Mostrar mensagens com a etiqueta seminário. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta seminário. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25391: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (25): Um país de gente porreira - Parte I


Palácio Nacional de Mafra: uma visão romãntica, em litografia de 1853, da autoria de João MacPhail (que morreu em 1856). Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal: http://purl.pt/12043

Imagem do domínio público, Cortesia de Wikimedia Common


Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, onde se integrava o Paulo Raposo, frente ao Convento de Mafra. O Paulo Enes Lage Raposo, que nada tem a ver com a história que a seguir se conta (os nomes são ficcionados, mas onde os factos são verdadeiros),  foi alf mil inf, MA, CAÇ 2405 / BCAÇ 2852 ( Mansoa, Galomaro e Dulombi, Guiné,1968/70), e o organizador  do histórico  I Encontro Nacional da Tabanca Grande (Ameira,  2006). A sua companhia perdeu 17 militares na travessia do Rio Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de fevereiro de 1969 (Op Mabecos Bravios). 


Foto (e legenda): © Paulo Raposo (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Contos com mural ao fundo (25) >  Um país de gente porreira (Parte I)


 por Luís Graça



1A. Conheceste o Bacelar em Mafra.
Em finais de novembro de 1972. 
Iam tomar posse na repartição de finanças.
Um mês antes do Natal.
Numa tarde fria e chuvosa...
E logo em Mafra. Logo ali, na ”Máfrica”,
como tu e outros que por lá passaram na tropa,
chamavam àquela terra desgraçada.
Tudo por causa da EPI,
a Escola Prática de Infantaria,
que se tornara a principal fábrica
de oficiais milicianos, alferes e capitães,
comandantes operacionais
com destino à guerra de África.

Ainda te soava aos ouvidos a frase  de uma canção de protesto, de um gajo de Coimbra, estudante de medicina, que deve ter chumbado a meio do curso, e que era do “reviralho”, cantava bem e tocava viola sofrivelmente : 

− Muita chuva, muito vento, muita merda… e um convento! − cantarolava ele na caserna, enlameado e estafado, depois do crosse semanal... Completamente "passado dos carretos"!

Por aqui passaras tu, cerca de quatro anos antes, como “feijão-verde”.  Tu, o teu antigo capitão miliciano e outros camaradas de que já havias perdido o rastro.  Para ti,  "criminoso" contra a a tua vontade, era como voltar ao “local do crime”. Foi dos regressos ao passado mais penosos da tua vida. Ao sítio onde não foras feliz, nem nunca o poderias ter sido. 

Afinal, foi aqui que recebeste a trágica notícia da morte do teu pai.  Prematura, sem ter completado os sessenta anos. Não te autorizaram sequer a ir despedir-te dele. Morrera na véspera do teu juramento de bandeira. Mandaram-te, da agência funerária, um telegrama em cima da hora. O tenente da tua companhia de instrução chamou-te ao gabinete e disse-te, seco e perentório, em resposta ao teu pedido para ir a Mértola, ao funeral:

 − O nosso soldado-cadete pode ir, o pai é seu, mas perde o juramento de bandeira, chumba no COM, vai parar ao CSM, a Tavira, às Caldas ou a Santarém, atrasa o seu embarque para o Ultramar em mais alguns meses… Enfim, a escolha é sua!”…

Sim, o pai era teu, mas a pátria era deles... Ficaste com um pó ao tenente... Enfrentaste,  nesse fim de tarde, um terrível dilema, dividido entre o teu amor filial, o teu dever de ir prestar a última homenagem ao teu pai, e a tomada de consciência,  naquele preciso momento, de que passavas a estar, doravante, na “linha a frente” e, ao mesmo tempo, a ser o sustento da tua família, da tua mãe e da tua irmã, mais pequena. 

Por outro lado,  davas-te conta da impossível escapatória  daquele sistema concentracionário, que era a “Máfrica”, representado pela nudez e a crueza daquelas paredes que te encarceravam. Mas, se não ficaras em França, não ías agora fugir do teu país...

Confessarás, mais tarde,  que choraste lágrimas de sangue no dia seguinte, enquanto juravas bandeira, na praça frente ao palácio, com a arraia-miúda,  muda e calada,  ao largo… Não tinhas ninguém a acenar-te, e muito menos a mostrar-se solidário na tua dor. 

Trágica ironia, juravas defender a tua Pátria (se necessário, até "à última gota do teu sangue”), no preciso momento que descia à terra o corpo do homem que te dera o ser. Lá longe, em Mértola, que o tenente nem sequer sabia onde ficava, a muitas léguas dali.

Passado pouco tempo estavas em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, a meio caminho de casa, e mais perto também da tua irmã mais velha, que vivia em Almada e cujo marido, soldador,  trabalhava na Lisnave. Foste lá fazer a instrução de especialidade. Atirador de artilharia: não sabias o que era... 

Aproveitaste uma licença de alguns dias  para dar um salto à tua terra e depor um ramo de flores silvestres  na campa, rasa, do teu velhote, morto pela silicose que lhe destruira os pulmões.

Mas o Bacelar não tinha nada a ver com isto, com o teu passado recente e muito menos com os teus dramas de consciência. Ele era apenas mais um “companheiro de infortúnio”  que tu tiveras o azar de encontrar em Mafra, desta vez no mesmo emprego. Claro que tu não o conhecias de lado nenhum. E, muito provavelmente, não  irias voltar mais a vê-lo,  a partir do dia em que cada um  fosse à sua vida, uma vez colocados noutros sítios, lá onde onde o fisco muito bem entendesse.  

Por estranha coincidência (ou supersticioso  como tu eras,  seriam mesmo coisas do destino ?!), tinham chegado, tu e o Bacelar, no mesmo dia, ao fim da tarde, com uma hora de diferença. Numa tarde fria e chuvosa, anotaras  na tua agenda. Ainda a tempo, contudo, de poderem “tomar posse” (era assim que se dizia na época) do lugar do quadro do pessoal  da repartição de finanças local. Como se o lugar fosse teu, "de pedra e cal", e para o resto da vida...

Mas tu devias estar, se não feliz, pelo menos aliviado por arranjar um emprego na função pública, com as habilitações literárias que tinhas, o 7º ano do seminário que só dava equivalência para a tropa e o funcionalismo público.  Mas não!... Logo por azar teu, as finanças estavam instaladas naquele pavoroso convento, o mesmo onde funcionava, nas traseiras,  a “Máfrica”, de triste memória para ti.

Tu tinhas chegado em cima da hora. O chefe da repartição, que te pareceu, à primeira vista, boa pessoa, afável, educado, com um típico sotaque açoriano, foi quem vos apresentou um ao outro, e ao restante funcionalismo.

Mas, dado o adiantado da hora, com a repartição a fechar, fez questão de deixar a cerimónia da tomada de posse para a manhã do dia seguinte, com a promessa de, no respetivo termo, constar a data da véspera. Ele era a amabilidade e a calma em pessoa. E fez questão de dizer a ambos, no seu sotaque de ilhéu, que não  queria, em caso algum, prejudicar-vos a “antiguidade”. E carregava na penúltima sílaba com evidente deleite.

Percebeste logo que também aqui, tal como na tropa, a “antiguidade” era um posto. Bem te tinhas lixado com essa da "antiguidade", tiveste de substituir o teu  capitão, na Guiné,  depois de ele ter sido evacuado para a “metrópole”, por motivo de doença,  que, toda a gente sabia, mas não dizia em voz alta,  era do “foro mental”.  

Nunca foram chegados, tu e o teu capitão, falavam apenas das coisas estritamente indispensáveis de serviço. Ele também não era de grandes falas.  Nunca te falou do seu passado. Devia ter mulher, filhos, um emprego, aos trinta e poucos anos.  Sabias  que tomava algumas drogas para o sistema nervoso, almoçavam  juntos na messe de oficiais. Tínham uma messe só para os oficiais,  o capitão e os quatro alferes milicianos. 

Na prática, a messe era igual, para oficiais e sargentos, mas havia uma divisória, uma espécie de biombo, a separar as duas classes. O resto da maralha, comia à parte, no refeitório geral. "Nobreza, clero e povo, / Cada um para seu lado; /  Na Guiné, nada de novo, / Saia um bife bem passado "..., ironizava o "baladeiro" da companhia, no "Fado do Vagomestre".

Alguém da companhia ainda o encontrou, ao capitão,  em Bissau, no HM 241, na “psiquiatria”. Era um verdadeiro  labéu para a reputação de um militar,  uma baixa psiquiátrica. Um tipo podia ser “apanhado do clima”, que se lhe desculpava tudo (ou quase tudo). Um gajo podia apanhar uma "borracheira", daquelas de caixão à cova, que logo lhe acrescentavam mais uns pontos no currículo de macho. Um gajo podia até ser "cornudo", coitado, que isso não acontecia só aos outros. Um gajo podia ser “maluco”, mas nunca podia dar “parte de fraco”, "dar baixa", neste caso ir parar à “psiquiatria”… Muito menos sendo um comandante operacional.

Antes de saírem para o conforto dos seus lares, os novos colegas das finanças, solícitos, se não mesmo afáveis mas algo premonitoriamente distantes, deram, aos recém-chegados, indicações sobre onde  jantar e pernoitar.... Que no dia seguinte logo se arranjaria melhor sítio para se ficar por uns tempos, já que quartos para alugar não faltavam naquela terra,  "saloia, dizem, mas acolhedora e hospitaleira" (sic). 

Não gostaste logo da cara de alguns, que pareciam os verdadeiros “donos da baiuca”.



1B. Conheceste hoje o Ravasco. 
“Ravasco, que raio de nome!”,
pensaste tu quando ele te estendeu a mão,
rugosa, de cavador de enxada…
”Será nome ou alcunha ?”,
tiveste a indelicadeza de lhe perguntar.
”Apelido, de família”, respondeu-te,
secamente, com cara de poucos amigos.
Ravasco, na tua terra, dizia-se 
de um homem libertino, "putanheiro"...


Dormiste, nessa noite, tu e o Ravasco, numa pensão, rasca, a condizer, numa daquelas  ruas que atravessavam o casario frente ao canvento,  e que o teu novo colega logo reconheceu do seu tempo de soldado-cadete. E que cheirava a grelhados, a serradura e a mijo de gato.  Ele fizera aqui a tropa há quatro anos atrás, em 1968, segundo te confidenciou. E ficara, desde então,  com um asco a Mafra.

Em conversa com ele, ao jantar, descobriste que ambos tínham regressado, ainda relativamente há pouco tempo, da guerra do Ultramar. Tu de Angola, ele da Guiné. Eram da mesma colheita, 1947, embora ele fosse mais novo uns meses.  Mas cada um, afinal, com diferentes memórias, experiências e até expectativas. As recordações que tu trazias eram até boas, as dele nem por isso.

Evitaste, deliberadamente, falar em demasia desse passado recente que vos aproximava. Talvez por pudor. E também porque não conhecias o Ravasco, ou melhor, tinhas acabado de o conhecer  há umas escassas horas. E, em boa verdade, não tinhas a certeza de poder confiar nele. Tiveste até o pressentimento que muitas coisas vos podiam separar. 

Nunca foste pessoa de fazer amizades logo à primeira vista. Sempre fora uma das recomendações da tua  mãezinha que era uma mulher sábia e com um formidável sexto sentido: nunca se enganava no primeiro juízo que fazia dos estranhos. Tirava-lhes logo a "pinta", pelas primeiras frases e gestos...

Para começar, o Ravasco era, seguramente, de famílias modestas ou humildes, como se diz na tua terra. Em contrapartida, era um antigo camarada de armas, se bem que tu, na época,  ainda não valorizasses muito essa condição. Agora era teu colega de trabalho. Mas tu, ao princípio,  atrapalhavas-te, tratavas o Ravasco ora por colega ora por camarada. Com alguma cerimónia, talvez nortenha.

E apercebeste-te logo que ele não gostava de tocar na tecla da Guiné. Tu puseste-te então a imaginar que ele teria passado um tempo pior, na Guiné, do que o teu, em Angola. Talvez tivesse até apanhado uma "porrada", ou coisa parecida.

 Toda a gente sabia que a Guiné era um duro osso de roer. Mas os gajos da Guiné também gostavam de cantar o "fado da desgraçadinha", como se em Angola (e até certo ponto em Moçambique, dependendo dos sítios) a malta tivesse só andado a brincar aos índios e cobóis. 

Percebeste logo, também, ti e ele eram diferentes, se calhar irredutivelmente diferentes, oriundos de diferentes regiões do País, e até de meios sociais  distintos. Tu, do Norte, ele, do Sul.

O Ravasco era alentejano de Mértola, e tu minhoto de Ponte de Lima. Do Alentejo tu só conhecias meia dúzia de anedotas, estúpidas, dirias hoje. E nenhum dos dois  conhecia a terra um do outro. O que não admirava: naquele tempo,  há meio século atrás, ainda era fraca a mobilidade espacial dos portugueses, viajava-se pouco, dentro (e, pior ainda,  fora) do País, embora tu já tivesses carro. Mas o mais longe aonde já tinhas ido, a Sul,  era até Lisboa, quando prestaste serviço no RI 5, nas Caldas da Rainha.

O Ravasco confessava que o mais a Norte aonde já tinha ido fora a Aveiro. Fora lá, de comboio, com uns camaradas, mobilizados para a Guiné, comer um ensopado de enguias. Um deles era da Murtosa ou coisa parecida.

Estivera menos de dois meses no Campo Militar de Santa Margarida, a formar companhia. Fora mobilizado para a Guiné pelo RI 2, o Regimento de Infantaria 2, em Abrantes. E não teve pejo em dizer-te que não sabia exatamente onde ficava Ponte de Lima, “lá no mapa do Minho”. O que para ti era  imperdoável, quase um insulto, não conhecer a geografia do país...

De facto, para ti, o Minho era a “joia da coroa” deste país à beira-mar plantado, o teu país. Era no Minho que começava Portugal, o Portugal do Minho a Timor, como havias aprendido na escola. Sempre tiveste  muito orgulho do teu Minho e, claro, do teu torrão natal, Ponte de Lima, que, segundo te ensinaram os teus avoengos maternos,  era a terra, a vila,  mais antiga de Portugal.



2A.Viste logo que o Bacelar era mais viajado do que tu.
Viera de Mini, de Viana do Castelo até Mafra,
um dia inteiro a conduzir.
Tinha um Mini Morris 850,com jantes especiais.
Mas também não fazia a mínima ideia
onde ficava Mértola, a tua terra natal.
Disseste-lhe que ficava na margem direita do rio Guadiana,
e que já vinha do tempo de fenícios, romanos, visigodos e mouros.
Não mostrou curiosidade em saber mais.


Na primeira noite, em que ambos se  conheceram, por sinal  uma noite desagradável por causa do frio e da chuva, falaram sobretudo do tempo. Falar do tempo é sempre uma solução airosa quando um gajo  não  tem assunto para conversa, ou não está afim de conversar, ou não quer mostrar logo o jogo, a sua maneira de ser e de estar, a sua história de vida, os seus pontos fortes e fracos… Falaram pouco das terras e das  andanças de ambos pelo país.

Simpático, o Bacelar mandou vir duas aguardentes velhas de vinho verde, "duas amarelinhas", que fez questão de ser ele a pagar. E estiveram ali os dois a falar, afinal amenamente, evitando, todavia,  tocar  em assuntos da tropa  e da guerra. O que era difícil, disseste para ti mesmo...

Na realidade, era como se estivessem ainda em África, a resguardarem-se da picada do mosquito  e a contar as noites e os dias que lhes faltavam para a “peluda”. Em geral, tu eras mais reservado, nunca ou raramente falavas da tropa e, muito menos, da Guiné. Por outro lado, tratavam-se por você (e assim continuaram até pelo menos ao 25 de Abril de 1974). Ele também era cerimonioso, mais do que tu, e talvez mais por educação do quer por feitio. 

Todavia,  já mais para o final da conversa, ficaste  com a ideia de  que ele tinha o "bichinho de África" e que hoje ainda estaria arrependido de não ter aceite uma boa oferta de trabalho em Luanda. No Banco de Angola, gabava-se ele.  De resto, não terão faltado outras propostas de emprego, menos aliciantes,  como por exemplo a de guarda-livros numa fazenda de café, a norte de Luanda. 

Não te explicou as razões por que voltara para a santa terrinha, ele que se gabava de ter alguns “grandes africanistas” na sua ascendência, do lado materno, um dos quais, militar, da Armada,  ainda conhecera o Zé do Telhado no desterro,   em Luanda, a caminho de Malanje. 

Mas as saudades, às vezes, falam bem mais alto do que a razão. E já que puxara a conversa, disseste-lhe que fizera bem, que haveria de continuar a fazer a sua vida na sua terra, que era Portugal, e que o futuro de Angola era incerto, tal como o de toda a África Austral, último reduto dos brancos, o mesmo era dizer, do colonialismo. E não te enganaste, o velho “apartheid” branco haveria de ruir em 1994, tal como já tinha antes ruído o muro de Berlim  e tudo o que ele representava, "dividindo o mundo em duas partes como uma maçã, mas de cores diferentes por fora.

Ouviu calado as tuas divagações. Foram-se  deitar cedo, estavam ambos cansados, o Bacelar tinha vindo a conduzir desde Viana do Castelo. Tu vieras de mais perto, de Almada, onde pernoitaras na casa da tua mana mais velha. (Era casada, ainda de fresco,  com um operário da Lisnave, estavam a montar a casa, viviam com dignidade mas com muito aperto, como as famílias operárias da época.) Vieste de cacilheiro para Lisboa para depois apanhar, na Rua da Palma, uma camioneta da Mafrense.

Tínhas guia de marcha para te apresentar até às cinco horas da tarde desse dia, para a “tomada de posse”. E o Bacelar também. Reparaste no olho azul dele. Soubeste, mais tarde,  que era oriundo de uma família de senhorios, donos de terras de um antigo morgadio com direito a brasão. 

Sempre invejaste, diga-se de passagem, quem tinha algo de seu, casas, montes,  terras. O teu pai construíra uma casinha de paredes de tabique no couto mineiro. Nada a que ele pudesse chamar seu. Os gajos do Sul, como tu, não tínham raízes telúricas e muito menos “pedigree”, brasão, árvore genealógica, antepassados, memórias,  referências, valores, ... E quem não tinha raízes na terra nem árvore genealógica para mostrar aos outros, era mais propenso às depressões, ouviste essa teoria da anomia ao alferes miliciano médico do teu batalhão, que deve ter seguido psiquiatria, era mais “apanhado do clima” do que os operacionais.

O primeiro emprego que o Bacelar arranjara, depois do regresso de Angola, fora numa repartição de finanças do distrito de Viana do Castelo. Um tio (ou tio-avô, materno) tinha (ou tivera) um cargo importante na Direção Distrital de Finanças do Porto. Teria sido, ao que parece, condiscípulo de diretor-geral das contribuições e impostos, o dr. Vitor Duarte Faveiro, natural de Ansião. Por isso, no gozo, tu chamavas-lhe  “filho de Ansião”… E o apodo ficou, quando os outros sacanas dos colegas mafrenses descobriram… “Dor de corno!”, pensaste tu. Quem tinha “cunhas” para entrar na DGCI, nas contribuições e impostos, era logo apodado de “filho de Ansião”, a terra do director-geral que toda a gente reverenciava e temia, sendo tido como uma referência  enquanto fiscalista. 

Tu não lhe disseste, por vergonha,  que também tiveras uma cunha, essa eclesiástica. De um cónego do cabido da sé-catedral de Beja. Teu antigo professor. De qualquer modo, tanto tu como o Bacelar, haviam feito, com sucesso, um concurso de provas públicas, como era norma no Estado Novo.  Eram já “concursados”… Consolava-te a ideia de teres entrado, por mérito, para a função pública,  não tendo roubado o lugar a ninguém.  

O Bacelar tinha a secreta esperança de ainda poder ser chamado para o Banco Nacional Ultramarino ou para o Banco de Portugal, se bem percebeste. Ou de vir a ficar mais perto de casa, no caso de  continuar nas finanças.

Se ele tinha defeitos que saltassem logo à vista, era essa de se gabar do seu “capital de relações sociais”, como se diz hoje…. A matriz  da sociedade portuguesa era ainda na época muito clientelar, nada se conseguia (empregos, negócios, casamentos, tropa, etc., ou um simples internamento no Hospital de Santa Maria ou de São João…) sem “conhecimentos”, o mesmo era dizer, sem “cunhas”. 

Mas não precisava de ser “cunha” de gente muito importante, às vezes até parecia que quem mandava mais neste país era a criada,o contínuo,  o motorista, a amante, a secretária, o sargento, o sacristão, o caseiro, o feitor, o maioral, enfim o chefe do pessoal menor… Nas zonas rurais, o feitor era um tipo poderoso, tal como o sargento na tropa… Tu vias por Mértola e Beja, onde os latifundiários, a viver na capital, raramente lá punham os pés, a não ser na época  das colheitas e da caça.

Ambos arranjaram, entretanto,  um quarto, amplo, com duas camas, numa casa sita no centro da vila de Mafra. Vivia-se, naquele tempo, do aluguer de quartos a professores primários, funcionários públicos e militares da Escola Prática de Infantaria, incluindo soldados-cadetes que tinham algum poder de compra. Era simpática, a velhota, a dona da casa, viúva de um sargento.

Os quartos já não eram baratos na época e tu, tanto como o Bacelar, se haviam convencido, estupidamente, que estavam ali de passagem. Mais ele do que tu. A  ideia de ambos era, logo depois da tomada de posse do lugar do quadro, pedir  de imediato transferência. Tu, para Beja ou para Almada (estavas indeciso), o Bacelar para Braga ou Viana do Castelo. Acabariam por ficar em Mafra mais de 21 meses naquela "vida de ciganos".

Detestava a "Máfrica", como tu chamavas  àquela terra, tomando a parte pelo todo. Estavas farto da tropa. E se calhar as pessoas  de Mafra também estavam, tirando as viúvas de militares, simpáticas mas empobrecidas, que viviam do aluguer de quartos aos desgraçados que lá iam parar. 

 O teu tenente-coronel, comandante do teu batalhão,  na Guiné, ainda te fez a cabeça para meteres o "chico". Deu-te inclusive um louvor, imagina! 

−  E se tu tivesses metido o "chico" ? − perguntavas-te hoje a ti mesmo. 

Bom, não te livrarias de voltar à Guiné, agora como capitão. Secretamente, a ideia não te desagradava de todo, terias  hoje um melhor pé de meia ou conta bancária. Mas também lá podias ter deixado a meia, o pé ou até a vida. 

Os galões dourados de capitão não te deixavam indiferente, a ti que, não passando de um simples alferes miliciano,  experimentaras, por breves meses, a secreta  volúpia do poder, que tinha como contrapartida o angustiante desafio de comandar 150 homens num teatro de guerra, e o risco de perder alguns. Tu que antes nunca estiveras à frente de nada, nunca foras ninguém, nem sequer chefe de turma ou capitão de equipa de futebol!...

Tínham apenas um reposteiro a separar as duas camas, como nos quartos de hospital. A tua  cama tinha um colchão de palha (!) onde te afundavas com os teus 90 quilos. (Engordaste, estupidamente, depois que passaras à "peluda"!.)



2B. Para o teu gosto, feitio e educação,
o Ravasco tinha um tipo de humor um pouco brusco e mordaz.
Não sabias se era um humor tipicamente alentejano.
Afinal ele era o primeiro alentejano com quem tu ias trabalhar.
E não te lembrava de ter lidado na tropa
com alentejanos ou algarvios.
A malta do Norte, já na altura os tratava por “mouros”.
Por sorte, a tua companhia em Angola
só tinha angolanos, minhotos e durienses.
E deram-se todos bem.


Não te importaste de partilhar um quarto, com o Ravasco, afinal ainda estavam habituados, tanto um como o outro,  ao ambiente de caserna, aos seus maus cheiros, à sua bagunça, ao seu ar opressivo, à sua promiscuidade... O teu quartel no leste de Angola também era uma espelunca, dormiam com cobras e ratos....Sempre poupavam algum dinheiro e, dentro em breve,  estariam de volta a casa. Ou, pelo menos, era essa a tua  secreta esperança. 

Viste que o Ravasco era poupado, se não mesmo forreta. Usava roupa fora de moda. O seu único luxo eram os jornais e um ou outro livro. Percebeste que andava a preparar-se para fazer o exame do 7º ano do  liceu. O 7º ano do seminário não lhe valia de nada. Queria seguir letras, e tirar o curso de direito. Tinha uma obsessão pelo direito. Se calhar, era-lhe mais fácil por causa do latinório. Queria aproximar-se de Lisboa para poder entrar na universidade.

Acabaram também por tornar-se, se não íntimos, pelo menos mais próximos, por força das circunstâncias, como os prisioneiros que estão na mesma cela e estão condenados a, minimamente, entenderem-se. Ficaste a saber que ele tinha deixado noiva em Beja. Ora tu, nesse aspecto, estavas mais à vontade, eras "livre como um passarinho".

Foste conhecendo-o, a pouco e pouco. Foram-se conhecendo. Deste conta de que, debaixo da sua aparente bonomia, e do seu verbo fácil, fluente, alegre e até folgazão, havia um homem reservado, subtilmente amargo e revoltado com a vida e com a sorte que lhe coubera a ele e à sua família e à gente da sua terra. Não esquecia a injustiça da doença e da morte do pai. E tivera uma infância difícil.

− Criado a migas, a toucinho de porco e a ervas do campo que agora vão à mesa do rico  rosnava ele, mal humorado.

Tanto quanto pudeste apurar das  conversas com ele em Mafra, onde ambos estavam “desterrados” (a expressão era dele),  o Ravasco era neto de ganhões, e filho de mineiro. Tirara o 7º ano do seminário, graças a uma bolsa de estudo da diocese de Beja. Por detrás dessa obra benemérita haveria uma senhora devota, de uma família de grandes proprietários agrícolas, muito conceituados na região. Foi o que ele te deu a entender, sem entrar em pormenores. Era uma bolsa para estudantes pobres, oriundos do Baixo Alentejo. 

Quiseram-no encaminhar para o sacerdócio, mas ele terá percebido, quando acabou filosofia, o 7º ano, que “não tinha vocação”. Ou talvez pior, para um cristão: terá perdido a fé ao lidar (mal) com as injustiças de que o pai fora  vítima, ainda em vida, nunca lhe tendo ocorrido que Deus poderia estar a  pô-lo à prova. Como te pôs á prova a ti, quando deixaste pai e mãe e foste para Angola, não para o “bem-bom de Luanda”, mas para a guerra no Norte e depois no Leste.

No verão, quando ainda andava a estudar, o Ravasco ia sempre para França, para a região de Bordéus, fazer a campanha  das vindimas e ganhar uns francos. Entretanto dera  o nome para a tropa, mas beneficiava de uma licença militar para se poder ausentar temporariamente do país. Nunca lhe passara pela cabeça não voltar a casa e ficar em França, tornando-se refratário.  Sempre se considerou um homem de palavra. E patriota. 

E aí a tua consideração por ele aumentou, apesar de tu o continuares a chamar de “mouro”. Não levava a mal. Tal como tu, também não, quando no gozo te chamava “morgadinho” e, depois do 25 de Abril, "pequeno-burguês". 

Ainda chegou a ser “aliciado” por um comité luso-francês, católico, contra a “guerra colonial” que dava apoio a desertores e refratários portugueses na região de Bordéus. Mas ele nessa altura não queria saber nada de “política”. E era agarrado à família. E, em boa verdade, temia represálias contra o pai, já doente, se ele  não regressasse de França. (Sabendo o que se sabe hoje, não houve represálias contra as famílias de exilados, desertores e refratários; a PIDE podia ter um braço comprido, mas não chegava felizmente a todo o lado.)

Segundo ele te contará, mais tarde, o pai tinha sido mineiro nas minas de São Domingos, entretanto definitivamente encerradas  em meados dos anos 60. Vem a morrer quando ele estava aqui, em Mafra, a fazer o COM. De silicose, ao que parece, uma doença  de evolução prolongada, então muito comum entre os mineiros. Mas só tardiamente fora diagnosticada e reconhecida, ao pai, essa doença profissional, com direito a reparação médico-legal, segundo ele te explicou.  De pouco lhe terá valido a “miserável pensão de invalidez” que lhe fora atribuída, a expressão era do Ravasco.

Tu ainda comentaste que no Norte era bem pior, os pequenos lavradores, rendeiros ou não,  ao fim de um vida dura de trabalho, morriam de miséria num catre, numa cabana de madeira,  só com a ajuda da família, quando a tinham.  E chamavam o médico só na hora da morte. 

Ele endureceu a expressão do rosto e respondei-te com veemência: 

− É porque você não sabe o que é um ganhão nem nunca engoliu o pó de uma mina!… 

E tu aí tiveste que reconhecer que ele tinha razão, tu sabias lá o que era um ganhão e muito menos uma mina ou um mineiro e essa coisa da silicose que destruía os pulmões lentamente.  Nalgumas coisas tu tinhas sido um privilegiado da sorte, embora nunca tendo sido rico, como fizeste questão de lhe frisar. 

O Ravasco tinha ajudado a família com o vencimento de alferes miliciano de artilharia, enquanto estivera na Guiné. Era frugal, não se metia em tainadas. Bebia  de vez em quando o seu uísque. Não fumava. Nem sequer veio de férias para poupar o dinheiro da passagem. Saberás mais tarde, quando ganharem mais confiança, que terá optado por ir uma semana a Bubaque, nos Bijagós.  Tencionava arranjar um pé de meia para se poder casar. Mostrara-te, ao fim de uns meses,  uma fotografia da rapariga que lá deixara em Beja. Não fixaste o nome. Só reparaste que não era lá muito bonita: era trigueira, de olhos de cor de azeitona, não fazendo o teu género. 

Sentiste, isso sim, que a morte prematura do pai, antes dos sessenta  anos, deixara-o muito abalado e revoltado. Adivinhaste  logo que ele era do “contra”, como diria o senhor teu pai. Não gostava de Salazar nem de Caetano. E referia-se à guerra do Ultramar como “guerra colonial”, expressão que era então proibida nos jornais. E que tu também não usavas. E, pior,  também não frequentava a igreja. Fazia-te confusão, sendo ele um antigo seminarista. Enfim, um "herege".

Depois de vir da guerra, começou a interessar-se pela política. Lia o “Diário de Lisboa”, além do “Comércio do Funchal”, de que tu nunca tinhas ouvido falar antes. Era um jornal cor de rosa. Chegaste  a dar uma vista de olhos, mas não te despertou a curiosidade.

Em suma, as afinidades entre os dois eram puramente acidentais ou circunstanciais. Foram parar àquela terra que, tal como a conhecemos hoje,  não existiria se o Dom João V, para ti de boa memória,  não mandasse ali construir aquele monumental palácio e convento, um dos mais grandiosos da Europa,  que o Ravasco teimava em qualificar de “monstruoso”. 

A repartição de finanças estava lá instalada, tal como a EPI, e outras repartições públicas como as comservatórias, já não te lembras ao certo, até por que convivias com pouca gente da terra (e, sempre que podias,  davas uma escapadela pelos arredores, sobretudo ao fim de semana).  

No inverno rapava-se frio de rachar. Tu, que vinhas do Norte, onde também fazia frio a sério, lembras-te de ter de usar ceroulas no inverno e grossas camisolas de lã em Mafra. Tu e o Ravasco davam-se mal com aquela humidade marítima que chegava do Atlântico e se entranhava nos ossos. Não havia aquecimento central, nem uns simples aquecedores a gás.  

Mas Mafra tinha belas praias, com destaque para a Ericeira. Começaste a gostar da Ericeira, e da Foz do Lisandro, e sobretudo das miúdas estrangeiras que começavam a parar por lá.



3A. Bom, lá foste tomar posse no dia seguinte, logo de manhã.
No gabinete do chefe, que mandou chamar o resto do pessoal
para assistir à cerimónia.
Ficou só um funcionário, ao balcão.
Para o caso de chegar algum contribuinte por causa da “décima”
ou do "cadastro"...
Mas nessa manhã estava tudo muito calmo.

O termo de posse já estava pré-preenchido, com os dados de cada um,   era só precisa a  assinatura dos empossados, no final,  depois de lido o famigerado juramento de lealdade ao Estado Novo.

Repetiste mecanicamente a fórmula, como quem rezava o Padre Nosso, no último ano do seminário, depois de teres perdido a fé e a vocação. Olhaste, com um misto de temor e de desdém, para os retratos,  pendurados na parede, dos três mais altos magistrados da Nação (os vivos, Américo Tomaz e Marcelo Caetano; e o morto, Salazar, o “pai da Pátria”, ou o “refundador da Nação”, que ainda ninguém tivera a coragem de mandar retirar) e disseste, firme e em voz bem alta:

 Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela constituição de 1933, com ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas....

O juramento dos funcionários públicos fora  aprovado pelo decreto-lei nº 27 033, de 14 de Setembro de 1936, mas tu nunca chegaras a ler esse diploma, tal como nunca leras a Constituição de 1933.

E, de repente, lembraste-te do teu juramento de bandeira na “Máfrica”  e indignaste-te por, na altura, nem sequer teres questionado as palavras que, mesmo em voz baixa, atabalhoadamente e a medo, proferiste na parada… 

Regressado de uma guerra, repugnava-te ter aceite, no passado,  o dever absurdo de jurar “obedecer cegamente aos teus chefes”. Afinal, eles poderiam ser todos cegos, conduzindo todo um povo, também de cegos,  à beira de um precipício… 

Tiveras um pesadelo nessa noite. Voltarias a tê-lo quatro anos depois...



3B. Ganhava-se mal na função pública,
mas era um emprego certo,
com cheque da Caixa Greal de Depósitos ao fim do mês 
e algumas pequenas regalias.
Nas finanças, havia os “emolumentos”,
que representavam mais uns tostões ao fim do mês.
Tu terias preferido entrar para a banca,
nessa altura tinha mais prestígio.
Os bancos, privados, pagavam melhor 
e tinham melhores instalações.
E havia já uma ou outra rapariga ao balcão…

 

Naquele tempo, com a economia a crescer a dois dígitos (como se diz hoje),a sangria da guerra e da emigração,  e a máquina do Estado a expandir-se e modernizar-se,  não era difícil entrar para função pública, a banca, os seguros, as caixas de previdência, os escritórios,  as fábricas… 

Não, não era o teu sonho seguir as peugadas do teu pai, um obscuro funcionário corporativo num Grémio da Lavoura minhoto. Bem, nunca o disseste em público, mas,  infelizmente, o teu pai era um fraco exemplo de ambição e liderança. De resto, lá em casa vigorava o matriarcado, a tua mãe era mestre-escola, tinha o curso do Magistério Primário, a primeira mulher da família  a ir estudar. E sobretudo era minhota. Em pequenino contava-te a lenda da Deu-la-deu Martins. Os homens da casa e a criada chamavam-na a “generala”, com o devido respeito… E integrava a comissão local do Movimento Nacional Feminino. Sem favor, achavas que fazia um bom papel, ajudando muitas famílias pobres da região, com filhos no Ultramar.

Quando tu saiste da tropa, apetecia-te era “correr mundo”, como alguns dos teus amigos do colégio dos jesuítas. E que, mais finos e expeditos do que tu, se safaram melhor, alguns, da tropa ou até do ultramar: um ficara em Luanda, outro  no Hospital da Estrela em Lisboa, e um terceiro fora parar à Bélgica...

Sempre fizeste questão de esclarecer que não meteste nenhuma cunha para te livrar da guerra do Ultramar. O teu pai, que era da União Nacional ( tinha que ser, era funcionário corporativo), ainda esteve tentado a “mexer os seus pauzinhos”, como ele te confessou.  Mas a tua mãe fuzilou-o com um olhar de reprovação. Era (ainda é) uma mulher de grande verticalidade. Uma senhora de grandes princípios, com um educação esmerada. E, ela, sim, de origem fidalga. O teu pai era um plebeu, um pobretanas, um manga de alpaca que nunca passaria da cepa torta. Claro que o Ravasco não acreditaria nesta história, se tu  caísses na patetice de lha contar.

Enfim, foste colocado, sem honra nem glória,  na repartição de finanças de Mafra, num lugar do quadro de pessoal, como aspirante de finanças. Entravas numa carreira técnica. Passavas a ser liquidador de impostos, como na Roma Antiga, como fantasiava o teu pai. 

No passado, era um lugar de prestígio, de nomeação régia. Na época ainda não havia computadores, liquidava-se os impostos à mão, de lápis na orelha. Quando muito havia já umas pesadas maquinetas, electromecânicas, que funcionavam como “calculadoras”. O mais importante era saber fazer contas de cabeça. Nisso tu eras bom, melhor que o teu irmão que foi para o magistério primário, seguindo o exemplo da mãe (enquanto o teu pai queria que ele fosse para regente agrícola).

Já não te lembras das categorias, nem das letras de vencimento, mas estavas cá para o fundo da tabela salarial: começava-se como aspirante de finanças estagiário, depois aspirante concursado, depois aspirante do 2º grau e depois do 1º…

O Ravasco gozava contigo e perguntava-te com que idade é que tu te  imaginarias chegar,  se não a diretor de finanças como o meu tio-avô, pelo menos a adjunto… Mas do que  tu mais gostavas era do teu cartão da DGCI, com uma barra na diagonal, a verde e a vermelho, as cores da República, que te davam acesso a quase tudo, com destaque para as casas de… “diversão noturna”. 

Passaste a ser um gajo respeitado pelos “gorilas” que estavam à porta das “boîtes”, como então se dizia, “à francesa”...Quantas vezes não entraste no “Ouriço”, na Ericeira, que, ao que te dizem, ainda hoje existe… (Nunca mais lá voltaste à Ericeira, depois de teres sido transferido para Braga e, mais tarde, reformado.)


4A. Vê-se que o Bacelar não nascera para isto,
“manga de alpaca”, como ele dizia, com desdém, do pai.
Tu chamavas-lhe o “morgadinho”, com ironia.
Tinha a mania que era de “sangue azul”.
Mas a verdade é que ele tinha de fazer pela vida, tal como tu.
Via-se que tinha “bons princípios”,
tendo nascido, se não em berço de ouro,
pelo menos em cama com lençóis de linho.
Pois fora coisa que tu nunca tiveras.
E a tua mãe, coitada, era analfabeta.
E o teu pai, mineiro. E o teu avô, ganhão.
E acima de avô já não conheceste mais ninguém.


Procuraste consolá-lo, foram petiscar, “jaquinzinhos fritos” com arroz de tomate, ainda te recordas, numa tasca saloia, de um fulano da Malveira,  que ainda lá existia, quatro anos depois. Já estava mais “modernaça”, para o teu gosto, com mesas envernizadas, tampos de vidro e paredes espelhadas… (Passaria, mais tarde, a ser uma espécie de tertúlia, da malta do 'reviralho' da terra, que foste conhecendo, pelos jornais que liam, frequentada também por alguns cadetes.)

Depois procuraste mentalizar o teu colega de “desterro”  (mas, no fundo estavas a tentar arranjar algum consolo para o teu próprio infortúnio): um gajo, na vida,  tem de começar por qualquer coisa, “estagiário” ou “aspirante” a qualquer merda. A menos que se tenha um pai rico… 

Começavam ambos como “aspirantes estagiários”, muito bem… E um dia, se o convento não desabasse, haveriam de subir mais um ou dois degraus… Pensavas nisso quase todos os dias quando subias aquela maldita escadaria, de manhã, para chegar à repartição. Foi o que o “chefe” disse a ambos, incentivando-os a estudar, como ele tinha feito… 

 É uma carreira bonita mas dura… 

E, aí, de repente, tiveste a intuição de que ele, o teu "chefe",  só poderia ter sido padre, há uns vinte e tal anos atrás… Os padres são marrões, conhecia-os de ginjeira.

Salazar, também ele seminarista (chegara quase a padre), esse, já tinha morrido, uns tempos antes, mas o seu regime sobrevivera, aparentemente incólume, reproduzindo-se o “mandarinato chinês”, como tu dizias depreciativamente. Era o que se estava  a viver, na época, a “mudança na continuidade”, com o Marcelo. O regime estava a chegar ao fim, mas tu não conseguias predizer quando nem como…  E os “mandarins” começavam a andar nervosos. Não sabias nada do que se passava por detrás dos muros da “Máfrica”, naquela época, em finais de 1973, longe de imaginar que, mesmo com RDM em vigor e a PIDE a vigiar, pudesse haver  conspirações, traições, concluios, alianças, vinganças, etc.

Tudo isto para dizer que foste completamente apanhado de surpresa pelo 25 de Abril de 1974. Nessa manhã tu estavas na repartição, quando alguém, de confiança, da tua tertúlia (a dos "jaquinzinhos"), te veio dar a notícia, alvoraçado, ao balcão.  Mas ainda a medo, segredando-a ao teu ouvido. 

Tu próprio pensaste logo que era um golpe da extrema-direita, orquestrado pelo Américo Tomás e o Kaulza de Arriaga. Mas de tarde já andava tudo nervoso, lá na repartição, a começar pelo "açoriano", que se trancou no gabinete.

Pessoalmente não tinhas grandes ideias para o teu futuro pessoal. Querias poder equacioná-lo numa perspetiva de futuro… coletivo. Precisavas de sentir que o teu país tinha futuro. Era uma dos chavões da época... Querias continuar a estudar, mas não tinhas grande cabeça para o fazer. Faltava-te a disciplina mental. Ainda estavas a fazer o “luto”: não já da morte do teu pai, mas da tua participação na guerra… Estranhamente, só depois de teres regressado, é que começaste a sentir “asco” por ter feito aquela guerra…

Não é que tu fosses muito “informado” quando partiste para a Guiné… E, confessas até, não tinhas “consciência política” na altura… Nem grande nem pequena… Não tens hoje vergonha de o dizer, depois de passar à “peluda”… 

Quando foste mobilizado, não questionaste sequer a "legitimidade da guerra"… Aceitaste a “canga” que te puseram em cima, como o burro que puxava a nora, lá no quintal de um dos vizinhos dos teus avós de São João dos Caldeireiros, em Mértola… 

Mas depois viste coisas, na tropa e na guerra, de que não gostaste. E isso terá enviesado a maneira de ver o que se passava em Portugal, a partir de 1972. De resto, tinhas tido uma educação, no mínimo, “religiosa e conservadora”, propícia à aceitação resignada da "ordem estabelecida", como então se dizia… O Vaticano II, o Concílio,  levara tempo a chegar a Portugal, mas começava a “fazer estragos”, e um deles foi o progressivo despovoamento dos seminários...

 

4B. Uns meses antes do 25 de Abril, 
tiveste um impulso, foste, num domingo, à missa.
Gostaste de conhecer o padre lá da paróquia.
Pela idade, devia ser o coadjutor, 
mas irradiava simpatia e inspirava confiança. 
E rodeiava-se de gente nova. 
Parecia ser um padre “arejado de ideias”, 
como então se diz. 
Ficaste com vontade  de o apresentar ao "herege" do Ravasco.


Suspeitavas que  era um daqueles padres “progressistas”, que nem sempre sabiam distinguir as coisas de Deus e os negócios dos homens. A linha de fronteira era ténue. E tu próprio às vezes ficavas confuso sobre o teor dos sermões que ouvias nas homilias. 

Era um tipo que se aproximava das preocupações dos mais novos e, sem abordar diretamente as questões mais quentes da sexualidade, por exemplo, retirava a carga de pecado que os padres mais tradicionalistas associavam aos  “pensamentos, palavras e obras" dos cristãos... Falava também de liberdade e justiça, citando amiúde o João XXIII...

Antes de ir, no Natal de 1973,  a casa, pediste-lhe, ao padre, para te ouvir em confissão. Há quase um ano que não te confessavas nem comungavas. Não saberias o que haverias dizer à tua mãezinha se ela, na Missa do Galo, visse que tu  já não comungavas… 

Bem, tu  achavas que já não eras mais o mesmo, também não vieste o mesmo de Angola onde a descristianização era já muito maior do que aqui. As pessoas estavam instaladas, viviam bem, os brancos, e tinham-se tornado cínicas… E sobretudo demasiado confiantes em relação ao futuro… Arrogantes, dirias mesmo… Pertenciam a outro mundo, em acelerado desenvolvimento, e no fundo sentiam alguma sobranceiria  em relação à tropa e   às demais  gentes  do "Puto"... que nem todos conheciam.   Uma parte já tinha nascido em Angola. Portugal era um  país que já lhes era estranho, e não tinha as riquezas fabulosas (o petróleo, os diamantes) que iriam tornar aquela terra num eldorado, num novo Brasil do séc. XVIII.

Em Luanda não havia guerra nem se falava da guerra, se não fora a presença de tropa fardada e o movimento de viaturas e aviões militares… Mas tu tinhas saudades, de Luanda, onde ainda passaste os últimos meses da tua comissão... Da ilha e da baía de Luanda, do Mussulo, da vida noturna… Ah, aquelas noites tropicais, com os pés dentro de água, e, na mão, um gin tónico com uma rodela de lima… 


5A. Achavas um ridículo e atroz o Bacelar usar,
no anelar esquerdo, um cachucho com brazão!...
Não escondia as suas simpatias monárquicas
e era católico de ir à missa.
Fazia questão de te dizer que não se interessava
pela “política politiqueira”.
Onde é que tu já ouviras isso ?
Nas “conversas em família”…
do senhor professor doutor Marcello (com dois eles) Caetano

Gostava de gabar-se de que ainda tinha algumas boas relações, que vinham do tempo em que um dos antepassados, do lado do ramo materno, fora juiz-conselheiro e par do reino no tempo do senhor Dom Carlos. Não quiseste humilhá-lo perguntando-lhe o que era isso de ser “par do Reino”… e lembrando-lhe que em 1910, há mais de 70 anos, tinha caído a monarquia em Portugal… 

Para desgosto da mãe, que devia ser  uma pessoa intelectual e moralmente exigente, ele nunca fora bom aluno, tirara o quinto ano dos liceus, se calhar à rasquinha, pelo que tu deduziste.  O que não era normal nos filhos dos professores primários, formatados para serem os primeiros da turma. Mas tinha jeito para línguas, mais do que tu, que eras um cepo. Vá lá, tu safavas-te no latinório, que era uma língua morta, e desenrascava-te no francês de praia…

O Bacelar era o que se podia dizer um sedutor nato, tinha sorte, garantia ele, junto do “sexo fraco”. Mas também fazia facilmente amigos de ocasião. Tinha olho azul e inha uma bela cabeleira, alourada. Enfim, era bem “apessoado” e caprichava no vestir.  Mas tu não lhe davas grande trela, não tinhas pachorra para lhe ouvir as aventuras amorosas desde o tempo do colégio dos jesuítas… Secretamente, invejavas-lhe a sorte de ter tido, nessas matérias,  melhores professores do que os teus…

Ao Bacelar não era  totalmente estranha a “região saloia” (como ele abusivamente dizia, confundindo-a com a Estremadura), já que tinha passado dois ou três meses, mais a norte, nas Caldas da Rainha como 1º cabo miliciano, monitor no Curso de Sargentos Milicianos, antes de ser mobilizado para Angola. 

Explicaste-lhe que a “região saloia” ia das muralhas de Lisboa até Mafra… O Dom Afonso Henriques poupara os mouros, não os passando pelo fio de espada, como era norma, bárbara,  em tempos de cruzadas,  mas mandara-os cultivar alfaces fora das muralhas. Enfim, esta era a historieta que te contaram um dos teus instrutores, na “Máfrica", se calhar ele próprio ainda com sangue mouro  nas veias...

Quis o destino que fossem os dois parar àquele antro de públicas virtudes e vícios privados, desde o tempo do senhor Dom João V… O "cubículo" da repartição de finanças era, só por si, um casarão, com um pé direito muito alto. Mas falava-se baixo. O chefe impunha o seu tom de voz, mavioso, de ilhéu terceirense. Era da terra do Vitorino Nemésio, Praia da Vitória. Raramente aparecia em público. Passava a maior parte do dia, no seu gabinete, com um enorme  estante, de madeira exótica,  pau-preto, forrada de códigos e diários do governo encadernados, a preparar-se para o “próximo concurso” que nunca mais chegava...

Ah!, também não gostavas de ver o Bacelar a puxar do  “cartão da PIDE”, como tu lhe chamavas com sarcasmo,  quando  ambos  iam ao “Ouriço” ou até ao bar do hotel da Ericeira!... Ele tinha cá uma lata!... Tu, pelo contrário, recusavas-te a fazer uso do cartão da DGCI.  Fizeste gala de dizer que nunca puxaste por ele para te impores a alguém ou entrar num estabelecimento da vida nortuna, que de resto só frequentavas para fazer companhia ao Bacelar.

 

5B. Na divisão de serviço, o Ravasco teve mais sorte do que tu:
atribuíram-lhe o imposto de compensação e transações….
Fazia o mapa das empresas rodoviárias,
de transportes de passageiros e mercadorias,
a Mafrense, a Isidoro Duarte e outras…

 

A ti, pelo contrário, deram-te o trabalho de um reles escriturário: expediente, correio, diário do Governo, atendimento ao público, e pouco mais… Foi o sacana do adjunto que distribuiu o serviço, em nome do chefe “que nunca podia ser incomodado, a não ser por força maior”…

Desde o início que o gajo não simpatizara contigo, o adjunto, por alegadamente seres “filho de Ansião”. O homem devia ter tido algum conflito com o diretor-geral, no passado. E quem pagava, por tabela, eram os “afilhados”… 

Inconsolável, foste pôr o caso ao chefe da repartição e puxaste pelos teus pergaminhos, falando-lhe do teu tio-avô, diretor de finanças…. Enfim, para não se chatear com o seu adjunto, alargou a tua área de competência com a  do cadastro e a contribuição predial que era “muito trabalhosa”, e retirou-te o correio e o expediente, que era coisa de reles escriturário…

Em jeito de protesto, tu no dia seguinte pediste logo transferência para Viana do Castelo ou Braga, conforme as vagas…

O “serviço melhor” já tinha dono, três ou quatro funcionários do “grupinho do adjunto” controlavam as “principais áreas de poder”: contencioso, fiscalização externa, imposto sucessório, imposto profissional, imposto complementar, contribuição industrial… Eram todos da terra, quer dizer “saloios”, com exceção de um de fora, mas já com raízes familiares em Mafra.

Acabaste por descobrir, por portas e travessas, que este era também o “grupinho das meninas”: uma vez por mês iam a Lisboa, a uma casa de passe clandestina, controlada por uma “madama” com muito boas relações com a hierarquia da DGCI,  ali no Terreiro do Paço (e se calhar com outra gente do poder)… Era à sexta-feira da última semana de cada mês… Percebia-se pelos sorrisos,piadas e  conversinhas, entre eles, na segunda-feira de manhã, seguinte, que a noitada de sexta tinha sido em grande, acabando numa conhecida marisqueira das Portas de Santo Antão… 

Contaste tudo isto ao Ravasco, que ficou indignado e mostrou-se solidário contigo. Afinal, quem pagava tudo isso ?, interpelava-te ele.  

A tua consideração pelo teu colega alentejano aumentou mais um ponto ou dois. Mas não alterou nada da tua situação ali dentro. Sentis-te deslocado, infeliz, com saudades da tua gente e da tua terra.



6A. Não podias jurar que havia ali corrupção.
Corrupção ?!... Não se falava disso na época.
Discutia-se o regime como um todo.
E esperava-se, à boa maneira sebastiânica,
que acabasse por cair um dia. De podre.

 

Tu tinhas chegado há pouco e tencionavas não demorar muito por lá, pela repartição de finanças de Mafra. Mas não punhas as mãos no fogo pelo adjunto e o seu “grupinho das meninas”, como lhe chamava o Bacelar. Quiseram ser simpáticos com os dois e, no feriado do 1º de Dezembro, que calhava a um sábado, convidaram ambos para beber um copo, a seguir ao jantar e ver um "filme pornográfico sueco" (na realidade, dinamarquês), em 8 mm, na quinta de uns amigalhaços, ali para os lados do Gradil.

O Bacelar levou o carro dele, tu foste num outro, não querias ser votado ao ostracismo logo nos primeiros dias. Percebia-se que cultivavam boas relações com alguns dos maiores contribuintes, empresários e proprietários ruaus, ricaços da terra. Era costume, por exemplo, um deles, muito conhecido, ligado à indústria de alimentação e bebidas, oferecer, pelo Natal, uma lauta ceia aos funcionários da repartição de finanças. Era uma tradição já arreigada, não só nas contribuições e impostos,  como no restante funcionalismo da província, incluindo os tribunais. Noutras ocasiões  ia-se a uma marisqueira de Ribamar da Ericeira.

Nesse final de ano de 1972, tu e o Bacelar também foram convidados. Parecia mal não alinhar, logo no “primeiro ano”. Sabias que os "novatos" estavam “à prova”, debaixo de escrutínio… O chefe, esse,  delegou no adjunto. Parecia-te um homem decente, mas fraco em termos de autoridade… Chamavam-lhe, nas costas e no gozo,  o “achou...riano”…

Nessa “ceia de Natal do fisco”, entre “charutos cubanos” e “conhaques franceses”, ouviste a história do fundador da empresa que, no tempo da guerra de Espanha, aprendera a fazer contrabando de “essência de laranja”, e acabara por abrir uma fabriqueta de “pirolitos”…O segredo do negócio ? A água, o acesso a água, “muita e de boa qualidade”… Percebeste depois que, com a “guerra de África”, as exportações haviam aumentado em flecha…Era um dos fornecedores da Intendência Militar. Lembras-te de ter visto a marca, na Guiné, por todo o lado… Mas tu não bebias refrigerantes, com carradas de acúcar, que só faziam aumentar a sede…

A tua santa ingenuidade, a tua crença, parva, na honestidade e bondade intrínsecas do ser humano, sofreu mais um duro golpe. Tu tinhas idade para ficar de pé atrás contra certa gente. Afinal, aquilo da "respublica", da administração pública tinha pouco. O tal adjunto era apenas a ponta do iceberg. Entristecias-te ter colegas daqueles a trabalhar a teu lado. Infelizmente tinhas que lhes sorrir e apertar a mão direita enquanto, com a mão esquerda, eles enfiavam no bolso o “santo antoninho”, a nota de vinte paus, que o pobre do contribuinte saloio lhes deixava debaixo da capa do “processo"... O  "processo”, o terror de qualquer pequeno contribuinte !!!...

Mas, adiante. O acontecimento mais marcante que viveste em Mafra ,   no tempo em que lá estiveste, enquanto trabalhador dos impostos, foi o 25 de Abril de 1974. Não por nenhum acontecimento local, digno de especial nota: não viste movimentação de tropas, alvoroço de tropas,  viaturas,  chaimites, tiros para o ar, nada disso… 

Tudo se decidiu alguns quilómetros mais a sul, a 40 km, na capital. Mas antes tens de recordar aqui uma cena, das tuas memórias de Mafra desse tempo,  que nunca mais esquecerás, enquanto pelo menos não apanhares o Alzheimer.

(Continua)


© Luís Graça (2021). Revisto em 15 de abril de 2024

Nota do autor: Neste conto, os nomes (de pessoas e lugares) podem ser fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

__________

Nota do editor:


Último poste da série > 1 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25324: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (24): O tio Ortiz (1906-1944), um herói trágico

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Guiné 6174 - P25137: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (17): Três amigos, três destinos - Parte I



Figueira da Foz >  "Placa da Rua Heróis do Ultramar na esquina com a Rua 10 de Agosto, em frente dos Bombeiros Voluntários"...  Foto de Joehawkins, datada de 24 outubro de 2016. Com a devida vénia... Fonte: Wikimedia Commons (2018)

 [Placas como esta abundam pelo país fora, são do início dos anos 60, quando começou a guerra colonial / guerra do ultramar em Angola, e era preciso homenagear os bravos que por lá se batiam, em condições adversas... A guerra depois banalizou-se, estendendo-se à Guiné e a Moçambique.. E os heróis foram ficando para trás... Esquecidos. Como em todas as guerras.. LG]


Contos com mural ao fundo >

Três amigos, três destinos - Parte I

por Luís Graça


 
Belmiro Mateus, advogado, e António Mota, professor de história., reformado, do ensino secundário, ex-seminarista, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures na região do Médio Tejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, entre 1973 e 1974... Há longos anos que não se viam e aproveitaram para "matar saudades dos bons velhos tempos", além de homenagear o amigo,

***

Meu caro Belmiro, dá-me cá um valente quebra-costelas, como se diz lá em baixo no meu Além... Tejo!

− E tu, como vais, meu velho ? – respondeu efusivamente o Belmiro, ao abraço apertado e prolongado do António, Tony para os amigos.

− Cá vamos estando, menos mal!...Velhos, carecas e gordos! – replicou o Tony.

− Cá vamos andando, gemendo e chorando, como dizem os mouros cá de cima, de Riba... Tejo.

O Belmiro Mateus, advogado, e o António Mota, professor de história do ensino secundário, reformado, dois conterrâneos agora separados pelo Tejo que, no passado, há mais de oito éculos,  fora fronteira natural e política de Portugal, já não se viam...  desde os tempos da Expo 98!....

− Agora, cada um para seu lado, Belmiro. O nascimento aproximou-nos, a vida ou a história afastou-nos. Bolas, e se éramos "amigos do pêto"!

− Como irmãos, Tony, como irmãos!... É verdade, não se escolhe pai e mãe, e a terra natal é aquela que nos calha na rifa da sorte!

− ... aquela que nos calha na rifa da sorte, dizes bem!

Reencontravam-se agora no cemitério da terra natal, pela segunda vez  desde 1998, o ano da Expo, o que só podia queria dizer... “por circunstâncias infelizes”. Desta vez, vinham acompanhar um amigo comum, o Zé Nuno, “até à sua última morada”.

− Que raio de sítio – pragejou o António – para o reencontro de dois velhos amigos, conterrâneos, vizinhos… e condiscípulos!

− E manos, acrescenta aí!... (Felizmente, ainda tenho vários, mas biológicos.)

O Belmiro, ainda hoje supersticioso, confessou que, quando era novo, tinha "um medo que se pelava de passar por aquelas bandas", sozinho, à noite, fora do resto das muralhas que delimitavam o casco velho do antigo burgo medieval.

O cemitério tinha sido construído há cento e tal anos, no tempo do senhor Dom Luís de boa memória, e localizava-se no início da lezíria, que fora outrora o grande celeiro da vila ribatejana.

− À noite, só de pensar nos fogos fátuos, nas corujas, nas bruxas, nas almas penadas, nos lobisomens... ficava com os cabelos em pé!

− Eu, também, confesso, nessas coisas era um medricas… Mas, lembras-te, Belmiro ?!... As nossas patifarias, tais como caçar lagartos no muro do cemitério...


−... com anzóis de pesca e bocados de pão, embebidos em leite!... Para o que nos devia de dar!... Esses lagartos, hoje, foi espécie que desapareceu.

− Espera, não eram lagartos, eram sardões! Eram verdes, podiam medir um ou dois palmos.

O Belmiro lembrava-se que o bando de garotos de escola enfiava um laço à volta do pescoço do bicho, e com um cordão comprido passeavam-no pelas ruas e vielas da terra, metendo medo aos mais fracos, as crianças mais pequenas, as raparigas, as mulheres e os velhotes…


− Acho que éramos sádicos e cruéis como todos os miúdos na pré-puberdade, a aprender a ser homens, isto é, machos!

− Mas, já agora, Belmiro, acrescenta ao rol dos nossos crimes de malvadez partir os vitrais da rosácea da velha igreja matriz… À pedrada, imagina!

− Se me lembro, Tony, ainda hoje carrego essa culpa, por crime de lesa-património. Bolas, era (e é) um belo monumento da nossa terra, e mais do que isso, um lugar sagrado, a casa de Deus!... Que estupores!.. . Meninos de coro e escuteiros, ainda por cima. 

− E, tens razão, era a casa de Deus!... Se bem que fechada ao culto, na altura estava para obras, com andaimes... E havia até quem tivesse a triste ideia de a transformar em museu de arte sacra!

E aqui o Belmiro reconstituiu a cena do grupo de “peles vermelhas”, ululantes, montados nos seus cavalos de cabo de vassoura, comandados pelo grande chefe “Língua de Víbora”, um primo mais velho do António, que há de, logo a seguir, em meados dos anos 50,  emigrar com a família para as Américas...


− Montados em cavalos de cabo de vassoura, como os das bruxas,  e disparando saraivadas de setas com arcos de pau de tramagueira!...

− Mas que terrorista,  esse meu primo, filho de uns tios-avós. O gajo safou-se, mesmo a tempo, de ir parar mais tarde, com os quatro costados à Índia ou até a Angola...

O “Língua de Víbora”!... O Tony nunca conhecera, no seu tempo de escola, miúdo mais endiabrado, mais mal educado, mais traquinas, se não mesmo mau e perverso, como o seu primo em terceiro grau.

A alcunha cabia-lhe que nem uma luva, tinha-lhe sido dada, ninguém sabe por quem, devido às patifarias que ele pregava e sobretudo às asneiras que ele deitava pela boca fora. Todos os palavrões que o Tony sabia (e que usou pela vida fora...) tinha-os aprendido com o primo, mais velho uns três ou quatro anos... Era expulso com frequência da escola e da catequese pela sua insolência e má-criação. E, no entanto, a mãe era uma santa senhora, daquelas que iam à missinha todos os dias. O pai, pelo contrário, era um carroceiro, negociante de gado, antigo almocreve.

− Mas, sabes, eu tenho saudades dele e do nosso bando de "índios" – atalhou o Belmiro. – Dele e toda essa malta, rapazes e raparigas que fizeram parte da nossa infância e que, já em plenos  anos 50, começaram ir-se embora, uma parte deles para o Brasil, aos EUA, o Canadá!...

− Cá tens, o exemplo de um mau líder de grupo que faz maus rapazes. O "Língua de Víbora", há séculos que não sei dele, espero que não se tenha perdido no Novo Mundo… Oxalá ainda esteja vivo!... Não lhe posso desejar mal, para mais meu parente.

− Ficas a saber, Tony, que eu nunca tive a coragem de confessar, na Quaresma,  ao padre frei Batista esse grave pecado, o de atirar pedras aos vitrais da igreja. Para mim, puto, era um pecadilho, daqueles que não dava condenação ao inferno, apenas um simples castigo no purgatório. 

− Deixa-te de tretas, o purgatório já existe, se é que alguma vez existiu...

− Concordo, é uma metáfora, como todas as criações da Bíblia...uma obra-prima da literatura universal...

E foi logo recordado por ambos os amigos a figura do bom frei Batista, que fazia os sermões da Quaresma e confessava ruas inteiras de putos e beatas, mais tarde missionário, franciscano, barbaramente assassinado,  a golpe de catana, em março de 1961, no norte de Angola.

− Que raio de memórias, fomos buscar!... Mas, voltando ao que aqui nos traz hoje, o doloroso dever de homenagear o nosso já saudoso amigo Zé…

− Já se foi, António, já aqui está na terra da verdade… Horrível, um tumor cerebral,  fulminante, que em poucos meses o levou…

− É tramado, Belmiro… Um rapaz da nossa geração, da nossa colheita...E que nos habituamos a ver sempre cheio de saúde, energia e alegria de viver...

O Zé Nuno era ligeiramente mais velho, uma meia dúzia de meses, que o Tony e o Belmiro. Fez o antigo curso de engenharia técnica em Lisboa e depois alistou-se na Marinha. Ficou na Reserva Naval e foi mobilizado para Moçambique onde desempenhou funções de guarda-marinho....

 − ...numa lancha de fiscalização grande ou numa corveta, que eu de marinha (e de tropa) sou um zero à esquerda − atalhou, de pronto, o Belmiro

− A imagem que eu tenho dele era o do moço de forcados, jaqueta bem apertada, calça à boca de sina, como se usava naquete tempo, pegador de touros, marialva, “bon vivant”...

− Bom garfo, melhor copo, garanhão, mas… mau cavaleiro! Não tinha jeito nenhum para montar, até eu, que não tinha cavalos, montava melhor do que ele…

− Mas valente como ninguém na cara dos touros... Enfim, é o lídimo representante de uma geração que está a desaparecer.

− Inteiramente justo o que dizes, Tony.

− Como sabes, Belmiro, eu nunca fui amante da festa brava, que continua a ter muitos aficionados na nossa terra, em todo o nosso Ribatejo e o nosso Alentejo. Devo ser, nesse como noutros capítulos da nossa gesta heróica,  a ovelha ranhosa cá da terra... 

− Eu sei, Tony, os amigos não têm que ter todas as afinidades. Como eu gosto de dizer, no círculo estreito da amizade,  cabemos todos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos pode separar... E as touradas (e já agora a bola, a política e a igreja) são algumas delas...

− Sim, coisas que nos podem separar, a política, a religião, o futebol, os touros e o sexo…, o que no cômputo final representa 99% das nossas conversas de machos…

− Mete aí também o tempo, passamos a vida a falar do tempo que faz, ora sol ora chuva, ora calor ora frio... É um dos desportos favoritos da nossa gente. Mas isso é inócuo, é conversa da treta... De qualquer modo, o Zé tinha outras vivências e origens sociofamiliares. Os touros, o fado, os cavalos, o marialvismo, a boémia... eram coisas que ele tinha bebido no leite materno,..

− ... ou que estavam nos genes do pai. De qualquer modo, vai-nos fazer falta, o Zé, a todos nós – lamenta, com tristeza,  o António.

− Vai fazer falta à terra, ao grupo de forcados, à festa brava, à malta que gosta do fado e sobretudo à família e aos amigos. Era um coração aberto, generoso como poucos…

Fez-se um silêncio, entre ambos, sentados, ali num  murete do cemitério, a "relembrar os bons velhos tempos", em que havia "três amigos, três destinos" (título da letra de um velho fado, que o Zé Nuno tocava e cantava com muita piada). 

− Deixa cá ver se me lembro da primeira quadra... Três  amigos, três destinos / Que o Diabo moldou /, No Tejo os batizou, / Para sempre, três meninos"...

O Belmiro continuou a conversa:

− Sabes, fico sempre jeito, nestas ocasiões. Eu que tenho a mania que falo bem, e de improviso, com tantos anos de barra nos tribunais, nunca encontro as palavras certas para consolar a família e os amigos mais íntimos... Sim, o Zé era o mais afável de todos os nossos amigos de infância, e se calhar o melhor de todos nós. Aquelas mãos brutas e aqueles braços compridos de pegador de touros, e sobretudo aqueles dedos mágicos de dedilhar a guitarra,  também sabiam dar afagos e chicorações, como ninguém… Era uma joia de moço, um encanto...


E esclarece:

− Foi meu companheiro de caça durante muitos anos, se bem que a política nos tenha afastado um bocado, 
antes e depois do 25 de Abril. Ele teve dificuldade em lidar e aceitar o meu esquerdismo dos verdes anos... Eu nessa altura era, como sabes, um maosta  intratável, arrogante, convencido...(e perdi amigos por isso).

Foi também para Lisboa, estudar, o Zé Nuno...

− ...Mas raramente nos encontrávamos lá, eu em direito, ele em engenharia... Sei que o seu sonho era ir para o curso de regentes agrícolas em Santarém, ficava ao pé de casa, tinha lá amigos do grupo de forcados... Mas o pai, homem conservador, autoritário, achava que seria borga a mais... De resto, o irmão mais velho,  é que começou cedo a tomar conta da herdade. (Dizia que não tinha cabeça para estudar.)

− Autoritário e mulherengo, o pai, acrescenta aí. Nunca foi pessoa, aliás, das minhas relações – arrematou o Tony. 

− Infelizmente, a casa agrícola, outrora próspera, prestigiada, com tradições monárquicas, com criação de cavalos e de gado bravo, 
está de pantanas, hipotecada aos bancos... Confirma-se a velha teoria de que em três ou quatro gerações dá-se cabo do  património de uma empresa, neste caso agrícola, que chegou a ser uma das maiores e melhores da nossa região.

− Há aí uma espécie de sina ou  anátema da História... Sei pouco da saga tumultuosa  da família, mas contava-me o meu avò, que era republicano dos quatro costados, que um dos antepassados do Zé Nuno, talvez o pai do trisavô,  teria sido um dos campinos que montou a guarda de honra ao Dom Miguel, na sua entrada triunfal em Lisboa após a vilafrancada (em 1823).. 

− Nunca lhe ouvi contar essa história... Mas, na verdade, o irmão, o "morgado", era Miguel. (Também já lá estána terra da verdade ...)

− Mera coincidência ou talvez não... Sabes que os portugueses são maus alunos em História...  Quando dava aulas (já estou reformado), punha os meus alunos a escrever a história da família, paravam logo nos avós que já mal conheceram... Era gente humilde, no geral...  Os pobres encolhem os ombros, acham que têm pouco ou nada para contar...

− De qualquer modo, costuma-se dizer "coitado é de quem cá fica", refiro-me em concreto à viúva, que encontrei, ontem, no velório, lavada em lágrimas... Era uma miúda muito gira, talvez a mais bonita da terra. Destroçou corações...

− Disso já não me lembro, Belmiro. É bastante mais nova do que nós, e eu mal a conheço. 

Para o Belmiro, o advogado, estes não eram tempos bons para um gajo bater a bota e deixar a família em maus lençóis.

−  Sabes que o Zé tinha casado tarde, ficara solteirão até aos quarenta, mantendo uma tradição que remontava até ao bisavô, contemporâneo e condiscípulo,  em Coimbra,  do nosso José Relvas, ali da Golegã. (Nunca foram amigos, um era monárquico,  o outro republicano.)... 
E, ao que sei, deixa ainda um filho a estudar na universidade. E outro com problemas de saúde mental, creio que é bipolar...

 −  Enfim, Belmiro, essa é a desvantagem de se viver num vilória como a nossa: não há vida privada – concluiu o Tony. – Vai parar tudo à praça pública, até os segredos de padre no confessionário e do médico no consultório...

E prosseguiu:

− Belmiro, o que a gente sabe é que o raio da gadanha da morte não escolhe idade nem condição, ceifa o pobre, ceifa rico, o jovem e o velho, o homem e a mulher, o ganhão e o latifunidário... Também não já não me lembrava que ele tinha passado por África, pela guerra colonial…

O António tinha perdido o contacto com a malta do seu tempo, da escola primária e do colégio, os que ficaram pela terra e sobretudo os que partiram... E foram muitos, não só para a França e a Alemanha, como antes para o Novo Mundo (Brasil, EUA, Canadá)... Um ou outro fixou-se em Angola e Moçambique, depois de terminado a comissão de serviço militar. 

− Além da grande Lisboa, os felizardos, como tu e o Zé, que tiveram a possibilidade de prosseguir os seus estudos… E de ter direito a férias de praia, no verão. 

−  O que foste agora buscar agora, a  nossa época balnear!...Tu, na praia de São Pedro de Moel, e eu na  praia da Vieira, da arraia-miúda! ....

− Ias de bicicleta visitar-me. Que inveja, os meus pais não me davam essa liberdade.. Mas gostavam muito de ti e sabiam que tu eras de famílias honradas e sobretudo uma "boa companhia"...

O Tony estudara até ao antigo 5º ano do liceu no antigo  colégio particular da terra;  com grande sacrifício do pai, que tinha uma pequena oficina de serralharia.

Depois, aos 16 anos, tinha tido uma “crise mística” e decidiu ir para o seminário. Fez a filosofia e parte da teologia, envolvendo-se no 10º ano com um grupo da JUC – Juventude Universitária Católica que, na associação de estudantes da Faculdade de Letras,  tirava a “stencil” uns panfletos contra a guerra colonial

Um dia um pequeno grupo foi apanhado pela PSP a deixar "papéis subversivos" na estação de metro  e no interir das carruagens, a horas mortas... A PIDE tomou conta da ocorrência.

… As mensagens eram "pacifistas",  o que não  livrou o Tony, já "quase padreco"(sic), de passar uma noite na António Maria Cardoso, juntamente com mais dois ou três rapazes do grupo da JUC. O caso chegou aos ouvidos do Patriarcado de Lisboa e foi comunicado ao seminário dos Olivais. 

O silêncio da Igreja em relação à guerra colonial e aos católicos presos por "motivos políticos" levaram o Tony a questionar a sua vocação sacerdotal. Saiu do seminário, aos 21 anos, zangado com  Deus e com os homens...E aos 22 estava em Mafra a fazer a recruta. Escassos meses depois era mobilizado, em rendição individual, para a Guiné, como alferes miliciano de infantaria, para uma companhia de caçadores, independente, composta por praças do recrutamento local.

***

− O Zé!... Éramos vizinhos da Rua do Colete Encarnado, na encosta das ruínas do castelo, eu na parte de cima, a dos pobres, e ele, na parte de baixo, a dos ricos... As nossas famílias não eram chegadas, naturalmente, não conviviam... Só eu ia lá, à sua casa, aliás um casarão do séc. XVIII, fria e desconfortável, mas descomunal para um miúdo da minha idade...

O Tony alongou-se depois com memórias sobre a família do Zé Nuno e a sua: 

− Como sabes, os teres e os haveres aproximam as pessoas, a pobreza, mesmo honrada, afasta-as. O pai dele era um senhor lavrador, um agrário, o meu, um serralheiro, pequeno patrão, que mal ganhava para ele e o seus dois ou três empregados.

− Enfim, encontravam-se, ao menos,  na missa, ao domingo. Na igreja, lá éramos todos iguais, irmãos em Cristo....

−  Cá fora, bom dia e boa tarde, entre dentes.! .. Uma vez por outra era preciso ir à quinta fazer uns trabalhinhos de soldadura, arranjar as cercas e os portões… Ah!, e havia o futebol, chegaram a jogar juntos, quando novos, cá no clube da terra… E, julgo eu, foram condiscípulos, andaram na mesma escola, na mesma turma. De resto, tudo os separava. Nunca se tratavam por tu... 

Só depois do 25 de Abril, é que se atenuaram algumas diferenças sociais entre os ribatejanos do burgo... como de resto aconteceu, de norte a sul do país...

O Belmiro não quis pegar neste assunto das diferenças de classe das famílias de uns e outros, e chamou a atenção do amigo para o que se passara na missa de corpo presente:

− Repara, António, que até o padre estava embatocado… Não é costume ele mostrar as suas emoções nestas cerimónias fúnebres… Sei que ele era muito amigo do Zé!...

− Meu caro dr. Belmiro Mateus, ilustre advogado da nossa praça, parece-me que Deus tem andado ultimamente distraído... Bolas, a morte tem levado alguns dos melhores filhos da nossa terra… Para mais, católicos, apostólicos, romanos...

− Não vais sem resposta, António Mota, Deus não precisa de advogado de defesa, e muito menos dos serviços de um pobre advogado como eu... Mas também é verdade que Deus tem as costas largas.

O António Mota, ex-crente, ex-seminarista, professor de história do ensino secundário, reformado, que se refugiara no seu monte alentejano, em plena terra de mouros, não quis ser indelicado para com o seu amigo, mas pensou, com os seus botões, como dava jeito ter uma bode expiatório para todos os males da humanidade... Na cultura judaico-cristã, era o maldito pecado original.

− Sim, Deus tem as costas largas... Mas, já agora, acrescenta a crise, se me permites... Tanto à esquerda como à direita, a crise tem sido usada, "ad nauseam", para explicar tudo e mais um par de botas... Dá jeito, como o fetichismo dos números redondos, das estatísticas, dos gráficos, das folhas de excel… para os nossos demagogos parlamentares e para os nossos jornalistas incultos… Mente-se com números, temos uma grave problema de inumeracia…

− O quê ?...

− Iliteracia numérica, incapacidade para ler e interpretar números… Vejo o que se passa com as redes sociais: as pessoas "emprenham", já não é só pelos ouvidos, é também pelos olhos, pelo que leem, veem e ouvem...

− Tony, a minha racionalidade não chega a tanto, ou melhor, acaba aqui, não sou um homem das ciências duras, há coisas que não sei compreender e muito menos explicar (e no íntimo não quero saber)... Vou ter que viver com o absurdo do mal, a matança dos inocentes, etc... Sei que infelizmente  já não és crente e estás-me a avaliar como aos teus alunos de liceu...

−... e às alunas, de alto a baixo!

− Não sejas ordinário, Tony, não te conheço essa faceta!... De resto, sempre fomos o cão e o gato, na escola, no recreio , no colégio, nos acampamentos de escuteiros… Era a competição e eu conhecia o teu ponto fraco, os teus limites… Sabia até onde podia provocar-te, sem te agredir. Por isso sempre fomos bons amigos... Até hoje! É verdade ?

− Eu sei, e estou-te grato, Belmiro. Mas, respondendo agora à tua observação, devo dizer-te que a minha fé, de menino e moço, não resistiu à dura prova da realidade, à medida que me fui tornando homem e conhecendo o mundo… A descoberta, tardia, aos 16 anos, da minha vocação sacerdotal, o "chamamento de Deus", o "calling", como dizem os ingleses, se calhar não foi mais do que uma forma de fugir desta terra, que se tornara para mim claustrofóbica…

− Pois, eu também já tive as minhas crises de fé, os meus altos e baixos… Para mim, a última coisa a perder não é a fé, mas a esperança. Também estive fora, como tu, mas sempre determinado a voltar na melhor ocasião. Ainda passei uns anos pelos Açores, onde a minha mulher, que era de lá, foi notária,  antes de decidirmo-nos, já com filhos, de voltar às minhas origens... E aqui estou na minha, nossa, bela terra… É aqui que eu tenho o meu doce lar, os parentes, os amigos, o horizonte largo da lezíria… Sabes, as ilhas, sim, são claustrofóbicas. E eu seria incapaz de viver e trabalhar num navio como o Zé Nuno... (Se tivesse que ir à tropa, oferecia-me para a Força Aérea.)

− Fico feliz por ti e pela terra que se calhar não te merece… Mas, olha-me à volta, para cá caminhamos, para este lugar sombrio, mesmo que o sol lhe bata todas as tardes, como hoje… Mesmo soalheira, há de ser a nossa última morada, também…

− Já cá estão os nossos pais, tios, avós, bisavós... Lembras-te, vieste cá, em 1998, ao enterro do meu pai... Fiquei muito sensibilizado com o teu gesto solidário...

− E agora é a rapaziada do nosso tempo... Por mim, ainda não sei onde vou deixar os meus ossos ou cinzas. Já pedi para ser cremado, espero que os meus filhos e netos respeitem a minha última vontade!

− Tony, olha que não é bem assim… Se tiveres o azar de ir parar à morgue, à medicina legal, estás tramado, só com ordem de um juiz é que podes ser cremado!

− Não acredito!... Mas também já me disseram isso. Afinal, um homem não é dono do seu corpo.

− Ah!, pois não, Tony, nem homem nem mulher… Como católico, sou contra a cremação, mas como jurista tenho que aceitar e respeitar as leis da República.

− Belmiro, no dia do Juízo Final, queres estar de corpo inteiro, na fila dos justos e dos eleitos…

− Não sou capaz de imaginar tal cena, mas acredito que esse dia, o fim do mundo, há de chegar!

− Espera, meu irmão, a morte é a derradeira prova de fogo de um homem!... Por mim, não quero ir para a "cova funda", para usar uma poderosa imagem poética do Bocage… Como um cão!... Quero lutar com ela, a senhora morte, até ao fim!... Como lutei na guerra, em África!

− Mas que raio de conversa, Tony!... Para o que nos devia de dar, dois velhos colegas de escola, dois meninos de coro, dois briosos escuteiros, falando do passado e da morte…

−... colegas de escola e dos escuteiros, sim!...

− … a falar do dia em que lá teremos que devolver a alma ao criador…

− A alma ?

− Sim, a máscara que nos foi emprestada!... Tenho uma teoria, a de que nada nos foi dado, muito menos a vida, é tudo emprestado, e vamos ter que prestar contas a alguém...

− Essa é uma metáfora, já os antigos egípcios acreditavam nisso… 

E, mudando de assunto, o Tony fez uma proposta ao amigo:

− E se fôssemos beber um copo, antes de eu me meter à estrada, que ainda tenho uns bons quilómetros  para fazer ?!… (E cada  menos gosto  de conduzir!...) Fico em Lisboa, esta noite… Falar da morte, e para mais num cemitério, faz-me securas na garganta. Mas, nos cemitérios, num raio de 500 metros, há sempre um tasco com o letreiro "À volta cá te espero"… Vamos lá dar de beber à dor, companheiro!

− Alinho, Tony, vamos lá!... Já perdi o dia todo, e não tenho cabeça para passar pelo escritório. Temos um tasco, aqui mesmo, a dois passos, nas traseiras do  largo da Misericórdia. O "Carpe Diem". É de um gajo castiço, poeta popular, o nosso Aleixo, eu chamo-lhe o António Aleixo do Ribatejo. Um bom sítio para se petiscar e beber um copo.

 (Continua)

© Luís Graça (2018).

Revisão: 3/2/2024

________________

Nota do editor:

Último poste da série > 28 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25117: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (16): Excertos do Diário de um 'Bate-chapas'