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quinta-feira, 25 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25443: 20.º aniversário do nosso blogue (11): Seleção de poemas do "corredor de Guileje" ou "corredor da morte" (José Manuel Lopes, ex-fur mil, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74)


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "O Furriel Gomes, do Pelotão de Caçadores Nativos (Pel Caç Nat 68), o Amadú, um guia e amigo do mesmo pelotão, e eu, carregado de cadernos e livros apreendidos no 'corredor da morte' [ou corredor de Guileje]. De salientar a quantidade de livros escolares em português que o PAIGC tentava fazer chegar às zonas por eles controladas".


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > Um momento de descanso nas operações diárias de patrulhamento, picagem e montagem de segurança aos trabalhos da nova estrada Aldeia Formosa (Quebo) - Mampatá - Salancaur...  Lendo e escrevendo... O fur mil arm pes inf, op esp, MA, José Manuel Lopes (Josema, como poeta). 

Fotos (e legendas) : © José Manuel Lopes (2008). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
1. É um apanhado de alguns dos melhores poemas do Josema, escritos com "sangue, suor e lágrimas", no Sul da Guiné,  no "corredor de Guileje" ou "corredor da morte", entre 1972 e 1974, em lugares tão estranhos e já esquecidos (hoje,  à distância de 50 anos) como Mampatá, Nhacobá, Colibuía, Salancaur, Uane... 

A fonte é a série "Poemário do José Manel",  por nós publicada,  entre março de 2008 e setembro de 2009 (trinta postes, muitos deles com mais de um poema). A maior parte dos poemas não têm título, e nem todos são datados.  

Esta seleção, pessoal, feita pelo nosso editor LG, é também uma forma singela de homenagear o poeta de Mampatá (e do Douro) e de  o associar aos 20 anos do nosso blogue (**),


Naquela picada havia a morte,
havia a morte naquela picada,
de vinte e quatro
foi tirada a sorte,
para um foi a desgraça,
o diabo o escolheu
ou foi Deus que o esqueceu,
havia a morte naquele caminho,
naquela picada havia a morte.


Estrada de Nhacobá, 1973

Olhos semi cerrados 
querendo ver
para além das árvores,
passo controlado,
procurando caminho
já calcado e pisado,
orelhas a pino,
a querer ouvir
além da neblina,
todos os sentidos
são poucos,
escaparão com vida?
não ficarão loucos?

Carreiro de Uane, 1972

 

O sol queima em Colibuía,
e nas tendas de campanha
sentimos o seu abraço,
logo, logo, pela manhã
e é só o começar
de uma semana de rações,
sete dias de suores,
milhares de comichões,
de bons e maus humores
e outras complicações.

Os dias lá vão passando
entre picagens,
patrulhamentos,
em cordões de segurança
à construção da estrada
que avança lentamente,
como cobra gigantesca,
pelo matagal imenso.

A semana chega ao fim,
volta-se a Mampatá,
um paraíso afinal
e o bálsamo ideal
do inferno quinzenal.

s/l, s/d


Estradas amarelas

corpos cobertos de pó,
pica na mão à procura delas,
o polegar ferrado no pau,
tac, tac, tac, tac, tac, tac,
tateando por sons diferentes,
o Fernandes com cara de mau
espeta no solo o ferrão da pica,
tac, tac, tac, tac, tac, TOC...
o calafrio,
depois o grito,
anunciando o perigo,
o grupo é mandado parar,
chega o Vilas à frente
e todos manda afastar,
de joelhos no chão,
numa simulada carícia,
afaga a terra com a mão,
com gestos simples e perícia,
vai cavando devagar:
hei-la... está aqui,
lisa preta a brilhar;
parece inofensiva, a maldita,
deita-lhe a mão e grita:
és minha, já te tenho;
volta-a,
tira-lhe o detonador
e, entre dentes, diz:
esta não,
esta não causará dor.

s/l, s/d


Pior

que o inimigo
é a rotina,
quando os olhos já não veem,
quando o corpo já não sente,
quando já se não recorda
o nosso último abraço,
e a arma se tornou
um apêndice do braço;
pior
é quando nos esquecemos
dos afagos e carícias
que uma mão pode fazer,
da mensagem e melodia
que uma canção pode conter;
pior
que as chagas nas virilhas
ou o aço a entrar no corpo,
são os delírios sem sentido,
e o procurar esquecer
as pessoas mais queridas;
pior
é o despertar
do mal que há em nós,
e é preciso pensar
e é preciso parar
e é preciso sentir
que ainda estamos a tempo.


Salancaur, março 1973


Sangue derramado

Puseste o pé em sítio errado,
um som violento, o pó levantado,
escondeu por algum tempo
teu corpo violentado.

sem pensar em outras minas
correram em teu socorro,
o sangue fugia de teu corpo
e o hélio não chegava.

tua cara, ainda de criança,
ficava cada vez mais pálida,
tudo, num silêncio angustiado.

apesar dos teus vinte anos,
a vida fugia-te em golfada.
porquê tanto sangue derramado?

s/l, s/d

Sabes o que é morrer

com a vida por viver?
sabes o que é sentir
toda uma vida a fugir?
ter de cerrar os olhos
para voltar a sorrir?
eu fecho-os
para ver as vinhas e os montes,
eu fecho-os
para ver o Douro correr,
eu fecho-os
para ver uma mulher,
eu fecho-os
para não pensar
nem me lembrar
que também posso morrer.


Mampatá, 1973

Gostava de vos falar
dos esquecidos,
dos heróis que a história
não narra,
que as viúvas choraram
mas já não recordam,
daqueles
que nem tempo tiveram
de ter filhos
que os amassem,
descendentes
que os lembrassem,
daqueles
que nunca tiveram
o dia do pai,
vítimas de guerras
que não inventaram,
em tempo que já lá vai,
falar deles é prevenir,
se bem que de nada lhes valha,
de guerras que possam vir,
geradas pela ambição
dos que nunca morrerão
num campo de batalha.

s/l, s/d


Calor, cansaço, suor,
saudades de tudo
e de um rio...
mas podia ser pior,
pois há ali o Corubal,
com sombras e água boa,
nem tudo é mau, afinal,
não é o Douro, eu sei,
nem o Tejo de Lisboa,
são outros os horizontes,
falta o xisto e o granito,
as encostas e os montes,
mas diga-se, na verdade,
há o Carvalho, há o Rosa,
há um hino à amizade,
há o Gomes e o Vieira
a sonhar com a Madeira,
há o Farinha e o Polónia,
gestos e solidariedade,
há o Esteves e o Pinheiro,
amigos e sinceridade,
há o Nina e até amor,
também sofrimento e dor,
há o desejo de voltar
e um apelo à liberdade.

Mampatá, 1974

As duas faces da verdade 

a outra face da verdade
é só
o outro lado da história,
é apenas
outra maneira de sentir,
é só
o reverso da medalha,
o outro ângulo,
outra maneira de ver,
e põe em causa
a minha razão,
mas terei nunca
vergonha
desta farda que me cobre,
quero sim é entender
a outra face da verdade.

Mampatá, 1974

Ao Albuquerque (#)

O teu sangue não manchou
só a terra onde caiste,
apagou o futuro e
os filhos que não terás,
causou dor
nos que te perderam,
despertou loucuras
em noites perdidas
a recordar-te,
o teu sangue vertido
marcará para sempre
bem fundo, dentro de nós,
prometo não mais chorar,
quero rir por ti,
quero viver por ti,
quero gritar ao mundo
como foi inútil o teu sacrifício,
assim nunca serás esquecido.

Mampatá, 1973



É tempo de regressar às minhas parras coloridas

e ver a água a gelar,
esquecer mágoas e feridas,
e a todos abraçar, 
olho por cima dos ombros,
vejo a mata, lembro Amadú,
e nem tudo são escombros,
há a ilha de Bolama,
há Susana, há Varela,
as ilhas de Bijagós
e a vida pode ser bela,
se nunca estivermos sós,
houve prazer e amor
em terras de Mampatá,
senti a raiva e a dor,
saudades do lado de lá,
a distância e tanto mar,
mas não há ódio ou rancor
e um dia... vou voltar.


Bissau, 1974
____________

Nota do autor:

(*) O Albuquerque era um soldado do 3º grupo de combate. A segunda baixa da nossa companhia em Abril de 1973. Vítima de uma mina antipessoal quando o seu grupo procedia à picagem na frente de trabalhos da estrada [Quebo-Salancaur] que a Engenharia estava a abrir. 

Todos os dias se fazia a picagem até à frente de trabalhos, foram detectadas dezenas de minas antipessoal e anticarro. Era um trabalho que aqueles homens faziam com muito rigor e segurança, e que correu bem até aquele dia. 

O Albuquerque era um jovem alegre, quase sem barba, ainda hoje o vejo na vespera de Natal de 1972 a tourear uma cabra entre os arames farpados de Mampatá. O furriel Vieira um dos furriéis do 3º. grupo assistiu também à cena pois já o ouvi num dos nossos encontros referir-se a ela.

(Seleção, revisão e fixação de texto: LG)
___________

Notas do editor:

(*) 25 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25442: No 25 de abril eu estava em... (33): No regresso de uma operação no mato, já no dia 26, com a malta (que tinha ficado no aquartelamento) a gritar, eufórica, no heliporto, à nossa espera: ""Meu furriel, a guerra acabou, a guerra acabou"...A notícia tinha sido escutada na BBC por um dos um militares, rádio-amador na vida civil (José Manuel Lopes, ex-fur mil, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74)

Guiné 61/74 - P25442: No 25 de abril eu estava em... (33): No regresso de uma operação no mato, já no dia 26, com a malta (que tinha ficado no aquartelamento) a gritar, eufórica, no heliporto, à nossa espera: "Meu furriel, a guerra acabou, a guerra acabou"... A notícia tinha sido escutada na BBC por um dos um militares, rádio-amador na vida civil (José Manuel Lopes, ex-fur mil, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74)




Guiné > Região de Quínara > Buba > Julho de 1974 > A LDG carregada com o material da companhia, a CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74), a sair do cais de Buba, a caminho de Bissau, depois de terminada a comissão.


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > Em quase todos os aquartelamentos do CTIG, houve a seguir ao 25 de Abril de 1974, entre maio e junho, tentativas mais ou menos bem sucedidas de aproximação do PAIGC às NT, com vista ao cessar-fogo, ao fim da guerra e à reconciliação (e vice-versa, das NT em relação ao PAIGC). Nesta foto, vemos o ex-fur mil José Manuel Lopes (o poeta Josema) com um guerrilheiro do PAIGC.  Mais difícil foi, de facto,  a aproximação entre o PAIGC e os militares e mlícias guineenses que estavam do lado das NT, como foi o caso dos Comandos Africanos.

Fotos (e legendas): © José Manuel Lopes (2008). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


 1. O José Manuel Lopes, o Josema (pseudónimo literário), o Zé Manel da Régua (terra da sua naturalidade), vitivinicultor (Quinta Senhora da Graça),  foi Fur Mil Inf Armas Pesadas, com o curso de Operações Especiais  e a especialidade de Minas e Armadilhas. 

É  uma figura, muito querida e popular, da nossa Tabanca Grande.

Soube do 25 de Abril, já no dia seguinte, quando vinha de uma operação no mato e viu um grupo  de camaradas da CART 6250/72,  à sua espera, no heliporto de Mampatá, agitadíssimos, muito eufóricos, a gritar "Meu furriel, a guerra acabou, a guerra acabou!" (*).

Como noutros lados, pela Guiné fora, a notícia tinha sido escutada na BBC, por um dos um militares, que na vida civil era rádio-amador.

2. Recorde-se que a sua  unidade esteve entre 1972 e 1974, sempre em Mampatá, subsector de Mampatá,  sector S2 (Aldeia Formosa).

A tropa vivia misturado com a população (maioritariamente, futa-fula, razão talvez por que nunca foram atacados). Não tinham artilharia, só mais tarde é que passaram a ter obus 14, que dava apoio às operações de segurança de construção da estrada Aldeia Fomorsa (Quebo)-Mampatá-Salancaur. Também aqui, em Salancaur, abriram um destacamento (arame farpado, valas e tendas).

O essencial da missão da companhia era fazer segurança aos trabalhos da nova estrada Aldeia Fomorsa (Quebo) - Mampatá - Salancaur, que ficou asfaltada antes do 25 de Abril... Tratava-se de uma obra que ia ao encontro da estratégia do Spínola, a da contra-penetração nas regiões libertadas do PAIGC. A obra parou com o 25 de Abril: o novo troço deveria ter uns 30 quilómetros.

Segundo a história que nos contou ao entrar para a Tabanca Grande (em 27 de fevereiro de 2008) (**)  , tinha sido inesperadamente mobilizado para a Guiné, já com 18 meses de tropa... Trabalhava numa empresa inglesa de vinhos (se não ero). Juntou se à malta da CART 6250, que era constituída por gente do interior/72 (do Alentejo, das Beiras, do norte)... A unidade mobilizadora foi o regimento de Vila Nova de Gaia.

Após realização da IAO, de 30jun72 a 26jul72, no CIM, em Bolama, seguiu em 29jul72 para Mampatá, a fim de efectuar o treino operacional e  a sobreposição com a CCaç 3326.  Em   Buba tiveram logo o baptismo de fogo.

Em 24ago72, assumiu a responsabilidade do referido subsector de Mampatá, ficando integrada no dipositivo e manobra do BCaç 3852 e depois do BCaç 4513/72, sendo orientada, inicialmente, para a segurança e protecção dos trabalhos da estrada Marnpatá-Buba e depois para a contrapenetração no corredor de Missirã, em conjugação com outras subunidades do sector. 

Em 10fev73, a CART 6250/72  destacou dois pelotões para Colibuia, no mesmo subsector, para construção do aquartelamento respectivo e execução dos trabalhos de reordenamento das populações.

Em 6set73, após substituição pela 2ª Comp/BCaç 4516/73, os pelotões recolheram à sede da subunidade, voltando, em 9nov73, a destacar um pelotão para Colibuia, a fim de integrar um destacamento, em conjunto com outro pelotão de outra subunidade, o qual substituíu a 3ª Comp/BCaç 4516/73, ali colocada do antecedente.

Em 22 e 23lu174, após ter sido substituída no subsector de Mampatá por forças do BCaç 4513/72, recolheu a Ilondé, a fim de aguardar o embarque de regresso.

 
3. Ele e a companhia dele seguiram os acontecimentos de Guileje em maio de 1973, e saíram de Mampatá para fazer segurança à CCAV 8530, restantes forças e população civil, que andaram perdidos, nesse perigoso campo de minas, que era todo o corredor de Guileje, montadas umas pelo PAIGC e outras pelas NT. 

Aliás, a sua CART 6250 foi uma das unidades que mais minas levantou, durante a guerra e no final da guerra; recorda-se que se pagava mil escudos por cada mina levantada...

Durante a sua comissão, ele próprio costumava andar com um lápis e um caderninho n0 bolso, onde nomeadamente ia escrevendo os seus poemas... Fez versos  que depois  eram acompanhados com músicas conhecidas da época, de autores contestatários como o Zeca Afonso. Chegou a fazer um poema por dia. A maioria foi destruída, já depois da "peluda"... Salvaram-se umas escassas dezenas, que fomos publicando na série "Poemário do José Manuel" (trinta postes, desde março de 2008: o último em  29 de setembro de 2009)...

Durante anos não falou da guerra colonial com ninguém... Teve conhecimento do nosso blogue, porque viu o programa Câmara Clara, da RTP Dois, a Paula Moura Pinheiro, edição de 24 de Fevereiro de 2004, que foi dedicado à literatura sobre a guerra colonial, e teve dois convidados em estúdio, os escritores Lídia Jorge (autor da Costa dos Murmúrios...) e Carlos Matos Gomes (que assina Carlos Vale Ferraz, o autor de Soldadó, Nó  Gordio, Geração  D).

Nessa edição, o fundador e editor deste blogue foi entrevistado; o nosso blogue foi amplamente divulgado; o programa passava também na RTP África e na RTP Internacional.

Ficou muito sensibilizado e até emocionado, e foi visitar o blogue de que passou a ser visita diária nessa altura...
_____________


domingo, 31 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25322: Um conto de António Graça de Abeu: "Lai Yong e Bernardo, uma História Simples" (2018) - III (e última) Parte


República Popular da China > Pequim > s/d (c. 1977/73)  > O António Graça de Abreu na praça Tianamen [ou Praça da Paz Celestial]

Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2024). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



aqui na casa dos 30 anos (nasceu no Porto, 
em 1947). Tem cerca de 340 referèncias 
no nosso blogue.
Foi alf mil, CAOP1 (Teixeira Pibnto, 
Mansoa e Cufar, 1972/74). 
Viveu e trabalhou na China, em Pequim 
e Xangai, de 1977 a 1983. Sinólogo, tradutor,
 poeta,  escritor e professor universitário.


Capa do livro. Contato do autor:
abreuchina@netcabo.pt


1. Terceira (e última)  parte do conto, " Lai Yong e Bernardo, uma História Simples" extraído do livro "Lay-Yong, Bernardo e outros poemas", de António Graça de Abreu (Póvoa de Santa Iria, Lua de Marfim Editora, 2019, pp. 36-57) (capa acima).

É uma  gentileza do autor e nosso camarada, a quem agradecemos, em nome da nossa Tabanca Grande. 

Sinopse: É uma história de encontro e separação de duas culturas, e de amores efémeros de um homem (Bernardo, português, com formação universitária, e já na casa dos 30 e tal, claramente um "alter ego" do escritor) e uma jovem chinesa, de 24 anos,  nascida em Cantão, e levada em pequerna com os pais para Macau, onde e trabalha (não fala português).

Estamos em 1981 em Cantão e em Macau (território ainda sob administração portuguesa, até 1999).


Lay Yong e Bernardo conheceram-se quando viajaram juntos, em 1981. na "ferry-boat" que fazia a viagem, de 120 quilómetros, entre Cantão e Macau, ao longo do rio das Pérolas (*)

 

Lai Yong e Bernardo, uma História Simples - III (e última) Parte

por António Graça de Abreu (*)

VII

Macau está a actuar sobre Bernardo como um turbilhão de descobertas e prazeres. Inevitabilidade dos seus trinta e poucos anos, ainda, sempre imaturos, os flancos expostos a todos os ventos e tempestades. O português de Pequim pensa, repensa-se.

Descobre, redescobre-se. Quer e não quer, avança e recua. É, determinado e hesitante, confiante e receoso. Vagueia pelo âmago de Macau, esta China que não é a sua China, abraça uma mulher chinesa, toda dádiva e formosura, uma mulher que não é a sua mulher. Bernardo caminha confundido.

Sábado de manhã. Lai Yong tem todo o dia livre. Vou buscá-la a casa, lá no extremo da rua da Praia do Manduco. Manda-me entrar. Subimos a escada, um segundo andar acanhado, num edifício antigo de quatro pisos, bolorento e húmido, bem ao modo da velha Macau. Porquê levar Bernardo para o patamar aparentemente pobre do seu dia a dia? 

Apresenta-me aos pais, gente humilde que jamais vira um português a entrar-lhes portas adentro. Curiosos, afáveis, oferecem-me chá. Ignoro o que a filha lhes contou a meu respeito, mas sou recebido com a singeleza das pessoas de bem da China eterna.

Despedimo-nos. Um cumprimento de mãos juntas e saio com a Lai Yong. Vamos até à ilha de Coloane. O minibus 7 atravessa a ponte para a Taipa e depois o istmo até Coloane, a ilha que foi outrora coio e pertença de piratas e só em 1910 entrou para a efectiva e completa governação portuguesa de Macau.

Passear a pé por Coloane, de mão na mão. O sorriso infindável da Lai Yong ondulando entre os lábios, mais as sibilantes frestas dos seus olhos. Na capela de S.Francisco Xavier, uma Nossa Senhora chinesa com um Menino Jesus nos braços vestido de imperador criança. Ela não acredita muito no Deus cristão do Ocidente, diz-me que lhe faz confusão um Cristo sofredor, agonizante, seminu, espetado numa cruz semelhante aos dois traços do caractere chinês shi 十, o número dez. 

Também não entende muito bem o que vem a ser um pecado, uma coisa mal feita capaz de nos condenar ao fogo dos infernos. Mas respeita o Deus estrangeiro e quem sabe se um dia não precisará da sua ajuda…

Almoçamos na pousada de Cheoc-van, debruçados sobre o mar, com a pequena enseada e a praia lá em baixo. A suavidade destas ilhas, o mar em volta, a abastança portuguesa em terras chinesas. No restaurante da pousada, na larga mesa ao fundo, um secretário-adjunto do governo de Macau -- que me conhece e me cumprimentou ao entrar, admirando a minha presença por ali com uma beldade chinesa --, oferece um banquete a uns tantos figurões acabados de chegar de Portugal, convidados oficiais que, como de costume, se deliciam com as mordomias que Macau tem para lhes oferecer.

São, por norma, portugueses mal acostumados, que recebem bastante de Macau mas pouco ou nada dão à cidade. Encolhidos na nossa pequenez, a Lai Yong e eu apaladamos festivamente a boca num excelente repasto com delícias portuguesas. 

Ela pergunta-me se eu conheço pessoas importantes em Macau, homens com poder e mando. Digo-lhe que sou um pobre Beijing ren 北京人, um “homem de Pequim”. Na capital da China, no meu relacionamento com os poderosos, limito-me a vê-los passar, eu não mando nada, e em Macau acontece exactamente o mesmo.

Acabámos o almoço a passear os olhos, e entendimentos, um no outro, depois a diluir o olhar no mar de Cheoc-van.

À tarde descemos para a praia de Hac-sá –Heisha 黑沙 em mandarim– que, com todo o rigor, significa “Areia Preta”. Um dia de sol, céu quase azul, as águas levemente amareladas e o areal prateado resplandecendo.

Descalçamos os sapatos, arregaçamos as calças até aos joelhos, molhamos os pés, chapinamos na água, nas ondas pequenas que morrem na praia. Corremos na areia escura, como crianças inocentes e limpas, libertas de mil cadeias e medos. Abraço a Lai Yong, aperto-a no peito. Deixa-se enlanguescer como uma pequena onda desfalecendo em mim. Beijos de sal, as bocas como flores de lótus abrindo, trocamos de línguas e de saliva, num desvairo de fogo e desatino. Voltamos a correr pela praia, a parar, a juntar, a abraçar os nossos corpos. Até o dragão que habita no fundo das águas do mar, entusiasmado, sobe e vem ouvir a nossa música.

Regressamos a Macau. O meu lar eventual e passageiro é um mini-escritório com uma sala grande, dois quartos e quatro camas. É o office emprestado por um amigo português que alugou o espaço para alojar uns pares de contabilistas de Hong Kong que vêm regularmente a Macau proceder a escritas de empresas. Está vazio, fica também na velha cidade, não longe da casa da Lai Yong, no Pátio da Casa Forte, ao lado da rua Central, diante da igreja de S. Lourenço. 

Levo-a comigo, flutuando a meu lado como uma fénix celestial. Mas é jade puro, mulher quase perfeita. Ou um bombom terreno, a prata a envolver o corpo para eu desembrulhar e comer.

Lai Yong dá-me a honra de a despir. Lentamente, folha a folha, pétala a pétala, de deixar correr os meus lábios pela sua pele fina, de seda imaculada, perfumada a almíscar e jasmim, de amaciar os dedos nos seus seios maravilha, do tamanho do desejo da concha da minha mão, de tocar, beijar duas framboesas róseas e de colher a peónia à solta no seu ventre. Abertas as portas de jade, o riso doce, o gosto da alegria. Mil espantos, dez mil carícias, yun yu 云雨, embalados no antiquíssimo jogo das nuvens e da chuva, a arte do quarto de dormir, para enobrecer os dias e as noites.

Nas últimas horas de estadia em Macau, antes do regresso de Bernardo a Pequim , vamos jantar à pousada de Santiago da Barra. Não é barato, mas nós merecemos tudo.

Pouco antes de partir, pergunto à Lai Yong:

– Para quando um reencontro? Qual vai ser o nosso futuro?

Responde-me, mais ou menos assim:

– Não temos futuro um com o outro. Vivemos o dia a dia, vivemos hoje. Não nos vamos preocupar com o ontem nem com o amanhã. Vivemos agora o prazer de um homem e de uma mulher que se dão bem, que gostam de estar juntos. Mais nada. Tu seguirás o teu destino, em Pequim, eu caminharei por Macau, por Cantão, pelas minhas cidades. Foi muito bom conhecer-te. Guarda-me na tua memória, eu guardar-te-ei também, mas não me dês demasiada importância. Desejo a tua felicidade.

Amores em Macau, breves e leves como névoa, brisas de Outono, carícias solenes no perpassar dos dias.

Um soluço na garganta e adeus, Lai Yong, O Bernardo promete-te que um dia, daqui a muitos anos, se for capaz, escreverá a nossa história simples.


VIII

Nesta viagem, depois de Macau, Bernardo seguiu para Hong Kong onde comprou uma edição chinesa e outra em tradução inglesa da Jin Pin Mei 金瓶梅, um romance de costumes da dinastia Ming, atribuído com muitas dúvidas a Wang Shizhen (1526-1590) com dezenas de poemas onde o erotismo campeia. 

É um dos “cinco grandes romances” da literatura chinesa (os outros quatro são “À Beira de Água”, “Romance dos Três Reinos”, a “Peregrinação a Oeste” e “O Sonho do Pavilhão Vermelho”).

Na longa viagem de regresso à capital, durante quase mais dois dias de comboio de Cantão para Pequim, Bernardo traduziu o seguinte poema da Jin Pin Mei:


Amor em segredo

Os patos-mandarim brincam na água,
os pescoços entrelaçados.

Duas garças caminham entre as flores.
as cabeças, par a par.

Dois ramos selvagens abraçam-se, felizes,
exaltando o prazer da união dos amantes.

Os lábios do rapaz na boca da mulher,
ela abandona o rosto a todas as carícias.

Descalça as meias de seda,
mostra os seios levantados, como duas luas.

Uma nuvem de cabelos negros,
seu alfinete dourado cai na almofada.

Juram ambos o sublimar da paixão
por montanhas e mares.

Ela é o decoro da névoa, a timidez da chuva,
ele, o golpe suave no seu arco de jade.

Trocam salivas, as línguas húmidas
num desvairo, rejuvenescidos pela Primavera.

Ofegante a sua boquinha de cereja,
os olhos do sonho, duas estrelas cintilantes,
seu suor são gotas de jade perfumado,
os seios cremosos abanam como orquídeas na brisa,
o orvalho goteja e cai no coração escondido da peónia.

Sim, tão doce um casamento abençoado e casto,
mas nada melhor do que um amor em segredo.

António Graça de Abreu

Fim

(Seleção,  revisão / fixação de texto para efeitos de publicação neste poste: LG)

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Nota do editor:

(*) Postes anteriores da série de: 

segunda-feira, 25 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25305: Notas de leitura (1678): "Lay Yong, Bernardo e outros poemas", de António Graça de Abreu (Lua de Marfim Editora, 2018, 90 pp.) (Luís Graça)


Capa do livro "Lay-Yong, Bernardo e outros poemas", de Antónioo Graça de Abreu (Póvoa de Santa Iria,  Lua de Marfim Editora, 2019, 91 pp.)

Email do autor: abreuchina@netcabo.pt


Exemlar autografado com dedicatória ao nosso editor, Luís Graça






Excerto do livro,  poemas de 52 a 70, em que o poeta evoca Hong-Kong e Macau, revisitadas nas viagens à China, de abril de 2017 e março de 2018.

1. O António Graça de Abreu, um histórico do nosso blogue, é de há muito também conhecido dos nossos leitores como sinólogo, tradutor dos maiores poetas chineses clássicos... Mas também é,  ele próprio,  poeta em que "a poesia do velho Império do Meio e do Japão aparece, de quando em quando, como descoberta e inspiração (...) para criar os seus próprios poemas " (lê-se na badana da capa). 

(...) "Neste novo livro, os ecos extremo-orientais ressoam na magia do instante e do eterno, em pequenos haikus ou em poemas mais longos,  ou mesmo numa prosa excitantemente depurada"...

É o caso, por exemplo, do conto, " Lai Yong e Bernardo, uma História Simples" (pp. 36-57), uma história de encontro e separação de duas culturas,  e de amores efémeros se um homem (portuguès, já na casa dos 30 e tal) e uma jovem chinesa de Macau, de 24 anos. Estamos em 1981 e em Macau (ainda sob administração portuguesa,  até 1999).

Neste livrinho de 90 páginas o autor oferece-nos uma mão cheia de textos poéticos, onde não falta a evocação de três grandes portugueses, orientalistas,  que, como ele, alimentaram uma grande paixão pela  China e/ou pelo Japão, e que ele retrata na secção "Très amigos" (pp. 85-89): o  grande poeta Camilo Pessanha (Coimbra,  1867 - Ma1cau, 1926), o missionário   e historiador Manuel Teixeira (Freixo de Espada à Cinta, 1912 - Chaves, 2003),  e  o diplomata e escritor Armando Martins Janeira (Felgueiras, 1914 - Estoril, 1988).

Enquanto leio (e toma notas  sobre) o livro, na paz bucólica de Candoz e com as "cerdeiras" em flor,  para uma próxima recensão, mais completa, aqui com fica, com a devida vénia, a reprodução do que ele escreceu sobre Hong-Kong e Macau revisitadas (ver acima) .

Evocação essa que, com referência Macau, acaba assim:

(...) 70

Pequenas as Portas do Cerco,
abertas para a imensidão do Guangdong.
Estranhos portugueses,
há quase cinco séculos,
lusitanos em sinuosa viagem,
aqui, parados, circunspectos,
diante dos enigmas do império.
Gravado, a encimar o arco:
"A Pátria honrai
Que a Pátria vos contemplka."  (pág. 21)

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24942: Agenda cultural (848): dia 14, no Centro Científico e Cultural de Macau, o nosso camarada António Graça de Abreu vai apresentar o seu trabalho de tradução dos 170 poemas do poeta chinês 苏东坡 ( Su Dongpo, 1037-1101), "um dos grandes génios da poesia universal"


Su Dongpo 苏东坡


1. Mensagem do nosso camarada António Graça de Abreu ( ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), sínólogo, tradutor, escritor:

Data - terça, 5/12, 13:54 (há 5 dias)

Assunto -Lançamento Poemas de Su Dongpo


Su Dongpo 苏东坡


Eça de Queirós (1845-1900), um dos Vencidos da Vida, também escreveu:

 "Para um homem o ser vencido ou derrotado na vida depende, não da realidade aparente, a que chegou, mas do ideal íntimo a que aspirou." 

O meu ideal íntimo não é mais acreditar na bondade dos homens, é, trespassado pela desilusão, mas não vencido nem gotejando lágrimas, viver ainda memórias da alegria (desculpa Eugénio de Andrade!) e, de quando em quando, cantar essa mesma alegria. 

Tenho por companhia os grandes poetas chineses, seis já por mim traduzidos para português, Li Bai, Wang Wei, Du Fu, Han Shan, Bai Juyi, mais uma Antologia com quinhentos poemas chineses. 

Na próxima semana vou apresentar no Centro Científico e Cultural de Macau, o meu novo poeta, o sexto, em novo livro, Su Dongpo (1037-1101), 50 páginas de um elaborado prefácio, 170 poemas de um dos grandes génios da poesia universal. 

Foram três anos de trabalho. Fascínios, enriquecimento, duro labor, a magia das palavras. Que maravilha!

Estão todos convidados. O livro, publicado pela Editora Grão-Falar, de Carlos Morais José, será apresentado pela sinóloga Ana Cristina Alves. Eu próprio vos levarei também a conversar com Su Dongpo.

António Graça de Abreu

Centro Científico e Cultural de Macau, Rua da Junqueira, 30, Quinta-feira, 14 de Dezembro, às 17,30. Sejam Bem Vindos.


水调 歌头
丙辰中秋
欢饮达旦
大醉
作此篇,
兼怀子由
明月几时有?
把酒问青天。
不知天上宫阙  
                                             


今夕是何年 
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我欲乘风归去,
又恐琼楼玉宇,
高处不胜寒。
起舞弄清影,
何似在人间。
转朱阁,
低绮户,
照无眠。
不应有恨,
何事长向别时圆?
人有悲欢离合,
月有阴晴圆缺,
此事古难全。
但愿人长久,
千里共蝉娟。



Festa do Meio Outono


Na Festa do Meio Outono,
bebi alegremente até de madrugada e escrevi este poema pensando no meu irmão Su Zhe.


A lua brilhante, quando nasceu?
De taça na mão, questiono a escuridão azulada do céu.
Esta noite nem sei qual o ano
que se vive lá em cima, nos palácios celestiais.
Gostava de poder voar com o vento
mas receio as torres de cristal, as cortes de jade,
entre alturas glaciais congelaria até à morte.
Melhor dançar na companhia da minha pobre sombra,
voltear à vontade pelo mundo dos homens.
Caminho em volta do pavilhão carmesim,
olho através de cortinados de gaze.
A lua brilha, não quer adormecer
nada entende de tristezas
porque permanece cheia quando da separação dos amantes?
Nas gentes, a dor da despedida, a alegria do reencontro,
a lua clara ou escura, minguando, crescendo.
A imperfeição existe desde o início dos séculos.
Meu único desejo, uma vida longa,
separados por duzentas léguas, fruindo o luar.

Su Dongpo, em 1076.

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Nota do editor:

Ultimo poste da série > 10 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24939: Agenda cultural (847): Convite do Centro Científico e Cultural de Macau: 5ª feira, 14, às 17h30, lançamento do livro "Poemas de Su Dongpo" (1037-1101), tradução, introdução e notas de António Graça de Abreu

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24776: Dos calores da Guiné aos frios da Gronelândia (4): Qaqortoq, uma pequena vila piscatória de 3 três mil habitantes, agosto de 2023 (António Graça de Abreu)


Foto nº 26


Foto nº 27


Foto nº 28


Foto nº 29


Foto nº 30


Foto nº 31


Foto nº 32


Qaqortoq, Gronelândia, agosto de 2023


Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2023). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 


Dos calores da Guiné aos frios da Gronelândia (4): Qaqortoq, uma pequena vila piscatória de 3 três mil habitantes

por António Graça de Abreu (*)


A vilazinha gronelandesa, com apenas 3.050 habitantes, chama-se Qaqortoq, nome não fácil de memorizar apesar de contar apenas três sílabas (Foto nº 26). Situa-se no extremo sul da Gronelândia, na margem direita de mais um fiorde, a uns seis quilómetros do mar. Como não tem cais de acostagem para grandes navios como o “Poesia”, da MSC, estacionamos o barcalhão a uns dois quilómetros do pequeno porto e tomamos três lanchas, as baleeiras do navio em serviço para a ligação a terra.

Qaqortoq, que em dinamarquês se assume como Julianehab, foi um dos primeiros lugares da Gronelândia a ser povoado por vikings no século X. Depois vieram os esquimós-inuites, os noruegueses e os dinamarqueses. 

Protegido dos ventos, porto de pescadores e caçadores de focas (Fotos nº 29 e 30) desempenhou o seu papel na pequena economia gronelandesa, assumindo-se hoje como o quarto maior aglomerado populacional do país. Vi chegar do mar, onde ainda pululam icebergues, duas ou três traineiras carregadas de salmões, enormes, fresquíssimos. Um caçador de focas, com duas espingardas a tiracolo, regressava também da sua jornada num glaciar próximo. 

Qaqortoq vive muito do negócio de transformação da pele de foca em casacos, luvas, botas, sapatos, algo proibido no Canadá e nos Estados Unidos da América. Não há proibição na Europa e os pobres animais que me dizem não estar em extinção, são por aqui impiedosamente abatidos.

Entretanto, porque Qaqortoq -- um dos lugares menos poluídos do mundo --, se transformou também num destino turístico, uma senhora esquimó, com quem meti conversa, fala-me na chegada de 35 navios de cruzeiro por ano. (Fotos nºs 31 e  e 32).

Não será muita gente, mas o turismo terá algum significado na vida económica da terra que cresce, em presépio, subindo por duas encostas, para norte e para sul, com as casinhas pintadas nas cores fortes comuns a toda a Gronelândia. Duas igrejas protestantes, três ou quatro supermercados bem abastecidos, um hotel com bom aspecto, mas com quartos nada baratos, tudo acima dos 250 euros por noite e o aviso cá fora de que lá dentro não há hi-fi para turistas de passagem.

Um campo de futebol com relvado sintético e informam-me que os qaqortoquianos são bons de bola, já foram campeões da Gronelândia por quatro vezes. Grande futebol se jogará por aqui! (Foto nº 27)

Por cima da vila, encravado entre montanhas de pedra, existe o grande lago Tasersuaq (Foto nº 28) que congela no Inverno e é óptimo para patinagem. Logo ao lado fica a zona onde se faz ski durante parte do ano. Agora as pistas encontram-se cobertas de vegetação, mas a partir de Outubro tudo estará atapetado com neve e gelo.

Caminho junto ao mar. Os pescadores aproveitam a placidez do Verão, com o Atlântico Norte azul e calmo, consertando os barcos, preparando redes e anzóis para novas pescarias. O sossego do dia, onze graus de temperatura, o silêncio avassalador envolvendo tudo.

Na pesquisa da Gronelândia na Net, encontro um poeta Gronelandês que creio ser um dos mais famosos autores do país. Chama-se Aqqaluk Lynge, nasceu em 1947 e tem um
poema que fala em caçar animais. Traduzi do inglês, assim:

Ouvir os mais velhos

Caçadores de gansos, um encontro na terra.
Ele diz: “Hoje é domingo,
ninguém deve dar um tiro.”
Assim falam os mais velhos
e nós ouvimos os mais velhos,
às vezes.

Vem um bando de gansos,
lutando contra o vento.
Ele pega na espingarda e dispara,
um ganso cai,
os outros continuam voando.
Sim, hoje é domingo.

Um bando de perdizes brancas
salta em círculos, à nossa volta,
não fazem nenhum ruído.
“Têm medo”, diz a pessoa mais velha,
“as corujas saíram para caçar,
as perdizes procuram a protecção dos homens,
nós não as caçamos.”
É o que dizem os mais velhos,
e nós ouvimos os mais velhos,
às vezes.


António Graça de Abreu
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António Graça de Abreu:

(i) ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74; 

(ii) membro da nossa Tabanca Grande desde 5/2/2007; 

(iii) tem c. 330 referências no blogue; 

(iv) é escritor, autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); 

(v) no nosso blogue, é autor de diversas séries:

  • Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo;
  • Viagem de volta ao mundo: em plena pandemia de COVID 19, tentando regressar a casa (em coautoria com Constantino Ferreira);
  • Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983";
  • Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias;
  • Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74)

(Revisão / fixação de texto / negritos, e edição e numeração de fotos, para publicação deste poste no blogue: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de outubro de  2023 > Guine 61/74 - P24732: Dos calores da Guiné aos frios da Gronelândia (3): Nuuk, a minúscula capital da maior ilha do mundo, agosto de 2023 (António Graça de Abreu)