quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5768: Efemérides (43): 4 de Fevereiro de 1961, O princípio da Guerra Colonial (José Marques Ferreira)




1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, ex-Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 4 de Fevereiro de 2010:

Camaradas,

Estava eu de volta do teclado, quando me apercebi que hoje, dia 4 de Fevereiro, é uma data que se salienta, por estar conotada com o início dos movimentos de libertação (assim designados), pela autodeterminação e independência africanos, nos quais se incluíam os territórios sob administração portuguesa.

Sendo assim, envio este meu modesto contributo de forma a que ainda vá a tempo de se incluir no «blogueforanadaevaotres».

Melhor dizendo, vão mais que três. Muitos...

E assinalo a data com as estórias dos infelizes falecimentos de dois camaradas da CCaç 462.

4 de Fevereiro de 1961
O princípio da Guerra Colonial

O dia 4 de Fevereiro de 1961, é a data em que se assinala de «forma oficial», o início da Guerra Colonial, em Angola, em que Portugal se viu envolvido durante 13 anos. Pouco tempo depois foi a vez do início das hostilidades na Guiné e em Moçambique.
Foram anos duros, que marcaram pela negativa toda uma geração de jovens, com repercussões que ainda hoje influenciam muitas das suas vidas e dos seus estados de saúde.

Eu entrei nessas fileiras, donde muitos viriam a desertar, em Janeiro de 1963 (já expliquei tudo em anteriores postes no blogue).

O que é certo, é que em Julho de 1963, desembarquei na Guiné, e, durante dois anos, não sofri muito, mais pela sorte que me tocou, que por muitos outros factores. Regressei em Agosto de 1965, tendo chegado a Lisboa em 14 do mesmo mês, num navio que passou sob a recém acabada de construir ponte, a que chamaram Salazar, e, que em 1974, foi rebaptizada para ponte de 25 de Abril, que se mantém ainda hoje.

A minha unidade militar (uma companhia), dormiu nesse dia da chegada em Lisboa e, ao outro dia por volta das sete da manhã, embarcou de comboio em direcção a Chaves, onde tinha decorrido a sua instrução e formação.

O BC 10 (Batalhão de Caçadores 10, agora denominado Regimento de Infantaria de Chaves), foi uma das unidades militares que preparou e «forneceu» muito pessoal para a dita Guerra Colonial.

Percebe-se hoje porquê. Como outras Unidades Militares ainda existentes pelo país, a sua geografia local, a flora, os trilhos, os caminhos, etc. eram perfeitamente propícios ao treino de ambientação militar para a guerra de guerrilha em África.

Chaves, tinha tudo para a preparação de militares deste conflito. Aliás, as especificidades da guerra de guerrilha africana, era novidade então surgida no mundo (tal como é agora o terrorismo).

Fenómeno que surgiu, logo a seguir ao término da II Grande Guerra e cujo objectivo era a emancipação e autodeterminação dos povos de vários países.

Os tipos de acções, armadas e violentas, a que raros exércitos estavam preparados para enfrentar, de manifesta revolta contra o dominador, quando o dominado era pobre e tinha poucas possibilidades de reacção, permitia e estes últimos, mesmo com escassos recursos, a recorrer a esta via guerreira, com o intuito de provocar o desgaste físico e psíquico contínuo aos adversários e a consumir energias políticas e económicas do país dominador.

A aposta era que, mais tarde ou mais cedo, o colonizador cedesse às pressões de todo o tipo e restituísse os poderes administrativos, económicos e políticos.

Foi quase o que aconteceu com Portugal, porquanto alguns historiadores e políticos, já antes de Abril de 1974 diziam e escreviam, que as coisas, tal como estavam nas Províncias Ultramarinas, não poderiam durar muito mais. Não fosse a «revolução dos cravos», como ficou conhecido o 25 de Abril de 1974, e, na Guiné, a guerra com o PAIGC estava, no mínimo, muito complicada, havendo alguns episódios que confirmavam, no terreno, isso mesmo.

Conflitos em que morreu muito português e muitos africanos. Da minha freguesia apenas um homem faleceu (natural da Aguieira), e, pelo que julgamos saber aqui, a sua morte foi motivada por doença.

Muitas pessoas ficaram deficientes fisicamente e psiquicamente, para as suas vidas inteiras.

Da minha companhia, entre cerca de 130 militares, apenas dois faleceram.

Um foi o José Gonçalves Ruas, 1º cabo de Minas e Armadilhas, de Penude - Lamego, que faleceu em 27 de Agosto de 1964, próximo de uma localidade junto à fronteira com o Senegal (chamada Sedengal), ao ser atingido pelos efeitos de uma armadilha que estava a montar e que explodiu, atingindo-o mortalmente.

Nesse dia eu não estava em Ingoré, tinha ido ao comando de Batalhão, a Bula, e foi lá que eu soube pelos camaradas de transmissões, o que se tinha passado naquele local. Nesse mesmo dia e ao princípio da tarde, os meus camaradas da companhia, passaram em Bula a toda a velocidade em direcção a Bissau, levando o corpo do infeliz Ruas, como todos lhe chamávamos. Está sepultado ainda, segundo creio, no cemitério de Bissau, na campa 1020.

O segundo falecimento, foi o do 1º cabo atirador, Artur Branco Gonçalves, de Vilarelho da Raia - Chaves, no dia 13 de Outubro de 1964, no Hospital Militar 241, em Bissau, para onde fora evacuado de helicóptero, por motivo de doença. Está também sepultado em Bissau na campa 1108, admito. A doença que o vitimou, embora eu não tenha a certeza, terá sido uma úlcera gástrica, que, certamente, pelo seu estado, já não foi a tempo de qualquer intervenção cirúrgica.

Esta e outras efemérides, estou certo, não se apagarão, mesmo depois de desaparecerem todos os protagonistas que nela participaram, durante aqueles treze anos.

A este assunto voltarei mais tarde.

Os meus cumprimentos para toda a tertúlia desta Grande Tabanca,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P5767: Contraponto (Alberto Branquinho) (5): Nojo, ou um alferes descomposto

Mais um texto para a série Contraponto, enviado pelo nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), ao Blogue no dia 1 de Fevereiro de 2010:


CONTRAPONTO (5)

NOJO

Era a segunda vez que o alferes ia almoçar àquela tabanca fula, a convite do Bacar e do Jau, soldados do seu pelotão.

Feitos os cumprimentos às várias mulheres e depois de umas brincadeiras com a garotada, estava o alferes a passear pela morança com os dois soldados, quando as mulheres começaram a chamar para o almoço.

Balaios e alguidares esmaltados estavam já colocados no interior de um círculo de esteiras, colocadas no chão batido. Arroz, muito arroz, peixe miúdo da bolanha em molho de palma, galinha em pequenos pedaços e condimentos.

As mulheres ficaram do lado da casa, com as crianças. No lado oposto o alferes, no meio dos dois soldados nativos. Todos sentados no chão, com as pernas cruzadas, em cima das esteiras e por baixo do telheiro, também feito de esteira.

Começou o almoço e a conversa. As mulheres deram indicações sobre comida e temperos e os homens passaram-nas, em crioulo, ao alferes.

Falaram sobre a última operação, sobre os outros militares, sobre os vizinhos, enquanto as mulheres algaraviavam entre elas, no meio gargalhadas.

Comiam fazendo as habituais bolas de arroz com a mão direita ou esquerda (ao jeito de cada um), que, depois, uma a uma, eram molhadas nos condimentos dos alguidares mais pequenos, acrescentadas do conduto, depois mordidas, mastigadas, engolidas. Toda a gente conversava em fula, excepto quando os soldados falavam com o alferes em crioulo.

As mulheres tinham que se levantar continuamente para obrigar as crianças mais pequenas e fugidias a dar as suas dentadas na bola de arroz ou a petiscar pequenas doses, agarradas entre o polegar e o indicador.

A meio do almoço o alferes notou uns risos abafados e brejeiros de duas ou três mulheres à sua frente. Logo a seguir um dos rapazes, com cinco ou seis anos, levantou-se e colocou-se atrás delas. Com ar enojado e mantendo sempre a sua bola de arroz na mão, começou a olhar o alferes no rosto e, alternadamente, para as pernas. Depois começou a cuspir, cuspir, cuspir para o chão, ao mesmo tempo que limpava, com os pés, as cuspidelas do chão.

O alferes olhou para as suas pernas e viu que o testículo esquerdo se tinha libertado do controle das cuecas e assomava, curioso, espreitando para fora dos calções. Discretamente levantou-se, arrumou o indiscreto como pôde e… tudo voltou ao seu lugar.

O almoço decorreu sem mais incidentes.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 31 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5573: Contraponto (Alberto Branquinho) (4): Desenraizado

Guiné 63/74 – P5766: Estórias do Tomás Carneiro (2): Rotinas em Jugudul


1. O nosso Camarada Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Condutor da CCAÇ 4745 - Águias de Binta, Binta, Cumeré e Farim – 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem, com data de 3 de Fevereiro de 2010:

Olá Camaradas,

Dando continuidade aos meus escritos sobre a minha passagem pela Guiné, aqui vai mais um fragmento das minhas memórias.


Depois de passada a 1ª noite dentro do arame em Jugudul, no 2º dia recebemos ordem de “despejo” e toca a mudar o acampamento, para junto de uma casa que ficava ao lado do quartel.

Diziam que a instalação era uma escola, não tinha portas nem janelas, mas lá montamos a “barracada” de novo.

Durante o dia tínhamos visto uma cobra, cujo comprimento não tinha mais que 30 centímetros. Esquecemos a raio da bicha nas ocupações rotineiras, mas, já noite serrada (nós dormíamos em colchões insufláveis), ouvimos qualquer coisa que fazia um “barulhão” e logo nos assaltou a comum e inquietante fobia às desgraçadas das cobras. Então para semear melhor a confusão e o pânico, alguém gritou: “Cobra”, e logo começou um alvoroço diabólico, com o pessoal a revirar os tarecos todos, mas não encontramos nada vivo nem rastejante.

Quanto à segurança nesse acampamento, fora do arame, não me lembro se a tínhamos montada, ou não!

Por ali ficamos uma temporada, trabalhando de dia no quartel de Polibaque, onde havia muita coisa para fazer, como o forno cozinha e o corte e preparação dos bidões para os banhos do pessoal.

A água íamos buscá-la ao rio Jugudul e a areia para as obras tirávamo-la do mato em frente à porta de armas do aquartelamento de Jugudul, e, enquanto 5 ou 6 homens carregavam a viatura, outros 2 ou 3 garantiam a segurança. Imaginem se aparece-se o IN nestes momentos!

Com o decorrer dos trabalhos da frente da estrada Jugudul/Bambadinca, foram empregues muitos trabalhadores Guineenses, que era preciso transportar de, e, para as suas casas no Dugal e em Mansoa.

Esta tarefa dividia-me entre dois quartéis, porque tinha que dormir todos os dias em Jugudul, para levar o pessoal nos dias seguintes para o trabalho. Nessas andanças, travei boas amizades com alguns dos nativos locais.

A princípio eu tinha algum receio de circular a toda a hora sozinho com os nativos, muitas vezes sem qualquer segurança, mas eles diziam-me que não havia problema e até chegaram a oferecer-me cervejas, como prova dessa amizade.

De tempos a tempos transportei cibos já cortados, para obras nas suas moranças e, algumas vezes, cheguei a transportar caçadores com as suas peças de caça, que, em compensação, sempre me davam um naco de carne para fazer apetitosas petiscadas.

Com o Carnaval à porta recordo-me de uma cena. A “ferrugem” tinha comprado uma cabrita, para preparar uma petiscada que ficou combinada para a segunda-feira (ao fim da tarde), antes do Carnaval. Eu ainda estava nas obras da estrada e não sabia se se trabalharia nessa terça-feira. Disseram-me que sim e fiquei danado.

Vi os tabuleiros a serem preparados para irem ao forno e fiquei chateado por ter que ir, mas lá fui de muito má vontade. Lembro-me que nesse dia me desloquei a Mansoa e quando regressei a Jugudul, me disseram que afinal não se trabalhava no dia de Carnaval.

Peguei na arma, saltei para a viatura e pus o motor a trabalhar. Comecei a rolar devagarinho, para ninguém perceber o que eu ia fazer e saí do quartel. Depois foi pé na “chapa” e toca a “voar” até ao Polibaque. A noite começou a cair rápida e, com os faróis nos médios, lá segui até reencontrar os meus camaradas, que ficaram admirados comigo e com a estória que lhes contei deste “desenfianço”. Enfim lá petiscamos no meio de grande convívio, algazarra e satisfação.

Quando acabamos a refeição disseram-me que tinha correio na secretaria e desloquei-me para lá, mas ao atravessar a parada, que ainda era larga, senti mesmo ao meu lado, um grande rebentamento. Atirei-me de imediato de cabeça para o chão, mas acabei por verificar que afinal era o obus local, que estava a bater a zona. Levantei-me e fui então ao correio.

Já na estrada, de volta a Jugudul, ainda ia com o “coração nas mãos”. Hoje, penso que não repetiria tal doidice, mas, com os 21 anitos de então, até deu para isso e muito mais que viesse…

Na foto vê-se a barraca dos mecânicos.

Um Abraço desde o meio do Atlântico,
Tomás Carneiro
1º Cabo Cond CCAÇ 4745

Foto: © Tomás Carneiro (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. primeiro poste desta série em:

Guiné 63/74 - P5765: Blogoterapia (144): Que estou eu aqui a fazer? (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 1 de Fevereiro de 2010:

Meus caros camarigos editores
Espero que o Luís esteja já recomposto do aniversário!
É que são muitos anos já, e devem doer a fazer!!!!

Aqui vai um texto, que em certa medida foi inspirado pela leitura do texto do camarigo Torcato.

Como sempre fica à vossa disposição para arquivo na "cesta" secção, ou para publicação.

Depois acusem-me a recepção, por favor.

Com o meu abraço camarigo para todos
Joaquim Mexia Alves


QUE ESTOU EU AQUI A FAZER?

Que estou eu aqui a fazer?
Que calor é este tão intenso que sinto e que humidade é esta que se me agarra ao corpo de tal modo que tudo em que eu pego me fica colado às mãos, me fica colado à pele?

Há quanto tempo aqui estou, e quanto tempo falta ainda para me ir embora?

Devo fechar os olhos e sair daqui por uns momentos nas asas do pensamento que me leve a Monte Real, que me leve a Lisboa, ou é melhor ficar assim de olhos abertos, para não me deixar levar por ilusões?

Mas o que é que faço aqui?

Porque me chamam Alferes, porque vêm ter comigo pedindo-me autorização para tanta coisa?

O que eu queria era ser médico!
Não tem nada a ver com isto!

Mas como é que raio eu vim aqui parar?
Mas eu tinha como certo que só acontecia aos outros! Eu tinha como certo que a mim ninguém chamaria para isto?
Mas que raio de coisa é esta que me acontece?

Sim, está bem, eu tenho este corpo alto, mas ainda sou menino!
Como podem colocar em mim a responsabilidade das vidas daqueles homens todos?
Alguns até são casados, valha-me Deus, e com filhos!

E depois vêm de quando em vez pedir-me conselhos!
Então e o que é eu, menino estudante, (pouco é certo), muito pouco calejado da vida, posso dizer a cada um?

O problema é que nos olhos deles eu vejo que confiam em mim!
Valha-me Deus! Em mim!

Mas eu sou ainda um pouco menino de casa dos pais. O que sei eu da vida, a não ser gozar com a vida!

E depois isto de andar de arma ao ombro não tem nada de heróico!
Quando brincava às guerras isto tinha muito mais graça, não morria ninguém e os bons ganhavam sempre!
E quem é que raio são os bons?

Lembro-me até, (onde raio tinha eu a cabeça), de ter um certo orgulho em vir para a guerra!
Pois é, mas a verdade, verdadinha, é que afinal nesta coisa guerra morre gente, e também há gente que fica estropiada para o resto da vida, uns fisicamente e outros mentalmente.

Basta ver, já andam por cá alguns que não estão muito certos da cabeça!
Se calhar eu também não!

O que estará o meu pai a fazer agora? E a minha mãe? E os meus irmãos? E os meus amigos?
Nem sei já se é tempo de Verão ou de Inverno, com o calor que por aqui faz!
Apetecia-me adormecer e só acordar no fim disto tudo.

Mas gaita, se já em Lisboa eu dormia mal, quanto mais aqui com este calor e o estupor dos mosquitos que parecem hordas de japoneses em Pearl Harbor!

Voltarei vivo? E todo inteiro?

Porra, os olhos! Os olhos é que não! Um braço, sei lá, uma perna, mas os olhos não! Sem olhos não, mato-me!

Bem, já estás a divagar que nem um tonto!
Deixa-te lá dessas merdas que só te chateiam ainda mais e não resolvem a ponta dum corno!
Endireita-te, abre bem os olhos e dá uma ordem qualquer:

- Ó Festas, traz lá outra cerveja!!!

Monte Real, 1 de Fevereiro de 2010

Nota:
O Festas era o “barista” da messe de oficiais no Xitole.
As fotografias e o texto do Torcato, levaram-me a ir recordar as minhas fotografias.
Deparei com esta, tirada no Xitole, nos idos de 1972, e pus-me a falar com ela e ela comigo.

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5599: Blogues da Nossa Blogosfera (31): Tabanca do Centro (Joaquim Mexia Alves)

Vd. último poste da série de 2 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5748: Blogoterapia (143): Pensar em voz alta: Colonialismo... jamais... jamais... (Torcato Mendonça)

Guiné 63/74 - P5764: Recortes de Imprensa (22): Guiné-Bissau de Colónia a Independente, de José Gregório Gouveia no Tribuna da Madeira (José Paradela)




Chegou até nós, via mensagem de 31 de Janeiro de 2010, do Arquitecto José Paradela, ilhavense, amigo do nosso camarada Jorge Picado e do nosso editor Luís Graça, um recorte do jornal "Tribuna da Madeira", fazendo a apresentação, a duas páginas, do livro "Guiné-Bissau de Colónia a Independente" de autoria de José Gregório Gouveia que foi Fur Mil Enf.º da CART 1525.


Foto retirada do site do "Tribuna da Madeira", com a devida vénia


"Guiné-Bissau de Colónia a Independente" de José Gregório, está disponível na página da CART 1525, em: http://www.cart1525.com/


Também, com a devida vénia ao jornal "Tribuna da Madeira", aqui fica a Biografia de José Gregório Gouveia:

Biografia do Autor


José Gregório Gouveia tem 65 anos, é casado, advogado e natural da Calheta. Prestou serviço militar na Guiné, integrado na CART 1525, nos anos de 1966 e 1967, depois de fazer o Curso de Sargentos Milicianos (1964/65) na Escola Prática de Cavalaria de Santarém e o 2.º Ciclo do CSM na Especialidade de Enfermeiro no Hospital Militar de Lisboa.

Após o regresso do ultramar, em 1968, foi sucessivamente funcionário da Câmara Municipal da Calheta, trabalhador bancário, dirigente regional do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, dirigente do PS-Madeira e deputado na Assembleia Legislativa Regional da Madeira.

O advogado tem inúmeras colaborações com a imprensa.
Primeiro no "Jornal da Madeira" com crónicas sobre a Calheta e depois como autor de vários trabalhos no semanário "Madeira Hoje. Seguiram-se colaborações como articulista no "Diário de Notícias" e, actualmente no "Tribuna da Madeira", onde começou por subscrever a rubrica "Período Revolucionário da Autonomia" e agora uma denominada "Rosas e Espinhos da Nova Autonomia". Não é a primeira vez que Gregório Gouveia dedica-se à produção literária. O advogado publicou o livro "Madeira-Tradições Autonomistas e Revolução dos Cravos".
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5107: Recortes de Imprensa (21): Revista da Liga dos Combatentes - Homenagens aos Combatentes (Ribeiro Agostinho)

Guiné 63/74 - P5763: Notas de leitura (62): Salgueiro Maia (1): Crónica dos Feitos por Guidage (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
O Vasco Lourenço tinha razão quando me disse que estes textos do Salgueiro Maia são inigualáveis.
São mesmo, o que mais aprecio é a capacidade de ter agido com tanta dor contida, fazendo bem tanto quanto possível, de acordo com o tumulto das circunstâncias.
Não dá para perceber como estes textos não são dados às crianças que vão crescer a ignorar a guerra que fizemos.

Um abraço do
Mário


Salgueiro Maia: Crónica dos feitos por Guidage

Beja Santos

É provável que existam textos ainda mais apocalípticos, brutais e crus do que estes. Pessoalmente, não conheço nada mais violento sobre a guerra, a morte estúpida, a dor incompreensível, a dignidade humana no grau zero, do que o testemunho que Salgueiro Maia nos deixou nos textos que intitulou “Crónica dos feitos por Guidage”. É na secção “depoimentos” que faz parte do livro “Capitão de Abril, Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril”, de Salgueiro Maia (Editorial Notícias, 1994). Estamos em Maio de 1973, a comissão militar da companhia de Salgueiro Maia está praticamente no fim. Naquele dia 5 de Maio notou-se uma azáfama anormal de meios aéreos; depois um forte tiroteio, pede-se apoio aéreo, da artilharia, evacuações. Tudo aquilo partia de um destacamento onde Salgueiro Maia tinha um pelotão. Sem hesitar, o capitão avança para o destacamento. Aí, há notícia de um novo contacto com as forças do PAIGC, as nossas tropas tiveram seis mortos, há feridos graves, material abandonado, sobreviventes à deriva. Novo contacto, mais um morto e três feridos graves. Os nossos soldados permanecem no terreno, pedem auxílio. O comandante do batalhão manda avançar uma companhia em reserva para acudir aos camaradas, a companhia recusa-se a avançar. Salgueiro Maia parte em seu auxílio:

“Para quem não conheceu a mata da Guiné, é difícil explicar como se consegue ir a corta-mato com viaturas tendo de encontrar passagem por entre as árvores, os arbustos, o capim alto, as ramagens com picos e, ao mesmo tempo, seguir uma direcção certa, apesar de tentarmos ir o mais depressa possível. Depois de rotos pela vegetação e cansados de correr ao lado das viaturas, chegámos ao local de combate. Ainda pairava no ar o cheiro adocicado das explosões; os homens tinham um ar alucinado, de náufrago que vê chegar a salvação, mas, em lugar de mostrarem a sua alegria, estavam ainda na fase de não saber se era verdade ou não.

Mando montar segurança à volta da zona e pergunto pelos feridos ao primeiro homem que encontro – tem um ar de miúdo grande a quem enfiaram uma farda muito maior do que ele; parece de cera, olha-me sem me ver e aponta com o braço. Sigo na direcção apontada e depressa vejo uma nuvem de mosquitos e moscas: já sei que à minha frente tenho sangue fresco. Debaixo de uma árvore, estão estendidos cinco homens; o capim está todo pisado; alguns dos homens estão em cima de panos de tenda; à volta, estão várias compressas brancas empastadas de vermelho; o chão parece o de um matadouro, há sangue coalhado por todo o lado; a maioria do sangue vem de um dos homens que já está cheio de moscas. Dirijo-me para ele – está cor de cera e praticamente nu. Olha-me como que em prece; ninguém geme, o silêncio é total. Trago comigo o furriel enfermeiro e um cabo maqueiro. Mando-os avançar, assim como as macas. Dirijo-me ao ferido mais grave – o ferimento provém-lhe da perna. Tem em cima dela várias compressas empastadas de sangue. Tiro as compressas e vejo que o homem não tem garrote. Pergunto estupefacto por que é que não lhe fizeram um. Alguém me responde que o enfermeiro está ferido. Começo a sentir raiva”.

O dia tomba, é impossível recorrer a uma evacuação por helicóptero, os feridos são depositados nas caixas dos Unimogs. O PAIGC volta a atacar, desta vez com foguetões de 122 mm. O ferido da perna morre. Salgueiro Maia escreve: “Guardo dele uns olhos assustados a brilhar numa pele branca e seca, a ficar vazia de vida porque, em 60 homens ninguém sabia o mais elementar em primeiros socorros: fazer um garrote”.

É desolação a toda a volta, enquanto se forma a coluna para regressar a Bissau, Salgueiro Maia dá consigo a contemplar os mortos de boca e olhos abertos, com aspecto de quem não compreende nada do que aconteceu. E escreve: “Mecanicamente, tiro os atacadores das botas dos mortos, ato-lhes os queixos, ponho-lhes as mãos em cruz, os pés juntos. Com a água do cantil molho-lhes os olhos e fecho-lhes. Olho para a minha obra e também não entendo”.

O pior vem depois. No dia 22 de Maio de 1973, Salgueiro Maia e a sua companhia estão prontos para seguir para o Cumeré, parece que a comissão terminou. Mas não, têm que partir de urgência para o Norte. O PAIGC desencadeara uma ofensiva em Guidage, a guarnição estava cercada e, aparentemente, isolada. As flagelações do mês de Maio, na zona de Guidage, eram incontáveis. O PAIGC apostara numa operação de grande envergadura: trouxera mísseis terra-ar para dissuadir os meios aéreos; implantara um campo de minas anti-carro e anti-pessoal na estrada Guidage-Binta. A última coluna de reabastecimento fora atacada durante cerca de 24 horas sem interrupção, as NT retiraram abandonando mortos e viaturas, seguiram para Guidage. O comando-chefe reage com a operação Ametista Real. Uma companhia de pára-quedistas e um destacamento de fuzileiros tentam abrir o itinerário, chegam a pé a Guidage depois do destacamento de fuzileiros ter caído num campo de minas e os pára-quedistas terem sofrido uma emboscada. Salgueiro Maia recebe ordens para seguir para Binta-Farim e depois, com uma companhia africana e uma companhia de atiradores, abrir o cerco para Guidage. O relato que ele faz é uma peça espantosa.

Este livro fica a fazer parte do património do blogue. Precisei de ir à Associação 25 de Abril buscar livros para recensão, em conversa com o Vasco Lourenço veio à baila este texto sofridíssimo e de uma camaradagem sem igual. Ofereceu-me o livro, ele deve ficar em boas mãos.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5758: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (3): Dois anos maravilhosos: S. Domingos, Varela, Ziguinchor, antes da guerra...

Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5753: Notas de leitura (61): Armor Pires Mota (6): Estranha Noiva de Guerra, uma obra prima à espera de reconhecimento (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5762: Parabéns a você (74): Mário Silva Bravo, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 6, Bedanda 1971/72 (Editores)

Hoje, dia 4 de Fevereiro de 2010, está de parabéns o nosso camarada Mário Silva Bravo, ex-Alf Mil Médico na CCAÇ 6, que esteve em Bedanda nos anos de 1971 e 1972.

Ao Dr. Mário Bravo vem a Tertúlia desejar um divertido dia de aniversário, na companhia de seus familiares e amigos, na certeza de que esta data vai ser festejada durante muitos anos, não sejamos, o Mário e quase todos nós, jovens sexagenários.


O ex-Alf Mil Médico Mário Bravo, apresentou-se à Tabanca no mês de Janeiro de 2007, assim:

Meu Caro Luís Graça:
Por motivo ocasional, tive conhecimento da existência deste fabuloso movimento de memórias das gentes que estiveram na Guiné.

Fui médico (alferes miliciano) na CCAÇ 6, em Bedanda, desde finais de 1971 até aos primeiros meses de 1972.

Actualmente, com 60 anos de idade, sou ortopedista na cidade do Porto. Ainda não estou reformado, mas tenho vontade de ocupar algum do meu tempo livre a relembrar velhos tempos.

Envio duas imagens (fotos), como se pretende e aguardo as vossas instruções para o envio de outras fotos que tenho e que se referem a Bedanda, isto é, a companheiros dessa época. Por exemplo, tenho fotos do Cap Ayala Botto que, segundo li, é Coronel na reserva.

Cumprimenta
Mário Bravo


O editor do poste não sabe se o Dr. Mário Bravo ainda está em actividade, oxalá que sim, porque são precisos técnicos com experiência, principalmente ortopedistas, porque a armação é o que mais se deteriora com a idade. Eu que o diga.
Vem isto a propósito, de que, se eventualmente já tiver mais tempo disponível, está na altura de nos contar as suas vivências na Guiné. Sou fã das histórias dos militares que estiveram ligados ao serviço de saúde, porque viveram experiências ímpares, quer pela diversidade dos problemas encontrados, quer pela dificuldade e capacidade de improvisação, face às necessidade mais básicas para desempenharem as suas funções.

Do espólio fotográfico do Camarada Mário Bravo, escolhemos as fotos que se seguem:

Alf Mil Médico Mário Silva Bravo

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3477 (Novembro de 1971/ Dezembro de 1972) > O Alf Mil Médico Mário Bravo - ao meio, na foto - esteve na CCAÇ 6 em Bedanda, mas também ia regularmente a Guileje, no tempo do Samúdio (1.º Cabo Enfermeiro, o primeiro à esquerda).
Foto: © Amaro Samúdio (2006). Direitos reservados


Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1972 > O Mário Bravo na porta de armas

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1972 > O Alf Mil Médico Mário Bravo, que pertenceu à CCAÇ 6 (Bedanda, 1971/72) ia também regularmente a Guileje, prestara assistência médica aos respectivos militares e população. Ironicamente, esta a mensagem de boas vindas - Boa viagem - com que as visitas eram recebidas.

Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > 1971/72> O Alf Mil Médico, Mário Bravo, à direita; e o Tenente Miliciano Capelão Mário Oliveira.

Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > 1972 > O Alf Mil Médico Mário Bravo - o quarto a contar da esquerda, de óculos - no meio de um grupo de oficiais. O António Graça de Abreu - Alf Mil (CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74) - é o primeiro da esquerda.

Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > 1971/72 > Na foto, o Mário de pé, à esquerda... O grupo era o que trabalhava com ele na enfernaria... Do lado direito, de pé, está o Fur Mil Enf Dias, natural de Viana do Castelo.

Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > 1971/72 > O Alf Mil Médico Mário Bravo e o terceiro, de pé, a contar, da esquerda. Da primeira fila, à direita, segurando a bola, então Comandante da CCAÇ 6, Ayala Botto que, na Guiné, também foi ajudante de campo do Gen Spínola.

Fotos: © Mário Bravo (2007). Direitos reservados


Finalmente a listagem de postes do Doutor Mário Bravo ou a ele relativos


23 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1457: Tertúlia: Apresenta-se o Alf Mil Médico Mário Bravo, CCAÇ 6, Bedanda (1971/72)

27 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1466: Mário Bravo, médico de Guileje (Amaro Munhoz Samúdio)

28 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1467: Bem vindo a Guileje, Doutor (Mário Bravo)
e
Guiné 63/74 - P1469: Bedanda, manga de saudade ou uma dupla sinistra, o padre e o médico (Mário Bravo, CCAÇ 6)

12 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1517: Tertúlia: Com o António Graça de Abreu em Teixeira Pinto (Mário Bravo)

3 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1726: Álbum das Glórias (12): Bissau: Clube Militar, mais conhecido por Biafra (Mário Bravo)

21 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2566: Em busca de ... (21): Malta de Bedanda, do futebol e dos serviços de saúde (Mário Bravo, Alf Mil Médico, CCAÇ 6, 1971/72)

23 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2573: Futebol em Bedanda, CCAÇ 6, 1971/72 (Ayala Botto / Mário Bravo)

3 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5396: Os Nossos Médicos (10): Mário Bravo (CCAÇ 6, Bedanda, 1971/72), hoje ortopedista no Porto
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5751: Parabéns a você (73): Germano Santos, ex-Op Cripto da CCAÇ 3305/BCAÇ 3832 (Mansoa, 1971/73) (Editores)

Guiné 63/74 - P5761: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (13): intervenção da Presidente da AD, Isabel Miranda, no dia 20 de Janeiro de 2010

Intervenção da AD - Acção para o Desenvolvimento, na pessoa da sua presidente, Sra. Dona Isabel Miranda (aqui, em foto de 5 de Março de 2008, por ocasião do Simpósio Internacional de Guiledje, Bissau, 1-7 de Março de 2008):

Exmº Senhor Malam Bacai Sanhá, Presidente da Republica da Guiné-Bissau
Exmº Senhor Carlos Gomes Junior, Primeiro-Ministro da Guiné-Bissau
Senhores Membros do Governo
Senhores Deputados
Senhores Embaixadores
Senhores combatentes da Independência da GB
Senhores Internacionalistas Cubanos
População da Guiné-Bissau, de Tombali, de Guiledje
Meus Senhores e minhas Senhoras


Bem Vindos a Cantanhez, berço da Nação Guineense!

Há 18 anos que a nossa ONG, a AD, vem trabalhando nesta zona histórica do país, tendo como permanente referência Amilcar Cabral que, para além de ser um agrónomo visionário, era também um antropólogo de profunda sensibilidade, que sempre colocou o Homem, as suas preocupações, as suas convicções e as suas percepções do mundo, no centro de todos os processos de desenvolvimento.

Com a Luta pela Independência aprendemos, entre outras coisas:

- A ter a nossa própria agenda de prioridades, baseada nas dinâmicas e vontades locais e não as que nos são impostas do exterior. Cabral dizia que "ninguém luta pelas ideias que estão na cabeça dos outros…";

- A importância de percorrer e encontrar caminhos inovadores para a solução dos problemas e desafios. A declaração da Independência da Guiné-Bissau durante a ocupação colonial foi uma decisão ímpar e única de repercussões universais;

- Que os processos mais duradouros são aqueles que são inicialmente minoritários e que vão crescendo com a adesão das comunidades à medida que provam que são viáveis e eficazes. A criação do PAIGC em 1956 por um punhado minoritário de nacionalistas, transformou-se em 17 anos numa onda gigante maioritária que nos levou à independência;

- O valor da solidariedade e entreajuda entre os actores dos processos de desenvolvimentos é determinante para ultrapassar as dificuldades, em vez de se estar sempre a queixar de falta de meios.

Meus Senhores e Minhas Senhoras,

Quando há 2 anos a AD, o INEP e a Universidade Colinas do Boé organizaram o Simpósio Internacional de Guiledje, estavam a contribuir para o reconhecimento nacional do papel único de uma geração que abdicou da sua própria vida pessoal e profissional, para criar um país, em que as pessoas fossem elas próprias, donas do seu destino promovendo os valores da gesta da libertação.

O Museu "Memória de Guiledje" é, antes de tudo, uma homenagem à geração de Cabral, a todos os que com o seu exemplo escreveram uma das mais belas páginas da nossa História. Mas é também um lugar de confluência de rios anteriormente desencontrados que hoje procuram um caminho comum.

Encontro com os militares portugueses, aqueles que, embora em campo oposto, aprendemos a respeitar pela sua coragem e capacidade militar numa luta de longa duração e que, afinal, partilham os mesmos sentimentos de amor pela Guiné-Bissau e pelo seu povo, pela sua humildade, dignidade, valentia e determinação, os quais sempre souberam distinguir o povo português do regime colonial que a ambos oprimia .

Hoje, em liberdade, reencontramo-nos com emoção, com vontade de juntar memórias, recordações, encontros e desencontros, voltar a caminhar juntos num caminho de respeito e progresso.

Saudamos a presença da Srª Julia Neto, esposa do capitão José Neto que tanto amou este canto e que tanto contribuiu para que o Museu "Memória de Guiledje" fosse um êxito. Poucos dias antes de falecer, deixou-nos o seu desejo mais profundo: "hei-de voltar a Guiledje", disse. A sua esposa, Srª Julia Neto, está hoje entre nós para realizar esta sua última vontade. Através dela saudamos todos os militares portugueses das 12 companhias que passaram por Guiledje e que quiseram deixar um pouco das suas recordações (aerogramas, fotografias, filmes, contos e narrativas).

Saudamos por fim os nossos irmãos internacionalistas cubanos que verteram o seu sangue e suor nesta Pátria de Combatentes valorosos e, na pessoa dos hoje aqui presentes, saudamos todo um povo que prossegue a sua gesta de solidariedade para com a GB nos domínios da saúde, educação e desenvolvimento do nosso país.

A AD propõe-se

(i) assegurar o funcionamento do Museu de Guiledje e perpetuar a memória histórica da luta pela independência da Guiné-Bissau no sul do país;

(ii) contribuir para criar aqui neste local a sede do Parque Transfronteiriço de Guiledje para promover a conservação e gestão correcta dos recursos naturais e humanos, em especial os Corredores de Animais Selvagens de Balana e Bendugo, fortemente ameaçados actualmente, estabelecendo uma cooperação entre as comunidades da Guiné-Bissau e Guiné-Conakry;

(iii) construir o Centro de Aprendizagem Rural, com o objectivo de formar e capacitar jovens para actividades profissionais, agrícolas e associativas: construção de poços, carpintaria, serralharia, mecânica, construção civil, energia solar, condução de pomares de fruteiras e jardins hortícolas e transformação de produtos agrícolas;

(iv) criar aqui um Pólo de Turismo Histórico com antenas nos quartéis de Cacine, Gadamael, Gandembel, Iemberém, Cadique, Cabedú e Bedanda, bem como nos acampamentos da guerrilha nas matas de Cantanhez, na Base Central e Hospital Donga.

Garantimos que a AD tudo fará para que este local dignifique o seu rico passado, valorizando o Museu, resgatando a cultura do povo de Cantanhez, assim como de mãos dadas com os agricultores, as mulheres e os jovens deste canto apoiar a seu desenvolvimento para que todos possamos dizer "A independência valeu a pena"

Obrigado

Isabel Miranda, Presidente da AD (*)

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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 4 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5760: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (12): Cerimónia da inauguração, a 20 de Janeiro de 2010, e visita, a 29, de uma delegação cubana (Pepito)

Guiné 63/74 - P5760: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (12): Cerimónia da inauguração, a 20 de Janeiro de 2010, e visita, a 29, de uma delegação cubana (Pepito)


 Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Núcleo Museológico  Memória de Guiledje (*) > 20 de Janeiro de 2010 > "O dia da inauguração contou com a visita do Senhor Presidente da Republica da Guiné-Bissau, Malam Bacai Sanhá, o qual recebe esclarecimentos prestados pelo Dr. Alfredo Caldeira,  da Fundação Mário Soares".



"Igualmente o Senhor Primeiro Ministro, Carlos Gomes Junior, acompanhado do Ministro da Educação Nacional, Artur Silva, [e, à direita deste, o anfitrião, o Director Executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento , Eng. Agrónomo Carlos Schwarz da Silva,]  seguiram detalhadamente todas as secções do Museu".



"O Senhor Vice-Chefe de Estado Maior das Forças Armadas, António Indjai, acompanhado de uma forte delegação de membros das chefias militares, percorreu com interesse o Museu"



VISITA DE INTERNACIONALISTAS CUBANOS

No dia 29 de Janeiro de 2010, uma delegação de 7 combatentes cubanos, que apoiaram a luta pela Independência da Guiné-Bissau, liderados pelo famoso Comandante Móia (Victor Dreke Cruz) (**), foram expressamente a Guiledje para uma visita guiada ao Museu.




A delegação cubana em visita ao Museu...



 O Comandante Móia, chefe da delegação...


Comandante René: foi ele  que colocou as minas na estrada de Guiledje no início da operação de assalto final ao quartel.



Fotos e legendas: ©  Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2009). Direitos reservados
_____
 
Notas de L.G.:
 
(*) Vd. último poste da série > 30 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5731: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (11): Inauguração da mesquita, almadjadja, com a presença do filho do Cherno Rachide e da Júlia Neto (Pepito)

(**) Vd. poste de 18 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P967: Antologia (51): Os combatentes cubanos ou a mística da guerrilha (Victor Dreke)

Vd. também postes de:

1 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P951: Antologia (47): Um médico cubano no Morés e no Cantanhez (Domingo Diaz, 1966/67)

24 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3090: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação do cubano Ulises Estrada

Guiné 63/74 - P5759: Convívios (184): Operação Coruche no dia 30 de Janeiro de 2010 (José Manuel M. Dinis)

Relatório de uma Operação nas imediações de Coruche, enviado por José Manuel Matos Dinis, em mensagem datada de 30 de Janeiro de 2010. Da referida Operação, supomos não haver registo fotográfico, porque o mesmo não nos foi facultado.


OPERAÇÂO CORUCHE
Situação:
Apetite quanto baste
Missão: Golpe de mão nas imediações de Coruche
Objectivo: Território em poder de Jorge Rosales
Forças actuantes: Oficial: Jorge Rosales; Sargento: José Manuel M. Dinis
Meios: Abastecimento durante a deslocação
Planos estabelecidos para a acção: Deslocação em meios auto até ao objectivo e retorno no mesmo dia à base.
Data da acção: 30JAN2010

Meu Capitão,
Para reflexão analítica e eventual tomada de decisão, passo a descrever sob a forma de relatório, a acção hoje concretizada de uma espécie de golpe de mão.

O oficial Jorge Rosales, que é proprietário de um palacete na lezíria ribatejana, algures entre Coruche e a Casa do Carvalho, a gozar um período de grande prestígio por ter comandado a operação Magnífica, na Linha, depois de ter comandado Porto Gole, e já ter sido futebolista há muitos anos, contactou-me telefonicamente, com vista à exploração de uma agressiva campanha militar sobre um objectivo alimentício.

Ora, tendo eu nascido com costela combatente, não poderia regeitar o repto. O dito oficial ainda me alertou para a hora matinal a que se obrigava sair, mas lembrei-lhe que um operacional não tem horários, princípio confrangedor para muitos amanuenses da A.M.

Metidos ao caminho, sem escolta, nem espalhafato, atingimos o primeiro objectivo na praça de Coruche, onde, atónitos, a peixeira chamava o marido peixeiro, e, ambos muito cortezes e disponíveis, puseram-se incondicionalmente sob o comando do antes referido senhor oficial. De seguida, passámos à banca de frutas e legumes, onde, pode dizer-se ocorreu idêntica reacção dos locais.

Dada a facilidade com que ultrapassámos estes objectivos, ainda sobrou tempo para dois dedinhos de conversa com originários da terra, comer uma bifana (só o senhor oficial a comeu, já que eu tinha passado a véspera de caganeira (desculpe V.Exa. mas não conheço a expressão militar), vinho e cafés. Resolvido este problema, regressámos à viatura com os seguintes trofeus: 2 fataças escaladas; dois carapaus pujantes de frescura; um choco cujos olhos sorriam; um queijo de ovelha; dois pães caseiros; batatas; tomates; um pepino e um molho de agriões.

Chegados ao local, abertas as janelas do palácio e feito o reconhecimento do local, que inclui a piscina, duas casotas de apoio, uma adega e um barbecue, arredámos um jeep para aliviar a área de acção e, constatando bastante antecedência para o acto, dirigimo-nos em passeio descontraído de reconhecimento dos arredores, só nos detendo por momentos à porta de Joaquim Galvão, um exótico palrante de matérias políticas.

Regressados, distribuímos funções, que calharam quase todas a mim, em reconhecimento das minhas capacidades, e consistiram, no ajuntamento de artigos combustíveis para o necessário braseiro; o deslocamento de uma mesa e duas cadeiras; a preparação e confecção de uma excelente salada; e a colocação do peixe no devido lugar do barbecue. As restantes tarefas ficaram por conta do já identificado senhor oficial.

Manducámos com muito apetite, que a operação já exigia reforço estomacal, e bebemos da pinga do ainda agora referido senhor oficial, um produto que ele gaba ser exclusivamente suco de uvas. Poderá V.Exa. avaliar o perigo decorrente dessa beberagem, tendo em conta a delicadeza dos estômagos do pessoal, habituados à ingestão de produtos químicos delicados com a designação de vinhos, com dóques e tudo. Não fora a boa preparação dos intérpretes, e poderia ali ter acontecido alguma desgraça.

Seguidamente, fomos orientados por uma pista olfativa de café e bagaço. No local, encontrámos um nativo de faladura entremelada que se propunha pagar a despesa por ser aniversariante. Esta declaração causou grande impacto junto das NT, pelo que foi decidido sermos nós a oferecer ao festejante, mesmo correndo o risco de cair em cilada oportunista. No entanto, esta acção não deixou de impressionar um grupo de senhoras da sociedade local, bem como a dona do estabelecimento, que se mostrou muito agradada com a nossa presença.

Consumada a vitória, e de regresso ao palácio, o senhor oficial proprietário do imóvel, bastas vezes referido, deu-me a subida honra de lavar a loiça, tarefa de que me incumbi com entusiasmo e a merecer a aprovação geral, quer do senhor oficial, quer dos espíritos basbaques que assistiram a tudo.

A operação epílogava-se com tremendo êxito, e não havendo outros objectivos identificados, nem manifestações provocatórias a carecerem de amansamento, decidimo-nos pelo regresso à base, depois de tomadas as medidas adequadas de fechar janelas e portas, viagem que decorreu com normalidade, e uma paragem na tasca da rabo-de-cavalo, uma mulherona com que nos regalaríamos em treinos, não fora ela casada e boa dona da casa de pasto.

Pelo caminho, o senhor oficial ainda fez referências a concentrações do grupo do Cadaval, ou da Tabanca Magnífica, pelo que se aguarda o competente despacho de V.Exa.

JMMD
30JAN2010
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5750: Convívios (179): 1º Encontro/Convívio do BCAÇ 4513 (Fernando Costa)

Guiné 63/74 - P5758: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (3): Dois anos maravilhosos: S. Domingos, Varela, Ziguinchor, antes da guerra...


Guiné-Bissau > Região do Cacheu > S. Domingos > Estádio de Amizade de S. Domingos > 1º Festival Cultural de S. Domingos: Nô laba rostu di nó Guiné (S. Domingos, 18-20 de Dezembro de 2009) > Dançarinos balantas de Ingoré. O festival foi um sucesso, envolvendo cerca de 5 mil participantes e espectadores. Juntou diferentes grupos artísticos, culturais, teatrais, folclóricos, de Aramé, Elia, Suzana, Varela, Cacheu, Ingoré, S. Domingos e Ziguinchor.

Segundo a AD - Acção para o Desenvolvimento que organizou esta iniciativa, "a valorização das diferentes facetas das manifestações culturais dos grupos étnicos existentes na Guiné-Bissau, alguns em perigo de desaparecimento por razões de absorção e integração por outras etnias, como os banhuns, cassangas e baiotes, permite à maioria o conhecimento e acesso a essas manifestações culturais, retirando-as do esquecimento e promovendo-as a património cultural nacional".

Por outro lado, "a actuação de grupos culturais locais favorece a criação e consolidação dos movimentos contra uma “cultura” urbana que despreza a tradicional, porque rural, lutando contra a intolerância e discriminação sexual e religiosa".


Foto: © João Graça (2009). Direitos reservados


1. Pré-publicação de excertos do próximo livro do nosso amigo e camarada Mário Beja Santos, Mulher Grande. Trata-se da terceira parte do Capº III (*):

Mulher Grande > III > A Guiné em chamas ou o “Tubabo Tiló”
por Mário Beja Santos


[III. 3] A exaltação de S. Domingos


S. Domingos era uma aldeia, a nossa casa ficava a 500 metros do porto. Olhe para o mapa e veja como estávamos próximos da fronteira. Pelo estradão, estávamos a 45 ou 50 minutos de Suzana, no bom tempo, e logo a seguir tínhamos a praia de Varela, a minha inesquecível praia de Varela. Por vezes íamos pelo estradão de Suzana até ao Cabo Roxo, não pode imaginar o panorama que dali se desfruta.

Para quem, como nós, até agora tinha estado longe de tudo, S. Domingos, se bem que uma povoação insignificante, aproximava-nos de território francês, e como o Albano mantinha relações muito cordiais com as respectivas autoridades, passei a ir com regularidade a Ziguinchor.

Era tudo em dimensão diminuta, estávamos, como disse, perto do porto, tínhamos uma tasca quase à porta de casa. A administração ficava em frente à nossa casa, a seguir havia a escola e um pouco mais abaixo o madeireiro. A nossa casa era o centro de S. Domingos, digo isto sem nenhum exagero, pois a estrada para Ziguinchor e para Varela passava-nos à porta.

Quando lá chegámos, depois de um longo dia de viagem que começou em Pirada, seguimos por uma picada até Sonaco, depois Bafatá, voltei a fazer aquele percurso que passa por Mansabá, revi Bissorã, onde matei saudades, seguimos depois por Barro, Sedengal até S. Domingos. Quando chegámos quase ao anoitecer, cheia de pó por dentro e por fora, olhei para a casa e disse para comigo: “Mais uma casa velha para arranjar, mais móveis para comprar, mais costura, pareço a Penélope, aprumo e desmancho, quando me estou a afeiçoar às coisas, chegou a hora de partir!”.

A casa impressionou-me bem, tinha gerador e não tinha prisão no rés-do-chão, como no Gabu. Estávamos lá há poucos dias, quando fomos convidados pelos colegas do Albano a visitar Ziguinchor. Foi uma sensação maravilhosa de ter um restaurante a algumas dezenas de quilómetros de casa, havia lojas de tecidos e um estabelecimento onde se podiam comprar produtos franceses, sobretudo conservas. Não pode imaginar a minha alegria de entrar numa outra loja que tinha livros franceses, comovi-me quando vi romances da Colette, Romain Rolland e André Gide.

Para minha surpresa, na primeira vez que vim à rua em S. Domingos abeirou-se um branco com a pele muito tisnada, tirou o chapéu colonial e saudou-me: “Sou o Toscano, não sou parente do seu marido, sou o Toscano madeireiro”. O chefe de posto era o Braga, branco tal como a mulher, fui madrinha do filho que ali nasceu, estávamos ali há mais de um ano. Recordo que havia dois padres italianos em Suzana.

Penso que vamos encontrar bastantes imagens da região de S. Domingos, das férias em Varela, dos passeios com amigos franceses, aqui nos meus álbuns. Tenho agora uma confidência a fazer, foi em S. Domingos que pela primeira e única vez vi o Albano com os copos. Ele foi dar um passeio, eu estava de cama, quando regressou vinha a rir-se, fez-me uma careta e disse: “Benedita, desculpe, hoje não durmo aqui, não estou bem, senti que bebi demais, o padre recebeu vinho para a missa, fomos provar, não sei como me embebedei!”. Dito isto, com as mãos a agarrar a barriga dava grandes gargalhadas, caiu no chão, levantou-se e saiu. Eu olhava para aquilo tudo sem abrir a boca, sinceramente o único medo que tive foi que aquelas cenas se voltassem a repetir.

O importante é que eu sentia mais alegria em S. Domingos, a tal sensação de estar perto de tudo, de poder viajar, encontrar gente, comprar uma revista, passear, ter a satisfação de marcar um almoço ou um lanche. E a certa altura, quando a professora partiu tive a emocionante experiência de dar aulas. Senti que era uma vocação tardia, iria gozar aqueles momentos com toda a intensidade.

Desculpe insistir, desde Bissorã que eu não me dava tão bem com a Guiné. Às vezes penso que foi Ziguinchor que mudou tudo. Logo que chegámos a S. Domingos mudámos de motorista, o Guilherme foi trabalhar para a meteorologia em Bissau, o Albano admitiu o Xuxo, era ele que me levava às compras em Ziguinchor.

Aos sábados, sempre que possível, íamos passear a Varela. Nunca mais esqueci Varela com o seu extenso areal e palmares ao fundo, o concessionário do restaurante continuava a ser o Sr. Refrega e o ajudante, o Sr. Vasco. O governador da Guiné tinha aqui um palácio. Foi tudo saqueado em 1961, logo a seguir ao ataque a S. Domingos. Faço-lhe uma confidência, não sei se me estou a repetir, nunca mais me ocorreu querer voltar à Guiné, mas ainda hoje tenho saudades de Varela e de algumas viagens que fiz a Ziguinchor.

Em 1959, fizemos obras na casa de S. Domingos (durante as obras vivemos na casinha de Varela) e demos uma festa. Onde gostávamos de receber era em Varela. É neste período que eu senti uma grande mudança no estado de espírito do Albano. Pela primeira vez, via-o trazer trabalho para casa, eram os relatórios sobre a evolução da situação no Senegal, em Bissau sabia-se perfeitamente a qualidade e a quantidade de informações que ele possuía.

Várias pessoas me disseram mais tarde que não havia ninguém na Guiné, no Norte, tão bem informado como o Albano. Regularmente, por este tempo, o Albano era chamado a Bissau para reuniões de carácter confidencial. Como não havia estabelecimentos comerciais em S. Domingos, acompanhava-o, fazíamos a viagem até Cacheu, daqui para Teixeira Pinto e depois Bissau.

A recordação que melhor guardo foi este período maravilhoso de 2 anos, o Albano começara a estudar a economia dos Felupes e preparara uma monografia sobre a habitação dos Banhuns. Sei que não vai acreditar, mas a Christine Garnier viveu uma semana em nossa casa, viajava discretamente para o Senegal, quando chegou começou por dizer que preparava uma reportagem, mais tarde abriu o jogo, quando revelou a finalidade da sua viagem ficámos de boca aberta: fora o próprio Salazar que lhe pedira um relatório sobre o que se estava a passar no Senegal, trabalhou o documento com o Albano todas as noites, ele mais tarde confessou-me que o documento identificava com inteiro rigor as novas realidades.

Já disse e insisto que nunca falava de trabalho com o Albano, mas uma noite ele confessou-me: “Benedita, tudo vai mudar na Guiné com o que se está a passar em Dakar e Conacri, há gente que está a ser preparada para a guerra, não lhe escondo que há gente a fugir da Guiné para nos fazer guerra. Temo o pior”. Antes de partir, a Garnier disse-nos que o relatório tinha sido enviado à D. Maria, a governanta de Salazar. Desculpe estar tão repetitiva.

[Revisão / fixação de texto / título: L.G.]

[Continua]
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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 2 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5747: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (2): Da Guerra do Turu-Ban ao Tubabo Tiló, passando pelo deslumbrante Corubal

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5757: O Nosso Livro de Visitas (82): "Projecto de Documentário sobre Bafatá" (Silas Tiny)




1. Mais um dos nossos Amigos, de nome Silas Tiny, jovem realizador, se nos dirige, solicitando a colaboração à tertúlia do nosso blogue, para a colaboração na realização de um documentário sobre Bafatá.

Bafatá, 1962 a 2010



Amigos,

O meu nome é Silas Tiny e sou um jovem realizador, que neste momento está a desenvolver um documentário sobre a cidade de Bafatá, versando o período da Guerra Colonial e o tempo actual.

Neste momento preciso de entrar em contacto com portugueses, que lá tenham vivido e servido militarmente.

Queria saber se é possível colocarem um poste com a seguinte informação:

"Projecto de Documentário sobre Bafatá"

Aos camaradas da Guiné, Amigos e participantes no blogue, o meu nome é Silas Tiny e sou um jovem realizador que vive em Portugal.

Neste momento estou a desenvolver um projecto de Documentário sobre a cidade de Bafatá. Começo por explicar melhor o projecto. Este meu projecto surgiu quando li uma reportagem no blogue do Sr. Jorge Rosmaninho, que fala de um operador de cinema que viveu na cidade de Bafatá e que, ainda hoje, continua a fazer a sua rotina diária como trabalhador do Sporting Clube de Bafatá, como se ainda aquele cinema estivesse a funcionar.
Se quiserem até podem consultar mais pormenorizadamente a história clicando no link: http://opatifundio.com/site/?p=9.

Gostei tanto desta história, que pensei logo em fazer um documentário que abrangesse este homem, a cidade de Bafatá e o cinema do Sporting Clube desta localidade.

Quero fazer um apelo a todos os camaradas, seus familiares, amigos (ex-militares e civis), que tenham mantido alguma actividade nesta cidade, ou que saibam de histórias interessantes e importantes, ou que conheçam pessoas ligadas a estes temas, para entrarem em contacto comigo, mandando-me um pequeno e-mail descritivo, para o meu endereço de correio electrónico [...] ou através dos números de telemóvel [...] ou telefone [...].

Por favor, não hesitem.

Podem também consultar o site da produtora que está associada ao desenvolvimento deste projecto: http://www.realficcao.com

P.S. - A informação é esta. Peço-vos isto porque o vosso blogue tem tantos camaradas e porque vindo do blogue eles podem ficar mais entusiasmados a colaborar coisa que eu não tenho conseguido com muito sucesso até ao momento. Em anexo tem uma foto minha caso queira colocar.

Abraços e cumprimentos a todos,

Silas Tiny

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Nota de M.R.:

Vd. também os postes relacionados:

16 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5658: O Nosso Livro de Visitas (81): António Marquês, ex-Fur Mil da CCAÇ 4810 (Moçambique), comenta o nosso Blogue e dá-nos conta dos seus contactos com pessoas ligadas à Guiné-Bissau

Guiné 63/74 - P5756: FAP (46): Recordando o inferno do HM 241, as heli-evacuações, o cubano Cap Peralta, os Alouettes III, celebrando a camaradagem e a amizade... (Jorge Narciso)



1. Comentáriod o Jorge Narciso (*) ao poste 1 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5741: Blogoterapia (142): Aquela janela virada para o heliporto (Jorge Teixeira/Portojo)


De Jorge para Jorge

Caro:

Ao passar hoje pelo blogue, de imediato me chamou a atenção a foto do heli aterrado no HMB [, HM 241, Bissau], contida no teu Post.

E como a ti, também ela me suscitou um tal corropio de lembranças, que, acredita-me, quase me atordoam.
Tentando alinhar ideias:

Como mecânico dos helis, foi exactamente no Hospital Militar que (excepção feita, naturalmente, à BA12) mais vezes aterrei na Guiné. E também a mim as recordações que suscita, serão tudo menos agradáveis. Seja a da lembrança das condições (fisicas e ou psicológicas) infra-humanasde homens que para ali transportei, seja a indescritível visão da sala de horrores, chamada triagem, onde eles eram colocados; de cada vez que ali tinha que ir recuperar macas. São imagens que jamais se esquecem.

Mas outra lembrança conseguiste, com o teu Post, desenterrar do fundo do meu subconsciente, a da evacuação do Capitão Peralta, a qual passo a transmitir, a quente, tal como a memória me debita.

Antes porém e à falta de outros registos, resolvi ir ao Google e digitar: Capitão Peralta.

Resultados:

- Ferido e capturado em 18 Nov 69 durante a operação JOVE, realizada pelo Páras entre os dias 16 e 19, no corredor de Guileje.

- A base dessa operação, a partir de onde os Paras foram heli-transportados, foi Aldeia Formosa.

Vamos agora à minha memória, que espero não me esteja a atraiçoar, sequer a iludir, e na qual (apesar da evidente redução de neurónios) quero ainda confiar.

Coloco os resultados dessa pesquisa em dois planos:

- O das quase certeza (ou com menor grau de falibilidade) e o das incertezas associadas, que evidencio entre parêntesis.

Assim:

(1) Só não estava no voo em que viste o Capitão Peralta aterrar no HM, pelas condições extra-ordimárias e que decorreu essa evacuação,  cujos contornos passo a descrever.

(2) Em operações como esta, em que, independemente da Tropa participante, a base se situava num aquatalamentos longe de Bissau, para aí se deslocavam normalmente: 5 helis + 1 heli-canhão, transportando uma equipa de manutenção e uma Enfermeira.

Dali partiam, então, fazendo as viagens necessárias para, transportando 5 ou 6 militares por heli, os colocar, protegidos pelo canhão, na ZOPS.

Se a operação se resumia a um dia, permaneciam os helis nessa base em alerta, para: evacuações, eventuais transportes das Tropas para outras posições na mesma ZOPS e finalmente para a sua recuperação no final da Operação.

Nos casos em que a Operação fosse por mais de um dia, ficaria em todos os dias em que esse decorresse e na base da mesma, no minimo um heli de alerta (com Piloto, Mecânico e Enfermeira) para eventuais evacuações e o heli-canhão para protecção destas e para intervenções de tiro,  se solicitadas.

(3) Nesta Operação em particular, é seguro que estive presente, desde logo porque recordo perfeitamente o objectivo apontado para a mesma (nos helis e durante os voos, mesmo que não quisessemos, ouvíamos muita informação dita classificada): captura do NINO.

(4) No dia 18 (Precisei a data na citada consulta na Net), portanto no 3º dia da Operaçãp, voei (seguramemte de Aldeia Formosa) para essa ZOPS onde aterrei, no helicóptero que fez a evacuação do Capitão Peralta, não continuando no voo para o HM de Bissau,

PORQUÊ?

(4) Os Alouette III têm capacidade para transportar 6 passageiros, para além do piloto (este e mais dois à frente) e até 4 no banco traseiro.

Em evacuações com feridos em maca, essa capacidade ficava reduzida, pois para além dos 3 lugares à frente, normalmente ocupados pela tripulação (Piloto, Mecânico e Enfermeira, na maioria dos casos), apenas é possivel alojar 1 ou 2 macas na rectaguarda, que, por transportadas transversalemente, impedem (ou dificultam, algumas vezes me tocou vir meio sentado meio em pé, nas abas da maca) utilizar os lugares traseiros.

No caso desta evacuação (Cap Peralta), tendo sido determinado, no terreno, que o capturado devia ser acompanhado no voo por escolta armada, foi necessário ocupar, por quem a fez, um dos lugares destinados à tripulação.

Para resolver o problema e - repito - se a memória não me atraiçoa, registou-se um caso que me lembre único:

O helicanhão, que fazia a protecção à evacuação, ATERROU NA ZOPS, nele embarcado o mecânico (eu prÓprio) e voado (junto ao apontador) para Aldeia Formosa, donde posteriormente regressei a Bissau (outra nebulosa é que não me recordo como - noutro heli ? de DO ? ), pois no canhão não foi concerteza.

Como remate a estes factos, este voo no canhão foi para mim perturbante, pois que uns meses antes (Julho/meu 3º mès de Guiné) estive também para voar (nesse caso por experiência passiva que, para sorte minha, não concretizei) no retorno duma outra Operação em Galomaro, voo esse com um fim trágico, traduzido no despenhmento do heli (a que assisti) ocorrido em Bafatá, com a morte do meu comandante: Maj  Rodrigues (Piloto) e dum camarada de todos os dias, o Machadinho - como lhe chamávamos - , Mecânico Armamento/Apontador.

Um dia destes tentarei fazer o relato que me for possivel desta outra dramática ocorrência.

Voltando ao Post e à tua solicitação ao Jorge Félix (tantos Jorges), quase seguramente ele ainda estava nessa data na Guiné.

Como atrás referi, não me lembro se terá sido inclusivE participante nos factos, em qualquer caso terá certamente presente memórias relacionadas e, quem sabe, como tem a sorte (que a FAP me coartou) de ter os seus registos de voo, pode buscar nos mesmos confirmações

Amanhã envio-lhe uma mensagem a chamar a atenção para o Post.

E como este já vai longo, por aqui me fico.
Recebe um abraço

Jorge Narciso

2. Comentário de L.G.:

Tenho uma dívida para com este camarada, que conheci pessolamente há dias, em Oeiras, e que me escreveu, no dia dos meus anos, palavras  que me tocaram (#)... (Aliás, tenho uma dívida, muito grande, para com as dezenas de camaradas que me disseram coisas que me sensibilizaram, emocionaram, e que não foram decididamente simples palavras de circunstância, ou de etiqueta social; ainda não arranjei para lhes dar uma palavrinha pessoal, personalizada...). É que este camarada, da FAP, fez milhares e milhares de milhas nos céus da Guiné, na mesma altura em que eu lá estive, esteve em missões no Sector L1, na zona leste, seguramente em operações onde eu estive, em que houve heli-evacuações e apoio do heli-canhão... e só agora, passados quarenta anos, é que damos um abraço... Mais: ele pede expressamente para eu o incluir na lista dos meus amigos... E eu ainda não lhe respondi!

Pois, vou aproveitar o ensejo para lhe dizer, em público, aqui no nosso blogue, que camaradas como o Jorge não precisam de ser sujeitos a um  período probatório, a exames de selecção, a testes de amizade... O Jorge é daquelas pessoas  que de imediato inspiram confiança, que são transparentes, afectiosas, bem formadas, empáticas... Pessoas de palavra, que não precisam de dizer muito ou escrever muito. O Jorge é daqueles camaradas que eu ponho logo na lista dos favoritos, no arquivo que diz: AMIGOS... Jorge, haveremos de selar o gesto com um copo na Lourinhã, em Vilar / Cadaval ou num nosso próximo encontros, numa das nossas já numerosas tabancas!... Quem sabe, talvez na Tabanca do Centro, já no fim do mês, se agenda mo permitir... Até breve! Um Alfa Bravo. Luís

(#) Caro Luís


Por uma vez (durante o recente colóquio em Oeiras) tivemos a oportunidade, já prevista, de selar com um gesto de cumprimento uma rápida mas agradável troca de palavras de saudação.

Creio, no entanto, não ter sido essa a primeira vez que estivemos fisicamente perto, pois durante os anos de 69 e 70 fomos contemporâneos na Guiné; e isto porque, para além daquela extraordinária coincidência do meu reencontro como Humberto Reis, com quem constantemente conviveste [em Contuboel e Bambadinca, Junho de 1969/Março de 1971] , basta fazer um mero exercício de cálculo de probabilidade, que aliás é também válido para qualquer outro camarada em qualquer ponto da Guiné.

Tendo eu sido, durante todo o tempo em que permaneci na Guiné um, dos em média, 5 ou 6 mecânicos permanentes na linha dos hélis e que neles sempre voavam (excepção feita nas acções de embarque e desembarque de tropas durante operações), significa que também em média em cada 5 ou 6 vezes que um héli aterrou junto de ti, num estaria eu !

Cada um de nós cruza-se, pois, ao longo da vida com um incomensurável número de pessoas; dessas, estabeleceremos comunicação com uma quantidade ainda muito significativa, e destas conhecemos efectivamente um número ainda apreciável.

Só que: cruzarmos, contactarmos ou conhecermos, não representa, só por si, que se gerem 'proximidades'. Proximidades essas que podem até nem ser físicas.

Mas quando tal acontece, é nesse número, naturalmente mais reduzido, que estão aqueles com quem efectiva e assumidamente comungamos... AFECTOS; nas suas diversas, mas complementares, formas: Amor, Amizade, Camaradagem, Solidariedade, Compreensão, Consensualidade, etc. etc.

Pela forma como estás na vida, como te relacionas com os que te rodeiam e mais ainda pela predesposição natural que possuis para gerar esses afectos, QUERO, à luz dos nossos (mesmo que eventuais) encontros anteriores, dos (reais) presentes e da sua continuidade futura, manifestar, em jeito de parabéns, o meu regozijo pela celebração de mais esta tua primavera (não importa quantas somas já) e que, na sua continuidade futura com os que te são queridos, mantenhas a tua nítida lucidez de pensamento, sempre acompanhada da forma física que mais desejares.

PEDIR-TE O FAVOR DE ME ACEITARES NO NÚMERO DOS TEUS AMIGOS


Recebe um afectuoso abraço

Jorge Narciso

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Nota de L.G.:


(...)  Abr de 69/Dez de 70) - BA 12 / Bissalanca - Linha da frente dos Alouette III (onde ao fim de pouco tempo, e devido à tardia nomeação, apesar dos meus 20 anos, comemorados aliás no Saltinho durante uma missão de abastecimento, era o cabo especialista mais antigo - tempo de FAP - da mesma linha).


Fiz ali algumas centenas de horas de voo, só não sei quantas, porque a minha caderneta de voo (que não sei porquê me obrigaram a entregar no regresso, diziam que para entrega posterior) está em parte incerta, se é que ainda existe (penso que não é caso único) (...)



Fotos: ©  Jorge Narciso (2009). Direitos reservados