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segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25970: Timor: passado e presente (22): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Anexo I: Lista dos cerca de uma centena de portugueses mortos durante a ocupação japonesa

 





Timor > s/l > 10938 >  Fotos da Missão Geográfica e Geolõgica de Timor: as duas primeiras parecem-nos ser relativas à construção de um marco geodésico. A última é de um habitante local.  (Grande parte das 558 fotos do Álbum Fontoura não trazem legenda, embora estejam organizadas por área temática; estas três pertencem à série 6 "Ação Civilizadora e Colonizadora" 

Foto do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagem do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. Editada (e legendada) por blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


O Álbum «Colónia Portuguesa de Timor», mais conhecido por «Álbum Fontoura», nome do governador que o mandou elaborar em finais dos anos 30, e coincidindo, então, com a permanência em Timor de uma missão geográfica e geológica, chefiada pelo geógrafo Jorge Castilho, contém 549 fotografias relativas a «grupos étnico-linguísticos e tipos em geral», «trajos, ornamentos, pertences e armas», «vida familiar e social», «formas de trabalho (…), arte indígena e instrumentos musicais» e «acção civilizadora e colonizadora». O exemplar do álbum, recuperado após Abril de 1974 pelo antropólogo, professor António de Almeida, foi depositado no AHS (Arquivo Histório Social, ISC/UL, pela «Família Almeida», através do Doutor Pedro Cardim. (Fonte: AHS/Album Fontoura)




Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX.



1. Chegámos  ao fim das notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.

Há, no entanto, alguma informação  em anexo que vale a pena disponibilizar ao leitor que se interessa pela história de Timor durante a II Guerra mundial.

Começamos pela listagem dos portugueses mortos durante a ocupação japonesa (n=80,  incluindo 16 deportados).

Dos timorenses que morreram durante este trágico período da sua história (e terão sido algumas dezenas de milhares), só sabemos os nomes de alguns dos seus chefes tradicionais ("liurais"), que se mantiveram leais à bandeira portuguesa (n  > 11).
  


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Anexo I:   Lista dos cerca de uma centenas de portugueses mortos durante a ocupação japonesa  (pp. 127-132)  
 


(A) Alguns Portugueses Mortos  em Combate Durante a Ocupação Japonesa (n=10)


1 — Paulo Moreira. Cabo de infantaria. Em Lébus, a 5 de setembro de 1942. 

2 — Abel Soares dos Santos. Soldado. Em Lébus, a 5 de setembro de 1942. 

3 — António Fernão Magalhães. Natural de Macau, servindo de enfermeiro numa coluna expedicionária. Em Lébus,  a 5 de setembro de 1942. 
 
4 — Evaristo Gregório Madeira, Cabo de infantaria. Em Aileu, a 1 de outubro de 1942. 

5 — Júlio António da Costa. Cabo de infantaria. Em Aileu, a 1 de outubro de 1942. 

6 — Álvaro Henrique Maher. Soldado. Em Aileu, a 1 de outubro de 1942. 

7 — João Florindo. Soldado. Em Aileu, a 1 de outubro de 1942. 

8 — Dr. João Mendes de Almeida. Licenciado em Letras e administrador de circunscrição. Em Manatuto, a 13 de  novembro de/1942. 

9 — Augusto Pereira Padinha. Chefe de posto administrativo, licenciado pela Escola Superior Colonial. Em Manatuto,  a 13 de novembro de 1942. 

10 — Eduardo Felner Duarte. Deportado. Nas faldas do monte Ramelau, nos arredores de Ainaro, em maio de 1943. 


(B) Alguns Portugueses Assassinados Durante a Ocupação Japonesa  (n=37)

1 — Francisco Ramos Graça. Deportado. No Remexio, em março de 1942. 

2 — Fernando Martins. Deportado. Em Díli, em março de  1942. 

3 — Alfredo Baptista. Cabo de infantaria e chefe de poste  administrativo. Em Fátu-Lúlic, em agosto de 1942. 

4 — Francisco Martins Coelho. Cabo de infantaria e chefe de  posto administrativo. Em Maubisse, em agosto de 1942. 

5 — José Faria Braga. Deportado. Em Maubisse, em agosto  de 1942. 

6 — Fernando Augusto Mariz. Deportado. Na circunscrição  da Fronteira, em agosto de 1942. 

7 — Sebastião da Costa. Agricultor. Na circunscrição de  Aileu, junto ao limite com Laulara, em setembro de 1942. 

8 — Luísa Pereira da Costa. Esposa do anterior. Idem. 

9 — Maria Elisa Vigário. Filha do casal anterior e esposa de  João Pereira Vigário. Idem. 

10  — Alice Pereira Vigário. Filha da anterior. Idem. 

11 — Uma criança de três meses, filha de Manuel Albano dá  Costa. Idem. 

12 — Padre António Manuel Pires. Missionário. Em Ainaro, a 2 de outubro de 1942. 

13 — Padre Norberto de Oliveira Barros. Missionário. Idem. 

14 — Luís Ferreira da Silva, Deportado. Idem. 

15 — Emílio Augusto Caldeira. Deportado. Em Lete-Fóho, em  agosto de 1942. ;. 

16 — João Romano da Silva. Deportado. Idem. 

17 — Joaquim Pereira Vigário. Agricultor. Em Aileu — Laulara, a 3 de novembro de 1942. 

18 — Manuel Ribeiro. Agricultor. Idem. 

19 — Manuel Arroio Estanislau de Barros. Administrador de  circunscrição. Na área da sede da circunscrição de Lautém, a 17 de novembro de 1942. 

20 — Maria das Dores de Barros. Esposa do anterior. Idem. 

21 — António Teixeira. Deportado. Em Lautém, em novembro  de 1942. 

22 — Raul Monteiro. Deportado. Em Fuiloro. 

23 — Mário Gonçalves. Deportado, Em Lautém. 

24 — Alípio Ferreira. Alferes reformado. Em Cribas, em data  ignorada. 

25 — Alberto Ferreira. Filho do anterior. Idem. 

26 — António Xavier de Jesus Araújo. Secretário de circunscrição aposentado, natural de Timor. Em Díli, a 28 de  janeiro de 1943. 

27 — Helena Barros de Araújo. Mãe do anterior. Idem. 

28 — Fernando José Maria Senanes. Ajudante de enfermeiro. Na região de Luca, antes de 28 de fevereiro de 1943. 

29 — Manuel Albano da Costa. Agricultor. Em terras de Malua, em data ignorada, (Filho do n.° 7 desta lista, Sebastião da Costa) . 

30 — Padre Abílio Caldas. Missionário, natural de Timor. Em  Barique, em data ignorada. 

31  — Romualdo Aniceto. Soldado. Em Leu-Moa (Ainaro), em  abril ou maio de 1943. 

32 — José Cachaço. Soldado. Idem. 

33 — José Estêvão Alexandrino. Na Ermera, em junho de  1943. 

34 — João Brás. Cabo de infantaria e chefe de posto administrativo. Em Vátu-Carabau, depois de junho de 1943. 

35 — José Rebelo, Cabo de infantaria. Fuzilado pelos japoneses  em Lautém, em agosto de 1945. 

36 — Armindo Fernandes. Soldado. Idem 

37 — José Carvalho. Filho de um antigo liurai de Liquiçá e  educado na Casa Pia de Lisboa. Fusilado pelos japoneses  em Lautem, em agosto de 1945. 


(C) Alguns Portugueses Mortos na Prisão (n=8)

1 — José Plínio dos Santos Tinoco. Chefe de posto administrativo. Na cadeia de Díli, a 8 de abril de 1944. 

2 — Manuel de Jesus Pires, Tenente de infantaria e administrador de circunscrição. Na cadeia de Díli, em data ignorada de 1944. 

3 — Cipriano Vieira. Cabo de infantaria. Idem. 

4 — João Vieira. Cabo de infantaria. Idem. 

5 — Serafim Joaquim Pinto. Enfermeiro. Na cadeia de Díli antes de 29 de abril de 1944. 

6 — Augusto Leal de Matos e Silva. Chefe de posto administrativo. Na cadeia de Díli, possivelmente em 9 de maio de 1944. 

7 — Artur do Canto Resende. Engenheiro-geógrafo. Em Kalabai, na ilha holandesa de Alor, a 23 de Fevereiro de 1945. 

8 — João Jorge Duarte. Gerente da filial do Banco Nacional  Ultramarino de Díli. Em Kalabai, Alor, a 25 de março de 1945. 


(D) Portugueses de que Consta  Terem-se Suicidado (n=16)

1 — António Maria Freire da Costa. Capitão de infantaria.  Em Aileu, a 1 de outubro de 1942. 

2 — Maria Eugenia Freire da Costa. Esposa do anterior  Idem. 

3 — Dr. Diniz Ângelo de Arriarte Pedroso. Médico. Idem. 
 
4 — José Gouveia Leite. Secretário de circunscrição. Idem. 

5 — António Afonso. Chefe de posto administrativo auxiliar. Idem. 

6 — Dr. José Aníbal Torres Correia Teles. Médico. Na região  de Viqueque, em fevereiro de 1943. 


(E) Alguns Portugueses Falecidos no Mato Onde Andaram Foragidos (n=19)


1 — Jacinto José Ansejo. Guarda da polícia de Macau. Em  Manatuto, em data ignorada. 

2 — Luís Baptista. Aspirante administrativo. Na região de  Manatuto, em data ignorada. 

Padre Francisco Madeira. Missionário. Na região de  Lacluta, em data ignorada. 

 José Armelim Mendonça. Aspirante administrativo. Em  Barique, em abril de 1943. 

5 — Narcisa Mendonça. Esposa do anterior. Idem. 

6/7/8/9 — Crianças, filhas do casal anterior. 

10 — Carlos Drumond Meneses de Jesus. Secretário de circunscrição. Em Barique, em junho de 1943. 

11 —Orlando Vai do Rio Paiva. Agente técnico de engenharia.  Na região de Dilor, em data ignorada. 

12 — Manuel Simões Miranda. Deportado. Idem. 

13 — António Dias. Deportado, Local e data ignorados. 

14 — Dionísio Teixeira. Deportado. Na região de Dilor, em data ignorada. 

15 — Raimundo de Carvalho. Deportado. Local e data ignorados. 

16 — Alcino José Gregório Madeira. Ajudante de enfermeiro. Local e data ignorados. 

17 — Acácio de Oliveira. Cabo de infantaria, Idem. 

18 — António Mendes. Cabo de infantaria. Idem. 

19 — Venceslau Pereira. Escrivão da comarca de Díli. Idem. 


(F) Alguns Timorenses  Assassinados  ou Mortos na Prisão  (n > 11)


1 — D. Aleixo Corte Real, liurai do reino do Suro. 

2 — Todos os filhos de D. Aleixo, que ao seu lado morreram. 

3 — Francisco Costa, liurai de Hátu-trdo e companheiro de armas de D. Aleixo. 

4 — Liurai Cipriano, de Atsabe. 

5 — Liurai Tálu-Bere, da Maliana. 

6 — Liurai Paulo, de Ussuroa. 

7 — Chefe de Suco  D. Jeremias dos Reis Amaral, de Luca. 

8 — Liurai Luís Noronha, de Lacló, Manatuto. 

9 — Liurai coronel D. Moisés, de Fátu-Ãhi. 

10 — Cosms Soares, primo do liurai Paulo de Ussuroa. 

11 — Liurai de Maubisse, Evaristo de Sá e Benevidas, de Hai-Hou, assassinado com toda a sua família, exceto  um filho, depois de ter sido preso por demonstrar inteira  lealdade a Portugal.






Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)

(Seleção, revisão / fixação de texto, excertos: LG) 


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Nota do editor

14 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25941: Timor: passado e presente (21): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte XII: O regresso à Pátria e o fim do anátema de 'deportado' (pp. 102-107)

domingo, 15 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25944: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - XII (e útima) Parte: A minha casa é o mundo e qualquer dia estarei de volta...




Timor Leste > Liquiçá > Manatti > Boerbau > Escola de São Francisco de Assis (ESFA)

Fotos:  © Rui Chamusco (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Esta é a última crónica desta série... No dia 16 de junho de 2018 o Rui Chamusco regressou  a Portugal...  Foram cinco meses de estadia, iniciada em 25 de janeiro do ano da graça de 2018. 

O  luso-timorense e seu amigo Gaspar Sobral foi o seu companheiro de viagem.  Ambos são cofundadores e dirigentes da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015, com sede em Coimbra (onde o Gaspar e a  Glória vivem; a Glória é da Malcata, Sabugtal).
 
O Rui é membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último. Natural da Malcata, Sabugal, vive na Lourinhã onde durante cerca de 4 décadas foi professor de música no ensino secundário. Em Timor, o Rui continua a  dedicar-se de alma e coração aos projetos que a ASTIL tem lá desenvolvido, nas montanhas de Liquiçá, e nomeadamente a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em Manati / Boebau, no município de Liquiçá.

Em Dili ele costuma ficar em Ailok Laran, bairro dos arredores, na casa do Eustáquio (alcunha do João Moniz) , irmão (mais novo) do Gaspar Sobral,
 


O "malaio" (estrangeiro) Rui Chamusco
e o seu companheiro de vaigem, o luso-timorense
 Gaspar Sobral.

Foto: LG (2017)



II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)


XIII (e Última) Parte -   A minha casa é o mundo e qualquer dia estarei de volta...

Dia 09.06.2018, sábado - Verdadeiros heróis...


Não posso deixar de descrever o que acabo de presenciar. O Cesáreo acaba de chegar de Liquiçá. Vejam só! Ontem de manhã foi para a horta, que fica mais ou menos a dois quilómetros no fundo da encosta, a apanhar folhas de “malus” (a folha de uma trepadeira que se cultiva em Timor Leste, pois faz parte do ritual cultural timorense mascar o betel: folha de malus+areca+cal). Ele mais o cunhado Augusto, apanharam duas sacas grandes cada um, subiram-nas às costas até cá acima e, às dezanove horas, já noite, ei-los prontos a partir, a pé, por entre montanhas e vales a caminho de Liquiçá, a fim de entregarem a colheita que um amigo se encarregará de vender.

Perguntei-lhe qual a distância a percorrer, e ele respondeu: “mais ou menos cinquenta quilómetros”. Ou seja, ida e volta cinquenta quilómetros. Descalços ou de chinelos, por veredas e atalhos, enfrentando os perigos do caminho: escorpiões, serpentes ou, na melhor das hipóteses, nada. Hoje, às oito horas da manhã, estão de volta. 

Tudo correu bem, mas imagino o cansaço e com certeza a fome com que devem estar. Eles fazem-me lembrar heróis de outros tempos que, em Malcata e nas terras fronteiriças se dedicavam ao contrabando, transportando odres de azeite e outros produtos que, sem descansar, percorriam também mais ou menos cinquenta quilómetros, correndo sérios riscos de serem apanhados e espoliados pela guarda fiscal (em Portugal) e pelos “carabineros” (na Espanha). 

Por quantas dificuldades não têm os pobres de passar para garantirem o seu
sustento e o das suas famílias. Sou testemunha viva da indigência destes pobres, onde qualquer cêntimo faz a diferença. Em casas térreas quase reduzidas a paredes e telhado, umas em colmo e palapa outras em blocos de cimento e telhados de zinco, gera-se a vida que, através de muitas dificuldades se vai construindo com muito amor, em corpos franzinos mas resistentes. Aqui, todo o ser vivo tem direito a usufruir do espaço caseiro.

Ontem à noite, enquanto tomávamos o café na casa do Cesáreo, andavam a nossos pés cães, galinhas e até uma porquinha. Faltam condições básicas, sobretudo de higiene, mas nem por isso as crianças e os adultos deixam de sorrir e de dar ao visitante tudo o que têm. Ai se os ricos dessem,  não tudo o que têm,  mas ao menos o que lhes sobra!...Como este mundo seria melhor...

As carências são muitas. Dinheiro é coisa que não têm, mas eles sabem que é com o
dinheiro que tudo se compra: café, arroz, cigarros, etc... Por isso, são frequentes os
lamentos e os pedidos. “Ti Rui ajuda?”. Ou então as crianças que se aproximam de ti, te estendem a mão e dizem: “Ossan! Ossan”; “dolar!”

Porra! Não haverá por aí, em Timor ou em qualquer parte do mundo, alguém que possa e queira ajudar estes pobres?

“Pobres dos pobres / São pobrezinhos / Almas sem lares / Aves sem ninhos.” (António Crreia de Oliveira)

Dia 10.06.2018, domingo - Continuação


Ontem à noite, em conversa de amigos com o Cesáreo, ousei perguntar-lhe: “Quanto ganhas cada vez que vais a Liquiçá levar as sacas de “malus”?” Ao que ele me respondeu: “Depende, Tiu Rui. Se é no verão (estação atual) quinze a vinte dólares; se é no inverno vinte a vinte e cinco”.

Já viram isto? Um homem passa um dia inteiro para recolher duas sacas de “malus”; percorre a pé montes e vales durante nove horas enfrentando as adversidades do caminho; chega a casa todo estoirado de cansaço apenas com 15 dólares no bolso...

Senti vergonha de mim próprio e de muitos mais que, ganhando mais do que precisam, esbanjam o seu dinheiro em coisas supérfluas e inúteis.. Prometi que o iria ajudar, mais que não seja arranjando padrinho ou madrinha para um dos seus três filhos.

Pois é! Uns nascem e vivem em berços e casa doiradas; outros nascem e vivem em
presépios e casa de palha. Que desigualdade social, em Timor e em muitas partes do
mundo. Cidadãos cujos salários mensais oscilam entre os sete e os dez mil dólares
(deputados, ministros, doutores, etc...); cidadãos cujo salário esporádico não passa dos trinta a quarenta dólares. Não acreditam? Então venham cá ver!...

Por mais que o Evangelho nos console dizendo-nos que “os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros”, é muito difícil resignar-se e aceitar pacificamente a situação.. Melhor seria que houvesse repartição da riqueza, conforme as necessidades de cada um. Como dizia o poeta António Aleixo: “Se fosse toda a riqueza / Distribuída com razão / Matava a fome à pobreza / E ainda sobrava pão.” 

Mas quem tem a coragem e agir? Como podem os poderosos, os ricos baixar na sua condição? Cada vez compreendo melhor a frase do Evangelho: “Pobres sempre os tereis convosco”. Porque a capacidade de ser pobre depende muito do coração e da vontade de cada um.

Arrepiante!...

Estou de frente ao monte, do outro lado da ribeira de Laoeli, pensando no relato que me fizeram em Ailok Laran, da cena horripilante passada há doze anos em Hatohoulau, e que passo a descrever.

Numa visita que a família de Ailok Laran fez à família da parte da mãe Felismina
Sobral, aconteceu que um dos primos residentes, talvez minado por ciúmes ou outro sentimento qualquer com traços de esquizofrenia, atacou violentamente, à catanada, o primo Abeka. Por sorte não lhe acertou na cabeça, pois seria morte certa, mas sim no braço direito. O Abeka perdeu os sentidos, e foi de seguida transportado ao colo de diversos familiares pela montanha abaixo, até encontrarem transporte para Liquiçá, onde foi assistido. Dizem os que presenciaram a cena que, apesar da profundeza e da dimensão do golpe, não havia quase sangue nenhum. Pudera! O Abeka só tem quase pele e osso...

Uns dias depois de me relatarem o acontecimento estive com com a vítima e perguntei-lhe se era verdade o que me tinham contado. Mostro-me então a cicatriz no braço direito, prova evidente da veracidade dos factos.

Quanto ao agressor, nada a fazer. “Ele é doente. De vez em quando tem destas coisas”.

Enfim, esta gente tem uma capacidade de perdão incrível. Como diz o Bartolomeo: “Se Cristo perdoa porque é que eu não devo também perdoar?”


Dia 11.06.2018, segunda feira  - Regresso
 a Dili

Sim. Estava previsto para hoje, mas não da forma que se deu. Como não havia “motor” disponível nem em Ailok Laran nem em Boebau, decidiram que eu regressasse em transporte público: anguna até Liquiçá e anguna até Ailok Laran.

E como só fui informado pelas sete horas, tive que me apressar em arrumar a trouxa para que às oito horas estivesse pronto, porque a anguna do João chegaria a essa hora.

E tudo estava pronto quando de repente procurei a carteira e não a encontrei. Entrei em pânico, pois nela estavam todos os meus documentos e o dinheiro à ordem, e recusava-me a partir sem tão preciosa propriedade. Toda a gente em alvoroço, procurando por tudo o que era sítio, e eu convencido que tinha sido roubado.

Cabecinha louca de velho descuidado! O Bôzé conseguiu encontrá-la entalada entre
duas caixas de papelão. Dei-lhe um abraço e uma recompensa, e pusemo-nos em
marcha. Destinaram-me o banco ao lado do condutor, o senhor João, pai do Tito e da Tita, crianças que frequentam a nossa escola. Mas como me querem proteger, o Cesáreo e o Laurindo fizeram questão de me acompanhar na viagem. Não querem que aconteça algo de errado ao Tiu Rui. Obrigado amigos!...

E que dizer desta viagem? O percurso até Liquiçá foi o melhor dos que já fiz. Nem
motor, nem carro têm a segurança e a comodidade da anguna, mesmo que de sobressalto em sobressalto. Claro que conta muito a perícia do condutor, que fazendo este caminho duas vezes ao dia, conhece bem todos os buracos, curvas e contra curvas, paragens, clientes e sei lá quanta coisa mais.

A viagem em microlete de Liquiçá a Ailok Laran foi maçadora. Um veículo com a
capacidade de 9 lugares transporta o dobro, mais as fartas bagagens (cachos de bananas, feixes de lenha, galos e galinhas, sacos diversos, mochilas, etc...). Leva os clientes e os seus pertences às ruas e becos onde parece não passar, e toda a gente ajuda a quem entra e a quem sai. Valha-nos ao menos esta boa convivência e entre ajuda. Ao meu lado direito, bem encostadinha, porque assim tem de ser para caber toda a gente, vinha uma menina 11 a 12 anos com um galo ao colo, que quase me debicava o pernil, gostasse ele da carne do “malai”. 

De entrega em entrega chegamos ao nosso destino, depois de quatro horas de viagem num percurso de mais ou menos 50 quilómetros.

E a vida recomeça em Ailok Laran, até à reta final da nossa segunda estadia em terras timorenses.

Dia 14.06.2018, quinta feira  - Encontro 
inesperado

De tarde fomos a Liquiçá entregar a lista das crianças que já se inscreveram na escola de São Francisco (62, aproveitando a seguir uma ida à uma praia de Liquiçá). Também aqui os porcos javalis eram banhistas. Mas eis quando que, sem ninguém esperar, chega um carro com quatro senhores lá dentro. Pronto nos apercebemos, e eles também de que éramos portugueses, estabelecendo-se logo um diálogo de conhecimento mútuo. 

Porque estamos em Timor, quem somos, o que fazemos. Pois sabem quem esteve connosco em mável conversação? Isso mesmo: os músicos do grupo musical Virgem Suta , Jorge Benvinda, Nuno e Tiago que, contratados pela Embaixada de Portugal vieram abrilhantar as celebrações do Dia de Portugal. Hoje mesmo, à noite, vão dar o último concerto no bonito espaço do Mercado de Dili. E amanhã, tal como nós, regressarão a Portugal.

Coincidências ou não, a verdade é que já há muito tempo que aprecio este grupo e a sua forma de fazer música. Talvez em Portugal a gente se encontre informalmente ou em espetáculos organizados. Agora que é o tempo das cerejas poderei dizer que, em jeito de despedida, foi “a cereja em cima do bolo”.

15.06.2018, sexta feira - Na embaixada 
de Portugal

A audiência foi marcada para as 15.00 horas, precisamente a hora em que fomos
recebidos pelo sr. Embaixador de Portugal Dr. José Vieira e pela sua assistente, Dra. Daniela Araújo. 

Para além de ser uma visita de cortesia e de despedida, fomos agradecer o seu apoio ao nosso projeto - lembro que esteve presente na inauguração da escola - o objetivo da visita era sobretudo a entrega de documentação relativa à escola, à Astil e à Astilbm, elaborada pelo colega de trabalho Gaspar. Com simpatia e diplomacia disponibilizou-se para apoiar e acompanhar o nosso projeto dentro das competências e possibilidades da embaixada, e depois de o Gaspar e o embaixador teceram diversas considerações, saímos airosamente do espaço que nos protegia.

“Talvez voltemos no final de ano”, disse eu, ao que o sr.embaixador manifestou o seu contentamento.

Por aqui me fico nas minhas crónicas da segunda estadia em Timor. Sei que esta noite ninguém vai dormir devido ao jogo de futebol Portugal / Espanha, que aqui começa às quatro horas da manhã.

Já em Portugal vos darei conta de algum episódio que durante a viagem de três dias
seja digno de registo.

Cá estamos de novo em Portugal, depois de cinco meses em Timor. Como se diz, “o
bom filho à sua casa torna”. Mas como desde há muito tempo eu defendo que a minha casa é o mundo, qualquer dia estaremos de volta a Timor.

Queremos agradecer a todos os que nos desejaram boa via e boas vindas. Esperamos entretanto encontrar-nos. Teremos muito gosto em estar convosco para partilharmos ainda mais as nossas vidas, e em concreto a nossa segunda estadia em terras do sol nascente. A propósito quero informar-vos de que, no próximo dia 19 de Julho, haverá uma sessão cultural, no auditório da Câmara Municipal do Sabugal, cujo tema será “Diálogos sobre Timor Leste”, pelas 21.00 horas. Esperamos encontrar-mo-nos por lá.

Tudo faremos para que esta sessão valha a pena.

Obrigado pelo vosso apoio e colaboração

Com um Grande Abraço,

Rui e Gaspar

(Seleção, revisão / fixação de texto, título e subtítulos: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25931: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte XI: Não sei explicar o que nos prende a esta gente...

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25903: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte VII: A Bolama de finais dos anos 30


Os BVB tinham a sede na Rua Gov Sequeira


Não sabemos ao certo qual era avenida ou rua...


Em segundo plano, do lado direito a um dos imponentes "sobrados" da cidade


Onde ficava também o mercado municipal...

Guiné > Bolama > 1938 > Imagens da cidade, que foi capital da colónia  até 1941


Jornal-programa (sic) editado pelo "Sport Lisboa e Bolama", novembro de 1938. Composto e impresso pela Imprensa Nacional da Guiné, Bolama. Nº de páginas: 12 (doze).Visado pela Comissão de Censura,


Fonte: Câmara Municipal de Lisboa > Hemeroteca Digital >  Sport Lisboa e Bolama, novembro de 1938 (com a devida vénia).




1. Já fizemos referência ao jornal do Sport Lisboa e Bolama (**), com data de novembro de 1938. Foi feita na altura uma edição única, com o  propósito de comemorar  o 5.º aniversário do fundação do clube, em Bolama, em novembro de 1933.  

Pelo cabeçalho que acima se repoduz, vê-se que era uma filial  do Sport Lisboa e Benfica (fundado, por sua vez, em  28 de fevereiro de 1904).  (Com a transferência, em 1943,  da capital de Bolama para Bissau, irá nascer o Sport Bissau e Benfica, em 27 de maio de este1944, sendo este a vigésima nona filial do Sport Lisboa e Benfica.)
 
Mas a nós interessa-nos agora ter uma ideia da toponímia da cidade bem como do comércio local existente em meados dos anos 30. 



Croquis de Bolama que o António Estácio (Bissau, 1947-Algueirão, Sintram  2022) conheceu nos anos 1950 por lá ter morado com os pais, e lá ter feito a instrução primária. Este croquis permite-nos reconstituir a malha urbana, identificando  avenidas, ruas e edifícios (adminstração pública, comércio e habitaçáo). A cidade. já em decadência, com a transferência da capital para Bissau, em 1943,  era organizada numa malha ortogonal com dois grandes eixos de avenidas, e com ruas que se cruzavam dividindo-a em quatro setores. Vários pontos de referência são sinalizados: a ponte-cais,  a câmara municipal,  a alfândega, os bombeiros, o Sport Lisboa e Bolam, o BNU,  a praça Infante Domn Henrique, a estátua de Ulysses Grant, o Mercado, a Casa Gouveia, etc. 

Fonte:  Estácio (2012) (*)



Nada como selecionar e analisar as fotos (mesmo de fraca qualidade) da cidade e os anúncios que vêm inseridos nesta edição única.  Uma coisa que salta à vista, pelo conjunto de anúnciios, que reproduzimos abaixo,  é a ausência da Casa Brandão, de Manuel de Pinho Brandão. 

Ora, ele na época já era um comerciante conhecido, e dono  de um dos principais "sobrados" de Bolama, edifício que dava nas vistas. Em 1935 ele morava em Bolama, e devia ter já perto dos 45 anos de idade.  

Segundo uma fonte que nos acaba de chcgar às mãos (por intermédio do nosso camarada Manuel  Barros Castro, ex-fur mil enf, CCAÇ 414, que esteve em Catió, quase um ano antes da Op Tridente, entre abril de 1963 e fevereiro de 1964, e conheceu o velho Brandão), este terá chegado à Guiné em finais da década de 1910. Em 1963  teria já 71  anos, pelas nossas contas.  

Não sabemos ao certo quando, na década de 1930, se mudou para a zona de Catió, e se tornou um dos grandes agricultores da região de Tombali. No final da  década de 1950 produzia duas mil toneladas de arroz e tinha um efetivo de 50 trabalhadores (fora os sazonais). Mais: já dispunha de tractores e máquinas agrícolasm sem nunca ter  deixado também de ser comerciante, como se vê por este documento de 1934.



Guiné > Bolama > Direcção dos Serviços e Negócios Indígenas > Nota de dívida ao comerciante Manuel de Pinho Brandão, pelo "fornecimento de uma secretária americana e de uma cadeira", no valor de 3300 escudos, valor que foi liquidado em 11 de junho de 1934.


Portal Casa Comum | Fundação Mário Soares | Instituição: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Bissau | Pasta: 10427.126 | Assunto: Nota de dívida da Direcção dos Serviços e Negócios Indígenas à empresa Manoel de Pinho Brandão, pelo fornecimento de mobiliário de escritório. | Data: Terça, 29 de Maio de 1934 | Fundo: C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas | Tipo Documental: DocumentosPágina(s): 1


Citação:
(1934), Sem Título, Fundação Mário Soares / C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=10427.126 (2024-9-1)



2. Podemos admitir que o Manuel de Pinho Brandão fosse forreta e não quisesse gastar patacão em publicidade... Por outro lado, podia não ser benquista e não querer, portanto,  contribuir para a festa do clube local. Mas, o mais provável, era já não viver na cidade, em  finais de 1938.

De entre os comerciantes e industriais que patrocionaram a edição (única) do jornal "Sport Lisboa e Bolama" , o destaque vai para alguns nossos conhecidos  como   Fausto [da Silva] Teixeira ("Serração Eléctro-Mecânica") e Júlio Lopes Pereira (representante na Guiné da máquina de escrever Royal).

Recorde-se que o Fausto Teixeira foi um dos primeiros militantes comunistas [segundo reivindicação do PCP] a ser deportado para a Guiné, logo em 1925, com 25 anos, ainda no tempo da I República.  

Era dono, em novembro de 1938, segundo o anúncio que abaixo se reproduz, de "a mais apetrechada de todas as Serrações existente nesta Colónia". E o anúncio acrescenta: "Em 'stock' sempre as mais raras madeiras. Preços especiais a revendedores. Agentes em Bolama, Bissau e nos principais centros comerciais da Guiné"... 

Na altura a sede ou o estabelecimento principal era no Xitole... Foi expandindo a sua rede de serrações pelo território: Fá Mandinga, Bafatá, Banjara... Era exportador de madeiras tropicais, colono próspero e figura respeitável na colónia em 1947, um dos primeiros a ter telefone em Bafatá, amigo de Amílcar Cabral, tendo inclusive ajudado o Luís Cabral a fugir para o Senegal, em 1960... Naturalmente, sempre vigiado pela PIDE

outros  nomes das empresas que patrocinaram o 5.º aniversário do Sport Lisboa e Bolama, como o libanês João Saad,  a casa Guedes, a casa Machado, a casa Antunes, a "Competidora", de António de Almeida, o Lourenço Marques Duarte, o José Lopes, o Cipriamo José Jacinto, o João Alves da Silva, etc. 

Outras firmas comerciais, por sua vez,  não estão aqui representadas como o BNU, a Casa Gouveia (a "poderosa empresa de António da Silva Gouveia"),  o António dos Santos Teixeira ("rico e respeitado comerciante guineense"), o Manuel Simões Marcelino, a casa Pintosinho (como era mais conhecido o português Ernesto Gonçaves de Carvalho"),  o guineense Carlos Domingos Gomes ("Cadogo Pai"). (**)

Em suma, não atribuímos particular significado à ausência da Casa Brandão nesta amostra de anúncios comerciais.

 
   















  














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Notas do editor:


Vd. também poste de 25 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23200: 18º aniversário do nosso blogue (5): Roteiro da nossa saudosa Bolama (Antonio Júlio Emerenciano Estácio, luso-guineense, nascido em 1947, e escritor)

(**) Vd. poste de 17 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20152: Jorge Araújo: memórias de Bolama: a imprensa e o comércio locais há oito décadas atrás.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25689: Humor de caserna (68): Passa-palavra, furriel Canhão à frente! (Alberto Branquinho)



Leiria > Monte Real > Palace Hotel > 26 de Junho de 2010 > V Encontro Nacional da Tabanca Grande > Sousa de Castro, o antigo 1º cabo radiotelegrafista (CART 3494, Xime e Mansambo, 1971/74), tentando comunicar com o Eduardo Campos, ex-1º cabo trms (CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74), simulando uma situação de comunicação militar,  vulgaríssima, em operações no mato, com recurso ao velhinho Emissor / Receptor AVP1, o famoso"rádio-banana" (*).

Fotos (e legendas): © Sousa de Castro (201o). Todos os direitos [Edição e legendagem complementar : Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 

 

1. A comunicação humana parece fácil... mas não é. É uma das principais fontes de conflito, a nível das nações, das sociedades, das organizações, dos grupos, das famílias... E, então, nas redes sociais, é que pode ser mesmo um "bico de obra"...Podemos falar todos português, a mesma "língua", o que não quer dizer a mesma "linguagem"... Em suma, muitas vezes  a gente não se entende...

Comunicar (do latim, "communicare", que quer dizer "pôr em comum", "partilhar"...) é mais do que uma técnica: quem diz o quê a quem, por que meio, e com que efeitos...

A comunicação é uma "arte",  uma "competência", que se tem de se aprender, praticar, desenvolver... Tem muitas subtilezas e armadilhas... Não é só o "texto", é o "contexto"...

 Na tropa e na guerra, no nosso tempo, não faltaram as situações (umas trágicas, outras dramáticas, outras ainda caricatas) de incomunicação, total ou parcial. Às vezes até podia dar jeito à "tropa macaca" quando queria "acampar": por exemplo, as "transmissões não funcionavam" entre terra e ar...


Alberto Branquinho (n. 1944, Vila Foz Coa),
advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970,
ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913,
Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69),
tem mais de 140 referências no nosso blogue:
é autor das notáveis séries "Contraponto"
e "Não venho falar de mim... nem do meu umbigo". 
Tem vários livros publicados, incluindo 
o "Cambança Final"  (2013).


2. O nosso Alberto Branquinho, no seu livro de contos "Cambança Final" (2013) tem uma dessas cenas de (in)comunicação "bem apanhadas", e que merece ser contada ... 

Mais uma vez, temos o privilégio de beneficiar do seu apurado sentido de humor e do seu talento como contador de histórias (**). 


 Passa-palavra, furriel Canhão à frente!

por Alberto Branquinho


Durante as operações militares a comunicação, entre o capitão, comandante de uma companhia e os quatro alferes responsáveis pelos pelotões, era feita através dos chamados rádios-banana: rádios pequenos, com cerca de um palmo de comprimento e cerca de cinco centímetros de espessura, previamente sintonizados e com regulador de som. As extremidades do rádio eram ligadas por uma correia de lona, extensível, que permitia pendurá-lo do pescoço, caído sobre o peito.

No entanto, quando era necessário passar uma mensagem ou uma ordem para retaguarda da coluna, era usada a transmissão homem a homem, o chamado "passa-palavra".

Tinham sido detetadas, na frente da coluna, terras recentemente movimentadas e folhagem caída, ainda fresca. O capitão entendeu dever chamar o furriel de minas e armadilhas, com o apelido Canhão.

− Passa-palavra, o furriel Canhão à frente !

A mensagem foi passando para a retaguarda:

− Furriel Canhão à frente...

− Furriel Canhão à frente...

E assim sucessivamente, homem a homem.

Passaram minutos e minutos. O capitão estava já impaciente, porque o furriel não vinha. Então surgiu a resposta, de trás para a frente:

− Canhão não veio... 

− Canhão não veio... 

− Não veio o canhão... 

− Canhão ficou no quartel!... 

Fonte:  Alberto Branquinho  - Cambança final: Guiné, guerra colonial:  contos. Vírgula, Lisboa, 2013, pp. 45/46

(Título, excerto,  revisão / fixação de texto, parênteses curvos, para efeitos de publicação deste poste, na série "Humor de caserna": LG)  (Com a devida vénia ao autor e à editora...)

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Notas do editor: