sexta-feira, 16 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6163: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (16): Comemorações do dia 10 de Junho de 1966 no Terreiro do Paço

1. Mensagem do nosso camarada Rogério Cardoso* (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), enviada em Março de 2010, a quem peço desculpa pela demora:

Amigo Carlos
Aqui vão fotos do dia 10 de Junho de 1966 no Terreiro do Paço em Lisboa.
Os tabanqueiros podem tentar descobrir eles mesmo ou algum camarada amigo.
De seguida segue as fotos em pormenor.

Um abraço
RC


CERIMÓNIA PROTOCOLAR DE IMPOSIÇÃO DE CONDECORAÇÕES NO DIA 10 DE JUNHO DE 1966



À esquerda da foto o Cor Braamcamp Sobral, CMDT do BART645, e à direita o Fur Mil Rogério Cardoso, ambos assinalados na foto.



Fur Mil Manuel Basílio Soares Domingos da CART 564, assinalado na foto
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6094: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (15): As famosas costeletas do Asdrúbal, e não só

Guiné 63/74 - P6162: Notas de leitura (93): Braço Tatuado, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

1. O nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviou-nos, com data de 6 de Abril de 2010:

Queridos amigos,
A viagem açoriano prossegue, o vento sopra de feição, não se prevêem os desfavores da meteorologia atlântica.
Continuo suspenso da solidariedade de todos aqueles que eventualmente tenham mais livros publicados nos anos 80 e 90 e queiram ter a amabilidade de me os emprestar.
Aqui estou, estátua de pedra, a aguardar os vossos sinais.

Um abraço do
Mário


O Braço Tatuado:

O criminoso (às vezes) volta ao local do crime

Beja Santos

A expedição de Arquelau de Mendonça em terras da Guiné, publicada em “Ciclone de Setembro” (1985) deve ter sabido a pouco quer ao escritor quer aos leitores. Arquelau é um ilhéu típico: foi à guerra para não se demorar, andou lá a correr, acompanhado de um casal de rafeiros, comandou o 1º grupo de combate da C Caç 666. As suas correrias, tanto quanto parece, centraram-se no Leste, procurou alhear-se da guerra, era impossível, viu execuções sumárias, dez mortos numa emboscada, entre Piche e Canquelifá. Sofreu as solidões do aquartelamento de Dunane, sentiu a sombra da loucura, depois o Niza, o tal soldado do braço tatuado, resolveu suicidar-se quando a Lena (cujo nome estava tatuado) o preteriu por outro. Não é difícil perceber como o episódio do Niza lhe ficou gravado, obriga Cristóvão de Aguiar a revisitações: “Tento de onde estou parado parlamentar com ele. Faço-lhe ver que aquela loucura o poderá desgraçar para o resto da vida. Não me dá ouvidos. Desgraçado já ele estava, nenhuma outra desgraça o poderia afectar tanto. Dão uns passos a medo e muito devagar. Mal nota que me vou aproximando, dá dois tiros para o ar. Estaco estarrecido. Muito subtil, levo a mão ao bolso e palpo a arma. Ele olha-me com a fixidez de um dementado e entende o meu gesto sorrateiro. Diz ele: Se o meu alferes sonha em tirar a pistola, abato-o de seguida... E despeja, em rajada, quase todo o carregador da G-3 para o ar, mas não tanto para o ar que não sinta o assobio de uma bala rente ao ouvido direito. Não me dou por achado, mas entro em pânico por dentro. A minha cabeça é um carrossel de fogo. Mordo os beiços numa tentativa de autodomínio, se calhar de autodefesa. Verifico que o Niza não traz cinturão nem as cartucheiras. Respiro de alívio”.

O Braço Tatuado, garanto ao leitor, ainda tem muito para dizer. Em 1990 vai pela primeira vez aparecer desafectado do Ciclone de Setembro. Tem inúmeras parecenças mas foi à forja, aparece clarificado, tonificado, menos ilhéu. O autor esquematiza menos, aviva detalhes, tece maiores considerações sobre o que os oficiais do quadro permanente pensavam dos outros, os seus subordinados:

“ – Veja bem, nosso alferes, quem são os militares que se deixam abalar por problemas do foro psicológico e têm na sua maioria de ser evacuados para a psiquiatria: alguns – poucos – furriéis e uma caterva de oficiais milicianos, sobretudos os provenientes das universidades de onde saíram abarrotados de filosofices políticas e anti-patrióticas...

O mesmo já não sucedia, por exemplo, os graduados oriundos da Academia, nem aos que saíram, por falta de vocação, dos seminários. Ambas as castas se encontravam compenetradas do dever, da obediência, da resignação, habituada que foi a primeira à dureza da tarimba e às correntes da disciplina da vida militar profissional, formada que foi a segunda no amor e temor à religião dos nossos maiores, no respeito pelo cilício da pátria, que a todos uniu na justa luta.

– Mas é no soldado bronco e simples que se encontra, alferes Mendonça, o nosso melhor material humano e logístico; vê na tropa um súbito céu de fartura, pouco lhe interessando a destrinça entre justiça e injustiça; nem sequer lhe preocupa os porquês desta guerra que de fora nos impõem, o que nos facilita a tarefa de explicar; por isso, o nosso alferes nunca viu nem de certo há-de ver um soldadinho dos genuínos sofrendo da caixa dos pirolitos; logo que se lhe dá vinho tinto ou mesmo branco, rancho suculento e correio a tempo e horas, nada, mesmo nada deste mundo o fará esmorecer...”

Cristóvão de Aguiar cultiva as emoções-limite, os comportamentos da crueldade paradoxal (aquela que precisa de ser vista por detrás do espelho): pessoas ternas, só na aparência, capazes da mais imprevista sanha homicida; o fanfarrão acobardado; a solidão que nos torna mais frágeis quanto, como um raio, nos chega uma notícia aterradora (é o caso do Niza). O suicidado recebe os benefícios da burocracia militar: fora criado na companhia um saco azul (mediante um pequeno desconto mensal no pré de todo o pessoal) destinado à aquisição de urnas de chumbo e caixões condignos. “Teve o Niza um vistoso e moderno caixão de madeira de pau-sangue envernizada que servia de invólucro a uma bem vedada urna de chumbo. O nosso Primeiro Gervásio abateu-o ao efectivo da Companhia 666 em Ordem de Serviço e não se esqueceu de mencionar que o soldado número tantos, barra 64, ia abonado de alimentação e de pré até hoje inclusive...”. Há os ataques de abelhas, as flagelações, mas havia sobretudo o silêncio lunar em Dunane. Mas um ilhéu confessa-se, sempre: “A Ilha espera-me do outro lado do tempo, que já não é o meu, e da palavra, que ainda me vai pertencendo, e com a qual vou procurando ressuscitá-la. Como voltar agora à Ilha, que me espera, sempre me esperou, na sua fidelidade de amante antiga que, de tanta esperança desgastada, põe luto fechado e chora uma morte ainda não acontecida mas já há muito pressagiada?”. O autor está exausto, interrompe a narrativa, estão todos de abalada até Bissau, o Uíge já os espera perto do Pidjiquiti. O regresso parece fácil. Nunca será, há sempre gritos, vozes, incêndios, até animais espavoridos nos seus currais de morte. É uma guerra pronta a regressar, insidiosa, fica à espreita, na penumbra do tempo. Cada um voltou à sua ilha, agarrou no arado, remexeu a terra, fez filhos, teve uma profissão, procurou iludir os tais gritos, vozes, incêndios. Os sons, as imagens, as palavras têm esse condão de regressar e deixar a marca do ferro em brasa. É assim com todos nós. Por isso percebo muito bem este cerco lançado por “O Braço Tatuado” e matéria congénere. É uma questão de vermos a edição seguinte.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6155: Notas de leitura (92): Trasfega, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

Guiné 63/74 – P6161: Banco do Afecto contra a Solidão (7): Um grande capitão da Guiné - Eurico de Deus Corvacho - CART 1613, Últimas Notícias


1. Este poste destina-se a informar todos os Homens que serviram sob as ordens do então Capitão Eurico de Deus Corvacho, que dele guardam as melhores recordações, e a todos os restantes Camaradas que se solidarizam em acompanhar a evolução das notícias, que vamos recolhendo, sobre o seu melindroso estado de saúde.

2. Em 9 de Abril surgiu um novo comentário, da autoria de Américo Carvalho, no poste “Guiné 63/74 - DLXXVI: O meu capitão, o capitão Cor....”, com o seguinte teor:

Finalmente, e graças ao seu filho mais velho, visitei o meu Coronel em Oeiras, no IASFA, aonde está tipo armazenado. Este Homem extraordinário que é, para mim, um Herói de Abril. Sinceramente nunca me passou pela cabeça que teria de vê-lo amarrado a uma cama no verdadeiro sentido, amarrado pelos pulsos. Até para beber água, com garrafas junto a ele, tem que pedir para lha darem pois ele não pode autonomamente bebê-la, dado estar preso aos beirais (guardas laterais da cama). Eu não sei se será necessário tal prisão, mas, enfim, foi um dia que fiquei triste, por ver o que vi, e pedia a todos, que com ele conviveram, para lhe darem um pouco de calor Humano com a sua presença. A sua morada é IASFA, cama 108 em Oeiras, junto á antiga Fundição de Oeiras. Sem mais agradecia do coração que fizessem uma visita a este Homem que eu conheci bem e me ficou no coração.

3. O nosso Camarada Luís Graça, em 12 de Abril, reenviou ao filho do Coronel (com o mesmo nome do pai - Eurico Corvacho), o mencionado comentário, para seu conhecimento:

Meu caro Eurico: Pelo que vejo, as notícias sobre o seu pai, nosso camarada, continuam a não ser as melhores. Dou-lhe conhecimento deste comentário. Julgo que o Américo Carvalho seja alguém da companhia comandada pelo seu pai em Guileje. Gostava de confirmar, antes de dar o devido destaque ao comentário. Se o comentário for de pessoa idónea (como eu espero), gostaria de ter mais informação sobre a situação do seu pai, local onde está, horário de visitas, etc. Saudações. Luís Graça

4. No mesmo dia, poucas horas depois, veio uma esclarecedora resposta do filho:

Meu caro Luís Graça e todos os camaradas de armas do meu pai,
É com muita satisfação que vou tomando conhecimento da preocupação e das mensagens de solidariedade que tenho recebido destes homens que tiveram a oportunidade de privar com o meu pai.
Efectivamente ele tem uma doença, Corea de Huntington, do foro neurológico, degenerativa e sem tratamento. Um dos sintomas tem a ver com a descoordenação dos movimentos, o que faz que os doentes em fase avançada tenham que ser, com equipamento especial, amarrados á cama no sentido de não se magoarem involuntariamente. Não é efectivamente bonito de ser ver, mas um mal necessário.
Mais, quero frisar e louvar todo o corpo de médico e de enfermagem do IASFA, que tem sido impecável no seu acompanhamento.
O quadro dele é estável, tendo resistido a vários episódios clínicos complicados.
Penso que tem momentos de lucidez e por vezes reconhece as pessoas, fica contente com as visitas que vai tendo.
O IASFA fica junto á estação de caminhos-de-ferro de Oeiras e o horário das visitas vai das 13 às 19 horas, todos os dias.
IASFA/ Assistência na Doença a Militares
Rua Piedade Franco Rodrigues, 1
2780-383 OEIRAS
Vou mantendo informado de qualquer alteração deste cenário.
Saudações,
Eurico Corvacho

5. Mais uma vez agradecemos ao Sr. Eurico C. Corvacho, as notícias que nos foram prestadas, registando aqui um sempre renovado e sincero desejo das melhoras do seu estado de saúde.

Emblema do IASFA: © (2009). Direitos reservados.
__________
Nota de M.R.:

Vd. poste anterior desta série em:

25 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 – P5007: Banco do Afecto contra a Solidão (6): Um grande capitão da Guiné - Eurico de Deus Corvacho - CART 1613, Últimas Notícias

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6160: O Spínola que eu conheci (12): Missirá, Dezembro de 1970, vésperas de Natal: Quando Sexa, o Caco, ia perdendo o dito... (Jorge Cabral)

1. Já há tempos demos aqui a (boa) notícía de que as famosas estórias cabralianas, nascidas da veia humorística do Jorge Cabral, o mais lídimo representante da corrente literário-filosófico da guerra do absurdo (possivelmente só a par do nosso saudoso Raul Solnado), vão ser publicadas em suporte de papel, isto é, em livro... 

Pelo menos ele já me encomendou o prefácio, e garante que já tem editor, faltando-lhe apenas um bar de alterne, de preferência triste e rasca, como local condigno e mentalmente saudável para lançar a obra com as aventuras e desventuras do Nosso Alfero lá pelo chão fula...

Como humor com humor se paga,  eu fui ao arquivo repescar esta estória que não pode nem deve ser entendida como sinal de menos respeito pelo nosso antigo Com-Chefe, agora subido ao Olimpo dos Deuses e dos Heróis...

Em contrapartida, e porque não há favores (nem almoços) de borla, o Jorge cravou-me para lhe fazer a conferência mensal, lá no seu estaminé, na Universidade Lusófona... Vai ser a 28 de Maio próximo...E o tema adequa-se ao perfil do Nosso Alfero: A guerra colonial e as suas repercussões na sociedade portuguesa: um enfoque sócio-antropológico... LG


2. Quando SEXA o CACO, em Missirá, ia perdendo o dito (1)

por Jorge Cabral

O protótipo do Nosso Alfero, ou melhor, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, filho de militar, com avoengos ilustres, estudante universitário, menino-boémio das Avenidas Novas, amador do Teatro do Absurdo, ... comandante, no TO da Guiné,  do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71; hoje, advogado e professor universitário. "Trata-me bem deste homem, porque já não há disto" - foi a recomendação do Branquinho, há dias, em Coruche, no convívio do pessoal da CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e subunidades adidas...

A mensagem, lacónica como sempre,  que o Jorge me mandou, rezava assim: "Luis Amigo e Companheiro, aí vai o relato da visita do Caco. Infelizmente não foi filmada... Um grande abraço, Jorge"....

O episódio passa-se em Dezembro de 1970... E já foi publicado na série Estórias cabralianas, na I Série do blogue, de mais difícil pesquisa e acesso (*)


Poucos dias faltavam para o Natal, e a tarde estava quente. Todo nu no meu abrigo, fazia a sesta, quando sou despertado por enorme algazarra misturada com os ruídos do helicóptero.
-Alfero, Alfero, é Spínola! - gritam os meus soldados (2).

(Estou tramado, o quartel está uma merda. Que visto? Apresento-me em estado de nudez? Não há tempo a perder. O pássaro já poisou e o General avança. Enfio uns calções antigamente verdes, umas chinelas, e claro uma boina, para poder fazer a devida continência).

Eis-me assim, garboso Comandante, apresentando a tropa, e os milícias, todos eles mal fardados, como era habitual. Sua Excelência, pede um intérprete, pois vai botar discurso. E começa:
- Debaixo desta bandeira… - e aponta o braço na direcção onde pensava que a mesma existia. Fica-lhe o braço no ar, mas continua:
- ... A Pátria… - , e notando a atrapalhação do tradutor, pergunta-lhe:
- Sabes o que é a Pátria?
- Não - responde aquele.

(Lixei-me! Vou ser despromovido, talvez preso. Dentro de mim um turbilhão de maus presságios começa a fervilhar. Mentalmente preparo réplicas. Não é necessária bandeira, pois a Pátria está dentro de nós, e por isso, meu General, é indefinível, responderei).

Mas o Caco nada me pergunta. Vem acompanhado de três majores e um capitão. Querem ver tudo. Primeiro a Escola. Onde funciona?

(Escola? Qual Escola? Pensa rápido, Jorge! Inventa!)

- Sabe, meu Major, estas crianças também frequentam o ensino corânico, que decorre ao ar livre. Por isso considerei que a nossa escola não devia ser enclausurada, pois tal podia traumatizá-las.
- Ainda assim…- começou o Major, impedido de continuar por um olhar do Com-Chefe.
- E o Heliporto? - indagou um outro Major - Parece muito atrasado.
- É que, meu Major, faltam os materiais e também operários especializados.
- Operários especializados? Então e os seus soldados?!
- Todos homens de Fé, meu Major. Tirando a actividade operacional, dedicam-se à reflexão.

Nem respondeu este Major. Logo outro se adiantou, interrogando o Amaral (3), sobre as povoações mais próximas. Em sentido, sério, calmo, respondeu o Amaral:
- Mato a Norte, mato a sul, mato a leste, mato a oeste, meu Major.

(Ah! Grande Amaral, vais fazer-me companhia na porrada!)

Mas o pior estava para vir! Sua Excelência queria testar o plano de defesa:
- Qual o sinal, nosso Alferes?
- Uma granada - improvisei eu.

Tendo-me dirigido à arrecadação não encontrei nenhuma granada ofensiva. Peguei então numa defensiva, e zás, lancei-a. Tudo tremeu! Manteve-se de pé o General, mas o caco caiu.

Entretanto os meus soldados, querendo mostrar heroicidade, encostaram-se ao arame, de peito descoberto, alguns mesmo sem arma.

(Agora sim, está tudo perdido! Que vergonha! E logo eu, neto de um herói de Chaimite).

Recomposto o Caco, olhou-me uma última vez e disse:
-Já vi tudo!.

Ao encaminhar-se para o helicóptero, ainda lhe ouvi comentar para a comitiva:
-Porra, que não é só o Alferes! Estão todos apanhados!

Deve porém ter ficado impressionado, pois três dias depois voltou. Eu não estava. Tinha ido a Fá, buscar uma garrafa de whisky, prenda mensal do Capitão João Bacar Djaló (4). Contou-me o Branquinho (5) que, quando o informaram da minha ausência, Sua Excelência exclamou:
- Ainda bem!

© Jorge Cabral (2006). Direitos reservados






Guiné > Natal de 1970 > RTP: Mensagem natalícia do Com-Chefe, Gen António Spínola. Vídeo da RTP (com a devida vénia...)

Vídeo (1' 39''): Alojado no You Tube > Nhabijoes  (conta do nosso blogue)

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Notas de L.G.

(1) Caco (ou Caco Baldé) era a a alcunha, afectuosa,  por que era mais conhecido o General Spínola entre os seus soldados. Os seus pares chamavam-lhe o Velho, termo mais depreciativo.  O termo Caco queria referir-se ao vidrinho ou monóculo que ele usava, na vista direita... Baldé, por seu turno,  era um dos apelidos mais vulgares entre os fulas, aliados de Spínola...

(2) Este tipo de visita-surpresa, na quadra festiva (Natal e Ano Novo), por parte do Com-Chefe, António de Spínola, era frequente... Ia a todos os recantos da Guiné. O homem, já com 60 anos feitos, aparentava uma energia, física e mental, que pedia meças aos seus colaboradores mais próximos.

(3) Furriel Miliciano do Pel Caç Nat 63 (1969/71).

(4) Capitão graduado comando da 1º Companhia de Comandos Africanos, na altura sediada em Fá Mandinga.

(5) Furriel  Miliciano do Pel Caç Nat 63 (1969/71), irmão do nosso camarada Alberto Branquinho.

(*) 13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá

Guiné 63/74 - P6159: O Spínola que eu conheci (11): Visitas inesperadas... ou o humor do Cá Olho Baldé!

1. Mensagem,  com data de 11 de Fevereiro de 2010, do José Belo ex-Alf Mil,  CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70) (*):

 Assunto: Visitas inesperadas. Ou...humor do "Cá Olho Baldé"! (**)

Caros Amigos e Camaradas, nem tudo daqueles tempos são más recordações!
 
O Comandante-Chefe gostava de aparecer inesperadamente no mato, em visitas de controlo de disciplina, de confecção dos ranchos e bem estar das praças, em acompanhamento da actividade operacional, e em encorajamento, tanto pela palavra como pelo exemplo, após ataques inimigos nas zonas visitadas.
 
Gostava (?) também,dizia-se, de dar "porradas" mais que merecidas a Srs. Oficiais inconpetentes, vigaristas, ou em ambos os casos!
 
Mas, para além disto tudo, gostava também (mais paternalista, talvez!?), de fazer "suar" os pobres dos Comandantes das Companhias, quando, ao surgir-lhes inesperadamente pela frente, exigia detalhes precisos e briefings da situação operacional da zona.
 
Sentava-se então, normalmente, em cadeira estrategicamente colocada na sala de operações da Companhia, frente aos mapas orgânicos e operacionais da zona de acçao da Companhia. E,em silêncio, só interrompido por perguntas bruscas e directas, fazia o Capitão "espremer" literalmente tudo o que sabia.....e não sabia. E era bom que soubesse!...
 
Ora este Sr. Capitão, em calções de comprimento bem abaixo do joelho, e já a atirar p'ró gorducho em que rapidamente viria a transformar-se... pouco sabia! Em tique nervoso,acompanhava o "ponto da situação" com energia, batendo com o ponteiro no grande mapa da parede. Mostrava eixos de infiltracão inimigos, possíveis acampamentos, postos sanitários, patrulhamentos, emboscadas montadas pela Companhia, zonas que o inimigo controlava, etc,etc,etc.(E o ponteiro sempre deslizando pelo mapa...demonstrativamente!).
 
Ao terminar,  encharcado em suor,o único ruído que se ouvia era o do FAISCAR do monóculo do Comandante-Chefe. Este, voltando-se com cara de poucos amigos para o seu Ajudante Almeida Bruno, deixou cair com gélica secura:
- Que estivesse a apontar no mapa durante todo este tempo para além da fronteira e já bem dentro do Senegal.....já seria muito mau.  Mas agora que o ponteiro estivesse a apontar ainda para mais além que o Senegal.......isso é demais!...........
 
FELIZMENTE QUE AQUI O NOSSO CAPITÃO NÃO DISPÕE DE UM MAPA MUNDO!~
 
 Abisko, 11 Fev/2010. José Belo.

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Notas de L.G.:


Guiné 63/74 - P6158: Parabéns a você (107): António Pimentel (ex-Alf Mil OpEsp/RANGER da CCS do BCCAÇ 2851, Mansabá e Galomaro, 1968/70 (Os editores)

»+» F*E*L*I*Z...A*N*I*V*E*R*S*Á*R*I*O «+«

1. Festeja hoje mais um aniversário o nosso Camarada António Pimentel, cliente habitual da Tabanca de Matosinhos, e que foi Alf Mil Op Esp/RANGER na CCS do BCCAÇ 2851, Mansabá e Galomaro, 1968/70.


2. Foram infrutíferas as buscas no blogue, sobre notícias do Pimentel, pelo que é de crer que ele, até ao dia de hoje, nunca se nos apresentou “formalmente”.
Esse motivo não impede que lhe dediquemos, neste dia de aniversário, uma mensagem.




António Pimentel/João Rocha > Dois Alf Mil Op Esp/RANGER do BCCAÇ 2851 > Uma parelha indissociável > Foram parelha em Lamego. Foram parelha na Guiné. Continuam a ser uma parelha na Tabanca de Matosinhos,  todas as 4ª feiras. Inseparáveis!

3. Como vem sendo habitual, sempre que me toca a mim – MR -, publicar estes postes aniversariantes, para melhor tentarmos avaliar o perfil do António Pimentel, recorri mais uma vez à consulta do seu signo de zodíaco – Carneiro -, para nativos entre 21/03 e 20/04, num site que se tem vindo a tornar muito popular nesta matéria e ao qual se tem acesso através do endereço: KAZULO (http://horoscopo.kazulo.pt/4866/signos-do-zodiaco.htm), que diz textualmente o seguinte:

Carneiro
21/03 a 20/04


Com os nativos de Carneiro e os que o têm com ascendente, a primeira impressão é a de uma pessoa egocêntrica e de um signo independente, assertivo e impulsivo.
Os Carneiros não perdem tempo e quando tomam uma decisão, agem sobre ela de forma habitualmente rápida.
São energéticos e excelentes lideres mas nem sempre o melhor «seguidor». São óptimos a iniciar as coisas mas deixam-nas frequentemente para um dos signos fixos acabar. Altamente competitivos, gostam de se colocar à prova constantemente.
Apesar de governados por Marte e bastante temperamentais, a fúria é passageira e são em regra acolhedores e inspiradores.
Apresentam qualidades como a coragem e lealdade mas também a impaciência e têm um forte sentido de individualidade. Atraem e realçam estas qualidades também nos outros e o dia de um nativo de Carneiro começa normalmente com um entusiástico estrondo. Aparentam uma certa ingenuidade, por confiarem e acreditarem que os outros são tão directos e honestos como eles.
Marte na primeira casa astrológica influência a personalidade de forma similar. A frase chave para nativos de Carneiro é «eu sou».
Com ascendente de Carneiro, as atracções viram-se para Balanças, governado na sétima casa, a dos parceiros.
Carneiro é um dos quatro signos Cardeais, por estar ligado à mudança de estação e do solstício, tendo como elemento o Fogo.
Anjo: O Arcanjo Cassiel é o protector dos nativos do Signo Carneiro. Cassiel é chamado Anjo Guerreiro e aqueles que nascem sob a sua influência são pessoas criativas, destemidas e determinadas.
Líderes natos, gostam de ocupar cargos de chefia e de desempenhar funções de elevada responsabilidade. Possuidores de um carisma e encanto naturais, são amados por todos e até mesmo as suas atitudes irreflectidas são perdoadas e encaradas como uma encantadora particularidade da sua personalidade.
O Arcanjo Cassiel desenvolve a coragem e a imaginação. Ajuda a moderar a ambição, o espírito de competição e o egocentrismo.
4. Independentemente das mensagens e comentários que os nossos Camaradas enviarem e colocarem, futuramente, no local reservado aos mesmos, neste poste, queremos em nome do Luís Graça, Carlos Vinhal, Virgínio Briote, Magalhães Ribeiro e demais Camaradas da Grande Tabanca que por vários motivos não puderem enviar as suas mensagens, cantar-te a seguinte cantiguinha muito tradicional:

PARABÉNS A VOCÊ,
NESTA DATA QUERIDA,
MUITAS FELICIDADES,
MUITOS ANOS DE VIDA,
HOJE É DIA DE FESTA,
CANTAM AS NOSSAS ALMAS,
PARA O AMIGO TONINHO,
UMA SALVA DE PALMAS!
E mais acrescentamos:

O nosso maior desejo, neste teu aniversário, é que junto da tua querida família sejas muito feliz e que esta data se repita por muitos, bons e férteis anos, plenos de saúde, felicidade e alegria.
E mais te desejamos, que por muitos mais e boas décadas, este "aquartelamento" de Camaradas & Amigos da Guiné te possa dedicar mensagens idênticas, às que hoje lerás neste teu poste e no cantinho reservado aos comentários.
Estes são os mais sinceros e melhores desejos destes teus Amigos e Camaradas, que como tu, um dia, carregaram uma G3 por matas e bolanhas da Guiné.
Com manga de abraços fraternos... manga deles mesmo!

5. Comentário (tardio) do L.G.:

O Pimentel é um bom e leal amigo e camarada da primeira hora do blogue. É um português que ama a Guiné e o seu povo. É um homem solidário. Participou inclusive no 1º Encontro, realizado na Ameira, Montemor-O-Novo, em 14 de Outubro de 2006. E fez inclusive uma intervenção, a propósito das perspectivas de desenvolvimento do blogue que ia no sentido na abertura da estrada da solidariedade. Sintetizei a sua ideia nestes termos:

"Haveria um crescente número de ex-combatentes que amaram e continuam a a Guiné e o seu povo, dispostos a ajudar, de maneira efectiva, concreta e solidária, o desenvolvimento daquele país, sendo importante para esse efeito canalizar essas ajudas (financeiras ou outras) para uma organização não-governamental (ONG) que seja credível (António Pimentel)".

Tenho convivido com ele, nomeadamente na Tabanca de Matosinhos. Mas também já estivemos na Guiné-Bissau, por ocasião do Simpósio Internacional de Guileje (Bissau, 1-7 de Março de 2008). Aí descobri a sua faceta de grande dançarino...

Um grande Alfa Bravo para este "homem grande" da Figueira da Foz, há muito radicado no Porto.

PS - António, continuo a ser fã do restaurante "Carrossel", na Cova-Gala, na margem sul do Mondego... Gosto de lá ir sempre que posso e passo pela Figueira... Foi uma preciosa sugestão tua, tirada do teu vasto conhecimento do nosso rico roteiro gastronómico...


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Nota de M.R.:

Guiné 63/74 - P6157: O Spínola que eu conheci (10): A reocupação do Cantanhez, Dez 1972 / Jan 1973 (Carlos Matos Gomes, Cor Comando na Reserva)



1. O nosso Camarada Carlos Matos Gomes, Coronel Cav COMANDO na situação reserva, conhecido estudioso e analista da Guerra do Ultramar, investigador e também romancista e argumentista (autor de, entre outras obras, sob o pseudónimo "Carlos Vale Ferraz", do romance "Nó Cego", 1983), enviou-nos a seguinte mensagem, em 12 de Abril de 2010:

Olá Luís, um abraço para ti e para todos os ilustres tabanqueiros.
Como acontece com frequência e sempre com prazer e proveito, passei pelo blogue.
Como julgo ser interessante reflectir a propósito do que todos temos à nossa disposição nesta extraordinária casa de convívio e como modesto retribuição do muito que dela tenho recebido, junto envio um texto sobre o post P6144, relativo ao general Spínola. (*)

Guiné, Cantanhez, 1973

Julgo, com elevado grau de certeza, que esta fotografia é de Janeiro de 1973 e foi tirada em Caboxanque. O oficial em fundo, atrás de Spínola, no seu lado esquerdo, de boina, é o capitão de cavalaria Fernando Carvalho Bicho (já falecido).

Um pouco de história para enquadrar a foto, retirado da obra «Os Anos da Guerra Colonial» que eu e o Aniceto Afonso publicámos em 2009 no Correio da Manhã (Volumes 13 e 14).

Após Marcelo Caetano ter proibido Spínola de continuar os contactos com o presidente Senghor do Senegal, para encontrar uma solução política para a guerra (Maio 72), o general percebeu que nada mais lhe restava a não ser garantir a posse de um núcleo territorial que permitisse ao seu sucessor continuar a guerra.

Em Julho de 1972 ordenou, através da Directiva 10/72, a reocupação do Cubisseco, com a instalação dos Destacamentos de Fuzileiros Africanos 21 e 22, primeiro passo para a reocupação do Cantanhez. A reocupação desta península será determinada pela Directiva 23/72.

O conceito de manobra de Spínola era estabelecer a fronteira sul da Guiné no rio Cacine. (Um parêntesis para falar de Guileje: Spínola teria previsto retirar de Guileje e de Gadamael, mas por sua iniciativa e não por pressão do inimigo, o que seria sempre apresentado, como foi, como uma vitória do PAIGC – daí a sua insistência para a guarnição resistir e a sua frustração pela retirada).

Cacine poderia manter-se, ou não, para controlar a foz do rio.

Em Dezembro de 1972 foi lançada uma operação coordenada pelo COP 4 (recém constituído) e comandada pelo tenente-coronel páraquedista Araújo e Sá. Foram ocupados três destacamentos na margem do rio Cumbijã: Caboxanque, Cafine e Cadique.

Com esta manobra convencional, Spínola pretendia de criar no Cantanhez uma “zona principal de resistência” e aí controlar militarmente o Sul da Guiné.

O COP 4 ficou na dependência directa de Spínola e tinha as seguintes forças iniciais 2 companhias de Paras, 2 destacamentos de Fuzileiros, 4 companhias de Caçadores (CCaç 6, CCaç 4540, CCaç 4541,CCav 8352); 1 pelotão de Artilharia 14cm.

A zona de acção do COP 4 era definida pelo rio Cumbijã até Guileje e pelo rio Cacine, de Dideragabi até à foz (península do Cantanhez). A implantação do dispositivo foi efectuada entre 8 e 16 de Dezembro de 1972.

Em Janeiro de 1973 o general Costa Gomes deslocou-se à Guiné e foi visitar as tropas. (A foto é dessa visita) É curioso ler o relatório que Costa Gomes fez da situação da Guiné no seu regresso a Lisboa e datado de 22 de Janeiro de 1973:

“O crescente aumento da actividade inimiga e do seu potencial de combate e, ainda, o crescente apoio externo que vem recebendo, deixam antever o agravamento da situação militar; o aumento do potencial militar, quando encarado sob o ponto de vista das novas armas de que o inimigo dispõe já, ou que virá a dispor muito em breve, constituem indício seguro duma próxima subida de patamar na conduta da guerra”(…)

“O êxito da manobra de contrasubversão depende, no campo interno, das possibilidades de atribuição dos meios necessários para assegurar a continuidade, no mínimo ao ritmo actual do esforço socio-económico que está a ser desenvolvido” (…)

“Os militares do QP denotam vestígios de cansaço e quebra psicológica mais acentuados após cada comissão, sendo urgente medidas eficazes que se oponham a esta tendência e que garantam o rejuvenescimento”.

Um abraço amigo
Carlos Matos Gomes
Cor COMANDO Reserva

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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6156: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (28): Teixeira Pinto - O Bolo

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 7 de Abril de 2010:

Amigo Carlos Vinhal
Ida a Páscoa que espero tenhas passado bem e rodeado pelos teus, cá te mando mais um capítulo de “Viagem…” num tom um pouco leve e adocicado que, dada a gravidade dos momentos passados à altura, espero não ofenda ninguém, muito menos os camaradas de Armas feridos, intervenientes nas acções a que esta narrativa alude.

São eles: o Armindo, o Taia (Enfº), o Casal, o Agostinho Silva, o Monteiro, o Lobo, o Cunha, o Sampaio (falecido há meses) e o Alcino.

A todos eles o meu obrigado.

Um abraço
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (28)

Teixeira Pinto - O bolo


Passadas mais ou menos as trinta e seis horas em que me obriguei “a recuperar das “visões do Puto”, de novo fomos convidados a comer uma nova fatia do dito bolo tendo ido fazê-lo para a “estância desportiva” do Balanguerêz (P. Teixeira, Pijame), onde inesperadamente apareceu uma catrefa de “não–convidados–surpresa” que escondidos no meio da vegetação e sem contarmos, nos começaram a agredir atirando-nos “coisas”, desestabilizando o “pic-nic” e obrigando-nos a correr com eles à porrada mas a custo, o que fez “cair bastante mal o bolo” a quatro convivas nossos, que tiveram necessidade de ser assistidos e evacuados.

Meia dúzia de dias volvidos, voltamos à mesma “estância” na esperança de que desta vez conseguíssemos, em convívio e sossego, comer nova fatia. Pois sim…! Estávamos a acabar de inspeccionar uns “bungalows” que se nos depararam no meio do arvoredo da “quinta”, quando a convivência foi estragada novamente por um “monte de arruaceiros” que não nos deixando comer a fatia em paz e sossego, nos começaram a insultar e a agredir - a meu ver “sem razão”, já que aquele espaço à altura nos pertencia - tendo esta agressão causado ferimentos mais ou menos graves a mais cinco amigos que tiveram que ser evacuados com urgência.

Ficamos mesmo “quilhados” com o abuso e falta de decoro! Para além de os termos corrido, arremessando-lhes com quase tudo o que tínhamos à mão, apanhamos–lhes uma pouca “ferramenta e instruções de trabalho“ que esqueceram quando deram “corda aos pés”. De seguida fomos deitando fogo a pr´aí uma dezena de “bungalows” que fomos encontrando e que tinham sido eles a construir à revelia de autorização!

Os “sacanas” eram vingativos, não davam a cara e por mais uma vez no intervalo de uma queima nos esperaram escondidos e tentaram adulterar ainda mais o resto da fatia, que já nos tinha estragado corpos e almas! Felizmente isso não voltou a acontecer.

Aquele “bolo” estava a ficar muito azedo. Era a terceira vez seguida que na mesma zona as fatias ficavam estragadas e o grupo de convivas estava a ficar reduzido. Uns dias de “dieta” e algum descanso foram necessários para recuperação. Passados que foram, voltamos para as mesmas zonas para comer outra “fatia” e ver se havia novos ou outros “bungalows” clandestinos! Desta vez não detectamos construções nem apareceram “penetras” para estragar o convívio e a “fatia” não caiu mal a ninguém, felizmente! Só a noite foi longa de insónia e preocupação (creio que foi essa noite), como espero vir a contar um dia na terceira e na primeira pessoa!

Desta feita como de outras, tive oportunidade de apreciar um tanto melhor as matas daquela zona que ao que recordo e comparativamente com as de Bula, me pareceram não terem na sua maioria uma tão densa intensidade arbustiva que nos dificultasse sobremaneira as progressões em corta-mato, como por segurança e norma fazíamos. Havia mais intervalos espraiados, povoados com arvoredo frutícola assente em tapetes verdejantes de mais ou menos altura e que em tempos de paz seriam convidativos a uma boa sorna à sombra de um cajueiro, abastecida pelos seus frutos refrescantes, que eu muito gostava, ao mesmo tempo que se poderia apreciar as mais ou menos elegantes e harmónicas movimentações e cantares animais disfrutando do seu “habitat”.

Todo aquele tom verde, que se devia a estarmos na época das chuvas, era(é) a cor da Esperança que no fundo nos envolvia e que ainda hoje não deve ser perdida por aquele Povo amigo que continua a sofrer.

O final de Julho chegou e com ele a nossa ida inesperada para o AGRBIS para participar na defesa de uma Bissau em alerta. Circulava à altura a “boca“ de que o Amílcar queria “sentar-se” na cadeira do General Spínola!

Foram uma espécie de “férias” inesperadas, que me proporcionaram conhecer um pouco de Bissau e “descansar” alguma coisa os olhos, no feminino em tons de branco!!

Um abraço a todos
Luís Faria
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6153: Parabéns a você (105): Luís Faria, minhoto, portista, ex-Fur Mil Inf, MA, CCAÇ 2791 (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72)

Vd. último poste da série de 2 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6091: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (27): Teixeira Pinto - o dia-a-dia

Guiné 63/74 - P6155: Notas de leitura (92): Trasfega, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

1. O nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviou-nos, com data de 5 de Abril de 2010:

Queridos amigos,
Tomei o vapor para as Ilhas açorianas, parece que não quero sair de lá.
Para dizer a verdade, a saudade de São Miguel nunca me largou, ali cheguei em Outubro de 1967, lá permaneci até Março de 1968, vim formar batalhão na Amadora onde me classificaram como “Ideologicamente Inapto para a guerra de contra-guerrilha, mormente no Ultramar português”. Como se viu.
Estou a juntar as fotografias daquele tempo magnífico, bem pode acontecer que esta caterva de recordações desagúe no nosso blogue.

Um abraço do
Mário


Cataplasmas para pesadelos recorrentes

Beja Santos

Desde que escreveu “Ciclone de Setembro” (1985), Cristóvão de Aguiar (1940)* nunca mais largou o filão da Guiné, onde combateu de 1965 a 1967. Virá a desafectar de “Ciclone de Setembro” o romance “O Braço Tatuado” (1990), segue-se “Relação de Bordo” (1999), “Trasfega” (2003) e “A Tabuada do Tempo” (2006).

Acabam por ser farrapos que se evolam da memória, numa hora incerta entre o dia e a noite, uma mistura de recordações passadas na infância, aos encontrões entra-se na guerra, onde se misturam pessoas, rebentamentos, animais que procuram o afago humano, e o apelo à Ilha, a obsessão açoriana espalhada por dois continentes. Pegue-se em “Trasfega” (Prémio Literário Miguel Torga, Publicações Dom Quixote, 2003). É uma colectânea de contos, muito ao sabor das forças elementares da Ilha. E a culminar a viagem ruminada pela açorianidade, as dores inescapáveis de uma Guiné que não descolam daquele alferes da 666, por acaso o número da Besta, o conto “A Noite e a Sombra”. Alguém acorda estremunhado, chegou a hora da apresentação dos fantasmas, eles caminham nos rodízios da mente, quem está a viver o pesadelo permanente procura afastar as imagens das atrocidades que foram vistas por aquelas terras que têm bolanhas, tornados e até rios sem nascente, um território que mingua ou se expande de acordo com a lei inexorável das águas. Quem acordou até se lembra do Apocalipse, súbito entrepõe-se a recordação do pai, aparece depois o professor das primeiras letras e de novo se escancara a bruteza da guerra, dá pelo nome de Querubim, é chefe de brigada da polícia secreta:

“Vejo-o uma noite, em Bafatá, onde fui por abastecimentos e pelo correio para a minha companhia; está na messe de oficiais com duas crianças negras, os pais haviam sido presos e levados para parte incerta, o destino mais que marcado; na altura, ainda não sei desses pormenores, por isso me enternece a sua atitude para com aquelas duas crianças indígenas, parecem gémeas de pouco mais de seis ou sete anos; dá-lhes de comer e de beber com tanta ternura e carinho, que me vou emocionando com os maternais cuidados do secreta, ao serviço do batalhão e da Pátria... No outro dia, logo ao princípio da tarde, estou eu ainda dormindo a sesta, quando o meu guarda-costas, o Vila Velha, vem acordar-me: tinha chegado uma coluna de Bafatá comandada por um alferes meu amigo, queria falar comigo; levanto-me e vou ter com ele; ele então conta-me: “O Querubim, depois de ter saciado as crianças, cujos pais tinham sido levados para parte incertamente incerta, deu-lhes uma grande bebedeira, como se faz aos perus, e degolou-os a seguir longe da messe e do quartel, fora dos olhares cúmplices da hierarquia militar; no dia seguinte, dá o alarme, dizendo que encontrara duas crianças negras degoladas na orla da bolanha: «São certamente os turras os obreiros de tal tragédia...»; nesta conformidade, elabora um circunstanciado relatório dirigido aos seus superiores hierárquicos, denunciando crime tão horrendo, próprio de gente sem escrúpulos nem sentimentos, devemos exterminá-la sem contemplações; diz-me também o alferes Xavier que o chefe de Brigada de gabara, entre amigos íntimos, «Sempre são menos dois futuros turras para chatear...»”. Depois o pesadelo vai até Coimbra, há histórias que se enovelam, mistura-se a Ilha, os tiros nas picadas, coisas passadas em Buruntuma, quem acordou em pesadelo despede-se da escrita insinuando que regressará a qualquer momento. Como comprovam as notas do diário publicado em 2006, “A Tabuada do Tempo, a lenta narrativa dos dias”, Livraria Almedina:

Janeiro, 11 – Ao regressar da guerra colonial trazia por companhia uma caterva de fantasmas. Um deles até nem era desinteressante. Fazia com que me sentisse enjoado na sala de qualquer cinema. Mas, se fosse assistir, na mesma plateia, a uma peça de teatro, nada me acontecia. Nos filmes, tinha de sair a meio – tonto, agoniado, enjoado. Passei então a levar o meu doce fantasma apenas ao teatro, e risquei o cinema dos meus hábitos. Um dia de intensas intenções, decidi esconjurar-me. Decidi ir a um filme de Chaplin. Vomitei na sala de cinema. A cena passava-se a bordo. O mar revelava-se cavado e de tal forma desabrida se balançava o barco, no ecrã, que o enjoo do Santo Amaro, velho iate de cabotagem entre Ilhas, onde em dia aziago encomendei a alma, foi-me pouco a pouco engulhando o estômago. Não tive mão no mal-estar e lancei a carga ao mar alcatifado da plateia. Não me dei por vencido. Fui outra vez. Senti-me mal, mas, por força de vontade, não arredei pé. Dias depois, nova ida. Saí muito menos agoniado. A partir da terceira vez, deixei de sentir os agudos sintomas de princípio de gravidez. Esta tarde fui ao cinema. Antes de me sentar à banca da escrita, lembrei-me e fui espairecer. Estou já na sala do Avenida. Chato é o filme, desligo-me do ecrã. Presto atenção ao moedouro de dentro. Nas conferências de sete léguas faço o mesmo, mas nunca durmo. A arte de dormir, em conferência, só na têm alguns eminentes eruditos. Sintonizam a ciência do não cabeceamento com a última palavra do orador que os desperta para as palmas e os bravos. O filme continua chato, as imagens rodopiam. E eu, sentado num assento fofo, persigo imagens diferentes em outras telas. O banco é duro e comprido. Estou à ilharga de meu Pai, na sala do teatrinho de Pedreira. Assisto ao primeiro filme da vida, a Quimera do Ouro. Pouco ou nada entendo, mas as cenas esculpem-se-me na memória. O actor de bigodinho, chapéu de coco e de bengala, andar escanchado e as ponteiras dos sapatos enviesadas, parece-se com o mestre ferreiro da Lomba, o mestre Jaime, que ensinou o ofício a meu Pai. Radiante com a descoberta, deixo-me arrastar pela corrente magnética que sai do ecrã ao meu encontro e me vai puxando para o miolo da aventura. Nem o coto de cinza em brasa de cigarro, caído do galinheiro do teatro e que me entra no olho direito, consegue fazer-me afrouxar a atenção. Mau grado o ardume e a gana de esfregá-lo, conservo-me impassível. Almofado o olho com o lenço de meu Pai e o esquerdo faz o serviço de ambos. Saí do cinema há poucas horas, o mestre serralheiro da Lomba subindo a saudosa ladeira da lembrança e o Santo Amaro já atracado há muitos anos ao molhe da doca. Que leveza não sentir o iate de cabotagem encalhado na cova do estômago!

Fevereiro, 4 – Uma enxaqueca de endoidar o juízo, já de si pouco famoso. Três dias seguidos e respectivas noites. Parecia que havia regressado ao pós-guerra colonial, o período mais negro e cruel da minha vida. Até me conduziram ao banco do hospital. Depois de uma injecção na veia, fiquei como se tivesse renascido. Via tudo com cores mais vivas e senti-me subir ao ar como um balão.

Maio, 31 […] Ainda tive de esperar mais de uma hora por um programa televisivo sobre a guerra na Guiné-Bissau. Foi para o ar cerca da meia-noite e tinha por título De Guilege a Gadamael, duas povoações onde existiam dois aquartelamentos portugueses, ao sul – o reino do Nino, hoje presidente da Guiné (o chamado corredor da morte) – bases que foram bem fustigadas pela guerrilha e por fim, quando os ataques eram insuportáveis, abandonadas pelas nossas tropas, para fúria de Spínola. Queria fuzilar os fugitivos... Revivi a minha guerra, a paisagem continua idêntica. Gostei do programa, da confraternização dos antigos guerrilheiros com os ex-combatentes, um deles alferes miliciano na altura, actualmente professor de Liceu e com mais vinte e tal anos em cima do pêlo. Falaram todos sem preconceitos, no local outrora inferno, e ainda com resquícios da velha guerra colonial, abrindo o jogo e falando abertamente sobre o que, na altura, Maio de 1973, presidia às suas intenções. NinoVieira estava presente, fardado de camuflado, comandante supremo, na ocasião, daquela zona sulista. O Viriato Madeira esteve por lá cerca de um ano, na Ilha do Como. O Inferno ao vivo!

Como se vê, a memória de Cristóvão de Aguiar promete. Dizia-se, logo a seguir ao termo da guerra, que ninguém mais queria falar dela. Quem tal prognosticou bem se enganou: deve-se ter escrito mais sobre a guerra colonial nestes últimos dez anos que nos últimos trinta e cinco do século XX. As línguas soltam-se, talvez seja a desinibição da idade, de quem quer deixar as contas em dia, o seu legado histórico ao alcance dos outros. E enquanto esperamos novas páginas de Cristóvão de Aguiar, vamos falar de “O Braço Tatuado”.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6124: Notas de leitura (90): Relação de Bordo, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 9 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6137: Notas de leitura (91): Depois da guerra, as recordações da região de Cacine... e algo mais , de Luís Rosa - II (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6154: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (8): Os dias da batalha de Guidaje, 24, 25 e 26 de Maio de 1973

1. Parte VIII dos dias da batalha de Guidaje, de autoria do nosso camarada Daniel Matos (ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74), enviado ao nosso Blogue em 6 de Março de 2010:


Os Marados de Gadamael

e os dias da Batalha de Guidaje


Parte VIII

Daniel de Matos

Os Dias da Batalha


24 de Maio

A claridade solar já tinha penetrado pela porta há mais de uma hora e iluminado os degraus de acesso à superfície. À medida que vai acordando, mas sem abandonar a sonolência, o pessoal espreguiça-se. Alguém solta um sonoro traque. Não se ouvem réplicas nem reacções. Lá fora há quem converse constantemente e o furriel Machado, identificando as vozes dos tagarelas, levanta-se e vai acender um cigarro para o pé deles, encostando-se aos bidões de protecção do obus. A noite, – já não era sem tempo! – correu sem sobressaltos, não fomos bombardeados e conseguimos dormir algumas horas seguidas. O furriel Silva e o alferes Igreja tinham ido à messe ver se havia farnel, missão sem êxito, o pequeno-almoço estava atrasado, voltassem a meio da manhã. Continuávamos sem horários certos para as refeições. A cantina dos soldados abria quando calhava e o alerta para o tacho era dado quando alguém aparecia de marmita e colher nas mãos, a anunciar, “pessoal, hoje a salsicha é com bianda”! E água? – perguntei. Para beber sim, bebemos um copo cada um, mas das torneiras não pinga uma gota, – respondeu o Igreja, – as sanitas estão um nojo, nos balneários nem se pode entrar...

O nosso cabo artilheiro vasculha dentro da mala que tem deitada debaixo da cama, saca de um “transístor” do meio da roupa e das cartas, confirma se já está tudo acordado e põe o rádio a tocar. Escutam-se sons de kora (espécie de harpa mandinga, mas cujo formato é mais parecido com uma viola), depois ngumbé, ritmo nacional guineense, mas não deve ser tocado pelo grupo Cobiana Djazz, impedido de actuar na UDIB de Bissau e cujo vocalista, – José Carlos Schwartz, o Zeca Afonso da Guiné – estará ainda na prisão de “Djiu di Galinha” – a Ilha das Galinhas, onde se situa a espécie de Tarrafal guineense, o Campo de Trabalho no arquipélago dos Bijagós.

Em meados de 1969 vieram transferidos do Campo de Concentração do Tarrafal (Santiago, Cabo Verde) 58 presos políticos guineenses, colocados nas catacumbas construídas na Ilha das Galinhas. O número de detidos tem vindo a crescer nos últimos anos. Apesar de alguns terem morrido, vítimas de espancamentos, o número de novos presos é consideravelmente superior.

Não sei que raio de língua ou dialecto fala o locutor que entre os temas musicais pronuncia uma algaraviada de coisas esquisitas para os nossos ouvidos. O que escuto na telefonia do artilheiro virá da Emissora Nacional ou de postos de rádio dos países mais próximos (ouvimos com maior ou menor dificuldades emissões de onda média do Senegal, Gâmbia, Mali, Guiné/Conacry, Serra Leoa)?

Quanto a música africana, as emissões nacionais transmitem sons guineenses, de preferência instrumentais. Vocalmente, um ou outro tema do grupo Voz da Guiné. De Cabo Verde, sobretudo Bana e Luís de Morais, e também os angolanos Duo Ouro Negro e Lili Tchiumba. A "Rádio Libertação − A Voz do PAIGC, Força, Luz e Guia do Nosso Povo", tem os seus noticiários e passa músicas muito variadas (cheguei a ouvir música portuguesa que é proibida em Portugal). E há o PFA, umas quantas horas por dia, com espaços que procuram distrair a tropa, mas muito distintos entre si. Por vezes chega a ser imbecilizante um “programa” produzido pelo “casal Primeiro Dias e Senhora Tenente”. Havia de tudo, desde espaços de entretenimento inteligente, com o Armando Carvalheda (nosso artilheiro em Gadamael que, felizmente para ele, viria a “mudar de ramo” e a trocar o obus pelo microfone) – ainda hoje um profissionalão de rádio e uma das vozes mais influentes da RDP/Antena 1, onde é o principal divulgador da música popular portuguesa no seu “palco da rádio”, ao vivo, todas as semanas. Também João Paulo Diniz (que regressado à metrópole passou, penso que a pedido de Otelo, que o conheceria de Bissau, o tema “E Depois do Adeus”, primeiro sinal radiofónico antes da senha “Grândola Vila Morena”. E outros nomes que, de tanto os ouvirmos, ficaram na nossa memória: Faride Magide, julgo que técnico de som que terá estado anos depois em Coimbra, na RDP; e também censores políticos que eram militares, e que faziam os cortes mais absurdos em programas enviados pelas unidades que estavam no mato. Ainda se os cortes fossem originados pela má qualidade do som (eram gravações geralmente efectuadas em cassettes domésticas) compreender-se-ia! Mas não, era censura política pura e dura, às locuções e à música que se incluía nesses programas. Isso sucedeu connosco, gravámos um belo dum programa no meu quarto em Bafatá (meu, e dos furriéis José Alberto Ferreira Durão, mecânico-auto, e Hélder Pereira Calvão, – o nosso “ranger”, isto é, de operações especiais). Quando ouvimos a transmissão do nosso programa “Frequência 3-5-1-8” (participaram também o furriel miliciano de transmissões Domingos Gomes Pinto, o furriel miliciano de minas e armadilhas Ângelo Silva e o furriel miliciano atirador António Guerreiro), no lugar do fado de Coimbra cantado por José Bernardino apareceu uma doce canção d’Os Beatles, o poema “O Rico e o Pobre” (altamente “subversivo”, declamado entusiasticamente pelo homem de transmissões José Elias Gomes de Oliveira), também foi à vida!, saiu tudo alterado, segundo apurámos, por um zeloso guardador do regime, um tal Madeira. E pensar que à testa do PFA estava o capitão miliciano José Manuel Barroso, ligado ao Comércio do Funchal, jornal que, apesar de dar vivas ao marxismo-leninismo-maoismo (para achincalhar a CDE em período dito pré-eleitoral) aparecia nas bancas como sendo de oposição ao regime (o capitão Manuel de Sousa recebia-o algumas vezes e eu permutava com ele o “meu” Notícias da Amadora, O Mundo da Canção e, às vezes, outros recortes de notícias que os meus amigos Acácio Vicente e Fernando Simões me mandavam)…

Embora nesta altura não se registe a presença incómoda de muitos mosquitos, nem as noites se carreguem de frígido cacimbo, pernoitar ao relento não é pêra doce nenhuma. Todavia, o sono só nos verga pelo cansaço. Fumar no escuro é arriscadíssimo (só com mil cuidados para evitar que o morrão do cigarro se veja de longe) e nem uma gota de álcool temos para nos aquecer o corpo e a alma. Resultado: tagarela-se, de preferência baixíssimo, para que ninguém nos oiça para lá do cotovelo seguinte da vala. Uns falam do sonho de um dia chegarem à peluda, dos projectos de vida constantemente adiados; outros de novas recebidas das suas terras (e há quanto tempo se estava sem receber uma carta?); outros ainda contam anedotas avisando previamente os interlocutores que devem rir-se pianinho, para não despertar atenções… Como se sabia que o nosso poiso de origem tinha sido Gadamael, um pára-quedista quis saber se já tínhamos notícias de Guileje. Não tínhamos, claro. Novidades só trazidas de fora! Sem se aperceber que a história ainda desmoralizaria mais qualquer Marado, informou que quartel e aldeia de Guileje tinham sido abandonados e que toda a gente (cerca de duzentos militares e mais de meio milhar de civis) estava agora refugiada em Gadamael, que terá ficado a rebentar pelas costuras!

O pessoal ouve com incredulidade. Será também esta a nossa sorte? Pensando bem, e conhecedores que somos do local, nem nos é difícil imaginar que se Guileje estivesse cercada como nós aqui estamos, pertinho da fronteira, sem a aviação em pleno e com um único acesso ao exterior, o abandono seria lógico e inevitável! Esta opinião é prontamente contraditada por alguém que diz que não senhor, que com ele lá andava tudo no mato a afogar turras ao bochecho. Pois, mas isso é se tiveres água para encher a boca! Em menos de quatro dias, esclareceu o narrador pára-quedista, levaram com três dezenas de bombardeamentos dentro do quartel!

– Chiça, – atalhou um dos soldados madeirenses, – então parece Guidaje! E vejam lá que ainda há pouco mais de um mês haviam feito obras e inaugurado o novo bar do sargentos, que até gira-discos tinha, e agora ficou lá tudo?


25 de Maio

O dia decorre com a tensão do costume. Perguntamo-nos se não estaremos com fome e concluímos que antes o aperto no estômago que o risco de ir à messe e ser surpreendido por um balázio à ida ou à volta. Já perdemos o apetite, esquecemo-nos de comer, as horas e dias passam e nem damos pela necessidade de comer... Quanto alguém está de maré e se deita ao caminho, ao longo da vala que passa mais próxima do refeitório ou da messe, cravamos a esse parceiro um prato, tigela, marmita, o que houver com comida e nos puder transportar trazer com nas mãos, à cabeça, como puder. Cada qual passa a trazer para o abrigo o número de refeições que o vasilhame permitir e dividimos os morfos. Sede? Também já não sentimos, que se lixe a água. Somos novos e o corpo aguenta. Aprendemos a compartilhar, a dividir a bianda, que da última vez apareceu no lugar do esparguete e, em vez da salsicha, os cozinheiros foram desencantar sardinha em lata.

Há quem dialogue sobre as informações prestadas pelo pára-quedista quanto à saída de Guileje, questionando se não será também uma boa “saída” para nós, em… Guidaje. Sim, há que pôr sobre a mesa todas as possibilidades e equacioná-las. Uma tal hipótese teria de ser bem medida, teríamos que avaliar todas as consequências. Até se admite que uma coluna em debandada mais facilmente sairá de Guidaje por terrenos senegaleses do que em direcção a Binta. Sem se pôr de parte a ideia (um miliciano da CCaç 19 alvitra que nesse caso deveríamos entalar o comandante, “encostá-lo à parede” para que também adira), vinga a opinião mais sóbria de que uma solução militar haverá de encontrar-se para nos safarmos. Apesar do estado psicológico (moral em baixo) e dos desaires anteriores, contando os homens que aqui estão sitiados, nenhum de nós quer acreditar que numa operação em força não consigamos mesmo furar as barreiras do PAIGC.

A improbabilidade de se fazerem evacuações de feridos e mortos, o tempo quente e a quantidade de corpos em decomposição (o cheiro que exala da enfermaria é horrível), leva os enfermeiros, que já não conseguem acudir às gangrenas, a derreter velas e a tapar os orifícios dos mortos (nariz, boca, orelhas) com velas de estearina. Os corpos são trancados numa sala afastada da enfermaria propriamente dita, mas o cheiro pestilento escapule-se pelas frestas da porta, pelo buraco aberto pela morteirada no canto da parede… Sem perspectivas de tão depressa haver coluna que possibilite a saída do pessoal e sem restar um único caixão livre nem havendo a mínima possibilidade de o construir de improviso, Correia de Campos fala com os comandantes das unidades respectivas e é decidido enterrar os mortos mais “antigos”, no sítio onde já repousam dois cadáveres, que é no perímetro externo das fiadas de arame farpado, “a 25 metros da caserna do lado sul e na direcção do azimute 112”.

Há pára-quedistas a meter bala na câmara, dá a sensação que se preparam para sair, embora a hora não pareça a mais propícia (se é que ainda existem horas melhores e piores para o efeito). Se eles abalarem, nós vamos atrás, admitimos. Afinal, trata-se dos preparativos para enterrarem os seus três camaradas (abatidos na emboscada de dia 23). São abertas covas no local onde já repousam os soldados Manuel Geraldes (da 2.ª companhia do BCaç 4512/72, que teve morte brutal, a 10 de Maio, também dia de crise e de isolamento locais), e Becute Tungué, do 4.º grupo da 3.ª companhia de comandos (ferido na operação Ametista Real).

São numerosos os pára-quedistas da CCP 121 que vão dirigir um último adeus aos camaradas António Vitoriano, José Lourenço e Manuel Peixoto, ao lado dos quais ficará também o corpo do soldado António Talibó Baio, da CCaç 19. O comandante comparece para dirigir as cerimónias. Atrás dele estão outros graduados, nomeadamente o alferes Luciano Diniz, que por ser madeirense aproveita estes dias para matar saudades da terra e sempre que pode vem tagarelar com os nossos soldados. Os semblantes estão carregados, nem poderiam estar de outra forma. Depois das continências e das palavras de Correia de Campos, os pára-quedistas apontam as armas ao alto e dão três 3 tiros sincopados para o ar. São tiros da cerimónia militar, mas o IN que tem vigilantes sobre as árvores mais próximas da fronteira e controla os nossos movimentos, pensa que o estão a atacar e reage ao fogo, naturalmente que levando o pessoal a abrigar-se. No meio da precipitação o alferes da companhia africana atirou-se mesmo para dentro de uma das campas. O fogacho não dura muito, clarifica-se o equívoco e os corpos são tapados com terra. Só no fim o pessoal se retira, angustiado, alguns temendo ver o seu futuro a passar por aquele espaço nas costas da caserna do lado sul…

Os pára-quedistas e todo o pessoal que assistiu à cerimónia fúnebre regressam aos seus lugares e a circulação volta a ser quase nula. Está um ror de gente dentro do perímetro do quartel e quase não se vê vivalma, tudo enfiado nos buracos. Nem os poucos que restam a morar do lado civil metem o bedelho de fora. Nas moranças residem essencialmente as famílias de militares africanos da CCaç 19. Em geral, são desarranchados, isto é, atravessam a passagem que divide o arame, tipo porta de armas, e vão comer e dormir “a casa”. E habita ali também um par de djilas, comerciantes da raia guineense que fazem o seu contrabando de produtos, fronteira cá fronteira lá, quando os dias estão bons para o comércio, o que não acontece agora. Costumam falar francês muito bem e ser utilizados como informadores, soa que muitos são agentes duplos que levam e trazem o que os dois lados da contenda querem ouvir. Não faço ideia se tal se passa com os que aqui moram.

Estamos sentados nas camas (dificilmente conseguimos deitar-nos os oito ao mesmo tempo em camas tão apertadas), uns encostados à parede, outros debruçados sobre os joelhos. Fumamos quase todos Português Suave, sem filtro, o “barista” disse que já não há de outra marca. Mas o tabaco ainda não faltou e, se nenhuma bernarda der cabo do stock, ainda há bastantes pacotes entre as paredes que restam do armazém. Por isso, fuma-se. Que mais se pode fazer? A lâmpada de 25 velas que parece querer desprender-se do casquilho do tecto alumia o abrigo que, a esta hora, parece ter paredes de ardósia. Irradia uma luz que dança consoante o gemer do gerador. Quando a corrente baixa quase se oculta por cima na nuvem de fumo em que estamos. De dia ainda vamos fumar lá para fora, só que de noite poucos se arriscam a transformar-se num alvo luminoso e apetecível. Não me lembro de quantos fumamos ao mesmo tempo nesta cova sem janelas, mas devemos ser muitos. Para já, arrumados como podemos, estamos cá dentro eu, os alferes Igreja e Cruz, os furriéis Monteiro, Machado, Silva e Fernandes e o nosso cabo artilheiro.

Já se dormita quando damos por novo ataque de artilharia. São mais levas de granadas, (serão seis de cada vez?), a estoirarem bem no interior da guarnição. Dá a ideia que os tipos nem se deslocam com o armamento, sabem que não conseguimos desalojá-los e têm os canhões, morteiros e o carago todos os dias no mesmo sítio, prévia e certeiramente apontados a nós, é só passarem por ali de vez em quando, meter munições e catrapumba! O alferes Diniz e soldado Talibó, ambos da CCaç 19, que estão de passagem, descem os degraus do abrigo e vêm refugiar-se ao pé de nós. Um outro militar africano entra atrás deles, mas a identidade escapa-me. As granadas rebentam cada vez mais perto de nós. Ouço palavrões lá de fora que as mães dos atacantes não gostariam de ouvir. Por instantes, parece que tudo se vai acalmar, mas ainda estamos a respirar fundo e outros silvos anunciam a queda de mais bombarda.

Na sequência duma granada que estrondeou tudo em redor do abrigo, faltou-nos a luz. De dentro do buraco não percebemos se o corte é geral ou se apenas a lâmpada do abrigo, de tão fraquinha que se mostra, foi desta vez que se finou. Os minutos passam e a intensidade do fogo sobe de tom. São maiores e mais assimétricos os rebentamentos. Como no último ataque houve feridos nas valas (um projéctil cair dentro de uma vala de meio metro de largura é uma probabilidade reduzida) há mais pessoal a rastejar por elas em direcção ao obus e a vir abrigar-se junto de nós. Às escuras não os identifico, mas rapidamente percebo pelas vozes que entram o cabo Telo e os soldados Ferreira e Gonçalves, todos da minha companhia. Trazem consigo o cabo Santos, do COMBIS, que veio connosco na operação. Alguns arranjam lugar nas camas de cima e por aí se acomodam. Outros, sem espaço, ficam de pé no pouca área que sobeja entre os degraus e as camas. Nota-se um certo abrandamento no fogo, mas sentimos que os rebentamentos estão muito concentrados à volta do abrigo e cada vez parecem mais próximos.

Há opiniões, que só mais recentemente conheci, de que os postos de artilharia eram os alvos a atingir neste ataque específico do PAIGC, que faria o tiro com observadores avançados, como numa carreira de tiro. Essa tese é sustentada pelo capitão Salgueiro Maia no livro Capitão de Abril – Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril, Editorial Notícias, Novembro de 1997. pág. 64)

É aflitivo estarmos enfiados num buraco sem luz, sem nos vermos uns aos outros e sem controlarmos o que se passa lá fora. Já nas noites anteriores havíamos admitido que um dia destes “eles” viriam atacar-nos ao arame, com armas ligeiras e, de passagem pelo abrigo, bastava atirarem uma granada-de-mão cá para dentro para nos limpar a todos…

Num instante, fez-se um clarão capaz de cegar qualquer um, não sei bem dizer bem o que se passou. Quer dizer, sei, mas há um hiato de tempo em que não me lembro de nada. Uma granada imensa perfura o tecto que tínhamos como muito seguro e provoca o caos. Confesso que não me lembro patavina do estrondo, apenas do clarão. Passado não sei quanto tempo abro os olhos e os meus braços tremem sem que consiga controlar os movimentos. Eu devo ter desmaiado por alguns instantes, nem faço ideia se breves, se longos! Estou sentado ao fundo, na cama de baixo, do lado esquerdo. Oiço gemidos vários. O Igreja grita roucamente “as minhas pernas, ai as minhas ricas perninhas”, apercebendo-se que as tinha num crivo de estilhaços. O Cruz (ferido num pé, viu-se depois que sem gravidade) sobe os degraus para o exterior, parece-me que auxiliando o Monteiro, que dobra uma perna com dificuldade. Também o cabo artilheiro sai, puxado por alguém que lhe estica os braços lá de fora. Vai muito queixoso e parece bastante debilitado. Lá fora o obus dá um disparo, depois outro.

Só bastante mais tarde vim a saber que o soldado Vieira, sem nunca obter formação para tal, recebeu ali mesmo umas dicas do cabo artilheiro e, provavelmente sem a melhor das direcções, agarrou-se ao obus 10,5 e desatou a responder ao fogo inimigo. Foi mandado parar, para evitar o desperdício de munições e porque, entretanto, haviam chegado maqueiros que levaram para a enfermaria os feridos mais graves, nomeadamente o soldado Gonçalves e o furriel Fernandes, cujos ferimentos eram de tal monta que “ninguém já dava nada por eles”…

A meu lado, o Silva desata a rezar a Avé Maria em voz alta e eu, porventura mais assustado do que ele, dou-lhe um valente safanão e imploro-lhe: “cala-te caralho”! Nem sei mesmo (nem ele o saberá) se o sítio das costas em que o empurrei foi o mesmo por onde um estilhaço o tinha perfurado, mas nada de importância. Eu queria ouvir bem o que se passava em redor, sobretudo lá fora. Percebo muito próxima uma respiração irregular, gorgolejante. Guio-me pelo ouvido e concluo que o ruído dos borbotões tem origem no corpo do Machado, que sei estar sentado da mesma coma que eu, na outra ponta. Apalpo-lhe o corpo e trago na mão uma substância quente e pegajosa. Foi atingido no peito e o sangue das feridas entope-lhe a respiração. O som atrofiado apaga-se suavemente e com ele percebo que também o Machado se apaga, atravessado na cama, encostado à parede e pernas de fora, estendidas. Depois, bem, depois acho que me fui outra vez a baixo das canetas, já que não me lembro de ver o Silva sair nem os outros feridos, como o alferes Luciano Diniz, também com as pernas bastante danificadas por estilhaços. Se estivesse acordado certamente teria saído com eles; se estivesse acordado também eles dariam por mim e não me deixariam ali “sozinho”!?

Quando recobro noto um silêncio estranho. Gritos e lamentos que ouvira antes desapareceram em absoluto. E é esse vácuo que me desperta os sentidos, sobretudo o auditivo e o olfactivo. A fumarada, que agora não é provocada pelos cigarros, some-se muito, muito lentamente. Percebo isso ao ver no tecto, no lugar da desaparecida lâmpada de 25 velas, aparecer um círculo baço de céu a querer impor-se à escuridão. É estranho que só neste momento interiorize que fomos atingidos pelo IN (granada de Morteiro 120 mm).

Passo as mãos pela cabeça, pelo rosto, ao longo do camuflado e em todos os lugares dou por mim encharcado. Cheiro as mãos, o odor pastoso do sangue invade-me as narinas e provoca-me um vómito. Penso para comigo que estou ferido. Bem, nada me dói em particular. Também o desenho dos degraus, aos pés da cama, para lá das pernas do Machado parece furar a escuridão. Interrogo-me sobre o que faço aqui e resolvo sair. Ergo-me, tento apoiar-me nos ferros das camas de cima e, de cada vez que pouso as mãos sinto que o faço sobre corpos que nem consigo imaginar a quem pertencem. Antes, nunca imaginei que pudesse haver mais vítimas mortais para além do Machado. Tento dar um passo em frente no estreito “corredor” entre camas e piso um corpo. Alargo o passo e tropeço nas pernas que podem ser do meu amigo ou de outro camarada qualquer. Quem serão estes companheiros? E se algum deles ainda vive? Que maleita poderei causar-lhe, calcando-o e passando-lhe por cima? Desespero e sento-me no mesmo sítio. É curioso que, fumador inveterado desde muito novo, não me lembro de alguma vez não trazer lume comigo. Sempre usei isqueiro mas, dada a dificuldade de arranjar pedras e gasolina no mato compro sempre carteiras de fósforos (de cera, que os de madeira apagam-se mais com o vento). Logo agora, não tenho uma coisa nem outra e não consigo iluminar a saída e zarpar daqui para fora, para o pé dos outros, onde estarão?

Guio-me mais uma vez pelo ouvido. Qualquer coisa frita baixinho a cama à minha frente. Ajoelho-me, estico o braço e apanho o “rádio-banana” (AVP-1) utilizado pelo cabo artilheiro e que a explosão deve ter projectado para ali. Como estava farto de ouvir o nome de código do comandante arrisquei:

– Águia Águia, diga se me ouve, escuto!…

Aí à terceira tentativa irrompe a voz do tenente-coronel a responder. Queixo-me que estou no abrigo do obus, com vários mortos em redor (da existência destes, logicamente, ele já sabe), que está escuro como breu e que preciso de ajuda para sair. Correia de Campos assegura-me que enviará alguém ao abrigo logo que seja possível, pois a barafunda é grande na enfermaria. Aguardo prolongadíssimos minutos e por fim oiço o milagre de duas vozes que se aproximam e passos a descer os degraus do abrigo. Um clarão de lanterna percorre rapidamente o interior:

– Ena como isto está! – exclama um dos homens. Ele vê (e eu também, pela primeira vez), as silhuetas dos camaradas que jazem sobre as camas e no chão.

– Alumia aqui para o fundo! – peço-lhe.

– Olha pá, está aqui um gajo vivo! – exclama o soldado da lanterna.

Ilumina-me, então, a passagem. Alargo o passo para ultrapassar um corpo tombado a meus pés e, logo depois, passar por cima das pernas esticadas do Machado. O espaço entre as camas é exíguo (a minha memória visual aponta para os 40 centímetros) e à passagem raspo o meu ombro num braço que pende da cama superior. O braço, que só deve estar preso ao corpo por umas farripas dum sovaco de dólmen, cai ao chão. O som cavo que provoca só desaparecerá dos meus ouvidos no dia em que a morte também me bata à porta.

O soldado não me deixa ver bem os terrenos que piso, talvez para não me impressionar. Os repentes da lanterna deixam-me identificar os rostos dos meus camaradas Telo e Ferreira e do soldado da CCaç 19 que durante o ataque se refugiou no abrigo com o alferes madeirense. Cá fora, abatido com o que vi, sento-me no chão, no lado interior da cerca de bidões cheios de terra que protegem o obus. Puxo dum cigarro e peço lume ao soldado (europeu, não sei de que unidade) enviado pelo comandante. Acendo o cigarro com o quico a fazer de abat-jour e não sei se alguma vez na vida estive tão triste e angustiado como neste momento. Os dois soldados voltam ao interior do abrigo e um deles sai a correr, para regressar três minutos depois com uma maca e mais um ajudante. Algo os fez desconfiar que o corpo do africano deitado no chão ainda respira, pelo que decidem transportá-lo para a enfermaria, quem sabe? Em vez disso, chamar um enfermeiro não seria a melhor opção, estavam todos sem mãos a medir.

Volto a apalpar nuca, pescoço, peito, tudo o que as mãos alcançam até me certificar se não estou realmente com ferimentos. É “apenas” o sangue dos meus camaradas que me ensopa da cabeça aos pés e isso já é ferida bastante. Deito um derradeiro olhar para dentro do abrigo e retenho a imagem do gravador de Akay virado do avesso, no chão. Sigo atrás da maca até à enfermaria para me inteirar do estado dos evacuados, pois nem sabia ao certo quem sofrera o quê. A azáfama é tanta que me barram o caminho, os enfermeiros não deixam entrar ninguém. Encontro finalmente o Ângelo Silva, abraçamo-nos em lágrimas (confirma-me que levou apenas com um pequeno estilhaço nas costas) e fico a saber por ele do estado dos restantes militares da companhia. O Gonçalves, que dificilmente resistirá a tão profundos ferimentos, é um caso à parte. Dos restantes, a mais complicada é a ocorrência do Igreja, bastante atingido mas felizmente só nas pernas e, informara o sargento enfermeiro, dos joelhos para baixo. O Monteiro tem também um joelho bastante ferido e o Cruz um estilhaço no pé, coisa de pouca monta, o mesmo sucedendo com o nosso cabo de artilharia. O alferes madeirense da companhia africana (Diniz) tem nas pernas ferimentos parecidos com os do Igreja, embora pareça que houve estilhaços que lhe atingiram os ossos. O estado do furriel Fernandes é bastante crítico. Verificamos que o meu corpo (que não a minha mente) terá sido o único a safar-se aos estilhaços…

Por heresia do destino, este é o proclamado Dia de África (também Dia da Libertação de África), por ser a data da fundação da OUA, – Organização da Unidade Africana, fundada a 25 de Maio de 1963, – “para o Mundo celebrar com os africanos, medindo o progresso que este continente faz na comunidade internacional”… Penso que, pela nossa parte, estamos a pagar uma factura pesadíssima para assinalar este 10.º aniversário! Por estes dias, durante a crise de Guidaje (e ainda antes do que viria a passar-se a sul, em Guileje), o comandante-chefe informou o titular da pasta da Defesa, – ministro Silva Cunha, – que “nos aproximamos, cada vez mais, da contingência do colapso militar” e que, “de há uns tempos para cá o PAIGC alcançou uma inesperada supremacia em potencial de guerra”. O homem parece que é bruxo, digo eu, mas anos mais tarde…


26 de Maio

Se já era difícil dormirmos alguma coisa no abrigo, mais difícil foi fechar os olhos nas valas. Passámos mais uma noite em claro, percebemos melhor as queixas dos que já habitavam no “metro” há mais dias, não conseguimos dormitar nem um cagagésimo de tempo. Quando rompeu o sol vimos que na palmeira pendia não só o cacho de dendém, mas um volume escuro e grosso, cheio de abelhas a entrar e a sair. Não é nada agradável conviver com favos àquela distância. Para já, ninguém se queixa de ter sido picado, talvez o dia se torne mais propício a uma soneca, estendidos no fundo da vala.

No fundo? Logo eu, que ainda em Gadamael ganhei complexos de me atirar para dentro de valas, sobretudo, à noite. Tinha acabado de sair do banho (que se tomava em balneários construídos com bidões, já perto do rio), de chegar ao meu quarto e me enxugar, a única roupa que tinha no corpo era um par de peúgas e nesse instante uma sentinela dispara uma rajada (teria dado por “saídas” de fogo IN e deu assim o alarme de flagelação), e mal tive tempo de agarrar na G3 e correr naquele estado para a vala mais próxima. Agachado, mas positivamente com o rabo de fora, passados instantes pressinto algo no pé. Apesar do lusco-fusco, vislumbro uma senhora cobra a roçar-se nos meus tornozelos, levando-me a esquecer os perigos das bernardas que caíam em redor e a pular para fora, naquela triste figura… Foram os soldados que ali se encontravam que, calçados com botas de lona, a mataram e atiraram para fora da vala. Como os rebentamentos continuaram, tornei ao interior da vala. Foi uma incursão breve, pois duas lombrigonas, filhotes da falecida, andavam no fundo aos pinotes…

Cedo nos confirmam o que já se esperava: a morte do furriel Fernandes. Um pouco mais tarde, sucumbe também devido aos ferimentos o soldado da CCaç 19, António Talibó Baio.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de > 5 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6108: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (7): Os dias da batalha de Guidaje, 22 e 23 de Maio de 1973