Mostrar mensagens com a etiqueta segurança. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta segurança. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 16 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25394: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (26): um país de gente porreira - II (e última) parte

 Palácio Nacional de Mafra: uma visão romãntica, em litografia de 1853, da autoria de João MacPhail (que morreu em 1856). Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal: http://purl.pt/12043

Imagem do domínio público, Cortesia de Wikimedia Common


Contos com mural ao fundo >  II (e última) Parte

por Luís Graça (*)


6B. Não te assustaste com o 25 de Abril.
Bem, não foi bem assim.
Não estavas a contar, deves dizê-lo.
O Ravasco também não,
e era bem mais imformado do que tu.
Tu tinhas algo a perder e, se calhar, algo mais a ganhar.
Claro, foi um desgosto para a tua mãezinha.
Para mais, o seu filho mais velho (esse é que era o "morgado",
e que também era professor  como ela),
apareceu-lhe um dia, em casa.
De barbas, cabelo comprido e cravo ao peito.
E com uma "flausina", uma namorada, de calças, e sem sutiã...
A pobre da tua mãezinha ia morrendo, de apoplexia.


A verdade se diga: ninguém a chateou por ser do Movimento Nacional Feminino, que acabou logo, dali a uns dias, por decreto da Junta de Salvação Nacional, onde estava o Spínola com quem tu, aliás,  até simpatizavas um bocado. Os outros não te diziam nada, com exceção talvez do Costa Gomes, que fora teu comandante-chefe em Angola (nunca o voste), e que também era nortenho como tu. Flaviense.

E, de resto, a tua mãezinha  já não dava aulas, tinha funções meramente burocráticas, na área da administração escolar. Logo que teve condições, isto é,  reuniu os requisitos legais, pediu a aposentação. Ainda bastante nova.  Percebeu que o seu tempo (e quiçá o seu mundo) havia acabado. 

Infelizmente ainda não tinha netos para cuidar. Mas dedicou-se ao seu jardim. Tinha uma cultura de camélias. E abriu a capela  da família, do séc. XVIII,  ao povo da freguesia. Sempre ornada de flores, camélias... Achaste um gesto bonito. E, afinal, inteligente. Democrático.  A capela até então estava vedada ao povo da aldeia, ali nos arredores de Ponte de Lima. O que era mal visto. Até para fazer um velório ou outro, as pessoas às vezes pediam-lhe e ela recusava.

Tinha muito orgulho, a tua mãezinha,  na capela onde repousavam os restos mortais de alguns dos seus queridos antepassados. Contrariando as leis de saúde dos Cabrais, ainda lá foram inumados, até tarde, até quase aos fins do séc. XIX, alguns dos teus avoengos.  

Claro que já nenhum padre lá ia  dizer missa. Os padres também aprenderam com a história passada, e, para o clero, sobretudo o mais jovem, era bom ser democrata (ou pelo menos aparentá-lo). Como o teu amigo de Mafra, mas esse já era democrata antes do 25 de Abril. Quer dizer, era do "contra".

A chatice maior que a família teve, no pós-25 de Abril,  foi com os rendeiros. "Poucos mas ingratos e velhacos", como já dizia o teu pai.  Recusaram-se a pagar a renda em géneros. Ainda se usava, e vinha desde há séculos,  o sistema da parceria agrícola (pagamento a meias ou ao terço, conforme os produtos eram da terra ou do ar). 

O teu irmão deu um jeito, resolveu o conflito. Chagou a cabeça a toda a gente da família.  Disse que "não, senhora,  minha mãe, que aquilo era senhorial, semi-feudal, pré-capitalista, que daqui a uns tempos  já se estava no ano 2000, e ainda  se lavrava a terra com os bois em Ponte de Lima!"... 

O teu mano era o "comuna" da família. Naquele tempo até dava jeito ter um "comuna" na família. Depois veio a lei do arrendamento rural e tudo se normalizou. Mas não foi preciso esperar muito para as terras ficaram sem rendeiros, nem bois, nem podadores, cobertas de mato. E a tua mãezinha voltou a ter que comprar batatas e cebolas no mercado. Mal dela se tivesse que viver das rendas dos rendeiros. E em anos ruins perdoava-lhes as rendas, depois da morte do marido. Nisso, era afinal um coração bondoso, e guerreiro, da estirpe da Maria da Fonte (que ela admirava).

O teu pai, um amanuense,  também dera a volta ao texto. Extintos os organismos corporativos, foi "reconvertido",  a nível profissional.  Os grémios da lavoura deram origem a cooperativas agrícolas. E tudo ficou como dantes. Ou quase. Não perdeu os seus hábitos, muito menos a sua tertúlia dos copos e dos petiscos. " E nunca quis mais saber da política!", confidenciou-te ele um dia. Mas morrerá cedo, coitado,  passados uns anos. 

Tu próprio também acabaste por "apanhar o barco" (ou, como se dizia na Ericeira, "surfar a onda"). Deixaste crescer o cabelo e passaste a usar uma boina basca.  Preta. Descobriste o teu lado (adormecido) de anarquista. E, confessavas, soube-te bem respirar o ar da liberdade que tu, em boa verdade, não tinhas tido quando nasceste no seio de uma família limiana tradicional.  Apesar de toda a gente ter um rótulo, tu recusaste-te  a revelar as tuas opções político-ideológicas, quer dizer, o partido em que votavas nas primeiras eleições. 

O Ravasco, muito mais à esquerda do que tu (acha que eras do PPM, o partido popular nonárquico), quis meter-te no sindicalismo, mas tu disseste-lhe  logo que "não senhor, muito obrigado, há coisas para as quais um limiano  de sangue azul como eu não tem jeito nem feitio nem vocação". Fizeras a tropa, já chegara esse tempo em que andaras "arregimentado".

A princípio, depois do 25 de Abril,  o Ravasco era o terror do "adjunto" e do "grupo das meninas", lá  na repartição  de finanças de Mafra.  Tens que o reconhecer, foi um gajo decente,  não houve saneamentos nem correu sangue, que era uma situação que tu detestarias, no caso de as coisas terem descambado para aí... Talvez por ter feito uma guerra, o Ravasco mostrou-se aos teus olhos surpreendentemente maduro e responsável.  

 A tua consideração por ele subiu mais uns pontos. Mas secretamente deu-te gozo ver aquele grupinho de sacanas baixar a bolinha. De um dia para o outro, a sorte mudara. Não vale a pena um gajo cantar de galo e montar as galinhas,  esquecendo-se que quem faz pintos também faz galuchos e garnizés. Mas não tiveste tratamento recíproco. A ti, continuaram a desprezar-te como "filho de Ansião"...

Ainda foste, com ele, no teu carro, a Peniche, ver a saída dos presos políticos, em 27 de abril. Não tinhas lá ninguém teu conhecido. Mas também não concordavas com as prisões políticas nem com a  censura à imprensa nem com os pides ... Nunca se discutia política lá em casa, mesmo que os teus pais fossem simpatisantes do Estado Novo (pelo menos votavam na União Naconal e depois na ANP, a tal Acção Nacional Popular, sem convicção, por dever de  ofício. ) 

Levaste também no teu Mini o Ravasco ao 1º de Maio, em Lisboa... Viste ao longe o Mário Soares e o Álvaro Cunhal.  Não sendo republicano, ficaste com um certo respeito por eles. Pelo menos, foram homens que lutaram pela liberdade dos outros, dando o corpo ao manifesto.  Mas nunca tinhas visto tanta gente junta, gritando palavras de ordem, de punho erguido.  Sempre tiveste a fobia das multidões. E daí nunca teres ido a desafios de futebol (nem a touradas e, muito menos, a comícios!).

Percebeste cedo que "aquela não era a tua praia", preferias a Ericeira e a Foz do Lisandro... Foi mais para fazer companhia ao Ravasco, um gajo de quem a pouco a pouco começaste, sem saber bem porquê,  a gostar como amigo, ou até talvez como o irmão que te fazia falta, a algumas centenas de quilómetros de casa... 

Foi ele que começou a tratar-te por tu, a seguir ao 25 de Abril. A princípio, custou-te, repugnava-te até, mas lá te foste habituando,  a pouco e pouco. Na família sempre houvera a norma do tratamento por você.  O respeitinho sempre fora muito bonito entre os teus. Chamava-te agora "pequeno-burguês", com hífen, qualificativo que tu nunca sabias muito bem o que queria dizer. Interpelavas o safado do Ravasco: "É por gostar das coisas boas da vida ? De gajas ? Ou ter um velho Mini com jantes especiais?"... 

Nunca to esclareceu... Sempre o achaste, nesse aspeto,  um bocado moralista. Rígido, em certas coisas. 

Em Braga irás conhecer o verão quente de 1975. Mas desse tempo não gostarias de   falar. Ficaste desgostoso com as posições radicais que alguns amigos e conhecidos teus, de um lado e do outro, tomaram, na altura do PREC.  A começar por católicos que se sentavam na missa, ao teu lado. Aí, sim, temeste que a coisa pudesse degenerar em guerra civil. 

A tua mãe, que sabia muito da História de Portugal,  falava-te dos horrores que haviam sido as guerras liberais, fratricidas. Na tua família parece que houve tanto "malhados" ou "jacobinos", partidários do Dom Pedro, como "corcundas", seguidores do Dom Miguel, estes talvez em maior número. E só se juntaram na "Patuleia", em 1847,  os "realistas" e os "setembristas" ou "progressistas", da Junta do Porto. Daí tu não te admirares de o teu mano ser "comuna do 26 de Abril". Houve muitos vira-casacas. Acontece em todas as mudanças de regime. E em todas as famílias. A tua, afinal, era como as outras.

Mais tarde voltaste a Ponte de Lima onde o teu mui amado tio-avô, materno, solteiro,  e que não tinha herdeiros diretos, te deixou em doação uma quinta. Uma pequena quinta, maneirinha, boa de se fazer. Tu eras o seu sobrinho-neto querido. Por causa da política, cortara relações com o teu mano, professor primário, esse, sim, o "senhor morgado", que ficou com as fracas terras da família, estoirando-as em pouco tempo...

Reformaste-te da função pública, no bom tempo. Fizeste uma formação em vitivinicultura. Descobriste os encantos da vida no campo.  E, para surpresa do Ravasco, não te casaste nem fizeste filhos (que tu soubesses), nem sequer escreveste um livro, mas plantaste árvores  e vinhas. E disso podes orgulhar-te.


7A. Uns tempos antes do 25 de Abril, ainda em Mafra,
o Bacelar havia-te apresentado ao padre, seu amigo,
de que espantosamente já não recordas o nome.
Simpatizaste, de imediato, com ele.
E depressa encontraste nele um homem
capaz de ouvir (e sobretudo de saber ouvir)
o relato dos teus “fantasmas” da guerra de África.



No fundo, ele acabou por ser o “confessor”, mais do que o simples confidente ou ouvinte passivo, de que tu estavas a precisar, ali, desterrado e amargurado. Na realidade, e até então, nunca falaras da guerra a ninguém, não tinhas sequer amigos íntimos com quem pudesse partilhar as tuas confusas e doridas memórias, da infância, do seminário, da guerra... A não ser, afinal, com o Bacelar.

Ao fim da tarde, antes do jantar, a meio da semana, tinhas por hábito juntarem-se, tu, o Bacelar e às vezes o padre, na tal "tasca dos jaquinzinhos" (na realidade era já um misto de tasca e  bar a virar para  modernaço)...  Tomavam a bica ou uma cerveja, davam dois dedos de conversa, comentavam as notícias dos jornais. Era uma espécie de tertúlia. Às vezes juntava-se à mesa um ou outro jovem estudante,  conhecido do grupo, ou das relações do padre. E noutras meses aparte, um ou outro cadete.

Talvez já em março de 1974, não sabes se antes ou depois do 16 de março, a revolta das Caldas, que  alvoraçou a malta do "reviralho" (incluindo o Bacelar que lá estivera uns anos antes como 1º cabo miliciano), a conversa foi parar, sem tu  dares conta, à Guiné e à guerra. Sabes que te perdeste e me abstraiste do que se passava à tua volta. Não te apercebeste sequer de quem estava na mesa do lado. 

O padre, mais velho do que tu uns anos, gostava de te ouvir e raramente te interrompia com um pedido para esclarecer este ou aquele ponto, e muito menos para manifestar a sua concordância ou discordância. Revelava, isso, sim, uma grande empatia, o que veio reforçar a confiança que ele te inspirava, logo desde o início. Em suma, sabia ouvir, o que era, quanto a ti, uma qualidade essencial num confessor. Os que tu tiveras, até perder a fé, eram mais inquisidores do que confessores….

Ficaste também com a ideia de que ele estava minimamente familiarizado com o meio castrense. Não te admiravas, estava  habituado  a lidar com a tropa numa terra como aquela. Talvez até ele tivesse sido capelão militar, antes de vir para aqui, conjeturavas tu.  Ou talvez ainda quisesse vir a sê-lo, a guerra do ultramar estava para dar e durar, pensava muito boa gente.  Estava, de resto, em idade para isso, para ser capelão. Teria cinco anos a mais do que tu, já a roçar os 30. Nunca lhe perguntaste a idade, por delicadeza. Vieste depois a saber que alguns dos seus paroquianos eram militares da EPI ou seus familiares.

Se bem recordas hoje, a quase meio século de distância, o teor da conversa (na realidade, um longo monólogo) girava à volta dos "prisioneiros" que a tropa fazia na Guiné. Ali não havia prisioneiros de guerra, garantias tu, ou se os havia não eram tratados como tal. Portugal não estava, técnica e legalmente, em guerra com nenhum país soberano, pelo que não podia haver prisioneiros de guerra. Mas tu nunca tinhas lido a Convenção de Genebra. Os guerrilheiros ou simpatisantes  do PAIGC quando aprisionados, no decurso da actividade operacional das nossas tropas, eram tratados como simples presos de delito comum. Ou seja, eram "turras". 

Sob tortura, davam informações relevantes sobre o dispositivo militar do PAIGC no setor ou região, bases ou “barracas” (acampamentos temporários), população, nome dos comandantes e dos comissários políticos, bigrupos, armamento, trilhos, depósitos de armamento, lojas do povo, locais de cambança, etc. Eram um "livro aberto"... E, claro, eram forçados a servir de guias para levarem a tropa até ao “objetivo”. 

Sempre fora assim, ainda antes do teu tempo,  e tu, como todos os outros graduados, quer do quadro, quer milicianos,  fechavam os olhos ou assobiavam para o lado. “Siga a marinha!", dizia o capitão. Nunca torturaste ninguém. Mas alguém tinha que fazer o trabalho sujo. Afinal, à guerra não era para meninos de coro.

Estavas a contar-lhes, ao padre e ao Bacelar (a tua atenta audiência),  as peripécias de uma operação em que tu comandavas a tua companhia, já com o teu capitão de baixa no hospital militar de Bissau. Havia outras forças envolvidas, e nomeadamente um pelotão de caçadores nativos e um pelotão de milícias que faziam parte do teu destacamento. 

A milícia seguia à frente a abrir caminho e  com o prisioneiro a servir de guia. Éram dois destacamentos, A e B, a avançar, numa manobra de envolvimento, “em tenaz”, para o “objetivo”, uma “barraca”, um acampamento onde estaria um bigrupo, ou menos (talvez cerca de 40 homens), situado a montante de um rio e na orla de uma mata espessa, de tipo floresta-galeria, ao longo da margem de um rio. Estavam bem armados, incluindo morteiro 81.

O prisioneiro era balanta, não falando uma única palavra de português. Era muito  jovem e bem constituído. O alferes de 2ª linha, que comandava o pelotão de milícias, mantinha com ele um difícil diálogo em crioulo. Tu seguias no seu encalce, dez metros atrás, com o teu guarda-costas, e o homem da bazuca. Percebest que o prisioneiro há mais de uma hora fazia tudo para despistar a tropa ou denunciar a sua presença, à medida que se aproximavam do objetivo.

Às tantas, foram detetados (o que era normal) por uma sentinela avançada, no alto de um bissilão,  que deu o sinal de alarme… O teu guarda-costas abateu-o, com um tiro certeiro, mas acabaram  por ser flagelados por fogo de armas pesadas.  De imediato, foram  vítimas de um brutal ataque de abelhas. 

Na confusão que logo ali se instalou, o prisioneiro ensaiou uma tentativa de fuga, mesmo algemado e preso a uma corda. O  milícia, que o conduzia foi suficientemente lesto para o impedir de se internar na mata, acabando por o alvejar no último segundo, já no fim de um dos  trilhos que levavam à “barraca”, e que ele devia conhecer, de olhos fechados.

Pelo PCV (Posto de Comando Volante), a avioneta onde estava o major de operações, receberam  ordens para abortar o assalto, uma vez gorado o efeito surpresa e o aparente desnorte das nossas tropas, dispersas pelo ataque de abelhas e a “morteirada” do inimigo. 

Reagruparam-se  na orla de uma bolanha, com o ferido a sangrar, enquanto os T-6 entraram em ação despejando bombas sobre o “objetivo”. E regressaram sob proteção do helicanhão.  

Foi nessa altura que o comandante da milícia, espumando de raiva, saltou sobre as costas do prisioneiro, como um verdadeiro felino, e rasgou-lhe a coluna vertebral de alto a baixo, com a sua faca de mato bem afiada. O prisioneiro caiu redondo no chão mas não teve morte fulminante. Ainda viste alguém, da milícia,  dar-lhe um tiro de misericórdia na nuca e cortar-lhe as orelhas, prática que, de resto, não era invulgar em circunstâncias com estas… Dizia-se que era um ritual guerreiro dos fulas, mas o Spínola deixou de achar graça, quando lhe meteram na cabeça que a guerra também se ganhava pelo charme, a "psico", o respeito pelo inimigo, blá-blá, blá-blá...


Ficaste sem pinga de sangue, nunca tinhas presenciado uma cena de guerra daquelas, nem nos filmes do faroeste onde era pressuposto os índios e os os cobóis tirarem o escalpe aos mortos. E não tiveste sequer tempo nem reflexos para impedir uma barbaridade daquelas. 

O mais grave é que, por cobardia ou para não arranjar chatices, omitiste esta cena no relatório que ajudaste a fazer com o comandante do outro destacamento, que era capitão.  Oficialmente, o prisioneiro-guia fora morto quando intentava fugir… E o alferes de 2ª linha  era um grande operacional, muito bem visto (e protegido) pelo comando do batalhão do setor. Falava-se já na sua próxima gradução em tenente, indo ao encontro da política de Spínola de "africanizar" cada vez mais a guerra. 

Estavas tu a acabar o relato deste triste episódio da tua guerra, quando da mesa ao lado salta um jovem que se dirige ao padre e diz com veemência:

 É tudo mentira, senhor padre!... Uma infâmia, uma calúnia!... Isso nunca poderia ter acontecido na nossa querida Guiné e muito menos por homens que envergam e honram a nossa farda. O senhor meu pai, oficial superior em Bissau [disse o nome, o posto , a unidade, etc.] , está lá, neste momento, rezo por ele todas s noites e  sei que ele nunca pactuaria com práticas indignas de um exército que defende a nossa pátria e os valores da nossa civilização cristã e ocidental!...

O padre, reconhecendo de imediato o jovem (ou talvez ainda adolescente)  e temendo pela tua integridade física, arrastou-o com força para um canto da sala e fez tudo para o acalmar… Não contaste os minutos, tu próprio estavas perplexo e chocado com toda aquela violência verbal, intempestiva e  gratuita… 

Passaram-se talvez uns bons vinte minutos,  foi longa (e áspera) a conversa do padre com o jovem… De copo de água na mão, o jovem parecia, no entanto,  estar a acatar a autoridade do padre, que o tentava acalmar… Por fim, lá saiu da sala, em passo estugado, mas não sem antes te voltar a fulminar com o olhar. Por certo que ficaste marcado, pensaste tu com os teus botões. Ficaste com a ideia de que, a partir daquele momento, tinhas ganho mais um inimigo naquela maldita terra.

O padre regressou à mesa, limpando o suor da testa, aliviando a pressão do cabeção no pescoço, ao mesmo tempo que pedia desculpa e tentava ensaiar uma explicação para aquele assomo de violência juvenil:


 É um paroquiano meu, excelente rapaz mas muito impulsivo. Conheço-o há uns boms anos. É filho de uma ilustre família de militares... Mas podemos considerá-lo “órfão de pai”, cresceu com o pai em África. Tem uma enorme admiração pela figura paterna e prepara-se para ingressar na Academia Militar, daqui a dois anos...

O Bacelar saiu contigo, mudo e calado. Mas incomado, tanto ou mais do que tu e o padre. Nunca mais os três falaram do  assunto.


8A. Epílogo


Infelizmente, o  Bacelar já não está cá, entre os vivos, para se poder continuar a manter esta espécie de monólogo a dois... 

 Como o tempo passou, meu Deus!

O Bacelar morreu num estúpido acidente de trator agrícola, há uns anos atrás, trinta e muitos anos depois de 1974. Numa vinha, nova, em socalco, que ele plantara e amanhara com uma paixão e um carinho que te comoveram, até às lágrimas, quando lá foste participar numa vindima, talvez por volta de 1997, se não erras, altura em que ele fez 50 anos. Tinha uma bela vinha com castas loureiro e alvarinho. "Era a menina bonita dos seus olhos"... Não tinha filhos, ficara solteiro...

“Contra todas as probabilidades”, como dizia ele, os dois ficaram  amigos para o resto da vida. E, no entanto, só conviveram em Mafra, menos de dois anos, separando-se já no final do verão de 1974, talvez em outubro.  Conseguiram a tão almejada transferência, tu para a Repartição Central do Imposto Complementar, em Lisboa, na Rua Braamcamp, e ele, para mais perto de casa, na cidade dos arcebispos e, mais tarde, para a sua terra.

Acabaste por tirar o curso de direito, em Lisboa, graças ao teu estatuto de trabalhador-estudante e beneficiando igualmente das regalias de antigo combatente. Cinco ou seis anos depois, no início dos anos 80, concorreste a um lugar de técnico superior de 2ª classe no Ministério do Trabalho e Segurança Social. Foste para uma área de que gostavas, e tinha a ver com as condições de trabalho, incluindo a higiene e segurança e matérias afins. Ajudaste  a elaborar diversos materiais de divulgação e sensibilização, fichas técnicas, brochuras, cartazes, etc. Interessaste-te, em especial, por sectores de elevada sinistralidade como as minas e pedreiras, a construção e obras pública, a agricultura e pescas, a metalomecânica.

Era um trabalho de algum modo pioneiro em Portugal, acabaste mais tarde por ir parar, com as sucessivas reestruturações do Ministério, sito na Praça de Londres, a um instituto que antecedeu a atual ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho.

Do sindicalismo das contribuições e impostos, já não tinhas saudades nenhumas. Ainda ajudaras a criar e a alimentar um boletim, "A Forja", que era tirado a "stencil". Aquilo acabou por descambar num sindicalismo corporativo, populista,  que é o que há hoje em Portugal, ainda com alguma força reivindicativa, dos professores aos magistrados, dos estivadores aos condutores de longo curso, maquinistas de comboios, pilotos da TAP, polícias e quejandos... São essas corporações, algo mafiosas (como os gajos da estiva),  que podem parar um país... Podem usar a bomba atómica, é certo, que é a greve e  a paralização de sectores-chave da economia, mas também têm que saber muito bem calcular e prevenir os seus efeitos de "boomerang"...

Com o tempo de tropa, e os 36 anos de função pública,  reformaste-te. E passste a  dedicar-te aos cães e aos netos. Tinhas um pequeno monte, não longe da terra onde foste parido, na freguesia de São João dos Caldeireiros, lá no cu de Judas, no "país profundo", com diziam os gajos politicamente corretos, e que tu não sabias o que queria dizer... Devia ser a forma eufemística ou cínica de chamar-lhe a periferia das periferias, onde só havia coutadas,  de meia dúzia de granjolas, e onde já chegara o pré-Saara, o deserto...que nos há de cobrir a todos.

Tens pena, hoje,  de nunca ter feito o estágio de advocacia, de modo a teres podido exercer a profissão a tempo inteiro. Entraste para a função pública, tramaste-te, não quiseste trocar o certo pelo incerto, tu que chamavas "pequeno-burguês" ao pobre diabo do Bacelar.  Mas, pelo que vês hoje, a profissão de advogado já não é o que era. São os grandes escritórios que fazem a lei... E o idealismo de outrora desvaneceu-se. Como tudo, de quando eu eras jovem e ainda sonhavas com um mundo totalmente diferente daquele em que nasceras, tu que eras filho de mineiro e neto de ganhão. 

Só esperas que não te dê tão cedo o badagaio. Querias morrer lúcido, em paz contigo e, se possível, com os outros, o que se calhar é pedir demais. Vais ter que negociar com o teu gestor de conta do além.

Não, não casaste com a rapariga de Beja, que estava à tua espera. Fartou-se de esperar e fez ela muito bem. Um dia encontrou na rua, ao virar da esquina, o primeiro namorado, do tempo de escola, e lá juntaram os trapinhos. Nada como a primeira grande paixão,  sempre ouviste dizer.  Só esperas que ela tenha sido mais feliz do que tu foste.

Já do Bacelar não sabias tantos pormenores do resto da  sua história de vida. Andou atrelado a uma francesa, no verão de 1974. Chegou a levá-la à sua terra, para escândalo da mãezinha. 

Aliás, andaram atrelados, os dois. Ela tinha uma amiga ou irmã,já não não te lembras bem. Despacharam os “copains”, que vinham com elas, e que foram atrás das portuguesinhas de Lisboa. Vieram, num “dois cavalos”, ver a “révolution des oeillets”, a revolução dos cravos, ao vivo e a cores. Portugal, país liliputiano,  que não cabia na geografia do mundo, passou a ser, nesse tempo,  uma espécie de jardim zoológico da Europa. Chegaram cá fotógrafos famosos, tiraram umas chapas e depois esqueceram Portugal e os portugueses por mais umas boas dezenas de anos.

O Bacelar, esse,  acabou por dar um salto até aos Alpes Franceses, já em setembro de 1974, na “rentrée”. As raparigas eram da região de Grenoble. Foi uma espécie de “summer school”, completa, mas sem direito a certificado em papel timbrado, com o “Capital” do Karl Marx, o “Kama Sutra”, os maços de cigarros “Gitanes”, e a garrafa de vinho do Porto Ferreirinha, enrolados nos lençóis encardidos. 

As tipas, finalistas de liceu, eram muito mais politizadas e "sabidas"  do que ambos. O Bacelar era obrigado a recitar o “livrinho vermelho”, a bíblia do maoísmo, antes de ir para a cama com a sua “copine”. A que te calhou na rifa era mais dada à poesia e à música de contestação, o Brel, Moustaki, o Leo Ferré… Nada de Dassin ou Bécaud, que eram pirosos, mas os únicos que o Bacelar e tu conheciam … 

Enfim, melhoraste substancialmente o teu francês de praia nesse tardio verão de 1974. Mas não acompanhaste o Bacelar nas aventuras em França, país de resto que tu já conhecias, do trabalho duro, de sol a sol nas vinhas de Bordéus… Trabalho de escravo branco, diga-se de passagem.

O argumento era o do costume, e fez-te recuar até à Guiné: 

− Bacelar, alguém tem de ter a cabeça fresca e  ir trabalhar… 

Na realidade, tu sentias-te mal por andarem os dois  com miúdas muito mais novas. Caiste na realidade. Aquilo não tinha nada a ver contigo. E lá foram os três no Mini! O "dom Juan" do Bacelar e as catraias... Não sabes como o Bacelar conseguiu a proeza, de ir e vir… num Mini já com muitos milhares de quilómetros no contador…

O “açoriano”, o chefe, levantou-lhe um processo disciplinar por faltas injustificadas. Nesse tempo ainda havia livro de ponto. Intercedeste pelo teu “amigo improvável”, usando (e talvez abusando de) as tuas funções, 
na altura, de delegado sindical, "eleito democraticamente", em lista única, de braço no ar (e com três ou quatro votos contra, como seria de esperar). E sobretudo fartaste-me de esgalhar para compensar o trabalho em falta do Bacelar. 

O tio-avô dele, já reformadíssimo, arranjou-lhe um atestado médico. E, com a “boa vontade de todos”, o caso foi abafado e a “ficha” do Bacelar voltou a ficar limpinha… 

O Portugal do pós-25 de Abril era  um país de gente porreira… Perguntas-te hoje por que razão é que o fizeste, por um tipo que afinal tinha poucas afinidades contigo… 

És capaz de responder que foi simplesmente por amizade (e quiçá por camaradagem), que veio na sequência da situação de “companheiros de infortúnio”,  quando colocados como "mangas da alpaca" na repartição de finanças de Mafra… Afinal, a política, a religião, a ideologia... não eram tudo na vida, foi a conclusão a que tu chegaste, da tua vivência desses tempos.

Nesse final de verão de 1974, ou já princícpio de outono,  descobriste de repente que, ao despedirem-se,  tinhas ganho um amigo, na realidade o primeiro amigo do peito que ganhavas em vida… Despediram-se com um valente  "quebra-costelas"  e uma indisfarçável lágrima ao canto do olho... Prometeram visitar-se um ao outro,  em próxima oportunidade. O que só viria a acontecer em 1977, três anos depois, por ocasião do seu (e dele) 30º aniversário natalício. Ele veio até Lisboa, dessa vez.

Entretanto, em 1974, depois do 25 de Abril, o  "grupinho do adjunto e das meninas" andava de crista murcha, mas não escondia a sua hostilidade crescente para com o “sindicalista”, que eras tu. O Bacelar apanhava por tabela, apenas por ser teu amigo...  

Disseram-te depois que, a partir do verão de 1975, voltaram a sentir-se de novo em casa, com a baiuca por sua conta. A paz voltou a reinar no convento, se bem que as alegres noitadas de da última sexta feira de cada mês já não se voltaram a repetir, tal como as "ceias de Natal do fisco"… A "madama" sumiu-se, os empresários tinham mais com que se preocupar...

Com o início da informatização das contribuições e impostos e da modernização administrativa, incluindo uma nova gestão de recursos  humanos, começou a imperar uma certa moralidade, rigor e transparência... 

Entretanto o “açoriano” fora promovido e regressara à sua ilha natal.   O jovem candidato  à Academia Militar  não sabes se chegou a concorrer e  a entrar, já com a "guerra de África" arrumada.  E do padre, teu amigo e do Bacelar,  também não nunca mais soubeste nada. E a história deste país, já quase com 900 anos,  lá seguiu o seu curso a caminho do novo milénio.

Em Mafra, não deixaste amigos, infelizmente, mas queres aqui reconhecer que era terra de boa gente, e sobretudo trabalhadora. Embora tu nunca te tenhas reconciliado com a "Máfrica", mas isso é outra história.

O mais triste de tudo  foi  a perda, afinal, de um grande amigo, morto estupidamente debaixo de um tractor que ele comprara, em segunda mão  e, por ironia, não obedecia às normas nacionais e europeias de segurança, faltando-lhe por exemplo as estruturas de segurança (nomeadamemte, o arco de segurança, rebatível)...

E tu que, da única vez que lá foste, à sua casa nos arredores de Ponte de Lima, a chamar-lhe a atenção: "Oh!, Bacelar, olha que um dia destes ainda cais de um socalco e ficas debaixo do trator!"... 

Meu dito, meu feito!... Tal como ao do teu pai, não foste ao seu funeral... Só soubeste da triste notícia uns largos tempos depois. Por um mero acaso. Quando passaste por Ponte de Lima e lembraste-te de perguntar a alguém por ele.


© Luís Graça (2021). Revisto em 15 de abril de 2024.


Nota do autor: Neste conto, os nomes (de pessoas e lugares) são fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

___________

Nota do editor:

(*) Poste anterior da série > 15 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25391: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (25): Um país de gente porreira - Parte I

domingo, 7 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25349: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (7): Uma estória passada no Pelundo, na escolta a um transporte de rachas de cibes: periquitos e velhinhos...


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Canchungo > Pelundo > 2008 > Restos do antigo quartel português, ao tempo do BART 6521/72 (Pelundo, 22/9/1972 - 27/8/1974), a unidade que fez a transferência de soberania para o PAIGC, e que era comandado pelo Ten Cor Art Luís Filipe de Albuquerque Campos Ferreira.   

A foto foi-nos enviada, em setembro de 2008, juntamente com as fotos de uma série de ex-camaradas nossos,  manjacos do Pelundo (que estiveram ao serviço do exército português e para quem se pedia apoio), pelo sociólogo António Alberto Alves  que residia na altura (e desde 2006) em Canchungo (antiga Teixeira Pinto) e trabalhava para uma ONGD portuguesa.

Foto: © António Alberto Alves (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário de Joaquim Luis Fernandes ao poste P25341 (*), que decidimos incluir na sua série "Acordar Memórias" (**): o nosso camarada leiriense foi alf mil, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973, e Depósito de Adidos, Brá, 1974:


Este tema das rachas dos cibes (*), usados nas estruturas das coberturas das casas nos reordenamentos na Guiné, mas também no geral, na cobertura das casas das aldeias, vilas e cidades, traz-me à memória um episódio que vivi na Guiné, em fevereiro de 1973, que me ficou gravado bem fundo.

Estaria na 2ª ou 3ª semana de Teixeira Pinto (muito periquito). Recebi ordens para fazer a escolta ao soldado (ou cabo) da Engenharia, adido no BCAÇ 3863 em Teixeira Pinto, que iria, com pessoal civil, recolher uma carrada de rachas de cibes, nas matas que se situavam entre o Pelundo e Jolmete.

No dia seguinte, saímos logo pela manhã com 2 secções a escoltar a viatura de transporte, creio que uma Mercedes, onde iam os carregadores e o responsável da Engenharia. Eu ia num Unimog com uma secção e um furriel (já velhinho) num outro.

Do Comando, nada me disseram do local onde iríamos fazer a escolta, mas quando nos preparávamos para iniciar a marcha, fui informados por um ou mais soldados, os mais próximos, o que tinha acontecido nessa picada, entre o Pelundo e Jolmete, em 1970: o assassínio pela guerrilha do PAIGC, de três Majores, um Alferes e os seus três acompanhantes nativos. 

Fizeram-me a descrição como sabiam, que eu ignorava completamente. Inicialmente passou-me pela cabeça que o que estavam a dizer era só para assustarem o alferes periquito que os comandava. Depois, tomei consciência de que tinha sido verdade e que o local para onde íamos comportava alguns riscos.

Chegados ao local sem incidentes, montámos um cordão de segurança ao redor da área onde era feito o carregamento dos cibes. Eu (periquito e receoso) orientei uma secção como me pareceu melhor e o Furriel (velhinho) orientou a outra.

Terminado o carregamento, preparámos o regresso. O Unimog onde eu ia, seguia à frente, a seguir a viatura de carga e na retaguarda a outra secção. Tudo tinha corrido bem e isso tranquilizava-me.

No regresso, já com o sol a castigar forte, ao aproximarmo-nos do Pelundo, os soldados mais próximos, sugerem-me que parassemos no quartel do Pelundo, para matarmos a sede com umas cervejas frescas. Cedi à sugestão e,  aí chegados, foi deixar as viaturas e ir direito ao bar do soldado, um balcão que dava para o exterior.

Quanto todos estavam reunidos em frente a esse balcão, verifico que o Furriel e um outro soldado não estavam presentes. Senti um calafrio, terei ruborizado que nem um tomate maduro. O que teria acontecido para não terem vindo? 

Senti o peso da responsabilidade por não ter verificado se estavam todos presentes antes de iniciarmos a marcha de regresso. Vários cenários me passaram pela cabeça. A decisão foi voltarmos ao local onde tínhamos estado na esperança de que os encontraríamos.

E assim aconteceu: bastante antes de chegar ao local onde tinhamos estado, lá vinham eles a pé pela picada, com a G3 nas mãos (ou à bandoleira, ou ao ombro)

Não sei (não me lembro) se alguma vez disseram porque não tomaram o transporte no regresso. Também não compreendo como o condutor do Unimog e os outros soldados dessa secção não deram pela sua falta.

Como isto não é uma estória de ficção, só concluo que naquela guerra havia muita balda e falta de rigor no cumprimento das missões. Por isso às vezes aconteciam azares graves que não deviam acontecer.

Serviu-me de lição este episódio e durante o resto do tempo que passei em Teixeira Pinto, em missões de escoltas e patrulhamentos, passei a ser mais cuidadoso, evitando quanto possível as baldas e seguindo os ensinamentos que tinha recebido na instrução: "suor gasto na instrução e na disciplina, é sangue poupado no combate".

E a minha coroa de glória, é que daqueles que me acompanharam, não perdi nenhum.

Abraços
JLFernandes

6 de abril de 2024 às 00:41
____________

sábado, 6 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25344: Reordenamentos Populacionais (4): Uma perspetiva mais "securitária", no final do mandato de Arnaldo Schulz: em março e abril de 1968, foram deslocadas e reagrupadas cerca de 3 mil pessoas do "chão balanta"

Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá  > Geba > CART 1690 (1967/69) >  Cartazes da propaganda das NT, s/d. Imagem da coleção do Alfredo Reis, ex-alf mil, hoje  veterinário, reformado, vivendo em Santarém.  Nesta imagem, retrata-se o com-chefe e governador-geral gen Arnaldo Schulz (o militar em primeiro plano, do lado esquerdo, ladeado pelo comandante militar, que era brigadeiro). A "nova tabanca" , reordenada, ainda tem casas com cobertura de colmo...

Foto: © Alfredo Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Zona Oeste > Região do Óio > Sector 03(A) (Mansoa) > Porto Gole > Fevereiro de 1967 >  À despedida: em segundo plano, o  gen Arnaldo Schulz ao lado do piloto do helicóptero;  no banco de trás, duas caixas de cerveja, Sagres e Cristal; em primeiro plano, à esquerda, um cabo especialista da FAP e, à direita, o fur mil Viegas, do Pel Caç Nat 54,  com camuflado paraquedista trocado com um camarada numa operação no Morés em outubro de 1966.

Foto (e legenda) : © José António Viegas (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. Já aqui dissemos que nos 3 livros da CECA (Comissão para o  Estudo da Campanhas de África), sobre a atividade operacional no CTIG (de 1963 a 1974), não há qualquer referência a reordenamentos no primeiro (que vai até ao final de 1966, ou seja até meados do mandato do gen Arnaldo Schulz, como Com-Chefe e Governador do território) (*). 

É já só no final do mandato (1.º semestre de 1968), que aparecem as primeiras referências a reordenanentos, mas sempre associados a deslocamentos de populações, realojamentos, controlo, segurança, autodefesa... Ainda não é suficientemente explícito o binómio reordenamento populacional/desenvolvimento socioeconómico (que é uma marca spinolista). 

 Já no  livro 2 (1967-1970) há  cerca de 70 referências ao descritor "reordenamentos". No 3º (último) livro da CECA sobre a atividade operacional na Guiné (1971/74) são 63 as referências.

O brig Spínola assumirá funções, como Com-Chefe e Governador da Guinél, em 24 de maio de 1968, e logo em 3 de junho, na sequência de uma reunião no QG/CTIG, é publicada a Directiva n.° 2/68, que "ordena o estudo imediato da remodelação do dispositivo na área de Aldeia Formosa por forma a obter o rápido reordenamento e instalação das tabancas em autodefesa, respeitando o princípio da concentração de meios", a ser concretizada "antes da época das chuvas".

Em 30 de setembro, sai outra importante diretiva,   Directiva n.º 43/68 ("Porque o reordenamento das populações e a sequente organização das tabancas em autodefesa é um problema complexo e que requer técnica especializada, é determinado o seu estudo num dos departamentos do Gabinete Militar do Comando-Chefe "(...). E em 16 de outubro, a Directiva n.° 49/68 (Relações da Divisão de Organização e Defesa das Populações  com o CTIG e Autoridades Administrativas).

 No essencial, a doutrina do novo Com-chefe sobre sobre o assunto ("Reordenamento das populações e organização da autodefesa") é definida nesta época (1968/70).

Nesse 2.º semestre de 1968 saem dezenas de diretivas Directivas do Comandante-Chefe. Eis algumas das mais relevantes, por tema e número:

- Dispositivo (zona sul): números 1 a 6, 9, 10, 14, 15 e 40

- Defesa de Bissau - números 8, 16 e 21

- Operações - números 24, 25 e 35

- Contrapenetração: números 7, 22, 26 a 29, 32, 37, 52 e 54

- Remodelação do dispositivo: números 17, 20, 36, 42, 51 e 56

- Defesa das populações e autodefesa: números 39, 41, 43, 47 e 53

- Assuntos diversos: números 30, 45, 48, 57 a 59

- Reordenamento e defesa das populações: números 43 e 49

- Operações Psicológicas: "Alfa" e número 60


II. Nos últimos meses do mandato de Schulz, ainda em época seca (março e abril de 1968),  parece ter havido um incremento das deslocações e realojamentos de populações sobre controlo do IN ou sob duplo controlo, nomeadamente no "chão balanta", no Sector Oeste 3(A), Mansoa, e Sector Oeste 01, Bula.

Terão sido da ordem das 3 mil as pessoas deslocadas e regrupadas nos primeiros reordenamentos em construção na Zona Oeste (Enxalé, Bissá, Infandre, Braia, Rossum, Bindoro, Biambe).

Aqui fica um excerto do livro 2 da CECA (pág. 160): 

(...) "Para controlo e segurança das populações, estas foram reordenadas, segundo missões atribuídas aos Comandos de Sector.

Especialmente nos meses de março e abril de 1968, foram efectuadas operações para instalar as populações em reordenamentos. Em NEP, foram dadas instruções para que se organizassem as tabancas em autodefesa.

Com a finalidade de garantir a segurança das populações nos deslocamentos para núcleos reordenados, as NT executaram as operações:

  • "Fruta de Outono" (10 e 11Mar), na região de Calicunda, Sector 03(A), 247 elementos da população para Enxalé.
  • "Fruta de Outono II" (13 a 19Mar), na região de Calicunda, Sector 03(A), população das tabancas da área para Porto Gole e de Seé e Funcor (60 elementos) para Bissá.
  • "Baloiço Nocturno" (26Mar), recolhida a população (224) de Ponta de S. Vicente, Sector 01.
  •  "Espenda" (29Mar), recolhidos 14 elementos da população de Cã Cumba, Sector 03.
  •  "Uvas Douradas" (10 a 12Abr), das tabancas de Uanquelim, Claqueiala, Inquida e Nhaé, Secto 03(A) foram deslocadas para local de reordenamento 510 elementos da população.
  • "Mudança Volumosa" (15 a 18Abr), das tabancas de Nimane, Enchanque, Encorne, Contubó e Nhenque, Sector 03(A), foram evacuados 150 elementos da população para Infandre e Braia.
  •  "Romã Amarga" (22 a 24Abr), 500 elementos da população de Ansonhe, Sector 03(A), foram deslocados para o núcleo reordenado de Bissá.
  • "Mudança a Varrer" (22 a 24Abr), da região entre Polibaque e Bindoro, Sector 03(A), foram evacuados 330 elementos da população para Bindoro.
  •  "Ananás ao Jantar" (26 a 29Abr), das regiões de Enchugal e Bissorã para Rossum, Sector 03(A), foram evacuados 600 elementos da população.
  •  "Grande Pera" (29 e 30Abr), a população de Gambia e Birribaque, Sector 03(A), recolhida para Rossum.
  •  "Barrar" (24Abr), retirados da região de Claque, Sector 01, 190 elementos da população para Biambe. "(...)

III. A preocupação era então predominantemente "securirária", a avaliar pelo teor da Nota n° 2310,  de 29 de abril de 1968,  da 3ª Rep/QG/CTIG), que se reproduz  a seguir (Anexo nº 2,  Capítulo II - Ano de 1968)

Cap II - Ano de 1968 / Anexo n° 2 - Autodefesa das Populações

"Sobre o assunto acima referido encarrega-me Sua Ex", o Brigadeiro Comandante Militar de transmitir a V. Ex". o seguinte:

1. Ao lN é indispensável o apoio da população na obtenção de alimentos e informações e no recrutamento de novos combatentes.

Torna-se assim necessário e urgente isolar o lN das populações, continuando activa e persistentemente os trabalhos de reordenamento das populações da Guiné, já encetados por algumas unidades.

Antecipemo-nos em relação às populações que não colaboram com o lN. Disputemos-lhe as populações sob duplo controlo. Retiremos-lhe as que vivem sob o seu controlo.

2. O reordenamento pode fazer-se por agrupamento ou por dispersão. O agrupamento facilita o controle das populações duvidosas ou anteriormente afectas ao ln, mas tem como limite a capacidade de protecção das guarnições militares e as possibilidades de exploração local dos meios de vida.

A dispersão das populações fiéis facilita a cobertura do território com uma malha de tabancas capazes de detectarem a presença e os movimentos do ln, mas tem como limite a capacidade deautodefesa dessas tabancas.

Os Srs. Comandantes ajuizarão para cada caso a solução local mais conveniente, considerando aqueles limites, o grau de confiança das populações e a conveniência de reduzir as suas transferências.

3. O reordenamento das populações tem como finalidade o controlo e a segurança das mesmas.

O controlo obtém-se pelo enquadramento das populações pelas autoridades locais, militares, administrativas e policiais. Estas autoridades coordenam a sua acção nos problemas de influência recíproca através do CADMIL (Conselho Administrativo Militar).

Aquele enquadramento é reforçado e completado até aos maisn pequenos núcleos populacionais pelas autoridades gentílicas (régulos, chefes de povo, de tabanca e de morança).

As autoridades gentílicas devem ser escolhidas respeitando embora as tradições indígenas mas atendendo sobretudo ao seu prestígio, capacidade de chefia e lealdade à causa nacional.

Além do recenseamento, o controlo exerce-se sobre as actividades da população, os abastecimentos, os meios de transmissão e de informação, o armamento, etc.

Os Srs Comandantes promoverão que sejam adoptadas, em colaboração directa com as AA ou através do CADMIL, todas as medidas necessárias ao cerrado controle das populações.

4. O reordenamento tem de completar-se com a segurança das populações. Só a população defendida pode resistir às acções de intimidação e de força do lN. Não é possível, porém, destacar tropas para a protecção de todas as tabancas, nem concentrar todas as populações junto das guarnições existentes. Daí a necessidade de organizar em autodefesa as tabancas afastadas das guarnições militares.

5. Para sobreviverem, as tabancas têm de possuir a capacidade de resistência suficiente até ao seu socorro pelas NT ou por grupos móveis de tabancas vizinhas.

Para tanto, convém que estejam localizadas em zonas com condições de defesa, junto de um itinerário de socorro, picado e vigiado pela própria população, e que a sua organização do terreno e o seu armamento sejam tanto mais fortes quanto mais demorada for a chegada das forças do socorro.

Apesar disso, para uma resistência eficaz, não é indispensável que a autodefesa tenha armas idênticas às do lN (mort, mp, lgfog, etc.). A defesa usa-se para economizar meios e, por mais armas que tenhamos, o lN pode sempre reunir mais porque escolhe a tabanca e o momento de a atacar.

Contra os fogos lN, incluindo os de mort e lgfog, basta construir um espaldão à volta da tabanca e abrigos protegidos para o pessoal da defesa e população não válida.

Contra o assalto lN, é necessária uma cintura de rede de arame farpado com avisadores sonoros (garrafas e latas com pedras), batida eficazmente de posições de tiro de espingarda bem distribuida a toda à volta, granadas de mão e alguns dilagramas.

Contra a surpresa, uma vigilância permanente, noite e dia, com as sentinelas suficientes e a população laborando protegida pelos nhomens válidos com as armas à mão.

Contra a reunião de meios lN, há que responder com o socorro oportuno pelas NT ou por grupos móveis das tabancas vizinhas. Com efeito, quando o número de elementos válidos o permitir, poderá constituir-se, com o excedente da autodefesa, grupos móveis, de reacção ou de socorro, que procurarão envolver e cortar a retirada ao ln.

6. Tal como para o reordenamento, as populações têm de ser micialmente compelidas e depois insistentemente mentalizadas para a organização em autodefesa, até à sua adesão voluntária e colaborante pelo reconhecimento da eficácia do sistema, aliviando-se então progressiva e gradualmente a protecção directa pelas NT. Compelir, fazer e demonstrar depois.

7. Uma acção social bem orientada pode facilitar extraordinariamente o trabalho de mentalização das populações para a autodefesa, ganhando a sua confiança e tomando-as receptivas e colaborantes.

Assim, as tabancas em organização ou já organizadas em autodefesa devem ter a prioridade na assistência sanitária, educativa e económica a prestar pelas NT.

8. A autodefesa tem de acompanhar o reordenamento e começar desde já pelas populações mais colaborantes.

Para o efeito, cada Companhia poderá destacar uma força para junto de uma das tabancas fiéis e já reordenadas a fim de:

  • seleccionar o pessoal válido para a defesa;
  • distribuir armas e instruí-lo no tiro e na conduta da defesa;
  • de entre os mais aptos e de maior confiança, seleccionar os chefes de grupo e o responsável geral da defesa;
  • definir claramente as responsabilidades de cada um;
  • estimular a colaboração de todos e o prestígio dos elementos activos da defesa, em particular dos chefes com atribuição de poderes especiais, de armas melhores, etc.
  • instituir um sistema eficaz e, se possível secreto, de aviso e socorro;
  • mentalizar a população para a autodefesa e prestar-lhe toda a assistência sanitária, educativa e económica possível;
  • obrigar toda a população, com aptidões para tal, a participar nos trabalhos de organização do terreno, repartindo contudo as tarefas por forma a não afectar sensivelmente as suas condições de vida;
  • treinar com toda a população, até completa eficiência e automatismo, as medidas de vigilância, de alarme e de defesa.

A operação será depois repetida até à organização em autodefesa de todas as tabancas reordenadas.

9. Só às populações de confiança ou psicologicamente recuperadas se pode distribuir armas e munições sem o risco das mesmas serem entregues ao ln.

A protecção das populações duvidosas tem de ser feita pela guarnição militar mais próxima.

Em caso algum, as populações serão incluídas no perímetro defensivo das unidades. Poderão quanto muito, ser incluídas no seu perímetro exterior de vigilância, garantidos os campos de tiro do reduto da defesa e a saída fácil das forças de reacção.

10. Os Srs. Comandantes informarão o QG das tabancas em trabalhos de autodefesa, com a organização concluída e dos resultados obtidos.

11. A presente Circular adita as NEP-OP/CAP IV-l da 3a Rep/QG.

(Nota n° 2310 de 29 de Abril de 1968 da 3a Rep/QG/CTIG) (CECA; 2015, pp 260/263)

Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro 2 (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014, 604 pp.)

(Seleção, revisão / fixação de texto: LG)
__________

Nota do editor:

Último poste da série > 5 de abril de  2024 > Guiné 61/74 - P25341: Reordenamentos Populacionais (3): Na construção de casas usa-se, como vigas, as rachas de palmeira (de cibe, mas também de dendém) (Cherno Baldé, Bissau)

sábado, 23 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23455: (Ex)citações (411): Cuidado com o "fogo amigo", cuidado com o dilagrama, cuidado com a granada defensiva... (António J. Pereira da Costa / Luís Graça)

1. Comentários 
ao poste P23450 (*):

(i) António J. Pereira da Costa 

As granadas de mão defensivas era de difusão / utilização restrita. Eram perigosas, como se recordam, pois semeavam estilhaços ao fim 4-5 segundos depois de lançadas. Os dilagramas que as usavam tinham também uma utilização restrita, muito cuidadosa e o número de homens que os carregavam era pequeno, talvez um em cada Gr Comb,  em média. 

Em todas as minhas guerras usei uma Granada Defensiva e como armadilha e não lançada. As incendiárias eram úteis nos golpes-de-mão e as ofensivas eram uma pequena carga explosiva que se usava também em golpes-de-mão...

22 de julho de 2022 às 16:30

(ii) Tabanca Grande Luís Graça:

Concordo inteiramente contigo, Tó Zé: o primeiro morto (ou um dos primeiros mortos) da 1ª Companhia de Comandos Africanos, que estava em formação em Fá Mandinga, setor de Bambadinca, no 1.º semestre de 1970, foi um furriel, cortado ao meio ao pisar uma mina A/P... Levava o cinturão carregado de granadas defensivas... que rebentaram por simpatia.

Vi o seu corpo na nossa capela (que funcionava como casa mortuária)... Nunca levei uma granada defensiva para o mato... Alguns dos nossos, da CCAÇ 12, primeiros feridos foram provocados por falha na utilização do diligrama, num golpe de mão... Não fui atingido por milagre..."Branqueámos" o acidente para salvar a pele ao alferes... (que, por capricho, quis ser ele a levar o dilagrama)... Histórias tristes...

22 de julho de 2022 às 22:23

(iii) António J. Pereira da  Costa:

(...) Quer se queira, quer se não queira, o recurso a certas armas de apoio - morteiros 60, LGF 8.9 e dilagramas - deveria ser feito com muito cuidado e, num contacto próximo com o In não tinham aplicação imediata.  

Atenção aos dilagramas que batiam nas árvores e... caíam mais perto. Além disso, a precipitação do lançamento deu lugar a desastres. Por mim descartei o LGFog 8,9 por ser pesado, incómodo e, em emboscadas sofridas ou montadas, de utilização problemática. Contudo, em ataques "ao arame" podia revelar-se útil. Já o lança-rockts 37 mm tinha utilidade e, se bem usado, era muito eficaz. Mas este não está nas estatísticas. (...)

23 de julho de 2022 às 10:12

(iv) Tabanca Grande Luís Graça;

Ver o meu conto:

21  de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19705: A galeria dos meus heróis (28): Alfa Baldé, apontador de dilagrama, morto por "fogo amigo"... (Luís Graça)

(...) E de repente, o capim. O capim alto. O sangue. O capim pisado e empapado de sangue. Pobre Alfa, morto por um dilagrama dos nossos. Alguém branqueou a tua morte no relatório da operação. Alguém salvou a honra da companhia. Alguém safou o teu/meu comandante de uma porrada do Spínola. Um dilagrama rebentou no ar, na tua cara, nas nossas caras. Um dilagrama dos nossos. O teu dilagrama, empunhado pelo nosso "alfero"...

Não, não sei o que lhe deu, ao "alfero", para à última hora ter decidido tirar-te o dilagrama e ter-te confiado o prisioneiro, que estava à guarda do Mamadu Camará. (...)


(v) Tabanca Grande Luís Graça:

Um verdadeiro "boomerang", o dilagrama, nas matas cerradas da Guiné... Deve haver para aí muitas outras histórias de mortos e feridos graves devido ao "fogo amigo" do dilagrama... E não só: eu apanhei com o "cone de fogo" de um LGFog 8,9 (!), na resposta a uma emboscada... Podia ter lerpado, se estivesse ainda mais perto do raio da bazuca. (...) (**)

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23130: Fotos à procura de... uma legenda (164): Bindoro, fevereiro de 1970: Unimog 404, em movimento, com militares e civis (balantas) à mistura, tirada pelo capelão Neves, da CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71)


Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > CCAÇ 2588 > Fevereiro de 1970 > Destacamento de Bindoro > Coluna, com elementos civis, de etnia balanta. (*)

Foto (e legenda): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Esta foto, do álbum do nosso camarada José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71), merece uma "melhor legenda", mesmo em dia de mentiras (como é tradicionalmente o 1 de abril).

Fica aqui o desafio aos nossos leitores, que são bons observadores (**). Acrescentamos apenas que:  

(i) foi tirada em andamento (e até está ligeiramente tremida); 

(ii) aquando de uma coluna para Bindoro (ou vinda de Bindoro, não podemos precisar), no sector de Mansoa;

(iii) em fevereiro de 1970;

(iv) vendo-se  que, no Unimog 404, se misturam,  num equilíbro difícil, civis (balantas, homens e mulheres) com militares que fazem a segurança...
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de maeço de  2022 > Guiné 61/74 - P23125: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte I: Destacamento de Bindoro fevereiro de 1970, guarnecido por forças da CCAÇ 2588


Podia também ser publicada na série "Passatempos de verão" (embora ainda estejamos na primavera):

domingo, 13 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23074: Memória dos lugares (437): Rio Mansoa, destacamento de João Landim (Victor Costa, ex-fur mil at inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5

 Guiné > Região do Cacheu > Rio Mansoa >  Destacamento de  João Landim

Fotos (e legendas): © Viictor Costa (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região do Cacheu > Rio Mansoa > João Landim > 1965/66 > A famosa jangada que atravessava o Rio Mansoa em João Landim, ligando Bissau com a região do Cacheu

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2005). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Cacheu > Mapa de Bula (1953) > Escala 1/50 mil > Pormenor: Rio Mansoa e passagem em João Landim.

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)


1. Mensagem do Victor Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974)

Data - 12 mar 2022 17:09 
Amigos e camaradas da Guiné,

Ao longo da História,  os Rios e os Portos tiveram sempre muita importância numa guerra e os rios da Guiné, como não podia deixar de ser, tiveram também aqui um papel de relevo.

Este tema que pretendo abordar prende-se com o facto das fotografias que pretendo ver publicadas se referirem ao Rio Mansoa, ao Porto de João Landim e daí até a Foz, às Jangadas que realizavam a travessia, à proteção das pessoas e bens que as utilizavam, à amplitude das marés e à segurança e riscos associados ao funcionamento da engrenagem e também aos acidentes que vitimaram muitos de nós.

Todas estas fotografias não incluem equipamento militar nem armas, apesar da maior parte delas serem tiradas de cima de uma jangada militar. Isto não foi devido a qualquer imposição do Comando ou dos meus superiores mas por opção minha e deve-se a uma tonteria dum puto 22 anos que não queria que quando o rolo fosse revelado em Bissau pudesse fornecer ao IN qualquer informação por mais pequena que fosse das NT. Também não foi com a ideia de prejudicar quem acima de mim mandava, até porque era uma pessoa de trato fácil, muito correta e se calhar não dava muita importância a estas questões por ser do interior. Mas acontece que eu nasci e vivo numa zona onde desde miúdo convivi com o Rio, o Mar, a amplitude das marés e os riscos aí associados.
 
Quando em meados de Maio de 1974 fui colocado no Destacamento de João Landim Norte a minha travessia do Rio Mansoa foi feita na praia-mar, foi muito fácil e decorreu sem incidentes.

Mas durante as operações de segurança que ali fiz constactei que, apesar do Porto de João Landim estar a mais de 40 Km da foz (Mar), a influência das marés fazia-se sentir fortemente, com um caudal também muito forte e ainda com uma amplitude de maré superior a 4 metros e onde naturalmente se passeava o tubarão negro.

As próximas 5 fotografias tiveram como objectivo captar:

1º O aluvião descoberto no leito do Rio na baixa-mar para poder calcular a altura entre o nível da maior e da menor maré.

2º O desnível da rampa de acesso à jangada a marca da maré na margem e as dificuldades associadas.

3º A entrada das pessoas para a Jangada civil e a Lancha da Marinha a executar a proteção.

4º A Jangada a navegar no Rio sem qualquer dificuldade.

5º A minha última travessia e despedida já ao longe do edifício do Porto de João Landim, felizmente mais uma vez sem qualquer problema.

Para concluir,na minha modesta opinião, durante o período da Lua, o risco de embarque e desembarque nas Jangadas fora do pico da maré era muito elevado.

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur Mil At Inf
__________

Nota do editor:

Último poste da série > 8 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23058: Memória dos lugares (436): Safim, às portas de Bissau, e o terminal dos autocarros da A. Brites Palma (Victor Costa, ex-fur mil inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)

domingo, 29 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22497: A galeria dos meus heróis (43): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - III (e última) Parte (Luís Graça)


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 2020 > O tractor da casa, devidamente equipado com arco de segurança, na posição ativa, uma estrutura de segurança que pode evitar mortes e feridos graces por capotamento do veículo, o que já é obrigatório, para os tratores homologados, desde 1994. O arco é utilizado em tratores de dimensões mais reduzidas, enquanto a cabine é utilizadas em tratores de maiores dimensões, oferecendo adicionalmente proteção contra condições climatéricas, poeira, etc. Portugal ainda tem, infelizmente,  uma elevada ttaxa de sinistralidade com tractores e outras máquinas agrícolas. 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A galeria dos meus heróis > De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - III (e última) Parte  
(Luís Graça) (*)


6A. Não me assustei com o 25 de Abril.
Bem, não foi bem assim. 
Não estava a contar, devo dizê-lo. 
Também tinha algo a perder e, se calhar, algo mais a ganhar,
Claro, foi um desgosto para a minha mãezinha.
Para mais, o seu filho mais velho (esse é que era o "morgado",
e que também era professor),
apareceu-lhe um dia, em casa, 
de barbas, cabelo cabelo comprido e cravo ao peito...
E com uma "flausina", de calças, e sem sutiã...
A minha mãezinha ia morrendo. 


Verdade se diga: ninguém a chateou por ser do Movimento Nacional Feminino, que acabou logo, dali a uns dias, por decreto da Junta de Salvação Nacional, onde estava o Spínola com quem eu, aliás,  até simpatizava um bocado. Os outros não me diziam nada, com exceção do Costa Gomes, que foi meu comandante-chefe em Angola, e que também era nortenho como eu. Flaviense, se não erro.

 E, de resto, a minha mãe já não dava aulas, tinha funções meramente burocráticas, na área da administração escolar. Logo que teve condições, pediu a aposentação. Percebeu que o seu tempo (e quiçá o seu mundo) haviam acabado. 

Infelizmente ainda não tinha netos para cuidar. Mas dedicou-se ao seu jardim. Tinha uma cultura de camélias. E abriu a capela  da família, do séc. XVIII,  ao povo da freguesia. Sempre ornada de flores... Achei um gesto bonito. E, afinal, inteligente. A capela até então estava vedada ao povo da aldeia. O que era nal visto. 

Tinha muito orgulo, a minha mãe,  na capela onde repousavam os restos mortais de alguns dos seus, nossos, queridos antepassados. Claro que já nenhum padre lá ia  dizer missa. Os padres também aprenderam com a história passada, e, para o clero, sobretudo o mais jovem, passou a ser de bom tom ser democrata. Como o meu amigo de Mafra, mas esse já era democrata antes do 25 de Abril. 

A chatice maior que a família teve, no pós 25 de Abril,  foi com os rendeiros. Poucos mas ingratos e velhacos, como dizia o meu pai.  Recusaram-se a pagar a renda em géneros. Ainda se usava, e vinha desde há muito,  o sistema da parceria agrícola (pagamento a meias ou ao terço, conforme os produtos eram da terra ou do ar). 

O meu irmão deu um jeito, resolveu o conflito. Era o "comuna" da família, até dava jeito naquele tempo ter um "comuna" na família.  Depois veio a lei do arrendamento rural e tudo se normalizou. Uns anos depois as terras ficaram sem rendeiros.  E a minha mãezinha voltou a ter que comprar batatas e cebolas no mercado. Mal dela se tivesse que viver das rendas dos rendeiros. E em anos ruins perdoávamos-lhes as rendas.

O meu pai também deu a volta ao texto. Extintos os organismos corporativos, foi "reconvertido". Os grémios deram origem a cooperativas. E tudo ficou como dantes. Ou quase. Não perdeu os seus hábitos, muito menos a sua tertúlia dos copos e dos petiscos. " E nunca quis mais saber da política!", confidenciou-me um dia.

Eu próprio também acabei por apanhar o barco. Deixei crescer o cabelo e passei a usar uma boina basca.  Preta. Descobri o meu lado anarquista. E, confesso, soube-me bem respirar o ar da liberdade que eu, em boa verdade, não tinha quando nasci. Apesar de toda a gente ter um rótulo, eu recusei-me  a revelar as minhas opções político-ideológicos. 

O Ravasco, muito mais à esquerda do que eu, quis meter-me no sindicalismo, mas eu disse-lhe que "não senhor, muito obrigado, há coisas para as quais não tenho jeito nem feitio nem vocação". Fiz a tropa, já chegara esse tempo em que andara arregimentado.

A princípio ele era o terror do "adjunto" e do "grupo das meninas", lá  na repartição  de finanças de Mafra Dois.  Tenho que o reconhecer, foi um gajo decente,  não houve saneamentos nem correu sangue, que era uma coisa que eu detestaria, no caso de ter acontecido... A minha consideração por ele subiu mais uns pontos. Mas secretamente deu-me gozo ver aqueles sacanas baixar a bolinha. De um dia para o outro, a sorte mudara. Não vale a pena um gajo cantar de galo e montar as galinhas,  esquecendo-se que quem faz pintos também faz galuchos e garnizés. Mas não tive tratamemto recíproco.

Ainda fui, com ele, no meu carro, a Peniche, ver a saída dos presos políticos. Não tinha lá ninguém meu conhecido. Mas também não concordava com as prisões políticas nem com a  censura à imprensa nem com a PIDE/DGS ... Nunca discutimos política lá em casa, mesmo que os meus pais fossem simpatisantes do Estado Novo. 

Levei também no meu Mini o Ravasco ao 1º de Maio, em Lisboa... Vi ao longe o Mário Soares e o Álvaro Cunhal.  Fiquei com respeito por eles. Pelo menos, foram homens que lutaram pela liberdade dos outros, dando o corpo ao manifesto.  Mas nunca tinha visto tanta gente junta, gritando palavras de ordem, de punho erguido.  Sempre tive a fobia das multidões. E daí nunca ter ido a desafios de futebol ou a touradas e, muito menos, a comícios.

Percebi cedo que "aquela não era a minha praia", preferia a Ericeira e a Foz do Lisandro... Foi mais para fazer companhia ao Ravasco, um gajo de quem a pouco a pouco comecei, sem saber bem porquê,  a gostar como amigo, ou até talvez como o irmão que me fazia falta, a algumas centenas de quilómetros de casa... 

Foi ele que me começou a tratar por tu. A princípio, custou-me, repugnava-me até, mas lá me fui habituando,  a pouco e pouco. Chamava-me agora "pequeno-burguês", com hífen, qualificativo que em nunca soube o que era. Interpelava-o: "É por gostar das coisas boas da vida ? De gajas ? Ou ter um velho Mini com jantes especiais?"... Nunca mo esclareceu... Sempre o achei, nesse aspeto,  um bocado moralista...

Em Braga irei conhecer o verão quente de 1975. Mas desse tempo não gostaria de   falar. Fiquei desgostoso com posições radicais que alguns amigos e conhecidos meus, de um lado e do outro, tomaram, na altura do PREC.  A começar por católicos que se sentavam na missa, ao meu lado. Aí, sim, temi que a coisa degenerasse em guerra civil. 

A minha mãe, que sabia muito da História de Portugal,  falava-me dos horrores que haviam sido as guerras liberais, fratricidas. Na minha família parece que houve tanto "malhados" ou "jacobinos", partidários do Dom Pedro, como "corcundas", seguidores do Dom Miguel, estes em maior número. Ou não estivéssemos no Minho. Daí eu não me admirar de o meu irmão ser "comuna do 26 de Abril". Houve muitos vira-casacas. Acontece em todas revoluções.

Mais tarde voltei a Ponte de Lima onde o meu mui amado tio-avô, solteiro,  e que não tinha herdeiros diretos, me deixou em doação uma quinta. Uma pequena quinta, maneirinha, boa de se fazer. Eu era o seu sobrinho-neto querido. Por causa da política, cortara relações com o meu mano, professor primário, esse, sim, o "senhor morgado", que ficou com as fracas terras da família e estoirou-as em pouco tempo...

Conciliei a vida das finanças . Fiz uma formação em vitivinicultura. Descobri os encantos da vida no campo.  E, para surpresa do Ravasco, não me casei nem fiz filhos (que eu saiba!), nem sequer escrevi um livro, mas plantei árvores e vinhas. E disso posso orgulhar-me.


7. Uns tempos antes, ainda em Mafra Dois,
o Bacelar havia-me apresentado ao padre, seu amigo, 
de que espantosamente já não recordo o nome. 
Simpatizei, de imediato, com ele. 
E depressa encontrei nele um homem 
capaz de ouvir (e sobretudo de saber ouvir) 
o relato dos meus “fantasmas” da guerra de África. 



No fundo, ele acabou por ser o “confessor”, mais do que o simples confidente ou ouvinte passivo, de que eu estava a precisar, ali, desterrado e amargurado. Na realidade, e até então, nunca falara da guerra a ninguém, não tinha sequer amigos íntimos com quem pudesse partilhar as minhas confusas e doridas memórias, da infância, do seminário, da guerra... A não ser, afinal, com o Bacelar...

Ao fim da tarde, antes do jantar, a meio da semana, tínhamos por hábito juntarmo-nos, eu, o Bacelar e o padre, no restaurante e café defronte ao convento. Tomávamos a bica, dávamos dois dedos de conversa, comentávamos as notícias dos jornais. Era uma espécie de tertúlia. Às vezes juntava-se à nossa mesa um ou outro jovem estudante, nosso conhecido, e/ou das relações do padre. 

Talvez já em março de 1974, não sei se antes ou depois do 16 de março, a revolta das Caldas, que nos alvoraçou a todos (, incluindo o Bacelar que lá estivera uns anos antes como 1º cabo miliciano), a conversa foi parar, sem eu dar conta, à Guiné e à guerra. Sei que me perdi e me abstraí do que se passava à minha volta. Não me apercebi sequer de quem estava na mesa do lado. 

O padre gostava de me ouvir e raramente me interrompia com um pedido para esclarecer este ou aquele ponto, e muito menos para manifestar a sua concordância ou discordância. Revelava, isso, sim, uma grande empatia, o que veio reforçar a confiança que ele me inspirava, logo desde o início. Em suma, sabia ouvir, o que era, quanto a mim, uma qualidade essencial num confessor. Os que eu tivera, até perder a fé, eram mais inquisidores do que confessores….

Fiquei também com a ideia de que ele estava minimamente familiarizado com o meio castrense. Não me admirava, estávamos numa terra habituada a lidar com a tropa. Talvez até ele tivesse sido capelão militar, antes de vir para aqui, conjeturei eu. Ou talvez ainda quisesse vir a sê-lo, a guerra do ultramar estava para dar e durar, pensava muito boa gente.  Estava, de resto, em idade para isso, para ser capelão. Teria cinco anos a mais do que eu, já a roçar os 30. Nunca lhe perguntei, por delicadeza. Virei depois a saber que alguns dos seus paroquianos eram militares da EPI ou seus familiares.

Se bem recordo hoje, a quase meio século de distância, o teor da conversa (na realidade, um longo monólogo) girava à volta dos prisioneiros na Guiné. Ali não havia prisioneiros de guerra, garantia eu, ou se os havia não eram tratados como tal. Portugal não estava, técnica e legalmente, em guerra com nenhum país soberano, pelo que não podia haver prisioneiros de guerra. Mas eu nunca lido a Convenção de Genebra. Os guerrilheiros do PAIGC quando aprisionados, no decurso da nossa actividade operacional, eram tratados como simples presos de delito comum. Ou seja, eram "turras". 

Sob tortura, davam-nos informações relevantes sobre o dispositivo militar do PAIGC no setor ou região, bases ou “barracas” (acampamentos temporários), população, nome dos comandantes e dos comissários políticos, bigrupos, armamento, trilhos, depósitos de armamento, etc. E, claro, eram forçados a servir de guias para nos levarem até ao “objetivo”. 

Sempre fora assim, ainda antes do meu tempo,  e eu, como todos os outros graduados, quer do quadro, quer milicianos,  fechávamos os olhos ou assobiávamos para o lado. “Siga a marinha!", dizíamos nós. Mas alguém tinha que fazer o trabalho sujo. Afinal, à guerra não era para meninos de coro.

Estava a contar-lhes, ao padre e ao Bacelar (a minha atenta audiência),  as peripécias de uma operação em que eu comandava a minha companhia, já com o meu capitão de baixa no hospital militar de Bissau. Havia outras forças envolvidas, e nomeadamente um pelotão de caçadores nativos e um pelotão de milícias que faziam parte do meu destacamento. A milícia seguia à frente a abrir caminho e  com o prisioneiro a servir de guia. Éramos dois destacamentos, A e B, a avançar, numa manobra de envolvimento, “em tenaz”, para o “objetivo”, uma “barraca”, um acampamento onde estaria um bigrupo, ou menos (talvez cerca de 40 homens), situado a montante de um rio e na orla de uma mata espessa, de tipo floresta-galeria, ao longo da margem de um rio.



Guiné > Cacheu > CCAÇ 3 > Barro > 1968> Um prisioneiro do PAIGC


Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 .


Creio que o prisioneiro era balanta, não falando uma única palavra de português. Era jovem e bem constituído. O alferes de 2ª linha, que comandava o pelotão de milícias, mantinha com ele um difícil diálogo em crioulo. Eu seguia no seu encalce, dez metros atrás, com o meu guarda-costas, e o homem da bazuca. Percebi que o prisioneiro há mais de uma hora fazia tudo para nos despistar ou denunciar a nossa presença, à medida que nos aproximávamos. 

Às tantas, fomos detetados por uma sentinela avançada, no alto de um bissilão,  que deu o sinal de alarme… O meu guarda-costas abateu-o, com um tiro certeiro, mas acabámos por ser flagelados por fogo de armas pesadas, nomeadamente de morteiro 81. De imediato, somos vítimas de um brutal ataque de abelhas. Na confusão, o prisioneiro ensaiou uma tentativa de fuga, mesmo algemado e preso a uma corda. O  milícia, que o conduzia foi suficientemente lesto para o impedir de se internar na mata, acabando por o alvejar no último segundo, já no fim de um dos  trilhos que levavam à “barraca”, e que ele bem conhecia, de certeza.

Pelo PCV (Posto de Comando Volante), a avioneta onde estava o major de operações, recebemos ordens para abortar o assalto, uma vez gorado o efeito surpresa e o aparente desnorte das nossas tropas, dispersas pelo ataque de abelhas e a “morteirada” do inimigo. 

Reagrupámo-nos na orla de uma bolanha, com o ferido a sangrar, enquanto os T-6 entraram em ação despejando bombas sobre o “objetivo”. E regressámos sob proteção do helicanhão, a quem eu chamava o meu anjo da guarda. Tenho uma dívida de gratidão para com esses rapazes da Força Aérea, em geral todos mais novos que nós, a "tropa-macaca".

Foi nessa altura que o comandante da milícia, espumando de raiva, salta sobre as costas do prisioneiro, como um verdadeiro felino, e rasga-lhe a coluna vertebral de alto a baixo, com a sua faca de mato bem afiada. O prisioneiro caiu redondo no chão mas não teve morte fulminante. Ainda vi alguém, da milícia,  dar-lhe um tiro de misericórdia na testa e cortar-lhe as orelhas, prática que, de resto, não era invulgar em circunstâncias com estas… Dizia-se que era um ritual guerreiro dos fulas, mas o Spínola deixou de achar graça, quando lhe meteram na cabeça que a guerra também se ganhava pelo charme, a "psico"...


Confesso que fiquei sem pinga de sangue, nunca tinha presenciado uma cena de guerra destas, nem nos filmes do faroeste onde era pressuposto os índios e os os cobóis tirarem o escalpe aos mortos. E não tive sequer tempo nem reflexos para impedir uma barbaridade daquelas. 

O mais grave é que, por cobardia ou para não arranjar chatices, omiti esta cena no relatório que ajudei a fazer com o comandante do outro destacamento. Oficialmente, o prisioneiro-guia fora morto quando intentava fugir… E o alferes de 2ª linha  era um grande operacional, muito bem visto (e protegido) pelo comando do batalhão do setor. Falava-se já na sua próxima gradução em tenente, indo ao encontro da política de Spínola de "africanizar" cada vez mais a guerra.

Estava eu a acabar o relato deste triste episódio da minha e nossa guerra, quando da mesa ao lado salta um jovem que se dirige ao padre e diz com veemência:

- É tudo mentira, padre!... Uma infâmia, uma calúnia!... Isso nunca poderia ter acontecido na nossa querida Guiné e muito menos por homens que envergam e honram a nossa farda. O senhor meu pai, coronel do estado-maior, está lá, neste momento, rezo por ele todos os dias à noite e  sei que ele nunca pactuaria com práticas indignas de um exército que defende a nossa pátria e os valores da nossa civilização cristã e ocidental!...

O padre, reconhecendo de imediato o jovem e temendo pela minha integridade física, arrastou-o com força para um canto da sala e fez tudo para o acalmar… Não contei os minutos, eu próprio estava perplexo e chocado com toda aquela violência verbal gratuita… 

Passaram-se talvez uns bons vinte minutos,  foi longa (e áspera) a conversa do padre com o jovem… De copo de água na mão, o jovem parecia, no entanto,  estar a acatar a autoridade do padre, que o tentava acalmar… Por fim, lá saiu da sala, em passo estugado, não sem antes me voltar a fulminar com o olhar. Por certo que fiquei marcado, pensei eu com os botões. Fiquei com a ideia de que, a partir daquele momento, tinha ganho mais um inimigo naquela maldita terra.

O padre regressou à nossa mesa, limpando o suor da testa, aliviando a pressão do cabeção no pescoço, ao mesmo tempo que pedia desculpa e tentava ensaiar uma explicação para aquele assomo de violência do jovem:


- É um paroquiano meu, excelente rapaz mas muito impulsivo. Conheço-o há uns anos, desde a adolescência. É filho de uma ilustre família de militares, naturais aqui de Mafra. Mas podemos considerá-lo “órfão de pai”, cresceu com o pai em África. Tem uma enorme admiração pela figura paterna e prepara-se para ingressar na Academia Militar no próximo ano letivo.

O Bacelar saiu comigo, mudo e calado. Nunca mais falámos do  assunto. Nem com o padre.


Epílogo


8. Infelizmente, o  Bacelar já não está cá, entre nós, para podermos continuar a manter esta espécie de monólogo a dois... Como o tempo passou, meu Deus!

O Bacelar morreu num estúpido acidente de trator agrícola, há uns anos atrás. Numa vinha, nova, que ele plantara e amanhara com uma paixão e um carinho que me comoveram, até às lágrimas, quando lá fui participar na primeira vindima, talvez por volta de 1997, se não erro, altura em que ele fez 50 anos. Tinha uma bela vinha com castas loureiro e alvarinho. "Era a menina bonita dos seus olhos"... Não tinha filhos, ficara solteiro...

“Contra todas as probabilidades”, como dizia ele, ficámos amigos para o resto da vida. E, no entanto, só convivemos, em Mafra Dois, menos de dois anos, separando-nos já no final do verão de 1974. Conseguimos a tão almejada transferência, eu para a Repartição Central do Imposto Complementar, em Lisboa, na Rua Braamcamp, e ele, para mais perto de casa, na cidade dos arcebispos e, mais tarde, para a sua terra.

Acabei por tirar o curso de direito, graças ao meu estatuto de trabalhador-estudante e beneficiando igualmente das regalias de antigo combatente. Cinco ou seis anos depois, no início dos anos 80, concorri a um lugar de técnico superior de 2ª classe no Ministério do Trabalho. Fui para uma área de que gostava, e tinha a ver com as condições de trabalho, incluindo a higiene e segurança e matérias afins. Ajudei a elaborar diversos materiais de divulgação e sensibilização, fichas técnicas, brochuras, cartazes, etc. Interessei-me, em especial, por sectores de elevada sinistralidade como as minas e pedreiras, a construção e obras pública, a agricultura e pescas.

Era um trabalho de algum modo pioneiro em Portugal, acabei mais tarde por ir parar, com as sucessivas reestruturações do Ministério, sito na Praça de Londres, a um instituto que antecedeu a atual ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho.

Do sindicalismo das contribuições e impostos, já não tenho saudades. Aquilo descambou para o sindicalismo corporativo, que é o que temos hoje, ainda com alguma força reivindicativa, dos professores aos magistrados, dos estivadores aos condutores de longo curso, maquinistas de comboios, pilotos da TAP, e quejandos...São essas corporações que podem parar um país... Podem usar a bomba atómica, é certo, que é a greve e  a paralização de sectores-chave da economia, mas também têm que saber muito bem calcular e prevenir os seus efeitos de "boomerang"...

Com o tempo de tropa, e os 36 anos de função pública,  reformei-me. E hoje dedico-me aos cães e aos netos. Tenho um pequeno monte, não longe da terra onde fui parido, na freguesia de São João dos Caldeireiros, lá no cu de Judas, no "Alentejo profundo", com dizem os gajos politicamete corretos, e que eu não sei o que quer dizer... Deve ser a forma eufemística ou cínica de chamar-lhe a periferia das periferias, onde só há coutadas,  de meia dúzia de granjolas, e onde já chegou o pré-Saara, o deserto...

 Tenho pena de nunca ter feito o estágio de advocacia, de modo a poder exercer a profissão a tempo inteiro. Entrei para a função pública, tramei-me, não quis trocar o certo pelo incerto, eu que chamava "pequeno-burguês" ao bom do Bacelar.  Mas, pelo que vejo hoje, a profissão de advogado já não é o que era. E o idealismo de outrora desvaneceu-se. Como tudo, de quando eu era jovem e ainda sonhava com um mundo totalmente diferente daquele em que nascera, filho de mineiros e neto de ganhões. Só espero que não me dê o badagaio, um dia destes. Queria morrer lúcido, em paz comigo e, se possível, com os outros, o que se calhar é pedir demais. Vou ter que negociar com o meu gestor de conta do além.

Não, não casei com a rapariga de Beja, que estava à minha espera. Fartou-se e fez ela muito bem. Um dia encontrou na rua o primeiro namorado, do tempo de escola, e lá juntaram os trapinhos. Nada como a primeira paixão,  sempre ouvi dizer.  Só espero que ela tenha sido mais feliz do que eu fui.

Já do Bacelar não sei tantos pormenores do resto da  sua história de vida. Andou atrelado a uma francesa, no verão de 1974. Chegou a levá-la à sua terra, para escândalo dos pais. Aliás, andámos atrelados. Ela tinha uma amiga ou irmã,já não não me lembro bem. Despacharam os “copains”, que foram atrás das portuguesinhas de Lisboa. Vieram, num “dois cavalos”, ver a “révolution des oeillets”,a revolução dos cravos, ao vivo e a cores. Portugal passou a ser, nesse tempo,  uma espécie de jardim zoológico da Europa. Chegaram cá fotógrafos famosos, tiraram umas chapas e depois esqueceram-nos por mais umas boas dezenas de anos.

O Bacelar acabou por dar um salto até aos Alpes Franceses, já em setembro de 1974, na “rentrée”. As raparigas eram da região de Grenoble. Foi uma espécie de “summer school”, completa, mas sem direito a certificado em papel timbrado, com o “Capital” do Karl Marx, o “Kama Sutra”, os maços de cigarros “Gitanes”, e a garrafa de vinho do Porto Ferreirinha, enrolados nos lençóis encardidos. 

As tipas, finalistas de liceu, eram muito mais politizadas e "sabidas"  do que nós. O Bacelar era obrigado a recitar o “livrinho vermelho”, a bíblia do maoísmo, antes de ir para a cama com a sua “copine”. A que me calhou na rifa era mais dada à poesia e à música de contestação, o Brel, Moustaki, o Leo Ferré… Nada de Dassin ou Bécaud, que eram pirosos, mas os únicos que o Bacelar e eu conhecíamos… Enfim, melhorei substancialmente o meu francês de praia nesse tardio verão de 1974. Mas não acompanhei o Bacelar nas aventuras em França, país de resto que eu já conhecia, do trabalho duro, de sol a sol nas vinhas de Bordéus… Trabalho de escravo branco, diga-se de passagem.

O argumento, era o do costume, e fez-me recuar até à Guiné: “Bacelar, alguém tem de ter a cabeça fresca e  ir trabalhar”… Na realidade, eu sentia-me mal por andarmos com miúdas muito mais novas do que nós. Caí na realidade. Aquilo não tinha nada a ver comigo. E lá foram os três no Mini!... Não sei como o Bacelar conseguiu a proeza, de ir e vir… num Mini já com muitos milhares de quilómetros num contador…

O “açoriano”, o chefe, levantou-lhe um processo disciplinar por faltas injustificadas. Nesse tempo ainda havia livro de ponto. Intercedi pelo meu “amigo improvável”, usando (e talvez abusando de) as minhas funções, 
na altura, de delegado sindical, "eleito democraticamente", em lista única, de braço no ar (, e com quatro ou cinco votos contra, como seria de esperar). E sobretudo fartei-me de esgalhar para compensar o trabalho em falta do Bacelar. 

O tio-avô dele, já reformadíssimo, arranjou-lhe um atestado médico. E, com a “boa vontade de todos”, o caso foi abafado e a “ficha” do Bacelar voltou a ficar limpinha… Éramos um país de gente porreira… Pergunto-me hoje por que razão é que o fiz, por um tipo que afinal tinha poucas afinidades político-ideológicas comigo… Fi-lo simplesmente por amizade, que veio na sequência da nossa comum situação de “companheiros de infortúnio”, na Mafra Dois, como eu lhe chamava… Afinal, a política, a religião, a ideologia... não eram tudo na vida, foi a conclusão a que eu cheguei, da minha passagem por Mafra Dois.

Nesse final de verão de 1974, em que já nos tratávamos por tu,  descobri de repente que tinha ganho um amigo, na realidade o primeiro amigo do peito que ganhava em vida… Despedimo-nos, ainda em Mafra Dois, com um valente  "quebra-costelas"  e uma lágrima no olho... Prometemos visitar-nos uma ao outro,  em próxima oportunidade. O que só viria a acontecer em 1977, três anos depois, por ocasião do meu (e dele) 30º aniversário natalício. Ele veio até Lisboa, dessa vez.

Entretanto, em 1974, depois do 25 de Abril, o  "grupinho do adjunto e das meninas" andava de crista murcha, mas não escondia a sua hostilidade crescente para com o “sindicalista”, que era eu. O Bacelar apanhava por tabela, apenas por ser meu amigo...  

Disseram-me depois que, a partir do verão de 1975, voltaram a sentir-se de novo em casa. A paz voltou a reinar no convento, se bem que as alegres noitadas de sexta feira já não se voltaram a repetir, tal como as "ceias de Natal do fisco"… Com o início da informatização das contribuições e impostos e da modernização administrativa, incluindo uma nova gestão de recursos  humanos, começou a imperar uma certa moralidade e transparência...

Entretanto o “açoriano” fora promovido e regressara à sua ilha natal.   O jovem candidato  à Academia Militar  não sei se chegou a entrar. E do nosso amigo padre também não soube mais nada do seu paradeiro. E a história deste país, já quase com 900 anos,  lá seguiu o seu curso. 

Em Mafra Dois, não deixei amigos, infelizmente, mas quero aqui reconhecer que era terra de boa gente, e sobretudo trabalhadora. Embora eu nunca me tenha reconciliado com a "Máfrica", mas isso é outra história.

O mais triste desta história é a perda, afinal, de um grande amigo, morto estupidamente debaixo de um tractor que ele comprara, em segunda mão  e, por ironia, não obedecia às normas nacionais e europeias de segurança, faltando-lhe por exemplo as estruturas de segurança (nomeadamemte, o arco de segurança, rebatível)...

E eu que, sempre que lá ia, a chamar-lhe a atenção: "Oh!, Bacelar, olha que um dia destes ainda cais de um socalco e ficas debaixo do trator!"... Meu dito, meu feito!... Tal como ao do meu pai, não fui ao seu funeral... Só soube da triste notícia uns tempos depois, pelo irmão. 

© Luís Graça (2021)


Nota do autor: Neste conto, os nomes são fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

___________

Nota do editor:

Postes anteriores da série:

27 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22489: A galeria dos meus heróis (41): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - Parte I (Luís Graça)