurais, o feitor era um tipo poderoso, tal como o sargento na tropa… Tu vias por Mértola e Beja, onde os latifundiários, a viver na capital, raramente lá punham os pés, a não ser na época  das colheitas e da caça.

Ambos arranjaram, entretanto,  um quarto, amplo, com duas camas, numa casa sita no centro da vila de Mafra. Vivia-se, naquele tempo, do aluguer de quartos a professores primários, funcionários públicos e militares da Escola Prática de Infantaria, incluindo soldados-cadetes que tinham algum poder de compra. Era simpática, a velhota, a dona da casa, viúva de um sargento.

Os quartos já não eram baratos na época e tu, tanto como o Bacelar, se haviam convencido, estupidamente, que estavam ali de passagem. Mais ele do que tu. A  ideia de ambos era, logo depois da tomada de posse do lugar do quadro, pedir  de imediato transferência. Tu, para Beja ou para Almada (estavas indeciso), o Bacelar para Braga ou Viana do Castelo. Acabariam por ficar em Mafra mais de 21 meses naquela "vida de ciganos".

Detestava a "Máfrica", como tu chamavas  àquela terra, tomando a parte pelo todo. Estavas farto da tropa. E se calhar as pessoas  de Mafra também estavam, tirando as viúvas de militares, simpáticas mas empobrecidas, que viviam do aluguer de quartos aos desgraçados que lá iam parar. 

 O teu tenente-coronel, comandante do teu batalhão,  na Guiné, ainda te fez a cabeça para meteres o "chico". Deu-te inclusive um louvor, imagina! 

−  E se tu tivesses metido o "chico" ? − perguntavas-te hoje a ti mesmo. 

Bom, não te livrarias de voltar à Guiné, agora como capitão. Secretamente, a ideia não te desagradava de todo, terias  hoje um melhor pé de meia ou conta bancária. Mas também lá podias ter deixado a meia, o pé ou até a vida. 

Os galões dourados de capitão não te deixavam indiferente, a ti que, não passando de um simples alferes miliciano,  experimentaras, por breves meses, a secreta  volúpia do poder, que tinha como contrapartida o angustiante desafio de comandar 150 homens num teatro de guerra, e o risco de perder alguns. Tu que antes nunca estiveras à frente de nada, nunca foras ninguém, nem sequer chefe de turma ou capitão de equipa de futebol!...

Tínham apenas um reposteiro a separar as duas camas, como nos quartos de hospital. A tua  cama tinha um colchão de palha (!) onde te afundavas com os teus 90 quilos. (Engordaste, estupidamente, depois que passaras à "peluda"!.)



2B. Para o teu gosto, feitio e educação,
o Ravasco tinha um tipo de humor um pouco brusco e mordaz.
Não sabias se era um humor tipicamente alentejano.
Afinal ele era o primeiro alentejano com quem tu ias trabalhar.
E não te lembrava de ter lidado na tropa
com alentejanos ou algarvios.
A malta do Norte, já na altura os tratava por “mouros”.
Por sorte, a tua companhia em Angola
só tinha angolanos, minhotos e durienses.
E deram-se todos bem.


Não te importaste de partilhar um quarto, com o Ravasco, afinal ainda estavam habituados, tanto um como o outro,  ao ambiente de caserna, aos seus maus cheiros, à sua bagunça, ao seu ar opressivo, à sua promiscuidade... O teu quartel no leste de Angola também era uma espelunca, dormiam com cobras e ratos....Sempre poupavam algum dinheiro e, dentro em breve,  estariam de volta a casa. Ou, pelo menos, era essa a tua  secreta esperança. 

Viste que o Ravasco era poupado, se não mesmo forreta. Usava roupa fora de moda. O seu único luxo eram os jornais e um ou outro livro. Percebeste que andava a preparar-se para fazer o exame do 7º ano do  liceu. O 7º ano do seminário não lhe valia de nada. Queria seguir letras, e tirar o curso de direito. Tinha uma obsessão pelo direito. Se calhar, era-lhe mais fácil por causa do latinório. Queria aproximar-se de Lisboa para poder entrar na universidade.

Acabaram também por tornar-se, se não íntimos, pelo menos mais próximos, por força das circunstâncias, como os prisioneiros que estão na mesma cela e estão condenados a, minimamente, entenderem-se. Ficaste a saber que ele tinha deixado noiva em Beja. Ora tu, nesse aspecto, estavas mais à vontade, eras "livre como um passarinho".

Foste conhecendo-o, a pouco e pouco. Foram-se conhecendo. Deste conta de que, debaixo da sua aparente bonomia, e do seu verbo fácil, fluente, alegre e até folgazão, havia um homem reservado, subtilmente amargo e revoltado com a vida e com a sorte que lhe coubera a ele e à sua família e à gente da sua terra. Não esquecia a injustiça da doença e da morte do pai. E tivera uma infância difícil.

− Criado a migas, a toucinho de porco e a ervas do campo que agora vão à mesa do rico  rosnava ele, mal humorado.

Tanto quanto pudeste apurar das  conversas com ele em Mafra, onde ambos estavam “desterrados” (a expressão era dele),  o Ravasco era neto de ganhões, e filho de mineiro. Tirara o 7º ano do seminário, graças a uma bolsa de estudo da diocese de Beja. Por detrás dessa obra benemérita haveria uma senhora devota, de uma família de grandes proprietários agrícolas, muito conceituados na região. Foi o que ele te deu a entender, sem entrar em pormenores. Era uma bolsa para estudantes pobres, oriundos do Baixo Alentejo. 

Quiseram-no encaminhar para o sacerdócio, mas ele terá percebido, quando acabou filosofia, o 7º ano, que “não tinha vocação”. Ou talvez pior, para um cristão: terá perdido a fé ao lidar (mal) com as injustiças de que o pai fora  vítima, ainda em vida, nunca lhe tendo ocorrido que Deus poderia estar a  pô-lo à prova. Como te pôs á prova a ti, quando deixaste pai e mãe e foste para Angola, não para o “bem-bom de Luanda”, mas para a guerra no Norte e depois no Leste.

No verão, quando ainda andava a estudar, o Ravasco ia sempre para França, para a região de Bordéus, fazer a campanha  das vindimas e ganhar uns francos. Entretanto dera  o nome para a tropa, mas beneficiava de uma licença militar para se poder ausentar temporariamente do país. Nunca lhe passara pela cabeça não voltar a casa e ficar em França, tornando-se refratário.  Sempre se considerou um homem de palavra. E patriota. 

E aí a tua consideração por ele aumentou, apesar de tu o continuares a chamar de “mouro”. Não levava a mal. Tal como tu, também não, quando no gozo te chamava “morgadinho” e, depois do 25 de Abril, "pequeno-burguês". 

Ainda chegou a ser “aliciado” por um comité luso-francês, católico, contra a “guerra colonial” que dava apoio a desertores e refratários portugueses na região de Bordéus. Mas ele nessa altura não queria saber nada de “política”. E era agarrado à família. E, em boa verdade, temia represálias contra o pai, já doente, se ele  não regressasse de França. (Sabendo o que se sabe hoje, não houve represálias contra as famílias de exilados, desertores e refratários; a PIDE podia ter um braço comprido, mas não chegava felizmente a todo o lado.)

Segundo ele te contará, mais tarde, o pai tinha sido mineiro nas minas de São Domingos, entretanto definitivamente encerradas  em meados dos anos 60. Vem a morrer quando ele estava aqui, em Mafra, a fazer o COM. De silicose, ao que parece, uma doença  de evolução prolongada, então muito comum entre os mineiros. Mas só tardiamente fora diagnosticada e reconhecida, ao pai, essa doença profissional, com direito a reparação médico-legal, segundo ele te explicou.  De pouco lhe terá valido a “miserável pensão de invalidez” que lhe fora atribuída, a expressão era do Ravasco.

Tu ainda comentaste que no Norte era bem pior, os pequenos lavradores, rendeiros ou não,  ao fim de um vida dura de trabalho, morriam de miséria num catre, numa cabana de madeira,  só com a ajuda da família, quando a tinham.  E chamavam o médico só na hora da morte. 

Ele endureceu a expressão do rosto e respondei-te com veemência: 

− É porque você não sabe o que é um ganhão nem nunca engoliu o pó de uma mina!… 

E tu aí tiveste que reconhecer que ele tinha razão, tu sabias lá o que era um ganhão e muito menos uma mina ou um mineiro e essa coisa da silicose que destruía os pulmões lentamente.  Nalgumas coisas tu tinhas sido um privilegiado da sorte, embora nunca tendo sido rico, como fizeste questão de lhe frisar. 

O Ravasco tinha ajudado a família com o vencimento de alferes miliciano de artilharia, enquanto estivera na Guiné. Era frugal, não se metia em tainadas. Bebia  de vez em quando o seu uísque. Não fumava. Nem sequer veio de férias para poupar o dinheiro da passagem. Saberás mais tarde, quando ganharem mais confiança, que terá optado por ir uma semana a Bubaque, nos Bijagós.  Tencionava arranjar um pé de meia para se poder casar. Mostrara-te, ao fim de uns meses,  uma fotografia da rapariga que lá deixara em Beja. Não fixaste o nome. Só reparaste que não era lá muito bonita: era trigueira, de olhos de cor de azeitona, não fazendo o teu género. 

Sentiste, isso sim, que a morte prematura do pai, antes dos sessenta  anos, deixara-o muito abalado e revoltado. Adivinhaste  logo que ele era do “contra”, como diria o senhor teu pai. Não gostava de Salazar nem de Caetano. E referia-se à guerra do Ultramar como “guerra colonial”, expressão que era então proibida nos jornais. E que tu também não usavas. E, pior,  também não frequentava a igreja. Fazia-te confusão, sendo ele um antigo seminarista. Enfim, um "herege".

Depois de vir da guerra, começou a interessar-se pela política. Lia o “Diário de Lisboa”, além do “Comércio do Funchal”, de que tu nunca tinhas ouvido falar antes. Era um jornal cor de rosa. Chegaste  a dar uma vista de olhos, mas não te despertou a curiosidade.

Em suma, as afinidades entre os dois eram puramente acidentais ou circunstanciais. Foram parar àquela terra que, tal como a conhecemos hoje,  não existiria se o Dom João V, para ti de boa memória,  não mandasse ali construir aquele monumental palácio e convento, um dos mais grandiosos da Europa,  que o Ravasco teimava em qualificar de “monstruoso”. 

A repartição de finanças estava lá instalada, tal como a EPI, e outras repartições públicas como as comservatórias, já não te lembras ao certo, até por que convivias com pouca gente da terra (e, sempre que podias,  davas uma escapadela pelos arredores, sobretudo ao fim de semana).  

No inverno rapava-se frio de rachar. Tu, que vinhas do Norte, onde também fazia frio a sério, lembras-te de ter de usar ceroulas no inverno e grossas camisolas de lã em Mafra. Tu e o Ravasco davam-se mal com aquela humidade marítima que chegava do Atlântico e se entranhava nos ossos. Não havia aquecimento central, nem uns simples aquecedores a gás.  

Mas Mafra tinha belas praias, com destaque para a Ericeira. Começaste a gostar da Ericeira, e da Foz do Lisandro, e sobretudo das miúdas estrangeiras que começavam a parar por lá.



3A. Bom, lá foste tomar posse no dia seguinte, logo de manhã.
No gabinete do chefe, que mandou chamar o resto do pessoal
para assistir à cerimónia.
Ficou só um funcionário, ao balcão.
Para o caso de chegar algum contribuinte por causa da “décima”
ou do "cadastro"...
Mas nessa manhã estava tudo muito calmo.

O termo de posse já estava pré-preenchido, com os dados de cada um,   era só precisa a  assinatura dos empossados, no final,  depois de lido o famigerado juramento de lealdade ao Estado Novo.

Repetiste mecanicamente a fórmula, como quem rezava o Padre Nosso, no último ano do seminário, depois de teres perdido a fé e a vocação. Olhaste, com um misto de temor e de desdém, para os retratos,  pendurados na parede, dos três mais altos magistrados da Nação (os vivos, Américo Tomaz e Marcelo Caetano; e o morto, Salazar, o “pai da Pátria”, ou o “refundador da Nação”, que ainda ninguém tivera a coragem de mandar retirar) e disseste, firme e em voz bem alta:

 Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela constituição de 1933, com ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas....

O juramento dos funcionários públicos fora  aprovado pelo decreto-lei nº 27 033, de 14 de Setembro de 1936, mas tu nunca chegaras a ler esse diploma, tal como nunca leras a Constituição de 1933.

E, de repente, lembraste-te do teu juramento de bandeira na “Máfrica”  e indignaste-te por, na altura, nem sequer teres questionado as palavras que, mesmo em voz baixa, atabalhoadamente e a medo, proferiste na parada… 

Regressado de uma guerra, repugnava-te ter aceite, no passado,  o dever absurdo de jurar “obedecer cegamente aos teus chefes”. Afinal, eles poderiam ser todos cegos, conduzindo todo um povo, também de cegos,  à beira de um precipício… 

Tiveras um pesadelo nessa noite. Voltarias a tê-lo quatro anos depois...



3B. Ganhava-se mal na função pública,
mas era um emprego certo,
com cheque da Caixa Greal de Depósitos ao fim do mês 
e algumas pequenas regalias.
Nas finanças, havia os “emolumentos”,
que representavam mais uns tostões ao fim do mês.
Tu terias preferido entrar para a banca,
nessa altura tinha mais prestígio.
Os bancos, privados, pagavam melhor 
e tinham melhores instalações.
E havia já uma ou outra rapariga ao balcão…

 

Naquele tempo, com a economia a crescer a dois dígitos (como se diz hoje),a sangria da guerra e da emigração,  e a máquina do Estado a expandir-se e modernizar-se,  não era difícil entrar para função pública, a banca, os seguros, as caixas de previdência, os escritórios,  as fábricas… 

Não, não era o teu sonho seguir as peugadas do teu pai, um obscuro funcionário corporativo num Grémio da Lavoura minhoto. Bem, nunca o disseste em público, mas,  infelizmente, o teu pai era um fraco exemplo de ambição e liderança. De resto, lá em casa vigorava o matriarcado, a tua mãe era mestre-escola, tinha o curso do Magistério Primário, a primeira mulher da família  a ir estudar. E sobretudo era minhota. Em pequenino contava-te a lenda da Deu-la-deu Martins. Os homens da casa e a criada chamavam-na a “generala”, com o devido respeito… E integrava a comissão local do Movimento Nacional Feminino. Sem favor, achavas que fazia um bom papel, ajudando muitas famílias pobres da região, com filhos no Ultramar.

Quando tu saiste da tropa, apetecia-te era “correr mundo”, como alguns dos teus amigos do colégio dos jesuítas. E que, mais finos e expeditos do que tu, se safaram melhor, alguns, da tropa ou até do ultramar: um ficara em Luanda, outro  no Hospital da Estrela em Lisboa, e um terceiro fora parar à Bélgica...

Sempre fizeste questão de esclarecer que não meteste nenhuma cunha para te livrar da guerra do Ultramar. O teu pai, que era da União Nacional ( tinha que ser, era funcionário corporativo), ainda esteve tentado a “mexer os seus pauzinhos”, como ele te confessou.  Mas a tua mãe fuzilou-o com um olhar de reprovação. Era (ainda é) uma mulher de grande verticalidade. Uma senhora de grandes princípios, com um educação esmerada. E, ela, sim, de origem fidalga. O teu pai era um plebeu, um pobretanas, um manga de alpaca que nunca passaria da cepa torta. Claro que o Ravasco não acreditaria nesta história, se tu  caísses na patetice de lha contar.

Enfim, foste colocado, sem honra nem glória,  na repartição de finanças de Mafra, num lugar do quadro de pessoal, como aspirante de finanças. Entravas numa carreira técnica. Passavas a ser liquidador de impostos, como na Roma Antiga, como fantasiava o teu pai. 

No passado, era um lugar de prestígio, de nomeação régia. Na época ainda não havia computadores, liquidava-se os impostos à mão, de lápis na orelha. Quando muito havia já umas pesadas maquinetas, electromecânicas, que funcionavam como “calculadoras”. O mais importante era saber fazer contas de cabeça. Nisso tu eras bom, melhor que o teu irmão que foi para o magistério primário, seguindo o exemplo da mãe (enquanto o teu pai queria que ele fosse para regente agrícola).

Já não te lembras das categorias, nem das letras de vencimento, mas estavas cá para o fundo da tabela salarial: começava-se como aspirante de finanças estagiário, depois aspirante concursado, depois aspirante do 2º grau e depois do 1º…

O Ravasco gozava contigo e perguntava-te com que idade é que tu te  imaginarias chegar,  se não a diretor de finanças como o meu tio-avô, pelo menos a adjunto… Mas do que  tu mais gostavas era do teu cartão da DGCI, com uma barra na diagonal, a verde e a vermelho, as cores da República, que te davam acesso a quase tudo, com destaque para as casas de… “diversão noturna”. 

Passaste a ser um gajo respeitado pelos “gorilas” que estavam à porta das “boîtes”, como então se dizia, “à francesa”...Quantas vezes não entraste no “Ouriço”, na Ericeira, que, ao que te dizem, ainda hoje existe… (Nunca mais lá voltaste à Ericeira, depois de teres sido transferido para Braga e, mais tarde, reformado.)


4A. Vê-se que o Bacelar não nascera para isto,
“manga de alpaca”, como ele dizia, com desdém, do pai.
Tu chamavas-lhe o “morgadinho”, com ironia.
Tinha a mania que era de “sangue azul”.
Mas a verdade é que ele tinha de fazer pela vida, tal como tu.
Via-se que tinha “bons princípios”,
tendo nascido, se não em berço de ouro,
pelo menos em cama com lençóis de linho.
Pois fora coisa que tu nunca tiveras.
E a tua mãe, coitada, era analfabeta.
E o teu pai, mineiro. E o teu avô, ganhão.
E acima de avô já não conheceste mais ninguém.


Procuraste consolá-lo, foram petiscar, “jaquinzinhos fritos” com arroz de tomate, ainda te recordas, numa tasca saloia, de um fulano da Malveira,  que ainda lá existia, quatro anos depois. Já estava mais “modernaça”, para o teu gosto, com mesas envernizadas, tampos de vidro e paredes espelhadas… (Passaria, mais tarde, a ser uma espécie de tertúlia, da malta do 'reviralho' da terra, que foste conhecendo, pelos jornais que liam, frequentada também por alguns cadetes.)

Depois procuraste mentalizar o teu colega de “desterro”  (mas, no fundo estavas a tentar arranjar algum consolo para o teu próprio infortúnio): um gajo, na vida,  tem de começar por qualquer coisa, “estagiário” ou “aspirante” a qualquer merda. A menos que se tenha um pai rico… 

Começavam ambos como “aspirantes estagiários”, muito bem… E um dia, se o convento não desabasse, haveriam de subir mais um ou dois degraus… Pensavas nisso quase todos os dias quando subias aquela maldita escadaria, de manhã, para chegar à repartição. Foi o que o “chefe” disse a ambos, incentivando-os a estudar, como ele tinha feito… 

 É uma carreira bonita mas dura… 

E, aí, de repente, tiveste a intuição de que ele, o teu "chefe",  só poderia ter sido padre, há uns vinte e tal anos atrás… Os padres são marrões, conhecia-os de ginjeira.

Salazar, também ele seminarista (chegara quase a padre), esse, já tinha morrido, uns tempos antes, mas o seu regime sobrevivera, aparentemente incólume, reproduzindo-se o “mandarinato chinês”, como tu dizias depreciativamente. Era o que se estava  a viver, na época, a “mudança na continuidade”, com o Marcelo. O regime estava a chegar ao fim, mas tu não conseguias predizer quando nem como…  E os “mandarins” começavam a andar nervosos. Não sabias nada do que se passava por detrás dos muros da “Máfrica”, naquela época, em finais de 1973, longe de imaginar que, mesmo com RDM em vigor e a PIDE a vigiar, pudesse haver  conspirações, traições, concluios, alianças, vinganças, etc.

Tudo isto para dizer que foste completamente apanhado de surpresa pelo 25 de Abril de 1974. Nessa manhã tu estavas na repartição, quando alguém, de confiança, da tua tertúlia (a dos "jaquinzinhos"), te veio dar a notícia, alvoraçado, ao balcão.  Mas ainda a medo, segredando-a ao teu ouvido. 

Tu próprio pensaste logo que era um golpe da extrema-direita, orquestrado pelo Américo Tomás e o Kaulza de Arriaga. Mas de tarde já andava tudo nervoso, lá na repartição, a começar pelo "açoriano", que se trancou no gabinete.

Pessoalmente não tinhas grandes ideias para o teu futuro pessoal. Querias poder equacioná-lo numa perspetiva de futuro… coletivo. Precisavas de sentir que o teu país tinha futuro. Era uma dos chavões da época... Querias continuar a estudar, mas não tinhas grande cabeça para o fazer. Faltava-te a disciplina mental. Ainda estavas a fazer o “luto”: não já da morte do teu pai, mas da tua participação na guerra… Estranhamente, só depois de teres regressado, é que começaste a sentir “asco” por ter feito aquela guerra…

Não é que tu fosses muito “informado” quando partiste para a Guiné… E, confessas até, não tinhas “consciência política” na altura… Nem grande nem pequena… Não tens hoje vergonha de o dizer, depois de passar à “peluda”… 

Quando foste mobilizado, não questionaste sequer a "legitimidade da guerra"… Aceitaste a “canga” que te puseram em cima, como o burro que puxava a nora, lá no quintal de um dos vizinhos dos teus avós de São João dos Caldeireiros, em Mértola… 

Mas depois viste coisas, na tropa e na guerra, de que não gostaste. E isso terá enviesado a maneira de ver o que se passava em Portugal, a partir de 1972. De resto, tinhas tido uma educação, no mínimo, “religiosa e conservadora”, propícia à aceitação resignada da "ordem estabelecida", como então se dizia… O Vaticano II, o Concílio,  levara tempo a chegar a Portugal, mas começava a “fazer estragos”, e um deles foi o progressivo despovoamento dos seminários...

 

4B. Uns meses antes do 25 de Abril, 
tiveste um impulso, foste, num domingo, à missa.
Gostaste de conhecer o padre lá da paróquia.
Pela idade, devia ser o coadjutor, 
mas irradiava simpatia e inspirava confiança. 
E rodeiava-se de gente nova. 
Parecia ser um padre “arejado de ideias”, 
como então se diz. 
Ficaste com vontade  de o apresentar ao "herege" do Ravasco.


Suspeitavas que  era um daqueles padres “progressistas”, que nem sempre sabiam distinguir as coisas de Deus e os negócios dos homens. A linha de fronteira era ténue. E tu próprio às vezes ficavas confuso sobre o teor dos sermões que ouvias nas homilias. 

Era um tipo que se aproximava das preocupações dos mais novos e, sem abordar diretamente as questões mais quentes da sexualidade, por exemplo, retirava a carga de pecado que os padres mais tradicionalistas associavam aos  “pensamentos, palavras e obras" dos cristãos... Falava também de liberdade e justiça, citando amiúde o João XXIII...

Antes de ir, no Natal de 1973,  a casa, pediste-lhe, ao padre, para te ouvir em confissão. Há quase um ano que não te confessavas nem comungavas. Não saberias o que haverias dizer à tua mãezinha se ela, na Missa do Galo, visse que tu  já não comungavas… 

Bem, tu  achavas que já não eras mais o mesmo, também não vieste o mesmo de Angola onde a descristianização era já muito maior do que aqui. As pessoas estavam instaladas, viviam bem, os brancos, e tinham-se tornado cínicas… E sobretudo demasiado confiantes em relação ao futuro… Arrogantes, dirias mesmo… Pertenciam a outro mundo, em acelerado desenvolvimento, e no fundo sentiam alguma sobranceiria  em relação à tropa e   às demais  gentes  do "Puto"... que nem todos conheciam.   Uma parte já tinha nascido em Angola. Portugal era um  país que já lhes era estranho, e não tinha as riquezas fabulosas (o petróleo, os diamantes) que iriam tornar aquela terra num eldorado, num novo Brasil do séc. XVIII.

Em Luanda não havia guerra nem se falava da guerra, se não fora a presença de tropa fardada e o movimento de viaturas e aviões militares… Mas tu tinhas saudades, de Luanda, onde ainda passaste os últimos meses da tua comissão... Da ilha e da baía de Luanda, do Mussulo, da vida noturna… Ah, aquelas noites tropicais, com os pés dentro de água, e, na mão, um gin tónico com uma rodela de lima… 


5A. Achavas um ridículo e atroz o Bacelar usar,
no anelar esquerdo, um cachucho com brazão!...
Não escondia as suas simpatias monárquicas
e era católico de ir à missa.
Fazia questão de te dizer que não se interessava
pela “política politiqueira”.
Onde é que tu já ouviras isso ?
Nas “conversas em família”…
do senhor professor doutor Marcello (com dois eles) Caetano

Gostava de gabar-se de que ainda tinha algumas boas relações, que vinham do tempo em que um dos antepassados, do lado do ramo materno, fora juiz-conselheiro e par do reino no tempo do senhor Dom Carlos. Não quiseste humilhá-lo perguntando-lhe o que era isso de ser “par do Reino”… e lembrando-lhe que em 1910, há mais de 70 anos, tinha caído a monarquia em Portugal… 

Para desgosto da mãe, que devia ser  uma pessoa intelectual e moralmente exigente, ele nunca fora bom aluno, tirara o quinto ano dos liceus, se calhar à rasquinha, pelo que tu deduziste.  O que não era normal nos filhos dos professores primários, formatados para serem os primeiros da turma. Mas tinha jeito para línguas, mais do que tu, que eras um cepo. Vá lá, tu safavas-te no latinório, que era uma língua morta, e desenrascava-te no francês de praia…

O Bacelar era o que se podia dizer um sedutor nato, tinha sorte, garantia ele, junto do “sexo fraco”. Mas também fazia facilmente amigos de ocasião. Tinha olho azul e inha uma bela cabeleira, alourada. Enfim, era bem “apessoado” e caprichava no vestir.  Mas tu não lhe davas grande trela, não tinhas pachorra para lhe ouvir as aventuras amorosas desde o tempo do colégio dos jesuítas… Secretamente, invejavas-lhe a sorte de ter tido, nessas matérias,  melhores professores do que os teus…

Ao Bacelar não era  totalmente estranha a “região saloia” (como ele abusivamente dizia, confundindo-a com a Estremadura), já que tinha passado dois ou três meses, mais a norte, nas Caldas da Rainha como 1º cabo miliciano, monitor no Curso de Sargentos Milicianos, antes de ser mobilizado para Angola. 

Explicaste-lhe que a “região saloia” ia das muralhas de Lisboa até Mafra… O Dom Afonso Henriques poupara os mouros, não os passando pelo fio de espada, como era norma, bárbara,  em tempos de cruzadas,  mas mandara-os cultivar alfaces fora das muralhas. Enfim, esta era a historieta que te contaram um dos teus instrutores, na “Máfrica", se calhar ele próprio ainda com sangue mouro  nas veias...

Quis o destino que fossem os dois parar àquele antro de públicas virtudes e vícios privados, desde o tempo do senhor Dom João V… O "cubículo" da repartição de finanças era, só por si, um casarão, com um pé direito muito alto. Mas falava-se baixo. O chefe impunha o seu tom de voz, mavioso, de ilhéu terceirense. Era da terra do Vitorino Nemésio, Praia da Vitória. Raramente aparecia em público. Passava a maior parte do dia, no seu gabinete, com um enorme  estante, de madeira exótica,  pau-preto, forrada de códigos e diários do governo encadernados, a preparar-se para o “próximo concurso” que nunca mais chegava...

Ah!, também não gostavas de ver o Bacelar a puxar do  “cartão da PIDE”, como tu lhe chamavas com sarcasmo,  quando  ambos  iam ao “Ouriço” ou até ao bar do hotel da Ericeira!... Ele tinha cá uma lata!... Tu, pelo contrário, recusavas-te a fazer uso do cartão da DGCI.  Fizeste gala de dizer que nunca puxaste por ele para te impores a alguém ou entrar num estabelecimento da vida nortuna, que de resto só frequentavas para fazer companhia ao Bacelar.

 

5B. Na divisão de serviço, o Ravasco teve mais sorte do que tu:
atribuíram-lhe o imposto de compensação e transações….
Fazia o mapa das empresas rodoviárias,
de transportes de passageiros e mercadorias,
a Mafrense, a Isidoro Duarte e outras…

 

A ti, pelo contrário, deram-te o trabalho de um reles escriturário: expediente, correio, diário do Governo, atendimento ao público, e pouco mais… Foi o sacana do adjunto que distribuiu o serviço, em nome do chefe “que nunca podia ser incomodado, a não ser por força maior”…

Desde o início que o gajo não simpatizara contigo, o adjunto, por alegadamente seres “filho de Ansião”. O homem devia ter tido algum conflito com o diretor-geral, no passado. E quem pagava, por tabela, eram os “afilhados”… 

Inconsolável, foste pôr o caso ao chefe da repartição e puxaste pelos teus pergaminhos, falando-lhe do teu tio-avô, diretor de finanças…. Enfim, para não se chatear com o seu adjunto, alargou a tua área de competência com a  do cadastro e a contribuição predial que era “muito trabalhosa”, e retirou-te o correio e o expediente, que era coisa de reles escriturário…

Em jeito de protesto, tu no dia seguinte pediste logo transferência para Viana do Castelo ou Braga, conforme as vagas…

O “serviço melhor” já tinha dono, três ou quatro funcionários do “grupinho do adjunto” controlavam as “principais áreas de poder”: contencioso, fiscalização externa, imposto sucessório, imposto profissional, imposto complementar, contribuição industrial… Eram todos da terra, quer dizer “saloios”, com exceção de um de fora, mas já com raízes familiares em Mafra.

Acabaste por descobrir, por portas e travessas, que este era também o “grupinho das meninas”: uma vez por mês iam a Lisboa, a uma casa de passe clandestina, controlada por uma “madama” com muito boas relações com a hierarquia da DGCI,  ali no Terreiro do Paço (e se calhar com outra gente do poder)… Era à sexta-feira da última semana de cada mês… Percebia-se pelos sorrisos,piadas e  conversinhas, entre eles, na segunda-feira de manhã, seguinte, que a noitada de sexta tinha sido em grande, acabando numa conhecida marisqueira das Portas de Santo Antão… 

Contaste tudo isto ao Ravasco, que ficou indignado e mostrou-se solidário contigo. Afinal, quem pagava tudo isso ?, interpelava-te ele.  

A tua consideração pelo teu colega alentejano aumentou mais um ponto ou dois. Mas não alterou nada da tua situação ali dentro. Sentis-te deslocado, infeliz, com saudades da tua gente e da tua terra.



6A. Não podias jurar que havia ali corrupção.
Corrupção ?!... Não se falava disso na época.
Discutia-se o regime como um todo.
E esperava-se, à boa maneira sebastiânica,
que acabasse por cair um dia. De podre.

 

Tu tinhas chegado há pouco e tencionavas não demorar muito por lá, pela repartição de finanças de Mafra. Mas não punhas as mãos no fogo pelo adjunto e o seu “grupinho das meninas”, como lhe chamava o Bacelar. Quiseram ser simpáticos com os dois e, no feriado do 1º de Dezembro, que calhava a um sábado, convidaram ambos para beber um copo, a seguir ao jantar e ver um "filme pornográfico sueco" (na realidade, dinamarquês), em 8 mm, na quinta de uns amigalhaços, ali para os lados do Gradil.

O Bacelar levou o carro dele, tu foste num outro, não querias ser votado ao ostracismo logo nos primeiros dias. Percebia-se que cultivavam boas relações com alguns dos maiores contribuintes, empresários e proprietários ruaus, ricaços da terra. Era costume, por exemplo, um deles, muito conhecido, ligado à indústria de alimentação e bebidas, oferecer, pelo Natal, uma lauta ceia aos funcionários da repartição de finanças. Era uma tradição já arreigada, não só nas contribuições e impostos,  como no restante funcionalismo da província, incluindo os tribunais. Noutras ocasiões  ia-se a uma marisqueira de Ribamar da Ericeira.

Nesse final de ano de 1972, tu e o Bacelar também foram convidados. Parecia mal não alinhar, logo no “primeiro ano”. Sabias que os "novatos" estavam “à prova”, debaixo de escrutínio… O chefe, esse,  delegou no adjunto. Parecia-te um homem decente, mas fraco em termos de autoridade… Chamavam-lhe, nas costas e no gozo,  o “achou...riano”…

Nessa “ceia de Natal do fisco”, entre “charutos cubanos” e “conhaques franceses”, ouviste a história do fundador da empresa que, no tempo da guerra de Espanha, aprendera a fazer contrabando de “essência de laranja”, e acabara por abrir uma fabriqueta de “pirolitos”…O segredo do negócio ? A água, o acesso a água, “muita e de boa qualidade”… Percebeste depois que, com a “guerra de África”, as exportações haviam aumentado em flecha…Era um dos fornecedores da Intendência Militar. Lembras-te de ter visto a marca, na Guiné, por todo o lado… Mas tu não bebias refrigerantes, com carradas de acúcar, que só faziam aumentar a sede…

A tua santa ingenuidade, a tua crença, parva, na honestidade e bondade intrínsecas do ser humano, sofreu mais um duro golpe. Tu tinhas idade para ficar de pé atrás contra certa gente. Afinal, aquilo da "respublica", da administração pública tinha pouco. O tal adjunto era apenas a ponta do iceberg. Entristecias-te ter colegas daqueles a trabalhar a teu lado. Infelizmente tinhas que lhes sorrir e apertar a mão direita enquanto, com a mão esquerda, eles enfiavam no bolso o “santo antoninho”, a nota de vinte paus, que o pobre do contribuinte saloio lhes deixava debaixo da capa do “processo"... O  "processo”, o terror de qualquer pequeno contribuinte !!!...

Mas, adiante. O acontecimento mais marcante que viveste em Mafra ,   no tempo em que lá estiveste, enquanto trabalhador dos impostos, foi o 25 de Abril de 1974. Não por nenhum acontecimento local, digno de especial nota: não viste movimentação de tropas, alvoroço de tropas,  viaturas,  chaimites, tiros para o ar, nada disso… 

Tudo se decidiu alguns quilómetros mais a sul, a 40 km, na capital. Mas antes tens de recordar aqui uma cena, das tuas memórias de Mafra desse tempo,  que nunca mais esquecerás, enquanto pelo menos não apanhares o Alzheimer.

(Continua)


© Luís Graça (2021). Revisto em 15 de abril de 2024

Nota do autor: Neste conto, os nomes (de pessoas e lugares) podem ser fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

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Nota do editor:


Último poste da série > 1 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25324: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (24): O tio Ortiz (1906-1944), um herói trágico