Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCS/ BCAÇ 2852 (1968/70) > 1970 > Destacamento de Nhabijões > Assistência médica à população do reordenamento de Nhabijões, maioritariamente de etnia balanta (e com "parentes no mato", tanto a norte do Cuor como ao longo da margem direita do Rio Corubal, nos subsetores do Xime e do Xitole). Como se vê, a consulta médica era muito pouco privada... Além disso, o médico (neste caso, o alf mil médico Vidal Saraiva (*), cirurgião, tinha que utilizar os serviços de um intérprete (, que está de pé, ao lado do paciente, que veio diretamente do trabalho, na bolanha). Ao canto superior esquerdo, há um tabuleta em madeira onde se lê: "Por favor não deitar lixo para o chão".
Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados . [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]
Reis, Carlos Vieira – A Guerra Colonial. In: Veloso A. J., Mora, L. D., Leitão, H., (Eds.) (2017). Médicos e sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX. Lisboa: By The Book, pp. 492-505
Carlos Vieira Reis é coronel médico e escritor, ex-diretor de serviço de Cirurgia, ex-director clínico do Hospital Militar Principal, ex-presidente da União Mundial dos Escritores Médicos.
Resumo:
A organização e o funcionamento dos serviços de saúde militar, durante a guerra colonial / guerra do ultramar, é um dos cinquenta capítulos da obra verdadeiramente enciclopédica, de que o meu ilustre amigo A. J. Barros Veloso (médico, músico de jazz e historiador, especialista de medicina interna, ex-diretor de serviço do Hospital dos Capuchos, Hospitais Civis de Lisboa) foi o principal editor literário, para não dizer mesmo a verdadeira “alma mater”: “Médicos e sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX”.
Barros Veloso é, de resto, o autor de 15 capítulos. A obra, com um total 863 páginas, reúne a colaboração de cerca de quatro dezenas de especialistas da história da medicina portuguesa no séc. XX (, incluindo, modéstia à parte, o meu nome, no que diz respeito à génese e desenvolvimento da saúde pública).
Na II parte desta nota de leitura, aborda-se o apoio sanitário que tivemos durante a guerra colonial,com destaque com a experiência do autor como diretor do hospital militar de evacuação, no Luso, Leste de Angola. (**)
Se compararmos com a situação atual (2017), desde 1960 o número de médicos aumentou mais de 7,3 vezes. O mesmo se passou com os enfermeiros, que evoluíram de uns escassos 9,5 mil, em 1960, para 71,6 mil (em 2017) (7,5 vezes mais).
Com a abertura de mais duas frentes (Guiné, em 23 de janeiro de 1963, e Moçambique em 25 de setembro de 1964), as necessidades em pessoal médico militar dispararam, obrigando o exército a recrutar médicos menos jovens. Nas especialidades com menos quadros, chegaram-se a mobilizar médicos com “mais de 45 anos”. E até chefes de serviço hospitalares foram chamados (p. 495).
No caso da enfermagem, a estratégia dos serviços de saúde militar foi outra. Em 1965, foi criado o Regimento de Saúde, em Coimbra, para satisfazer as necessidades crescentes de pessoal sanitário para os vários teatros de operações, e em particular de enfermeiros e maqueiros, recrutados entre o pessoal do contingente geral.
Imagem do sítio oficial da ESSM -Escola de Serviço de Saúde Militar (, reproduzida com a devida vénia...). Trata-se de "um estabelecimento de ensino superior, integrado na rede do ensino superior politécnico", criado em 2 de Agosto de 1979 pelo decreto-lei nº 266/79. A ESSM está colocada na dependência directa do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA). É herdeira da Escola de Enfermagem da Armada e da Escola do Serviço de Saúde do Exército, entretanto extintas. "O ensino nesta escola abrange essencialmente três áreas distintas, dependentes de uma direcção de ensino: a enfermagem, os cursos de tecnologias de saúde e os cursos de saúde militar (...) Os cursos de saúde militar não são conferentes de grau académico e envolvem diversas áreas de formação, nomeadamente socorrismo, emergência médica e patologia de adição (alcoolismo e toxicodependência)."
Também por aqui passou, na segunda metade da década de 1960, o nosso camarada Adriano Moreira ("nickname", Admor), ex-fur mil enf, CART 2412, Bigene, Binta, Guidaje e Barro, 1968/70 (***)
De qualquer modo, os quadros de saúde, e nomeadamente os médicos milicianos, vão ser usados até à exaustão. O rácio 1 médico por companhia (160 homens), inicialmente previsto nas NEP, deixou de ser praticável, facto que parece ter escapado ao autor, Carlos Vieira Reis:
“O papel desempenhado pelos médicos no mato teve a maior importância na Guerra Colonial. Cada batalhão era constituído por quatro companhias, cada uma como seu médico, ao qual eram adstritos, um sargento-enfermeiro, e dois ou três maqueiros, apoiados por uma ambulância com material cirúrgico elementar” (p. 496).
Pessoalmente, na Guiné, no meu tempo (1969/71), não conheci nenhum batalhão com 4 médicos, um por companhia. Na melhor das hipóteses havia um médico por batalhão (**)… E também não me recordo de ver ambulâncias no mato...
Por outro lado, o autor, coronel médico Carlos Vieira Reis, antigo o diretor do Hospital Militar Principal (HMP), reconhece que os médicos milicianos, recém-licenciados, depois da frequência, com aproveitamento, do COM – Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra, transitavam para a Escola de Serviços de Saúde Militar, na Estrela, junto ao HMP, ali “adquirindo noções muito superficiais de patologia tropical” (sic) (p. 496)... Mas foram justamente estes bravos, médicos, enfermeiros e outros, que “fizeram a cobertura sanitária nos teatros de guerra”.
Para o médico no mato, para além das situações de rotina (vigilância da saúde do pessoal de uma companhia ou batalhão, consultas médicas e de enfermagem, etc.), o que era preocupante eram as “situações de emergência”, tais como “as crises graves de paludismo com febre alta, calafrios e convulsões” ou então “as úlceras duodenais agudas com hematémeses e melenas”, requerendo o transporte aéreo do doente para o “centro cirúrgico mais próximo” (que no caso da Guiné só podia ser o HM 241, em Bissau)…
Nas saídas para o mato, a nível de pelotão, “o apoio sanitário era prestado por enfermeiros ou maqueiros com conhecimentos de primeiros socorros e de reanimação”. Tratando-se de operações a nível de companhia, estava prevista a presença de um médico… Mas isso era o que diziam as NEP, meu caro Carlos Vieira Alves…
Em Bambadinca, no setor L1, nem o médico nem o furriel enfermeiro acompanham os operacionais no mato, fosse um ou mais grupos de combate. Em 1969/71, na Guiné, o pessoal de saúde estava mobilizado, no essencial, para prestar cuidados médicos e de enfermagem à população civil, de acordo com as orientações do Com-Chefe e Governador Geral, o gen Spínola. Boa parte dos recursos da saúde militar foi canalizada para o embrionário serviço regional de saúde da Guiné...
O que se terá passado ao longo dos longos anos da guerra ? As chefias militares sabem que os médicos são escassos e, por isso, um recurso raro e precioso. Viajam de heli ou DO 27, evitando as colunas auto, o risco de minas e armadilhas e de emboscadas. Ficam “acantonados” no aquartelamento, chefiando o “posto médico” da companhia ou batalhão, e são cada vez mais assoberbados pelas tarefas decorrentes da “acção psico-social” (que, diga-se de passagem, está longe de ser uma invenção portuguesa, tendo sido inspirada nas guerras da Argélia e do Vietname, tal com as “aldeias estratégicas” ou “reordenamentos”).
Em Angola, nas zonas “mais calmas”, o serviço de saúde desempenhou “um papel crucial”: “uma pequena equipa constituída pelo médico, o enfermeiro, um maqueiro e o condutor deslocava-se, em dias certos, às várias sanzalas, onde era aguardada por uma multidão”…
Na Guiné, e pela minha experiência, a situação era inversa: em geral, eram as populações que se deslocavam ao “posto médico militar”, em Bambadinca, sede de batalhão e posto administrativo. Mas, com o reordenamento de Nhabijões, ao tempo do BART 2917, o médico também ia, periodicamente, ao destacamento, que ficava a escassos quilómetros da sede do batalhão, mas onde eu e outros voaríamos, num GMC, sob o efeito de uma potente mina A/C já próximo do final da comissão.
O Carlos Vieira Reis começa nos confrontar com o contraste entre a “parte militar” e a “parte civil”: de um lado, a chamada Enfermaria de Sector, um pré-fabricado em forma de L, de um só piso, desconfortável, disfuncional, e do outro um magnífico edifício, construído de raiz, onde estava instalado o Hospital Regional do Luso. “O choque, quando se olhava para as duas construções, era de extrema violência e incompreensão” (p. 499).
Não se entendia como, sendo militares, a maior parte dos doentes existentes, se ofereciam “tão miseráveis condições de acolhimento”… E porque não se tinham concentrado todas as actividades num só edifício ? E porquê chamar “enfermaria de sector” e não hospital, como o Hospital Militar de Luanda ?…
Todos os dias o cirurgião recebia vários doentes, trazidos de avião ou de heli, com diversas patologias de guerra, em geral resultantes de minas A/C e A/P. Sobre as minas A/P, diz: (…) "Tinham um efeito terrível. (…) Quando [as vítimas] chegavam às mãos do cirurgião, a maioria das vezes era impossível salvar o membro: ao hospital já chegava um amputado e à pátria regressaria um deficiente” (p. 500).
Também os prisioneiros feridos eram ali tratados, sem distinção, nem discriminação, sendo “a única prioridade no tratamento (…) a gravidade dos ferimentos”… Mas, no final, o cirurgião sabia que estes seus doentes, os do IN, seguiam depois para “interrogatório policial” (PIDE/DGS) (p. 500).
De igual modo, os médicos militares também tratavam a população civil, de origem europeia. Mas aqui o autor faz um retrato pouco simpático do colono branco:
Não é um retrato edulcorado o do leste de Angola que o autor conheceu como médico militar, e que aqui nos deixa, em tom caricatural:
A actividade médica centrava-se sobretudo na cirurgia. A tal “Enfermaria de Sector”, nestes anos de 1970/71, recebia “75% de todos os feridos e baixas da Região Militar de Angola” (pág. 502).
E, falando de quadro orgânico, queria dizer-se… 4 médicos, 1 sargento enfermeiro, 1 cabo auxiliar de enfermeiro e 2 maqueiros!...
Só havia um anestesista e ao ajudante de cirurgião, que se estava a especializar, eram entregues os “casos menos graves”.
Mas, se a penúria de material era grande, dispunha-se do recurso mais precioso nas organizações de saúde e nas demais organizações: o pessoal. O autor tece rasgados elogios à competência e empenhamento dos seus colegas e colaboradores, sempre disponíveis e sem exigências quando tocava a reunir… Vale a pena citar este longo parágrafo,para se perceber as duras condições em que se trabalhava nestes hospitais militares:
“Quando os feridos não chegavam isoladamente, mas em pequenos ou grandes grupos, por vezes mais de duas dezenas de uma só vez, a colaboração de todos os médicos era indispensável quando o cirurgião estava entregue a um dos trabalhos mais dolorosos e desagradáveis da sua especialidade: a triagem por urgência.
“O apoio consistia na estabilização de todos os doentes, desde o combate ao ‘shock’ e à infecção ao suporte endovenoso, às medidas de urgência e à imobilização provisória ou definitiva de fracturas. Mesmo aqueles que se poderiam esquivar a estas tarefas, se entregavam a elas com devoção total.” (p. 502).
Falando em números… Num período de 14 meses (nos anos 70/71), no Luso foram operados 1700 doentes, entre civis e militares, correspondentes a um número necessariamente superior de intervenções, devido, no caso das vítimas de actos de guerra, à presença de “patologias múltiplas: vários tiros ou estihaços, amputações traumáticas, perdas musculares graves, fracturas, queimaduras, além das famosas balas sem orifício de saída,com os trajectos mais aberrantes” (p. 503).
Em resumo, a guerra colonial foi uma experiência marcante para todos os que a fizeram, uns no “front office”, enquanto combatentes, outros no “back office”, como os médicos, os enfermeiros e outros. E isto, indepentemente do teatro de operações que nos coube em sorte. (Para não ferir suscetibilidades, no mato, todos éramos combatentes, tendo pelo menos um farda camuflada e uma G3 distribuída!...
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Notas do editor:
(****) Vd., entre outros, os postes de: