Caro Beja Santos,
Tentei fazer/escrever um comentário ao teu post P21795[1], de hoje, 22 de Janeiro, mas nesse comentário não consegui incluir cópia duma carta, que acho pertinente ao assunto/pergunta de que queria falar.
Por isso envio-te este comentário por E-mail, com conhecimento ao comandante de todos nós, Luís Graça, na esperança de que ele te faça chegar este comentário, pois me parece que raramente lês os meus E-mails, o que é mais que compreensível, pois assim como sucede com o Luís Graça, eu não sou capaz de imaginar como vocês têm tempo para tantas coisas sobre que escrevem e em que estão envolvidos todos os dias. Mas o facto de eu não ter capacidade para tanto não quer dizer que outros não a tenham e vocês os dois são disso prova. E, como diz o ditado: “contra factos não há argumentos”, embora o ex-presidente “trump" (letra pequena) e muitos dos seus crentes seguidores tenham tentado provar que não é bem assim. Mas com ele fora de circulação, esperemos que volte o bom senso e “ditados" como este voltem a ter a devida aceitação.
Mentiria se dissesse que leio tudo o que escreves; mas porque andaste por terras que a ambos nos ficaram no coração e ainda hoje nos são queridas, sempre que vejo menções destas, especialmente Missirá e Porto Gole não deixo de ler essas tuas memórias. Por vezes, como sucedeu hoje, essas descrições memórias são fortes demais para mim e tenho de me socorrer do lenço de bolso para controlar estas emoções.
Hoje foram algumas fotos deste post que começaram por chamar a minha atenção: as fotos a "subida da palmeira” ; a "panorâmica da velha Tabanca de Bambadinca”; a foto do “local em Mato Cão onde se fazia a vigilância das embarcações” …Que saudades e emoções me fizeram logo sentir! E depois comecei a ler:
“foi um grande choque encontrar Bissau a caminho do descalabro, as ruas esburacadas, os prédios em ruínas, a Guiné a viver da ajuda internacional, a classe dirigente enriquecida e o povo muito pobre.” e… à entrada do hospital “viste chegarem os familiares dos doentes com colchões, havia camas nas enfermarias, mas os colchões estavam literalmente podres. Tu sentias uma infinita tristeza com um espetáculo tão deplorável.”
O ponto alto dessa estadia foi a visita a Missirá,… “tu entraste em transe, a procurar reconhecer os locais que percorrias com tanta assiduidade, ficaste impressionado por ter voltado vida a Cancumba, durante a guerra não havia vivalma, e a alegria do reencontro com amigos, registei o abalo que sentiste quando abraçaste Bacari Soncó, que será mais tarde régulo do Cuor, a conversa havida com a população,… Antes, tu percorreras Missirá sempre a soluçar, à procura de vestígios do passado, a despedida foi um sofrimento ainda mais penoso, até porque foi nesse momento que chegou Cherno Suane, o teu guarda-costas, alguém fora de bicicleta chamá-lo a Gambiel, e quando o viste foi outro choro irreprimível, porque ele logo disse que sabia por Deus que um dia o virias buscar, um irmão ajuda sempre o seu irmão, era para ele impensável que eu não o trouxesse para Portugal, fora castigado porque pertencera aos Comandos,…”
Como não hei-de ficar abalado? Descrições como esta fazem-me sempre imaginar coisas: neste momento esta pessoa que tu descreves sou eu, voltando à Guiné procurando saber o que é feito de tantos que eram meus amigos… especialmente do meu guarda-costas… quem sabe não faz parte das muitas vítimas do abandono a que foram sujeitos depois da independência e da vingança dos “vencedores" que logo se seguiu…
Como posso eu deixar de sentir mágoa e revolta… gostaria de um dia voltar lá; mas ao mesmo tempo sei bem que não sou capaz.
Antes, no mesmo texto leio: “Regressas a Lisboa em 1970, tens vários militares feridos, uns a pôr próteses, outros em tratamento. Outra gente da Guiné ia aparecendo, é o caso do Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo, que apareceu em 1996,”
E aqui eu fiquei confuso: Eu conhecia o filho do régulo de Missirá, de nome António Eduardo Quebá Soncó, ferido um dia em combate, mesmo ao meu lado; o destino da bala podia ter sido eu, mas foi ele que a apanhou, numa operação em que tomei parte. Na minha mente jamais o esqueço e o seu grande sorriso permanente e contagioso. Era ele, assim se dizia, que ia um dia suceder a seu pai como régulo de Missirá.
Como falas do "Abudu Soncó, filho mais novo do régulo” que apareceu em 1966… depreendo que eu estava enganado: então o Quebá Soncó não era o filho mais novo; muito menos sabia que o irmão dele tivesse conseguido ir/ficar em Portugal e o Quebá nunca me ter falado dele. Ou pelo menos eu não me lembro. Talvez esta minha confusão seja resultado da idade que nos faz destas…
Obrigado pelas muitas memórias que me fazer sempre reviver. Não esqueço que foi graças a ti - e a este blogue - que consegui encontrar e ainda ver o meu/nosso querido amigo Zagalo, antes de ele nos deixar.
A Vilma, (de nome “Knapič," não esqueças… e portanto ainda tua distante familiar e compatriota eslovena,) quis saber a quem eu estava a escrever e pede para a não esquecer o abraço, por enquanto apenas virtual, é portanto de nós dois. Vamos a ver se quando formos a Portugal tu arranjas tempo para um abraço mesmo como deve ser!
João e Vilma
2. Resposta de Mário Beja Santos enviada ao João Crisóstomo, no dia 25 de Janeiro, com conhecimento ao Blogue:
Meu estimado João,
Votos de muita saúde, tanto para ti como para a Vilma e restante família.
Aqui me tens pronto a satisfazer a tua curiosidade relativamente à família Soncó. Antes, porém, permite-me que te dê uma explicação quanto a silêncios. Cada um de nós reparte-se por causas, deveres auto-instituídos ou por imperativos de vária ordem. No ano passado, fui forçado a alterar rotinas, vendi a casa de Pedrógão Pequeno, seguiu-se o tormento do recheio.
Quebá Soncó, que tu conheceste e combateu ao teu lado, era o filho mais velho do régulo Malam Soncó, foi ferido na região de Madina, veio para Portugal e esteve na Alemanha onde se adaptou a uma prótese. Deficiente das Forças Armadas, nunca renunciou à nacionalidade portuguesa, voltou para Missirá depois da independência, obviamente que não podia ser régulo, em 1990, quando o visitei em Missirá na companhia de Maria Leal Monteiro e Francisco Médicis, recebeu-me calorosamente e apresentou-me ao seu tio régulo que eu não conhecia, passou todo o período da guerra no Senegal.
Pois foi nesse encontro de janeiro de 1990 que voltei a ver Abudu Soncó, já homem, falando um português impecável, era professor primário, veio para Portugal em 1996, era insuportável estar dez meses sem receber e com vários filhos para sustentar. Atirou-se à construção civil, foi um daqueles muito enganados por patrões que tiravam dinheiro para a Segurança Social e que efetivamente não o depositavam nos cofres do Estado, já sofreu dois enfartes do miocárdio e daqui não pode sair, não há um cardiologista na Guiné, e tem medicação obrigatória.
Nesse mesmo ano de 1990 e no ano seguinte, tive a alegria de reencontrar o valoroso tio de Quebá e Abudu, Bacari Soncó. Como podes ver nas fotografias, o jovem Abudu, fotografia que lhe tirei em Missirá e a fotografia de Bacari, que tenho no meu escritório. Em 2010, quando voltei a Missirá nos preparativos do meu livro "A Viagem do Tangomau" visitei o seu túmulo, era um amigo muito querido.
Creio que estão esclarecidos os Soncó, o régulo atual chama-se Karambá, através do Abudu faço-lhe chegar os livros que escrevo. Confesso-te que tenho saudades sem fim das pessoas e do chão, se o futuro reservar oportunidade de ainda ter saúde para voltar àquela terra onde me tornei homem, acontecerá nova romagem, a despeito daquela dor que provoca a miséria, a mão estendida, o perguntar por A, B ou C, e responderem-me que partiram para as estrelinhas, já assim aconteceu em 2010. Mas um Soncó volta sempre.
Abraço-vos, diz à minha prima eslovena que a Fátima e eu rejubilamos pela vossa felicidade, e a despeito de toda esta ausência, guardo-te no coração com a admiração que bem sabes,
Mário
Notas do editor:
[1] - Vd. poste de 22 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21795: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (36): A funda que arremessa para o fundo da memória
Último poste da série de 23 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21798: (Ex)citações (384): A evacuação do capitão paraquedista Valente dos Santos, no decurso da Op Grande Empresa (Manuel Peredo, ex-fur pqdt, CCP 122, 1972/74 / Moura Calheiros, ex-maj pqdt, 2º cdmt, BCP 12, 1972/74)