sexta-feira, 7 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P212: BART 2917 (Bambadinca, 1970/72): Monumento aos mortos em combate (Luís Graça)

Guiné > Região Leste > Bambadinca > s/d (1972, 1973 ou 1974): O Manuel Ferreira, soldado condutor auto, dos "Fantasmas do Xime" (CART 3494 do BART 3873, 1972/74), junto ao monumento aos mortos do Sector L1, erigido pelo BART 2917 (1970/72).

© Manuel Ferreira (2005)

1. Texto de Luís Graça:

Podem ver-se na fotografia em cima, quando ampliada, os nomes dos oito mortos do Batalhão de Artilharia, BART 2917, incluindo o Fur Mil Cunha e mais quatros combatentes da sua secção, mortos em 26 de Novembro de 1970, na região do Xime (Op Abencerragem Candente) (1).

Os restantes sãos mais 3 furriéis milicianos (ou 1 alferes e 2 furriéis: a imagem não é nítida).

Das unidades adidas ao BART 2917 (1970/72), vem em primeiro lugar a CCAÇ 12, com três mortos:

(i) o Sold Ieró Jaló, morto em 7 de Setembro de 1969, na Op Pato Rufia (2);

(ii) o Sold Cond Auto Soares, morto em Nhabijões, na sequência do rebentamento de uma mina anticarro, em 13 de Janeiro de 1970 (3);

e (iii) o Sold Sissé, este último já em data posterior ao fim da comissão dos quadros metropolitanos, originários da CCAÇ 2590, e que formaram a CCAÇ 12 (1969/71).

Outra unidade adida era o PEL CAÇ NAT 52, com 1 morto, seguido do PEL CAÇ NAT 54 (que esteve muito tempo em Missirá), com 6 mortos. Ainda se consegue ver o PEL NAT 63, com um morto. No caso da última unidade adida ao BART 2917, que teve 3 mortos, só se consegue ler, os dois últimos números: 01.

No total, contabilizo 22 mortos (não se incluem aqui as baixas mortais sofridas pelos vários pelotões de milícias que estavam integrados no Sector L1 da Zona Leste). Falta-nos ainda os feridos graves, evacuados para o Hospitalar Militar (Bissau e Lisboa) bem como os feridos ligeiros, e todos os outros que, sem marcas visíveis no corpo, vieram com a morte na alma... cacimbados !

2. O David Guimarães (ex- Fur Mil da CART 2716 do BART 2917, Xitole, 1970/72), depois de analisar a fotografia, não tem dúvidas:

"o Furriel abaixo do Cunha - até me arrepiei agora - é exactamente o Quaresma, o furriel Quaresma que está ao meu lado na inagem em que eu apareço a tocar viola... Em cima não distingo bem o nome mas é o Alferes Ranger, do Xime (CART 2715).

"Todas as Companhias tinham um Alferes Ranger. É ele mesmo, o do Xime. Quando ia para sair para a última operação, teve uma exclamação:
- É hoje, é a última vez! - E foi foi mesmo. Dois tiros mataram-no quando estava sentado.... Evacuado, acabou por morrer no Hospital Militar.

"O outro, sim, é o Cunha. Coloca isto no blogue, é importante, Luís. Eles estão vivos e são bloguistas como nós...

"Pensar em quem morreu também é importante. Os momentos de guerra foram todos e esses também, aliás, foram os que nos marcaram mais.

"O Luís Moreira não sei se ainda lá estava em Bambadinca quando isso aconteceu. Mas ele que se lembre do Alferes Ranger do Xime. É ele, não há dúvida, que está a encabeçar essa negra lista que, tudo indica, estava organizada por posto hierárquico... Estava, porque hoje esse monumento já não existe em Bambadinca. Já não existia quando lá voltei em 2001".


3. Texto de L.G. :

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1972:

Aquartelamento de Bambadinca, sede do BART 3873 (e anteriormente, entre 1970 e 1972, do BART 2917 e, antes deste, do BCAÇ 2852, entre 1968 e 1970).

Monumento aos camaradas mortos em combate e à presença das NT em Bambadinca entre 1970 e 1972, incluindo o BART 2917 + Adidos: CCAÇ12, PEL CAC NAT 52, 53 e 54 e outros (a parte de debaixo do monumento é ilegível).

Presume-se que este singelo monumento tenha sido destruído a seguir à independência. Em Novembro de 2000, Bambadinca era sede de um batalhão do exército da Guiné-Bissau, de acordo com uma reportagem em vídeo feita por ex-combatentes portugueses que voltaram à Guiné-Bissau nessa altura, vídeo esse que visionei, graças às cópias em DVD que o Sousa de Castro magnanimamente me fez chegar pelo correio...

O mesmo monumento mostrado na foto do Manuel Ferreira, mas mostrando, ao fundo, as instalações dos oficiais portugueses (Comando + CCS + Alferes milicianos). Em frente destas ficavam a dos sargentos.

Este aquartelamento, novinho em folha, foi alvo de uma forte ataque do PAIGC em 31 de Março de 1969, como resposta à Op Lança Afiada, que envolveu cerca de milhar e meio de homens das NT (4). As instalações dos sargentos foram, por exemplo, atingidas.

© Sousa de Castro (2005)
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(1) Vd. post de 25 de Abril 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)

(2) Vd. post de 8 de Agosto 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12

(3) Vd. post de 23 Setembro 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)

(4) Vd. post de 31 de Julho 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

quinta-feira, 6 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P211: Os sitiados de Guileje (João Tunes)

João António Tunes, Alferes Miliciano de Transmissões. Andou, de 1969 a 1971, por vários sítios da Guiné (não diz com quem...): Pelundo, Teixeira Pinto, Catió, Guileje, Bissau...

© João Tunes (2005)

Texto do João Tunes:

Obrigado, Jorge (1), pela informação. Vivi uma pequena parte (mas marcante e bem) da odisseia de Guiledje (2). Como o quartel estava sob a jurisdição do batalhão sedeado em Catió (assim como Gadamael e Cacine), eu tinha de lá ir uma vez por mês (ficando lá,uma semana) para ver como estavam as transmissões e mudar as cifras das mensagens e esperar por transporte de regresso a Catió. Porque, é claro que só lá chegava e de lá vinha por via aérea. E enquanto lá estava era "sempre a assoar". E julgo que em nenhum outro lugar da Guiné se sofreu tanto a intensidade e a impotência da guerra.

Excelente ideia a deste projecto a que, julgo, devemos dar todo o apoio. E bem me parece merecido que, pelo que se passou em Guiledje, se concentre neste projecto o apoio de todos os que combateram na Guiné (independentemente da localização que lhes calhou em sorte), construindo aí um memorial aos que de um e outro lado se pegaram com armas na mão. Melhor será que uns andarem às voltas com Mansoa, outros com Bula, outros com Pelundo, outros com...

Em tempos, Abril de 2004, coloquei um post em que recordo algumas sensações sobre Guiledje e que me permito transcrever.

Abraços para todos.
João Tunes


Guiné-Bissau > Foto aérea do antigo aquartelamento de Guileje (c. 1973)

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Um voo com muita valentia, por João Tunes (Blogue Bota Acima, 7 de Abril de 2004)

O Tenente Aviador Aparício, lenço azul ao pescoço e ar de quem está meio cá meio lá, entre a terra e o céu, aterra a Dornier (3) na pista de terra batida de Catió. Quando encontra o primeiro militar que o foi receber, diz-lhe, rindo-se:
- Então, aqui come-se e bebe-se? - Claro que havia. Havia sempre para o Tenente Aparício.

O aviador é levado, de jipe, ao bar de oficiais e são-lhe servidas as melhores iguarias disponíveis, acompanhadas de cervejas bem geladas. Sabia-se do voo que já era, aliás, aguardado ansiosamente há vários dias. Os aviadores eram sempre recebidos como VIPs na messe de oficiais do batalhão de Catió, lugar que, na maior parte do ano, só tinha ligações com o exterior pelo ar. O aterrar de um avião ou de um heli era sempre motivo especial e que comportava a emoção de confirmar que Catió existia no mapa.

Entre todos os aviadores em serviço na Guiné, o marado do Tenente Aparício era o mais festejado e o mais bem-vindo. Não por ser marado mas por ser o mais marado de todos, tanto que era o único que se dispunha a aterrar de Dornier em Guileje. E Guileje era a posição mais martirizada e mais isolada da área de intervenção do batalhão e em toda a Guiné. Por causa disso, a tropa encaixava bem as risadas sem motivo e uma ou outra frase desconexa que ia largando, pelo valor único que ele representava para o batalhão e para o pessoal de Guileje.

Após meia hora a descansar, a comer e a beber, o Tenente Aparício ajeitou o lenço azul e levantou-se:
- Vamos a isto -, disse com os olhos a brilharem. Se era o único que aterrava em Guileje, aquele era o sítio onde ele mais gostava de ir. Cada viagem era uma aventura. E o Aparício adorava aventuras.

Carregado o correio, medicamentos, algumas peças e acessórios, tudo em quantidade limitada por causa do pouco peso que a aeronave podia transportar, o Tenente Aparício despediu-se. E mandou-me subir. Naquele dia eu ia ser seu companheiro de viagem até Guileje.
- Vamos a isto -, repetiu, repetindo também uma nova risada.

João Tunes, "sempre fardado": ontem de verde-rubro, hoje de vemelho, de águia ao peito...

© João Tunes (2005)

Ia para passar uma semana em Guileje, como fazia quase todos os meses, para tratar de problemas com as transmissões e trocar os códigos das cifras da criptografia. E, daquela vez, seria companheiro de viagem do Tenente Aparício. E uma ida a Guileje era sempre uma emoção, pelo risco e por rever os camaradas martirizados e isolados bem junto da fronteira com a Guiné-Conacri. Para mais, com o aviador mais marado da Guiné.

O aviador conduziu a aeronave com os jeitos e o ar de condutor habituado a uma estrada de todos os dias. E ia sempre a rir. De repente, a janela da Dornier do meu lado salta e desaparece. O ar entra em turbilhão e faz esvoaçar toda a papelada solta. O aviador riu-se ainda mais. Como tendo achado que aquele incidente só ia tornar mais insólita e mais típica aquela viagem e ainda dava para gozar com a cara azulada da preocupação do seu companheiro inquieto e que duvidava que, sem janela, aquela geringonça se pudesse aguentar no ar. O aviador comentou, contendo o riso:
- Eu bem disse na Base que essa merda estava mal apertada, mas não faz mal, o avião não cai, ficamos é com as ideias mais frescas.

A viagem decorreu, num regalo de vista sobre as matas luxuriantes de verde intenso como era típico do sul da Guiné, permanentemente atravessadas por enormes e serpenteantes cursos de água. Sempre a sobrevoar uma zona controlada pelo PAIGC. É que, no sul, tirando os quartéis isolados e sitiados de Catió, Guileje, Gadamael e Cacine, todos sob o comando militar de Catió, a zona era inteiramente controlada por guerrilheiros. Estes, só eram contrariados no seu domínio pelo exército português através de bombardeamentos aéreos, fogo de artilharia e surtidas temporárias das forças especiais. E isto durou até o PAIGC receber os mísseis dos soviéticos, porque, a partir daí, todos os aviadores se recusaram a voar no sul. Mas isso foi mais tarde (4), já o Aparício de lá tinha saído. Voar, naquela zona, era um desafio permanente às clássicas antiaéreas e havia que confiar na divina providência ou coisa do género. Naquela viagem, o risco era o costume, a beleza da paisagem idem, só a ventania dentro da cabine estava fora da rotina.

As palmeiras da periferia do quartel de Guileje perfilaram-se na frente da Dornier. À frente delas, distinguia-se o que parecia ser um quartel em estado degradado e meio despedaçado com uma bandeira portuguesa comida pelo sol e rota nos cantos, içada no meio dos casinhotos. O avião fez uma rápida volta de reconhecimento, rasou as copas das palmeiras, baixou repentinamente de altitude na clareira entre o palmeiral e o quartel, apontou o nariz direito a uma espécie de campo de futebol em terra batida, aterrou num movimento brusco e parou a poucos metros de uma carcaça de outra antiga Dornier que, antes, não tinha conseguido parar a tempo e se espatifara contra o muro do quartel. Era este risco permanente de as aeronaves imitarem a sua irmã espatifada que levava a que todos os camaradas do Aparício se recusassem a aterrar em Guileje. Mas ele preferia aquela viagem sobre todas as coisas na vida. Há homens para tudo, é o que vale aos abandonados pela sorte.

Indolentemente, alguns soldados montaram segurança à Dornier. Sem dirigirem palavra aos recém-chegados. Rostos fechados, olhares distantes e desinteresse ostensivo. O Tenente Aparício não queria sair do avião pois tinha de regressar a Bissau enquanto era dia. Só deu tempo para descer e tirar a carga destinada a Guileje. A guarda estava montada, G3 carregadas ao ombro, nada mais. Nenhum oficial ou graduado apareceu e os soldados da guarda não falavam. Disse alto e com bom som:
- Então não descarregam as vossas coisas? Porra, pelo menos, tirem o vosso correio.- Nada de reacção. Tivemos de ser, eu e o Aparício, que resolvemos o impasse mandando com os embrulhos e o saco do correio para o chão da pista, para que a Dornier pudesse regressar vazia.

Os militares em Guileje queriam lá saber das peças e dos acessórios. Inclusive, não mostravam qualquer interesse em ler as cartas dos familiares. Queriam lá saber da família. Ali, naquele sítio, nada interessava. Se calhar, já nem estavam interessados em sair dali. Talvez porque achassem que já não eram pessoas mas ratos metidos dentro de uma ratoeira, destinados a apanhar porrada, só apanhar porrada.

O Tenente Aviador Aparício regressou a Bissau sem a janela do lado direito. Que se lixasse o raio da janela.
- Talvez tenha acertado na cabeça do Nino -, disse com voz sumida. E levantou voo rumo a Bissau. Sem se rir. Talvez porque achasse que tinha visto, não uma companhia de militares portugueses, mas sim um bando de humanóides sem vontade de viver.

Enclausurados dentro do quartel, morteirada todos os dias em cima, com baixas quando iam buscar água a um quilómetro, comendo com uma perna fora da mesa para se atirarem para uma vala quando a primeira granada caísse, os militares de Guileje sentiam-se mais perto de outra vida que da vida vivida.

Os que não estavam malucos por lá andavam perto. Saudável, mesmo saudável, não havia quem servisse de amostra. O único divertimento era juntarem-se à volta de um bidão cheio de água do pântano que trazia meia dúzia de peixes minúsculos, dobrarem alfinetes, amarrá-los a uma linha, meterem uma côdea de pão em cada alfinete e tentarem pescar os ínfimos peixes. Cada um que apanhava um peixito, contava alto o seu score de pescador e voltava a deitar o peixe para dentro do bidão antes que morresse e o jogo tivesse de acabar por falta de motivo. E ali estavam horas naquilo, só se ouvindo, uma vez por outra, uma voz dizer oito, ou cinco, ou dez. No fim, nem o campeão se interessava por dizer que tinha sido ele a ganhar o concurso de pescaria. Em Guileje, ninguém se atrevia a dizer que ganhava o quer que fosse. Ali, a sensação era que só se perdia.

Perguntei pelo Alferes Médico Gouveia, pândego como poucos e meu companheiro inseparável na viagem de vinda no Niassa.
- Já cá não mora-, foi a resposta seca que obtive.
Só muito mais tarde me explicaram a sorte do meu amigo médico. O Alferes Médico Gouveia, quando foi destacado para Guileje, declarou toda a companhia em baixa psiquiátrica e requereu a sua substituição imediata.
- Está tudo maluco -, afirmou com a sua autoridade de médico. Ninguém lhe passou cartão. Ao fim de estar três meses em Guileje, o Alferes Médico teve autorização para ir passar férias a Portugal. Quando chegou a Bissau, exigiu que uma auto-metralhadora fosse disponibilizada para o levar à pista para embarcar no avião da TAP. Oficiais amigos conseguiram arranjar maneira de lhe fazer a vontade. E foi dentro de um blindado ligeiro que o Alferes Médico Gouveia se aproximou da escada de acesso ao avião pousado na pista civil de Bissau. Saiu do blindado, subiu a escada do avião, no cimo voltou-se, fez uma continência para a linha do horizonte e embarcou. Não regressou. Durante as férias, foi visto por uma junta médica e considerado inapto para o serviço militar. E safou-se de mais Guileje e de mais Guiné. Estava mais maluco que os malucos que ele não conseguira evacuar.

Muitas vezes mais haveria de fazer companhia ao Tenente Aviador Aparício, nos seus voos aventureiros pelos céus da Guiné. Mas a sensação de voar sem janela, essa nunca se repetiu. Repetia-se, isso sim, o resto: o aviador ria-se, sem jeito nem propósito, até chegar a Guileje, voltava sempre calado e de rosto fechado. Mas, continuava a ser o único que aterrava uma Dornier na pista de Guileje. Enquanto esteve na Guiné, ninguém quis disputar o título de aviador mais marado que pertencia, com todo o direito, ao Tenente Aviador Aparício.
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Notas de L.G.

(1) Jorge Neto. vd. post anterior, com a data de hoje > Guiné 63/74 - CCXXXI: Projecto Guileje... ou o triunfo da vida sobre a morte

(2) Dornier DO-27. Segundo a página do João Gil, dedicada a "algumas aeronaves militares usadas na Guerra Colonial em Moçambique" (T-6, Do-27, Fiat g-91, Noratlas, etc.), a Dornier DO-27 "foi o primeiro avião feito na Alemanha (Oeste) depois da Grande Guerra, seguindo o mesmo conceito do Fieseller Storch. Foram manufacturados 628, e tanto teve uso civil como militar". Citando como fonte a FAP, o autor diz que "os aviões Do 27, de que a Força Aérea teve 133 exemplares nas versões A3 e A4, começaram a ser recebidos em 1961", tendo sido "adquiridos para operação no Ultramar, em missões de transporte ligeiro, evacuação sanitária e reconhecimento armado, para o que eram equipados com lança foguetes".

Ainda segundo a mesma fonte, eis algumas das especificações do Dornier DO-27:

Motor: 270 hp;Envergadura: 12,00 m; Comprimento; 9,54 m; Altura: 3,28 m; Superfície Alar: 19,40 m2; Peso vazio: 983 Kg; Peso equipado: 1570 Kg; Velocidade máxima: 250 km/h; Raio de acção; 870 km; Razão de subida: 198 m/min; Tecto de serviço: 5500 m; Tripulação: 1 + 5. Ver ainda página, em inglês, dedicada ao DO27

(3) Guiledje ou Guileje ? Perguntei ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa qual é a grafia correcta. No tempo dos tugas, escrevia-se Guileje. Hoje, os guineenses e os cooperantes portugueses na Guiné-Bissau tendem a escrever Guiledje (ou até Guiledge). Em que é que ficamos ? Aguardo a resposta.

(4) Abril de 1973

Guiné 63/74 - P210: Projecto Guileje (1): o triunfo da vida sobre a morte (Luís Graça)

Guiné- Bissau > Antigo aquartelamento de Guiledje (2005). Na foto, vêm-se dois guineenses, de nome Abubacar Serra e José Filipe Fonseca, que são a ssociados da AD e os grandes dinamizadores do Projecto Guileje.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Notícias do nosso amigo Jorge Neto (um tertuliano de fresca data, e que trabalha, vive e sobrevive em Bissau).

Boa tarde a todos,

Recebi na caixa de correio informação sobre uma ONG [Organização Não-Governamental]guineense que tem um projecto de reabilitação/restauro do histórico quartel de Guiledje [na região de Tombali, no sudoeste, na fronteira com a Guiné-Conacri].

Se alguém tiver interesse em conhecer o projecto bem como ver algumas fotos do que era e do que é, aqui fica o link.

http://www.adbissau.org/projectoguiledje.php

Para as fotos:

http://www.adbissau.org/fotos_guiledje.php

Cumprimentos
Jorge Neto


2. Comentário de Luís Graça:

Acabei de ler o documento, em formato.pdf, de seis páginas, intitulado "Guiledje, ideias para um projecto de reabilitação". Gostei, desde logo da citação: "Salvaguardar a memória é a única forma da vida triunfar sobre a morte". Mais do que uma citação, é um programa de acção!

Li e fiquei entusiasmado com as ideias apresentadas, a sua fundamentação, a sua metodologia de acção. E disse logo cá para mim mesmo: Ora aqui está um projecto à nossa medida, à medida destes ex-combatentes da guerra colonial da Guiné e dos demais amigos desta tertúlia.

Sinto que podemos fazer alguma coisa de concreto para viabilizar este projecto. Para já, podemos divulgá-lo e dá-lo a conhecer em Portugal. Penso que é um projecto, de grande interesse (histórico, cultural, económico, social e ambiental) para os guineenses, mas também para nós. Daqui uns anos os nossos netos e bisnetos irão aprender, na escola, onde ficava Guileje e discutir a sua importância para dois países que hoje se tratam como irmãos: Portugal e a Guiné-Bissau...

Guileje vai figurar, seguramente, nos manuais de história tal como Alcácer Quibir, ou outras batalhas que ficaram no nosso imaginário e marcaram o nosso destino. E o mesmo se passará com os netos e os bisnetos dos homens e das mulheres que lutaram pela independência da Guiné-Bissau, de armas na mão, e que cercaram o quartel de Guileje, de 18 a 22 de Maio de 1973 (Op Amilcar Cabral), até ao seu abandono pelos portugueses (1).

Guileje foi, a par de Madina do Boé (Fevereiro de 1969), um dos poucos aquartelamentos (não falo de destacamentos...) que os portugueses tiveram que abandonar, devido à pressão militar do PAIGC (que desde Março de 1973 já dispunha de mísseis terra-ar).

Guine > Guileje > Dois militares portugueses, junto ao Obus 140, em 1970 e 1971. Segundo informação do Carlos Schwarz, fundador e director executivo da AD, "a fotografia junto do Obus 140 foi-me dada por um militar português que lá esteve entre 70 e 71, na CCAÇ 2617, de nome Abílio Alberto Pimentel da Assunção, que é um dos 2 militares". A esta companhia deve-se ter seguido a CCAV 8350 (1972/73), uma unidade constituída essencialmente por soldados açorianos.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

As consequências político-militares desta vitória da guerrilha foram enormes: (i) a partir de Agosto de 1973, está em marcha, em Bissau, o movimento que levará os militares ao poder, em Lisboa, a 25 de Abril de 1974; (ii) a 24 de Setembro é proclamada unilateralmente pelo PAIGC, nas colinas do Boé, a independência da Guiné e Cabo Verde, imediatamente reconhecida por mais de sete dezenas de países de todo o mundo.

Hoje há um projecto de desenvolvimento integrado para a região, incluindo a recuperação e a reabilitação do antigo quartel do Guiledje e da sua envolvente, a criação de um museu e de um centro de documentação, a par da criação do Parque Transfronteiriço do Cantanhez.

A iniciativa é de uma ONG, com sede em Bissau, que acaba de celebrar os seus 14 anos de trabalho em prol do "desenvolvimento justo e solidário". Trata-se da de AD-Acção para o Desenvolvimento, associação sobre a qual se pode saber mais, consultando o seu sítio.

Aqui fica, para já, o registo do meu apreço por este projecto que pode vir a não passar do papel, mas que à partida nos toca e sensibiliza a todos... O entusiasmo, a mobilização, o lobbying e a capacidade de realização ficam para outra fase. Para já deixem-nos sonhar, fazer flashback, voltar a ver o filme de trás para a frente e de frente para trás... Deixem-nos salvaguardar a memória dos portugueses e dos guineenses que viveram momentos dramáticos em Guileje... para que a vida saia vitoriosa, triunfando desta vez sobre a morte. Lá como cá.

Reproduzo, com a devida vénia, duas das fotos que ilustram o sítio do Projecto Guiledje, com conhecimento ao webmaster da página da AD a quem, desde já, agradeço.

Numa das fotos há dois guineenses (que tanto podem ser os autores deste projecto, como os antigos combatentes do PAIGC que participaram na batalha de Guileje: Braima Djassi e Roberto Quessangue, nomes referidos no site, sendo o último o presidente da Assembleia Geral da própria ONG), junto aos restos do brasão da Companhia de Cavalaria que defendia Guileje: a CCAV 8350, (19)72/74, Piratas de Guileje (as inscrições são perfeitamente legíveis na foto inserida na página da supracitada ONG)...

Na outra foto há dois militares portugueses, em 1970 ou 1971, junto ao obuz 140 mm, que equipava o aquartelamento.
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(1) Sobre a batalha de Guileje, vd. post de 2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael

quarta-feira, 5 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P209: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (1)

Guiné-Bissau (2005) > Antigo e actual quartel de Mansoa.

© Jorge & Paulo Salgado (2005)

Texto do Paulo Salgado

Camaradas e Amigos:

Vou tentar relatar (narrar, contar, ficcionar quanto baste) as minhas vivências nesta terceira (ou quarta?) comissão / presença demorada... (Agora estamos numa Missão que é um termo muito divulgado por quem passa aqui curtas ou mais longas estadias em nome de alguém a fazer qualquer coisa – confesso-vos que tenho visto muita coisa mal feitinha).

Mas estou para aqui com um arrozoado inicial que só faz sentido porque estamos entre Camarigos (bolas, saiu!) para vos dizer que gostaria de poder cumprir este desafio. Mas essa promessa só pode ser cumprida quando me der na real gana, quando tiver um tempo solto, quando levantar emboscadas, quando deixarem de me atacar… Ou seja: não é um diário, nem semanário, nem mensário – o que for, seguirá. Mas ao correr da pena.

O Luís Graça dar-lhe-á a forma mais conveniente para ser lido no nosso blogue.


CAPÍTULO I – Viagem

O filho da mãe do Carvalho Araújo fazia a primeira viagem depois de transformado em transportador de carne para canhão – ele era um dos transatlânticos entre Lisboa e Açores: um barquinho, sem quilha, chato, que levava víveres e algumas pessoas e trazia gado, muito gado das ilhas (vós já imaginastes o gado numa quilha?!)

Então os chefões do tempo resolveram fazer plataformas, e pôr o barco plano, no fundo carradas de pedra para o navio se aguentar e equilibrar e nele construíram camaratas, aos montes: era ali que vinha a tropa macaca, jogando cartas, zangando-se, vomitando o pouco que se comia.

Mas, nessa primeira viagem (que a CCAV 2721 e mais duas companhias de que não me lembro o número), o barquinho andou a acertar agulhas nesse dia 4 de Abril de 1970 (nesse dia, anos mais tarde, nasceria a minha filha Paula – a tal que está em Oxford, e que adora esta terra, que é a Guiné-Bissau) desde o Cais de Alcântara até quase Santa Apolónia durante seis horas… E as famílias , rio acima e rio abaixo, a fazerem adeuses com lenços brancos, na esperança de o barco não passar o Bugio – a malta triste, encostada ao convés (que me desculpem os marinheiros se a linguagem não está correcta) também triste.


Desta vez, adivinhais quem estava: o Humberto. O malandro emboscou-me à entrada da porta / gate 18 - embarque para Bissau. Lá estava, apanhou-me. E demos aquele abraço. Descobriu-me, porque levava uma miúda e a minha mulher.

Que sorriso aberto, o do Humberto! Que delicioso encontro (ou reencontro?), não esquecerei! Aliás, oh Humberto, fiquei com a sensação de que te conhecia, que nos cruzáramos antes… ou já será a minha senilidade?!? Mas, olha que eu tenho uma memória visual muito boa… Foi giro estares ali, abraçares-me, com uma mão cheia de amizade e de carinho, e dares-me o teu cartão…

O pior foi à chegada. A miúda já não me queria largar. Tinha sido bem tratada no Hospital de Gaia e de Santo António – foi o bom e o bonito! Valham-me os deuses todos, quase chorei ao ver a criança cair, obrigada, nos braços dos pais. Aliás, confesso-vos: vou passar um mau bocado. Estas coisas dão-me volta ao coração. A Maria da Conceição [Salgado] e o Jorge (magnífico e exemplar colaborador, tiro-lhe o meu chapéu) ficaram mesmo chocados! Pudera!

No Olossato, a malta dizia que eu iria meter o Chico. Eu era, de facto, um bocado disciplinado e gostava das coisas direitas. Em Lamego, nos 'rangers' aprendera muito sobre a maneira de andar na mata, a sobrevivência, a disciplina. Pois não meti o Chico e, penso, à distância: como eles se enganavam… eu até já tinha uma profissão: professor primário.

A seguir, foi o que vos tinha dito: primeiro umas gorjetas para facilitar a saída (sempre ajuda para o peixe), os putos, os acotovelanços, o motorista João. E logo a seguir pousar as coisas no Bairro da Cooperação, ir ao Hospital, ao Laboratório com o Jorge (técnico de análises clínicas que veio também para fazer a manutenção dos equipamentos).

Primeiro a obrigação e depois a D. Berta – a Instituição D. Berta, a Pensão Central (merecerá um capítulo bem à parte), onde almoçámos e bebemos as primeiras poderosas Cristal (termo que aprendi com um médico moçambicano que esteve aqui no Projecto…e como foram dias porreiros com esse gajo…)... Estavam poderosamente geladinhas!

No sábado fui visitar alguns funcionários no [Hospital] Simão Mendes – a puta da cólera lá está. Não está só nos jornais. Está ali, viva, matando…

Deixámos a cerimónia a decorrer no Palácio Colinas do Boé – Assembleia Nacional (os chineses quiseram deixar a marca de palácio), já o discurso do Presidente ia a meio (na rádio ouvíamos a oratória) e era uma boa altura para nos safarmos da confusão de convidados, de amigos - que sei eu? - e saímos, correndo a almoçar a Uaque (perto de Jugudul, perto de Mansoa, onde está o António que dirige um turismo de caça e pesca – é uma hipótese para dar resposta ao apelo de muitos, em especial do João Tunes, em termos de visita a Bissau), demos um salto a Mansoa e o Jorge tirou umas fotos ao actual aquartelamento.

O Jorge Neto tem razão: não se pode tirar fotos à maluca e sem autorização. Tivemos que andar depressa.

Bolanha de Mansoa © Jorge & Paulo Salgado (2005)

Mas, meus Caramigos: vimos a azáfama da plantação do arroz, a ida à pesca, as crianças correndo ou ajudando, um jovem balanta que vinha do trabalho com o seu arado, e pedaços do velho pontão de Mansoa (substituído por uma ponte). E a bolanha, bela, longínqua. Verdíssima, alagadíssima.

Ainda fomos pela picada fora, no finzinho de tarde até ao porto de Encheia, mas a bolanha não deixou a viagem ir até ao fim. Demos boleia à Maria: que sorriso e que simpatia.
- A nós, portugueses (tugas…) – disse eu, num arremedo de crioulo - e ela riu (ainda temos que esclarecer essa de tugas, a coisa não está clara, Amigos e Camaradas).
- A mim na odja ki bos i bom, ki ta patim bolea…- e ficámos satisfeitos com a satisfação da mulher balanta.

Ao fim, mesmo, mais duas fotos (entre muitas) de um pôr de sol com cores amarelas e cinzentas. E passámos Nhacra, Safim e, ao lado, o aeroporto com alguns aviões a partir com os convidados…

Partilhar “isto” com a minha mulher e com o Jorge foi uma lufada de ar fresco.

Dia di dumigu: na diskansa um bukadu; dia di segunda fera nô tem ki pega teso.

Mantenhas pa tudus.
Paulo Salgado.
Bissau, 2 de Outubro de 2005

PS - Seguem fotos em novas mensagens separadas porque a Net funciona aqui à velocidade africana....

terça-feira, 4 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P208: Guerra limpa, guerra suja (3) (Luís Graça)

1. Texto de Luís Graça:

Meu caro João, meus caros amigos & camaradas (versão "universal", sem bolinhas vermelhas ao canto superior direito):

1. A realidade é sempre mais complicada do que a construção (social) que dela fazemos... Ainda não li o livro da Dalila, vi só um resumo... É claro que a Pide trabalhava bem articulada com as NT... O Spínola e a sua corte protegiam os gajos porque também precisavam deles.. No 25 de Abril, ele terá deixá-los cair, não sei...

Fui obrigado uma vez a partilhar um almoço em Bafatá, com dois ou três pides... Como antifascista, desde os meus catorze, quinze anos, eu tinha um asco aos pides... Eu estava incomodado com a merda da conversa e com a presença deles: um deles tinha levado uma dentada de um "filho da puta de um turra" (sic) mas não lhe pudera "cascar" (sic), em resposta, por causa do Caco Baldé, o Spínola... Tenho isso algures escrito nos meus canhenhos (eu tinha um diário lá na nhos terra....)...

Mas também tenho outros revelações tenebrosas que os meus soldados (fulas) me contavam, nas noites longas que passávamos no mato, em operações, em emboscadas, em patrulhamentos ao Mato Cão (Rio Geba Estreito, para protecção da navegação civil, os barcos da Casa Gouveia que iam e vinham de Bafatá), em tabancas de autodefesa, aqui e acolá...

Revelações da guerra pura e dura, em 1963, 64, 65, no tempo do Schultz, que terá sido uma verdadeira política de terra queimada e de genocídio (é a minha interpretação: nunca saberemos a extensão disto; há documentos da tropa que continuam secretos; além disso, branqueávamos os relatórios...).

No entanto, no meu tempo, havia ainda muitos vestígios desse tempoo: eu (mas também o Humberto, o Tony, Fernandes) passei por muitas tabancas, balantas e beafadas, reduzidas a cinzas, no outro tempo; havia só algumas estacas, tudo tinha sido invadido pelo mato; os habitantes terão fugido, "ido no mato", ou terão sido deslocados)...

Assim como já contei (está no blogue) a história, arrepiante, do Seco Camará, mandinga, que foi nosso guia em muitas operações no Xime, até ao dia em que lerpou, com um roquetada (andei a apanhar os bocados dele na manhã de 26 de Novembro de 1970; fizemos uma trouxa com o que restou, dele e de mais cinco dos nossos...). O Seco era o gajo que matava, à paulda, de noite, os "turras" (ou elementos suspeitos, ligados à população), e depois o capitão do Xime, "manga de bom pessoal" (sic), pagava uma laranjada no regresso ao quartel: o desgraçado contou-me esta estória, a mim, uns tempos antes de morrer...

Tudo isto se terá passado no início da guerra, por volta de 1963/64... Agora, não vos posso garantir que não era fanfarronice do gajo... Não creio que fosse. A coisa colava com outras estórias que os meus fulas me contavam, com aquele ar inocente e amoral das criancinhas que sabem coisas horríveis mas não têm (ainda) o sentido do trágico e do horror...

E o Uloma , dos comandos africanos ? ... De facto, tens razão: deixámos a parte suja da guerra para os pides (mas também para os gajos dos pelotões de reconhecimento & informações, como o sinistro sargento do cavalo marinho de que eu falo no post de 11 de Julho de 2005)... Para os pides e ... para os próprios guinéus!... Essa é que é a verdade. Mas também alferes e furriéis milicianos que eram mais chicos que os chicos...

Andei sempre de arma calada, sem bala na câmara, sem granadas, sem nunca ter feito fogo debaixo de fogo... Mas também engoli muitos sapos, até que um dia rebentei e chamei uns nomes feios ao A. C. e ao resto do comando do BART 2917, em plena parada, em frente à messe de oficiais, alto e bom som: "assasinos, cabrões, criminosos de guerra, limpo o cu às folhas do RDM"...

Nunca mais pude esquecer estas palavras de raiva e de impotência... Não me deram uma porrada, não sei porquê: (i) talvez por que por tinham a conscência pesada, no dia 26 de Novembro de 1970, em que tivemos seis mortos e 7 feridos graves; (ii) talvez por que não queriam arranjar problemas com um "gajo porreiro" de uma "companhia de pretos" que gostavam do tuga, o "furié Enrico" (Henriques, o meu apelido paterno)...

Mas eu hoje sei: havia já um claro desiquilíbrio de forças entre os tontos dos oficiais superiores e o resto da maralha a começar por nós, milicianos; eles já não tinham, por falta de competência e sangue na guelra, qualquer força (física e moral) para comandar; (iii) esse A.C.
teve uma entrada de leão e uma saída de cordeiro em Bambadinca; em suma, (iv) os gajos não tiveram tomates para me dar uma porrada; além, disso, (v) éramos muitos unidos, mesmo que a maior parte da malta não fosse lá muito politizada; (vi) por fim, o meu gesto foi interpretado, pelo meu capitão, como um "distúrbio emocional", pelo que no dia seguinte fui enviado à consulta do Dr. Vilar (se não me engano, o mesmo que é amigo do Guimarães): dá-me um Valium 10 que eu nunca cheguei a tomar; recordo-me de ter sido muito porreiro para comigo; interpretei o seu gesto como uma prova de solidariedade e de cumplicidade:

- Os filhos deles é que precisam de Valium 10 para ficarem com baixa psiquiárica em Lisboa e livrarem-se da guerra...

Enfim, é giro, há anos que não pensava nesta merda e agora fico perturbado... Eu sei que a escrita, como tu diz o João Tunes, é meia cura... Mas eu nunca mais consigo perdoar a mim a mesmo o não ter tido coragem ou dinheiro ou apoios para ir para Paris (aos 18 anos, como cheguei a planear), ter sido "apanhado como um cão" e mandado para a Guiné... Se calhar, isto também se passou com alguns de vocês... Eu não sou diferente.

Continuando: a gente não sabe exactamente o que se passava com os paras, comandos, fuzos, que não eram menos brutais... Já repararam que, tirando o Jorge Santos (fuzo, em Moçamboque), não temos aqui ninguém das tropas especiais na nossa tertúlia ?... Há malta das tropas especiais que ainda hoje falam por meias palavras, com um grande sentimento de culpa, julgo que muitos deles precisariam de apoio terapêutico e psicológico...

Tenho para aí também um post sobre os paras (uma operação que fizémos juntos e em que apanhámos o pobre do Malan Mané, roqueteiro, mandinga, que fazia parte de um bigrupo comandado pelo lendário Mamadu Indjai, também ferido nessa operação, em Setembro de 1969...).

Em suma, gostei do texto do João Tunes. É saudavelmente provocatório. Temos dificuldade em falar disto. Ele toca aí num ponto sensível para a rapaziada, pelo menos para os operacionais: por exemplo, eu, o António Levezinho, o Humberto, todos da CCAÇ 12; o Marques Lopes, que esteve como alferes, miliciano, em Geba e em Barro, e que foi gravemente ferido; o Vitor Junqueira que também era alferes, atirador; e depois há o Guimarães, que era de minas e armadilhas; e outros mais recentes, que ainda não se manifestaram muito... Estou a citar de cor... Não somos muitos, os operacionais...

Bom, vou ter que basar... Ciao. Façam o link para este endereço (se quiserem saber a estória do gigante Uloma, felupe, caçador de cabeças):

11 Julho 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

Vejam também o que o escrevi, há tempos (uma parte de vocês já deve ter lido) sobre o guerrilheiro Malan Mané (o primeiro de vários que capturámos)...

09 Agosto 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

sábado, 1 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P207: Estórias do Xitole: Tangali e o quico do furriel Fevereiro (David Guimarães)

...... 58, 59 ... 70, 71...89, 90... 98... 99... 100! Cem canhoadas em 10 minutos no ataque ao aquartelamento do Xitole.

© David Guimarães (2005)


Texto do David Guimarães (ex-Fur Mil Guimarães, CART 2716, Xitole, 1970/72):

1. Era costume nós irmos fazer protecção nocturna à tabancas. Era também uma forma de acção psico... Um dia lá fui eu e o Fevereiro a comandar uma secção do 3º grupo de combate. Tangali era o nome da tabanca, a última que estava à guarda do Xitole. Ficava na estrada Xitole-Saltinho (os da CCAÇ 12 muitas vezes passaram por ela).

Bem, saímos pelo fim da pista do Xitole, com dois Unimogs 411 e lá fomos. Era mesmo chato, ir dormir para a tabanca e logo para aquela:
- Pôça, eles até eram todos de lá! - pensei eu, pouco ou nada confiante na lealdade da população local para com as NT. Na realidade, os de Tangali jogavam para os dois lados, conforme as conveniências... Bem, lá fomos e ao fim de 7 Km lá estávamos nós.... Nisto, diz-me o Fevereiro:
- Porra, Guimarães, perdi o meu quico!
Entretanto, vejo e ouço toda aquela gente alarmada:
- Furriel, furriel, manga de ronco lá para o lado do Xitole!... Muito tiro, muito tiro.
- Transmissões, liga para o quartel, pergunta o que houve, ordeno eu.
- Furriel, ninguém atende, não consigo nada, porra para isto!
- Bem, nós estamos aqui, amanhã veremos o ronco, arrematei eu.

Nessa noite não dormimos tão descansados:
- Porra, ronco e tiros, sei lá, vamos mas é ficar atentos...
A noite nunca mais acabava... De manhã cedo, bem formados e atentos, lá fomos estrada fora, de regresso ao Xitole e entrámos pelo fundo da pista de aviação... Bem, buracos no chão não faltavam. Diz-me o Fevereiro:
- Guimarães, olha ali o meu quico!
- Boa, disse eu, tiveste sorte, ele apareceu. - Ele pega no quico e mesmo no local da nuca estava um furo:
- Já viste - exclama o Fevereiro para mim - se eu tinha a cabeça aqui dentro!...
Bem, lá chegámos ao aquartelamento:
- Tanto buraco!
- É, pá, os gajos apontaram para aqui e até parecia que disparavam em rajada os canhões sem recuo... Vinha daquele lado do Corubal...

Tarefa matutinal: ver os estragos e contar as canhoadas; sim, as marcas bem visíveis e os cotos das granadas bem enterradas no chão como se fossem setas de índios:
- Olha, esta entrou no depósito de géneros... vamos ver! - Depois de bem contados, parece que só se tinham partido 4 garrafões de vinho... Coitados dos garrafões, do mal o menos...
- ... 58, 59 ... 70, 71.... porra e mais aqui ... 89, 90... 98... 99.... e esta também ... 100!!!

O ataque tinha demorado... dez minutos!

- Porra, porra!!!, ainda dizia o Fevereiro, a olhar para o estado lastimoso em que ficou o seu quico.

2. Nessa altura tinha chegado ao Xitole um morteiro de calibre 107 mm. Para dar instrução sobre esse morteiro tinha vindo um primeiro sargento especialista de armas pesadas, ex-cabo e ex-comandante de um posto qualquer da GNR lá na Metrópole.

Experimentou-se o dez sete, assim chamávamos ao morteiro.... Poça, parecia uma arma de artilharia, boa não há dúvida, pelo menos muito barulho fazia....

De manhã, o 1º sargento costumava dar as aulas teóricas sobre o funcionamento da coisa e não é que, por ironia do destino, muitas noites e algumas seguidas éramos atacados sempre de canhão sem recuo.... A certa altura o homem do bar dizia:
- Fui eu, ao bater a porta do frigorifico... - É que que esse barulho punha-nos todos a caminho do abrigo... Tantas vezes ele repetiram aquelas flagelações e o dez sete a funcionar... Logo de manhã, as aulas práticas e, à tarde, a teóricas...

Até que se aproximou o dia da minha licença disciplinar de 30 dias... Sim, aquilo que chamávamos férias.... Bem, mas antes teria que se ir a Satecuta [uma das bases do PAIGC, junto ao Rio Corubal, a oeste do Xitole]... Aquilo parecia uma cidade, já tinha sido visto de avioneta....

Na primeira ida, ficou a companhia de formação e comando e fiquei eu. Não relatarei o que disseram, relatarei apenas o que vi do aquartelanmento... Enfim, sem querer ser herói, percebi quanto um jogardor de futebol sofre quando está na bancada... Era o caso: a certa altura naquele dia, uma avioneta lá londe começou a andar em círculo, por baixo os jagudis na mesma em círculo, ouviam-se tiros e mais tiros, rebentamentos e mais rebentamentos. Um inferno!
- Ai, como estarão eles, coitados, que coisa, dizia eu cá para mim.- A certa altura, inesperadamente a avioneta (uma DO) afasta-se e os tiros terminam. E os jagudis também desaparecem....

Por fim, todos sujos, cagados, os bravos voltam:
- Não, não deu para entrar....

Em cada operação em que havia tiros, que coisa, vínhamos todos enfarruscados....
- Bem, tudo muito bem, mas eles não deixaram, recebemos ordem de retirar pelo Comandante... Ninguém ficou ferido, ao menos isso... Enfim, desta vez ao menos as balas do inimigo nos acertaram.
- Ainda bem, disse eu cá para os meus botões - Agora, Guimarães, vais até à metrópole, num voo TAP e pela agência Costa... E que tal? De avioneta até Bissau, que luxo!!!

Ai, era o meu baptismo de voo. Porreiro, o meu cu já tinha calos do Unimog...
- Mas isto é mesmo bem bom... Adeus Xitole, adeus camaradas, adeus Fevereiro... Até daqui a um mês.

sexta-feira, 30 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P206: Guerra limpa, guerra suja (2) (Marques Lopes)

Resposta do Marques Lopes ao João Tunes:

Estás enganado, camarada ex-combatente João Tunes.

É verdade que a PIDE tinha esse principal papel, e eu assisti, em Bafatá, ao início da tortura de um prisioneiro por essa polícia e por um capitão de informações. Revoltei-me e fui-me embora, quando vi meter o homem num bidão de água até ele gorgolejar.

Em Geba, os alferes que estávamos tivemos que nos afastar um dia (o Maçarico viu e que conte, o Luís Graça conhece-o) quando o capitão (que até morreu lá) e o primeiro-sargento deram tal enxerto de porrada a outro prisioneiro que este se borrou todo e se mijou.

Em Barro, sei de um alferes que, duma só vez, matou dez elementos da população civil controlada pelo PAIGC.

Esta é diferente, mas também sucedeu: em Samba Culo, um soldado do meu grupo de combate quiz saltar para cima de uma moça que tinha levado uma rajada na barriga (acabou por morrer, coitado, apesar de tudo, no cativeiro em Conakri). Não o fex porque lhe dei uns murros e uns pontapés.

É verdade que na Guiné não terá sido tanto como nos outros locais, mas terá havido alguns casos, certamente.

Mantenhas.
Cantacunda

Guiné 63/74 - P205: Bibliografia de uma guerra (12): (João Tunes)

Texto do João Tunes:

Camarigos,

Julgo que conheçam o livro de crónicas sobre a guerra na Guiné do Médico José Pardete Ferreira, intitulado O Paparratos - novas crónicas da Guiné (Lisboa: Ed. Prefácio, 2004; Colecção: História Militar) (1).

Além de ter estado lá no período 1969-71, andou não só pelo chão manjaco como por Bambadinca. Admito até que alguns de vós o tenham conhecido pesoalmente (o que não foi o meu caso, embora tenhamos andado, talvez ao mesmo tempo, a pisar o mesmo chão).


Título: O Paparratos: Novas Crónicas da Guiné 1969-1971
Autor: José Pardete Ferreira
Editora: Prefácio
Colecção: História Militar
Ano: 204O

O autor é agora "cirurgião-medicina desportiva" e gosta (e sabe, muito bem) escrever.

Para os que não conheciam ou não leram este livro, aconselho-o vivamente. A atmosfera, a vivência e o vocabulário recriam bem o que todos nós passámos. E a figura do Soldado Paparratos está muitíssimo bem desenhada. Recomendo.

E talvez possa ter o efeito de os mais acanhados puxarem pelo teclado e desfiarem a memória, reconstruindo-a e transmitindo-a (para que a história não se esqueça de nós). O que só faz bem, garanto, pois foi assim que cheguei à meia-cura (2).

Abraços,
João Tunes

_______________

Notas de L.G.:

(1) vd. post de 17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CX: Bibliografia de uma guerra (4)

(2) O livro estava hoje a cerca de € 15 na ACVL - Livraria On Line

quinta-feira, 29 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P204: Recordações do 'Caco Baldé' no Xitole (David Guimarães)

© Manuel Ferreira (2005)

O Soldado condutor auto Ferreira, de bigode, "com amigos nos fados".

Foto provavelmente de 1973, e tirada em Mansambo (CART 3494, que se mudou do Xime para Mansambo em Abril de 1973; pertencia ao BART 3873, 1972/74, que veio render o BART 2917, 1970/72, a que pertencia a CART 2716, aqui referida neste post).

O título da letra de fado podia ser "Fado do Caco Baldé". Repare-se no modo de vestir dos nossos soldados... O isolamento, o clima, a guerra, a fadiga geral e o stresse psicológico levaram a uma acentuada quebra da disciplina e do aprumo dos militares...


Texto do David Guimarães:

Um helicóptero que pousa na pista do Xitole, gente da alta e o homem grande (General, Comandante-Chefe e Governador do CTIG - Comando Territorial Independente da Guiné): António de Spinola, ele mesmo, mais conhecido por... Caco Baldé!

Spínola era conhecido por Com-Chefe, Caco, Caco Baldé, Homem Grande de Bissau...

Foto > Fonte: Extracto da capa do livro de Pintasilgo, J. M. - Manga de Ronco no Chão. Lisboa: s/e. 1972.


Volta à companhia, verificação da posição das NT dentro do Aquartelamento... Rapidamente se forma um U, cada qual fardado o melhor que podia, era um ver se te avias.... Sua Excelência, de pernas afastadas, mãos atrás das costas, impecavelmente fardado e com seu monóculo começa assim um discurso:

- Tenho péssimas informações do Batalhão [ BART 2917, com sede em Bambadinca ], à excepção desta companhia [ CART 2716 ]... Continuem, e tal e tal... - E lá foi o homem embora: meteu-se no helicóptero e saiu pelos ares da Guiné, algures no Leste, rumo a Bissau, possivelmente.

- Porra que elogio, mas para quê? Ele afinal até é bom!
- Porreiro, dizia um...
- Que se foda, dizia outro...
- Bem, sempre é melhor este elogio do que o contrário...
- Que se lixe, já foi...
- Mas seremos assim tão bons para levar este elogia? Tão novos... merda, que se dane...

Percebemos pouco tempo depois o que ele nos queria a dizer... Tinha-se realizado a Op Abencerragem Candente (Ponta do Inglês, Xime, 25 e 26 de Novembro de 1970, que o Luís e o Humberto já têm aqui evocado várias vezes), com um porrada de mortos e feridos...

Aí percebemos melhor o discurso do General quando na ordem de serviço veio o seguinte (reproduzo de cor): Segue para a Metrópole o Tenente Coronel de Artilharia M. F. por ser incompetente para comandar um Batalhão... Em seu lugar nomeio João Polidoro Monteiro, Tenente Coronel de Infantaria, etc. etc. etc... Nestas coisas, o Caco Baldé não brincava em serviço, cortava a direito... Não percebo por que é poupou o major A.C. (dizem que foi por ser antigo professor da Academia Militar...).

- Ai olha, ele varreu com o Nord Atlas - assim chamávamos nós ao M. F. (um bom homem, mas que de guerra efectivamente só deveria saber o que vinha nos livros)... Apanhou uma porrada desse nível e, ainda por cima, estava de férias, enquanto o A. C., o principal responsável pelo fracasso dessa operação e o consequente desastre, ficava...

© David J. Guimarães (2005)

Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 : O furriel miliciano Guimarães, de minas e armadilhas, no aquartelamento e povoação de Xitole.

Rei morto, rei posto e aí aparece o novo comandante a conhecer a sua tropa...
- Ena, que este tem pinta de guerreiro, estamos fritos...
- Bem bem, não estamos aqui propriamente em férias numa colónia balnear...


As grandes operações começaram a desenvolver-se, Polidoro Monteiro queria que fossemos a Satecuta, em 'zona libertada' pelo PAIGC (diziam eles), já perto da mítica mata do Fiofioli...

Devido à morte do Furriel Quaresma e à evacuação de Leones, dois Furriéis apareceram para os substituírem - Cardoso e Fevereiro... O primeiro já andava por ali desde 1966 (!), com porradas em cima; e o Fevereiro estava a a dormir na sua bela caminha, quando apanhou uma rendição individual e foi ter connosco....

As operações grandes que tivemos começaram nesta altura. Polidoro Monteiro parecia entender daquilo... Pois que seja.... Vejam os próximos episódios...

Abraço,
David
(ex-Fur Mil Guimarães,
CART 2716,
Xitole, 1970/72)

Guiné 63/74 - P203: Operação Guiné-Bissau 2006 (3) (Sousa de Castro)

1. Queridos tertulianos:

Boas notícias: já está em marcha a Op Guiné-Bissau 2006...

Agora é preciso a montar a logística, as transmissões, as comunicações, o planeamento, os patrocínios, o sponsorship, o marketing, enfim, chamar os gajos do Estado Maior General do... "Caco Baldé" (esta foi o Guimarães que nos veio recordar: era assim que a malta do chão fula - Bambadinca, Xime, Xitole - chamava ao "homem grande de Bissau" e nosso Com-Chefe...).

Outra boa notícia: estamos em vias de admitir na tertúlia a primeira... camariga! A mulher do Paulo Salgado, a Maria da Conceição, que é economista, "bebeu a água do Pidjiguiti" (em sentido figurado, claro) e vai amanhã para Bissau, trabalhar como cooperante, juntamente com o Paulo e mais dois elementos da equipa ...


2. Mensagem do Sousa de Castro (o tertuliano nº 1, o culpado desta blogaria toda!):

Amigos tertúlianos, o ex Furriel Mil. de Transmissões de Infantaria Luís Fernando Moreira pertenceu à CCAÇ 2789 do BCAÇ 2928, que esteve em Bula, Capunga e Ponta da Consolação na Guiné (1970/72)... Procura ex-companheiros.

Contacto:

(i) lmoreira@sapo.pt;

(ii) luismoreira@envc.pt

3. Mensagem que enviei ao Luís:

Luís F. Moreira (para não não fazer confusão com o outro Luís Moreira, ex-Alf. Mil. Sapador da CCS do BART 2917, Bambadinca, 1970/71):

Já publiquei o teu apelo no nosso blogue. Manda mais dados sobre a tua "guerra"... Não temos nada sobre Bula, [que fica a norte de Bissau, já na região do Cacheu ]... Quanto a Capunga, há pelo menos duas localidades com esse nome... Se tiveres fotos, documentos, estórias, estás à vontade... Já somos porventura a melhor fonte, a mais autêntica, a mais pura, mais espeontânea, de informação sobre a guerra da Guiné (1963/74)... Por este andar ainda vamos todos apanhar uma medalha de cortiça, por relevantes serviços à Pátria, no dez de Junho...

Fragata Alm. Magalhães Corrêa, construída em 1968, nos Estaleiros Navais de Viana de Castelo, uma empresa que honra a nossa longa e rica tradição na arte e na ciência da construção naval e onde trabalham (ou já trabalharam) alguns dos nossos queridos tertulianos.


Fonte: ENVC (2005) (com a devida vénia)

Já percebi que trabalhas com o Sousa de Castro (que é o pai desta tertúlia) e outros camaradas, aí nos ENVC. Segunda feira vou a um congresso a Braga, "botar discurso", mas não dá para dar um salto a Viana... Mas prometo ainda um dia fazer uma visita ao Sousa de Castro, ao Américo Marques, ao Manuel Castro e agora a ti (não sei se me esqueci de mais algum valente camarada dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo)... Vai dando notícias. Já somos vários Luíses... Fica com os nossos endereços, o do blogue e das várias páginas. E vai divulgando a coisa, aí pelo Alto Minho (podes entrar pela Galiza dentro, se lá houver rapaziada da Guiné...).

Luís Graça

Guiné 63/74 - P202: Operação Guiné-Bissau 2006 (2)

Mensagem do Jorge Neto, enviada de Bissau à 1.51h da madrugada de hoje:

Caro Luís [Graça]e João [Tunes]:

Os agradecimentos pelas palavras elogiosas publicaram-se no blog [Africanidades: vd. post com data de hoje > Pegar de caras os fantasmas do colonialismo e da guerra do Ultramar].

Quanto ao restante, estou disponível para ajudar a preparar essa viagem. O que for preciso da minha parte é só pedir. Com uma condição. Imagino que uma vez cá, queiram dar uma volta pelos locais onde passaram. Bom, têm que me deixar ir convosco para fazer a reportagem. Se não houver lugar na cabine do 4x4 posso ir mesmo lá atrás, na caixa, onde viajam as galinhas! Eu garanto que ainda não sofro das costas.

Em resposta à provocação do João, devo dizer que o pior da viagem por terra é mesmo a Guiné-Bissau, onde as vias rodoviárias não são estradas com buracos, mas sim buracos com estrada. Sofrem mais as costas nessa centena de quilómetros que nos 4900 restantes. No entanto eu percebo essa preocupação. Venha lá de avião que a malta pede ao presidente Nino para disponibilizar a banda e ir esperar-vos ao aeroporto!

Quanto a colaborações no Blogue-Fora-Nada, dentro das minhas possibilidades tentarei. Como disse no post de agradecimento (vide AFRICANIDADES) não percebo nada de guerras. Talvez consiga de vez em quando uma ou outra foto de quartéis. Tiradas à socapa que nessas coisas de "Segurança de Estado" os militares guineenses continuam muito briosos. Pode o quartel ser um amontoado de tijolos sem telhado que se veja, mas se o turista tira o retrato está em apuros.

Um abraço e uma vez mais obrigado
Jorge Neto

Guiné 63/74 - P201: Operação Guiné-Bissau 2006 (1) (João Tunes)

1. Na nossa tertúlia (virtual) já se falou na agradável, se não mesmo excitante, hipótese de um encontro de 1º grau. A oportunidade, eventualmente, mais próxima poderia ser ainda este ano ou mais provavelmente no início de 2006, por ocasião da realização das provas de mestrado do nosso paisano, historiador e ilustre guineense, o Leopoldo Amado, que está a finalizar a sua tese de dissertação sobre a dicotomia guerra colonial / guerra de libertação (Guiné 63/74). Essas provas, ainda sem data mnarcada, deverão realizar-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ao Campo Grande.

Este primeiro encontro poderia reunir, sem grande aparato logístico, quase a custo zero, os tertulianos, mouros ou não, que residam na área da Grande Lisboa (Mas todos os outros serão bem vindos).

Um segundo encontro, de 1º grau, já teria que ser mais alargado, e eventualmente falou-se na hipótese de ser a norte do Douro, para juntar mouros e morcões.

O João Tunes, mais rápido do que o Speedy Gonzalez, veio logo fazer uma sugestão ainda mais radical: é aquilo a que eu chamo a Operação Guiné-Bissau 2006... Oicemos o nosso tenente Tunes (a ideia já circulou pelo circuito-fechado da tertúlia; passo a divulgá-la pelo ciberespaço, de modo a chegar a outros possíveis interessados). LG


2. Texto do João Tunes:

(...) Outra [proposta de encontro](que já tive o atrevimento de alvitrar ao Paulo e ao Jorge Neto, do "Africanidades"), esta mesma de VIP, ou manga de ronco, e que seria em ... Bissau!... Com programa extra de complemento de "parte social" com saltadas a Pelundo, Olossato, Xitole, Bambadinca, Catió e...).

Só que esta exige puxar dos cordões à bolsa e deveria ser programada para o ano (mas ainda quando o Paulo estivesse em Bissau).

Proponho que se aprovem as operações. Com as emendas necessárias, é claro!, que nem o Luís nem eu nos chamamos Jerónimo nem isto anda ao toque de caixa do centralismo democrático. Mas sem rebaldarias, que isto não é tropa manifestante, é tropa disciplinada e medalhada, nem nos lembrámos ainda de metermos as nossas esposas (ou esposos ... para não me acusarem de homofóbico) a darem a cara por nós.

Depois, é distribuir as missões aos grupos de combate. Eu cá estarei para me desenrascar com o que me calhar em sorte. Obedecendo ao nosso Cmdt-Chefe Luís (relativamente ao qual só me volto a insubordinar se ele se lembrar de usar caco).

Guiné 63/74 - P200: Fotos do Pelundo, na região do Cacheu! (João Tunes)

Texto do João Tunes [que foi Alf. Mil. de Transmissões, em 1970, na CCS de um batalhão, aquartelado no Pelundo, de que ele já não sabe o número de identificação, ou não quer saber; e se sabe, não nos diz: ele lá sabe porquê...]

Camarigos (*),

Em tempos recebi e publiquei estas duas fotos relativas ao Pelundo [vd. post do autor no seu anterior blogue, o Bota Acima, com data de 30 de Abril de 2004].

Foram tiradas pelo último Alf. Mil. de Transmissões lá colocado (João Lemos), portanto um dos meus "sucessores", antes de o quartel e sede de Batalhão ser abandonado e entregue ao PAIGC, e que ele deu autorização para divulgação pública.


© João Lemos (2005)









Refira-se que no Pelundo (perto de Teixeira Pinto/Canchungo)(1) estava a sede do Batalhão, a CCS e uma companhia operacional. [No Pelundo estava ainda o comando de ] companhias operacionais destacadas em Jolmete e em Có.



© João Lemos (2005)


Uma das fotos é do aquartelamento e a outra fixa o momento em que as ex-NT e o ex-IN confraternizam enquanto o comando local do PAIGC avança para tomar posse do aquartelamento.

Podem ser publicadas, devendo mencionar-se que a sua autoria é do João Lemos.

Mantenha pa nhos tudu.
João Tunes

(*) Forma preguiçosa de dizer "camaradas e amigos"
____________

Nota de L.G.

(1) Na região do Cacheu, na bacia hidrográfica do Rio Mansoa, entre Canchungo/Teixeira Pinto e Bula, a noroeste de Bissau: vd. mapas >

Guiné-Bissau > Mapa 1

Província Portuguesa da Guiné > Carta dos Serviços Cartográficos do Exército (1961)

Guiné 63/74 - P199: A origem das palavras 'turra' e 'tuga' (João Tunes)

© Manuel Ferreira (2005)

Tugas da CART 3494 (1972 /74), jantando leitão, na sua caserna-abrigo no Xime (1972).

Texto do João Tunes (que, entre muitos outros talentos, é um conhecido cinéfilo e um artesão da palavra):

O termo tuga não tem a raíz que o Luís lhe atribui. De facto, ele acabaria por ser adoptado pelos nossos soldados (e, espanto dos meus espantos, até serviria recentemente para exaltação de marketing da nossa mobilização futebolística no Euro!).

Mas a origem do termo tuga (abreviatura de portuga que, por sua vez, abreviava o português) foi uma devolução de insulto por parte dos guerrilheiros perante o turra com que a propaganda colonial os tratou (julgo que os mesmos termos - turra e tuga - foram utilizados na Guiné, em Angola e em Moçambique). Ou seja, uma resposta léxica à indução de terrorista mais "estúpido, primário" e que, resultando na força da brevidade insultuosa de turra, permitia injuriar com brevidade, repulsa e força.

Então, a volta do correio no insulto, vinha no tuga (a guerrilha recuperava e devolvia o tu associando terrorismo com a marca de nacionalidade portuguesa e de presença exógena em África).

O facto de o insulto ter sido adoptado pelo insultado (não me constando que, simetricamente, os guerrilheiros alguma vez tenham usado o turra entre eles), quando os soldados portugueses, entre si, se chamavam de tugas, terá a ver com a nossa capacidade de interiorizarmos a noção de pequenez e, afinal, sabermos que a nossa distância civilizacional não estava assim tanto nas antípodas do nível cultural dos que combatíamos.

© Agência de Notícias Xinhua (1972)

Guerrilheiros do PAIGC em posição de combate (ou em pose fotográfica ?) (O termo injurioso turra era usado por alguns de nós para designar os combatentes do PAIGC; apesar de tudo, a guerrilha do PAIGC impunha respeito às NT, em grande parte devido a estatura política e moral do seu líder, o Eng. Amílcar Cabral, mas também pelo valor militar de alguns dos seus comandantes, como o Nino Vieira).


2. Comentário de L.G.

Deixo aqui a resposta de um especialista da língua portuguesa, o angolano Rui Ramos, a uma pergunta de utilizadora do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa (aliás, aconselho vivamente os nossos tertulianos a visitarem este sítio sempre que tiverem dúvidas sobre uma palavra ou uma expressão: é uma caixinha de surpresas, um autêntico consultório da língua portuguesa - procurado diariamente pro milhares de utentes -, um verdadeiro serviço público à lusofonia, um sítio que tem tido uma vida de sobressaltos, depois de criado em 1997 pelo José Mário Costa e pelo saudoso jornalista João Carreira Bom).

Pergunta:

"Li algures que a palavra tuga era pejorativa. Não a encontro em nenhum dicionário mas de facto tornou-se conhecida pois foi o nome dado à Selecção Nacional aquando do Mundial 2002. A pergunta é: a palavra existe? E é pejorativa?" Manuela Couto. Portugal.


Resposta:

"A palavra tuga é de facto pejorativa. Surgiu em contraponto à palavra turra ('terrorista') que os colonos portugueses em África usavam para designar os que, com armas, se opunham ao colonialismo. Surgiu na década de 60, já em plena luta armada de libertação nacional.

"Eu próprio a usava, já inserido na luta clandestina do MPLA em Luanda, para falar dos soldados portugueses em Angola. 'Turra-Tuga' é uma dicotomia que faz parte integrante da luta anticolonial e que, já se vê, define o lado mau da luta.

"Por isso eu desde o início considerei que a palavra tinha sido muito mal escolhida para a selecção portuguesa devido à carga guerreira, colonial e incivilizada, porque parece homenagear um dos períodos mais tristes da História de Portugal.

"Em sentido mais amplo temos a expressão pula (os imigrantes africanos tratam, invariavelmente, os brancos por esta palavra)". Rui Ramos. 07/01/2003.

Guiné 63/74 - P198: Bibliografia (3): Aquela lufada de ar quente que vem das bolanhas de Brá e de Safim... (Paulo Salgado)

Capa do romance de Boris Vian (1920-1959), L'écume des jours , que está de resto traduzido em português já há muitos anos, A Espuma dos Dias). Um dos livros de referência da geração do existencialismo. Lido no Olossato no tempo da guerra colonial ... Para levar na bagagem de um tertuliano e reler hoje em Bissau...

Fonte: Le petit cahier du grand BORIS VIAN (29.09.2005)

Texto de Paulo Salgado, que estava com insónias, na penúltima última noite, antes de partir para Bissau:

Luís,

Já escolhemos - a minha mulher e eu. Ela não foi soldado, mas qualquer dia entra como bloguista, juro-vos; ela até me atira:
- E se vivessemos sempre em Bissau?!

Eu fico admirado, palavra; estive 18 anos para ir à República da Guiné-Bissau e ela, sempre na nega:

- Não te chegou a guerra?!
- Bolas, tu não compreendes - ...Até que foi passar comigo o fim de ano de 1990...e depois bebeu a água do Pidjiguiti !

Pois é, já escolhemos os livros e os discos. Lá vão alguns clássicos, para revisitar, um ou outro ensaio:
- Ah, ela meteu as Farpas (parece que vêm a propósito, nesta quadra eleitoral)...

Eu, pela minha parte, pus a Mahalia Jackson, a Areta, o Zeca, o Adriano (porra, então não houvera de ser: no Olossato ouvíamo-los antes de sair para as emboscadas!...quantos de vós não fizeram o mesmo ?!).

Não sei por que razão, o Moura Marques - grande cabo e amigo e camaradão e companheirão - um calmeirão que vive em Tires (carago, ainda não lhe liguei a dizer que vou mais uma vez) lá ia ouvir a 5.ª Sinfonia (não sei bem a razão desta audição, mas pronto).

O pior é a merda dos livros de trabalho. Pensava eu que sabia muito. Pus-me a ver o que me fazia falta: e lá vão coisas sobre recursos humanos, armazéns, procedimentos, processos clínicos, estatística - quando sei que, apesar de tudo, o que é preciso é ouvir os companheiros com quem vou trabalhar.

As malas estão quase prontas, claro o computador e o mail atrelado (faz-me falta para entrar em contacto com a equipa de retaguarda! O Luís Graça tem razão, vocês são a equipa de retaguarda.)

Mas lembrei-me agora: a minha Paula, filha com trinta anos, quase doutora investigadora em Oxford (ainda dizia aquela senhora que esta era uma juventudo rasca!), e que fez o 11.º ano em Bissau. E como ela é importante para mim. Quando vou visitá-la a Oxford, estamos no paleio até às 3 da matina... Como é bom aprender com os jovens; o namorado entra na conversa, mas o puto nunca esteve em Bissau, bolas. Ela é amiga...é diferente...

Estou meio tonto a escrever, porque me sabe bem estar a falar convosco. Ainda há momentos falei com a Dr.ª Maria Lopes Cardoso, da Universidade Católica, por causa de um puto, filho de um senhor (na altura ele era puto em Nhacra) que queria vir estudar para cá; mas é difícil... Todavia, como a Dr.ª Maria Lopes Cardoso me encantou com a sua amizade e sentido de justiça...

Tenho que meter alguma filosofia - ajuda a descontrair. Poesia, muita. Policiais é com minha mulher. Meto também a Antologia Poética da Guiné-Bissau (edição de 90...) e o dicionário de crioulo. Alguns ditus são notáveis.

Já me esquecia que tenho que dar um palpite sobre o discurso de um camarada e amigo olossatense que é candidato a uma junta de freguesia para os lados da Póvoa, ele que foi pescador - quer a minha opinião. Eu bem lhe disse:
- Tu é que conheces bem o Povo, o teu Povo, bolas. Tu é que lhes podes transmitir, com as tuas palavras, o que desejas para a freguesia... - Mas ele insistiu...

Já sei o que nos espera, quando aterrarmos: aquela lufada de ar quente que vem das bolanhas de Brá e de Safim batendo nas ventas e no corpo - parece que a Máfrica entra em nós.

E os putos:
- Patim, um euro! Misti taxi?- Acotovelamo-nos, suados.

E depois o Sr. João, motorista. Solícito mas firme; educado, mas sem baixar a cerviz:
- Kumma di biaje? Família sta diritu?
- Io, Sr. João.

Estou a imaginar. A conversar. Já passa da meia noite e o sono não vem. A Maria da Conceição já me chamou, mas eu, moita carrasco. Quero estar aqui. Um acto de solidão - mas partilhada.

Gostava de fazer um poema
feito de luzes e de sombras
em louvor
à camaradagem

Gostava de fazer um poema
feito de saudades e abraços
em louvor
ao amor

Gostava de fazer um poema
feito de madrugadas serenas
em louvor
aos que amam a esperança

Como vedes, amigos e camaradas (ainda não consigo dizer caramigos - hei-de conseguir...), estou a sonhar acordado.

Estou de novo no meu quarto-escritório. Já me esquecia da Espuma dos Dias (o Mário Tomé emprestou-me o livrinho naqueles idos anos de 70...) (1), tenho que relê-lo. Certamente vamos pagar peso a mais no aeroporto de Sá Carneiro:
- Já meteste lá umas garrafas, não sei como vai ser -... As cautelas de mulher sábia...

Olha, Luís, ao menos estive convosco, antes de partir...

Amanhã ainda tenho que ir ao SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras], regularizar a situação de uma miúda que sofreu queimaduras numa mão- e nós vamos levá-la...a M'ma Baboura!

Até sempre, camaradas.
Paulo Salgado
____________

Nota de L.G.

(1) Romance do escritor francês Boris Vian (1920-1959), um enfant terrible, ligado ao existencialismo, amigo de Sartre e de Beauvoir. Publicado em 1947, foi um livro que marcou muito a geração que fez a guerra colonial, ou pelo menos aqueles de nós mais dados às coisas da literatura.

Curioso, também foi um dos muitos livros que eu levei na minha mala, no N/M Niassa, convencido de que ia passar umas férias tropicais... Boris Vian, boémio, iconoclasta, príncipe de Saint Germain des Près, trompetista de jazz, poeta, é autor de poemas e letras de canções, eternas, como Le déserteur [ O desertor] (1954). Cliquem neste link para ler o poema e a ouvir a música...

quarta-feira, 28 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P197: Para uma tertúlia eticamente correcta (João Tunes)

1. Texto do João Tunes:

Camarigos,

Mais que justa esta mensagem-homenagem ao Jorge Neto. Aliás, já o disse, foi o blogue do Jorge Neto a quem devo ter repudiado a estúpida e impulsiva jura que fizera em 1971 de não voltar a meter os pés na Guiné. Lá quero voltar, e se o fizer grande parte da culpa será dele.

No entanto, o Luís que permita uma correcção ao texto editado no "nosso" blogue - o Jorge não é cooperante (digo-o porque ele em tempos teve o cuidado de fazer essa corecção). Ganha a vida em Guiné-Bissau por sua conta e risco. Isto é, não está lá alapado há anos com ordenado garantido e depositado pelo Santo Estado. O que lhe dá autonomia para se exprimir sobre o que vê e sente sem as amarras de respeito patronal e conveniências políticamente correctas. Tornando-se, a meu ver, num caso mais que interessante de um jovem que, por prisão ao sortilégio das terras africanas, ali vai ficando e não conseguindo arredar pé.

Confirmo que sugeri que se analisasse a hipótese de darmos um salto à Guiné e que, para isso, se solicitasse os apoios orientadores do Jorge e do Paulo. Mantenho a sugestão apresentada à Mesa para discussão e deliberação. Mas fica um aviso desde já - o Jorge que não se lembre de sugerir que a malta "velhinha" se meta numa traquitana rodoviária e vá por aí abaixo aos trambolhões por Algarve, Marrocos, Mauritânia, e tal mais Senegal, até chegar a Bissau.Ou seja, fazer o que ele costuma fazer nas suas idas e vindas da Guiné (usar um automóvel para ir e vir da Guiné, acampando pelo caminho, é coisa da idade dele, já não para a nossa). Nem com médica, enfermeira e massagista assistentes, nem mesmo que se desencantasse uma antiga enfermeira-paraquedista e camariga para nos acompanhar e ir consertando colunas e metendo almofadinhas por baixo dos veteranos rabos de militares retirados.

Termino o correio de hoje com um pedido-sugestão: Li na legenda de uma fotografia publicada no blogue esta indicação "soldado Pucha (era turra e foi capturado e ficou no nosso exército)". O termo "turra" (uma abreviatura de "terrorista") era de facto usada e incentivado o seu uso durante a guerra no sentido de estimular o ódio pelo IN.

Hoje, com o devido respeito a opiniões diferentes, não me parece que faça qualquer sentido continuar a utilizá-la (este e qualquer termo depreciativo, como não permitiríamos o inverso, ou seja, que um guinéu ofendesse com generalizações Portugal e os soldados portugueses). E é uma contradição, pelo menos em termos de cortesia devida, usar expressões destas e dizer-se que se continua a amar aquela terra, se lhe deseja um bom futuro, gostava de lá se voltar, tratando assim os que lutaram e arriscaram a vida pela independência da sua terra. Finalizando, fica, se me é permitido, o apelo à contenção no uso de termos de conotação desrespeitosa ou ofensiva. Obrigado.
Abraços.
João Tunes

2. Resposta do Luís Graça:

João (e restantes tertulianios:

Fica feita a correcção... Aumenta assim, ainda mais, o meu respeito pelo Jorge Neto. Quanto ao reparo em relação ao uso de termos racistas, xenófobos mas... também do calão castrense, lisboeta ou nortenho (de carvalho para cima!), o João tem toda a razão: (i) os tertulianos devem ser eticamente irrepreensíveis e não apenas "politicamente correctos"; (ii) temos de ter mais tento na língua (eu às vezes, esqueço-me que o blogue é um espaço público)...

Grupo de soldados do PEL CAÇ NAT 54 (Missirá, 1969/70). O segundo a contar da esquerda para a direita é o soldado Pucha (ex-guerrilheiro do PAIGC, capturado e integrado nas NT) © Mário Armas de Sousa (2005)

Vou retirar, de imediato, os termos que podem ser (ou são) insultuosos ou, no mínimo, deselegantes, usados recentemente no nosso blogue e nas nossas páginas... Com esta história, vamos criando o nosso próprio livro de estilo... Mais uma vez, aprecio a frontalidade e a franqueza do João. Espero que sejam, uma e outra, replicadas por todos vós... Quatro olhos e duas cabeças vêem sempre mais e melhor do que dois olhos e uma cabeça...

Vou proceder às correcções: estou certo que o Mário Armas de Sousa (foi ele que usou a expressão na legenda da foto do Pel Caç Nat 54) também concorda que o termo "turra" é hoje mesquinho, infeliz, racista, obsoleto... Podemos usá-lo em excertos literários, em documentos da época, etc. ... Ou até de uma maneira afectiva, tal como dizemos checa (em Moçambique) ou periquito (na Guiné), em relação aos militares mais novos que nos vinham substituir...

Por exemplo, há uma das canções do Niassa (1) , que se chama precisamente o "turra das minas" e outras o "fado do turra" (2). Transcrevo uma das letras:


O Turra das Minas

I

O turra das minas,
Pequeno e traquinas,
Lá vai na picada
E a malta escondida,
Na mata batida
Monta a emboscada.
O turra passou,
A malta esperou,
Já toda estafada,
E a Berliet
Sempre foi estoirada.

II

Ó turra das minas,
A tua vida agora
É pôr as marmitas
Pela estrada fora.
Oh turra das minas,
Tua arma soa
Por léguas e léguas,
Aqui no Niassa,
Onde a Guerra entoa [ecoa].

III

Há mortos e feridos
E os mais comidos
Somos sempre nós,
Vamos pelos ares,
Gritando por todos,
Até pelos avós.
Ó turra bairrista,
Mas pouco fadista,
Já é tradição
Ser paraquedista
Sem tirar o curso,
Ai isso é que não.

Refrão:

Oh turra das minas,
A tua vida agora... (2)


Neste contexto (que era o de guerra), não me parece totalmente ofensivo (nas guerras, incluindo nas guerras civis, o IN, o adversário, quem está do outro lado é sempre tratado em termos depreciativos: boche, rojo, comuna...) mas deve sempre pôr-se o termo em itálico ou entre aspas... Nesta canção do Niassa pode até dizer-se que o turra é (quase) um igual a nós, um combatente, temido e até certo ponto respeitado... Daí a própria existência da canção: não se faz uma canção de guerra a quem não é temido nem respeitado...

No meu tempo, o termo tuga era usado pelos próprios soldados africanos (os nossos nharros) quando me queriam criticar ou insultar, em crioulo ou em fula... Aliás, não sei qual deles é mais racista: tuga ou nharro... A única diferença é que o primeiro era usado pelos oprimidos e o segundo pelos opressores.

PS - Pergunto ao próprio (e aos tertulianso) se podemos incluir o Jorge Neto na nossa lista de endereços, passando desse modo a considerá-lo um novo tertuliano... Eu proponho o seu nome... Não sei se ele foi militar da tropa... Nem isso para o caso interessa... Para nós, ele é um amigo da Guiné, logo nosso, tal como o Zé Carlos Mussá Biai e o Leopoldo Amado, os dois paisanos do nosso grupo.
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 11 de Maio de 2004 > Blogantologia(s) - XI: Guerra Colonial: Cancioneiro do Niassa

(2) Eu na altura não conhecia o Jorge Santos, mas a página dele foi muita valiosa para eu elaborar este texto:

Comentário de Jorge Santos: Fado de humor em que, como o nome indica, é o turra ou terrorista que põe as marmitas, as minas, nas picadas, os sejam, os caminhos através do mato.

Comentário de L.G.: Música de Joaquim Pimentel, fado "A Júlia Florista", uma das muitas criações de Amália. A Berliet era uma das viaturas mais usadas no transporte de tropas: de origem francesa, eram montadas no Tramagal.

Guiné 63/74 - P196: Good moooooooorning, Guinea-Bissau!


Blogue Africanidades
© Jorge Neto (2005)

Texto de Luís Graça:

Meu caro tuga, Jorge Neto:

Não tenho o prazer de te conhecer pessoalmente, mas o teu blogue fala por ti. Para já os meus parabéns pelas tuas Africanidades. Tu mantens a ponte (tensa e frágil) com estes gajos que por enquanto estão, trabalham, vivem, comem e dormem, neste lado do bem-bom do mundo, com vistas largas para o resto do universo... Alguns dormem mal, porque ainda são capazes de pensar nos dois mil milhões de homens, mulheres e crianças que (sobre)vivem nos subterrâneos do planeta, com menos de dois dólares de rendimento por dia...

Ontem reencaminhei para os meus colegas da saúde pública, umas chapas, daquelas de encher o olho do turista globalizado, sobre o nosso planeta, a nossa casa, lindíssima. Eu fico sempre de pé atrás com estas coisas, sobretudo pelo branqueamento que é feito, escondendo o sujo e o feio que é o outro lado da nossa casa. Daí ter escrito, em nota de pé de página, a acompanhar o reencaminhamento do ficheiro com as ditas imagens:

- Não sei se a nossa casa, o nosso planeta azul, é lindíssimo ou apenas lindo… De dentro, é difícil ser imparcial e objectivo. Há partes da casa que são deslumbrantes. Outras são vulgares … e muitas delas transfomaram-se em salas dos horrores, sem esquecer o sótão dos pesadelos… Dito isto, desfrutem destas paisagens da nossa casa. Há poetas e fotógrafos que cuidam do nosso bem-estar. Alguns deles são peritos em dar um toque especial às coisas. It’s magic!... Cada vez precisamos mais de magia… até para construir uma nova cultura da saúde pública. Eu sei que estas coisas roubam tempo (o vosso, o meu) e espaço (dos nossos já obsoletos PC) mas isto também ajuda, espero, a limpar a vista, parafraseando um melómano, meu conhecido, que tem o saudável hábito de ir ouvir ao vivo, todos os anos, a orquestra filarmónica de Berlim… “para limpar o ouvido” (sic).

Nas tuas Africanidades não fazes batota: a tua Guiné não é só o postal ilustrado dos rápidos do Saltinho ou do paraíso perdido dos Bijagós... Também és capaz de nos tirar o sono!

Escrevo-te também pela simples razão de que o teu nome apareceu num blogue que eu animo, o Blogue-Fora-Nada, pensado originalmente para eu cultivar as minhas blogarias de luxo e matar o vício da escrita e da comunicação... E que acabou por transformar-se num jornal de caserna de uns tantos pobres diabos, como eu e outros camaradas (literalmente camaradas, no sentido etimológico do termo), que ainda não conseguiram exorcizar os fantasmas da guerra (colonial) da Guiné (ou da guerra do ultramar, para manter o pluralismo ideológico e semântico)...

Convenhamos que o caso é de psiquiatria, mas como eu costumo dizer fica mais barato blogar do que ir à consulta do stresse pós-traumático de guerra do meu amigo Afonso de Albuquerque, no Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos. Em resumo, puseram-te ao barulho e vão-te mandar um emissário, de seu nome Paulo Salgado, que por acaso foi meu aluno, por uns dias, de um curso de especialização em administração hospitalar nos já idos anos de 1982, quando eu ainda era um simples prelector convidado da Escola Nacional de Saúde Pública...

Sem te conhecer (e conhecendo os teus escritos e as tuas fotos só de relance), escrevi sobre ti uma pequena nota d pé de página: "[Jorge Neto:] O autor do blogue Africanidades, cooperante em Bissau. Possível contacto em Bissau, de acordo com uma sugestão do João Tunes, para uma possível viagem de retorno àquelas terras, para matar saudades e não só... Este blogue é obrigatório para quem quiser conhecer a realidade da África de hoje, e em particular a Guiné-Bissau. Excelente documentação fotográfica. Um tuga que conhece e ama a África. Podem contactá-lo, ao Jorge Neto, por e-mail. Façam uma primeira visita ao seu blogue".

Sei que não tens nada para vender, no sentido material e mercantil do termo, pelo que não entendas este paleio como publicidade comercial (e muito menos enganosa), feita por interposta pessoa. Trocando amabilidades, ficas convidado a visitar o nosso Blogue-Fora-Nada e, inclusive, a escrever para ele.

É que infelizmente, para nós e para os nossos amigos da Guiné-Bissau, a guerra não acabou em 1974... Ainda não acabou. Nós temos contas a ajustar com aquela guerra. E para os guineenses, há outras batalhas a travar e outra guerra, ainda mais importante, para ganhar. Uma guerra que tem de ser ganha por todos, eles e nós. E sobretudo por estes djubis, estas crianças, que tu nos mostras na foto que eu tomei a liberdade de aqui reproduzir, com a devida vénia.

Boa saúde, bom trabalho, Jorge!

terça-feira, 27 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P195: O 'adeus e até ao meu regresso' do Paulo Salgado

1. Camarigos (... tenho pena de ainda não poder dizer camarigos & camarigas, por enquanto ainda não apareceu nenhuma enfermeira-paraquedista, mas eu vou tentar arranjar uma):

O barco está de saída... Despeçam-se do Paulo Salgado, que vai partir dia 30 como cooperante para a Guiné-Bissau.... Metam-lhe uma cunha que é para aquela terra, que nos é muito querida, dar um salto... para o futuro! L.G.

Bissau > Cais do Pidjiguiti
© Paulo Salgado (2005)

2. Mensagem do Humberto Reis:

Camarigo Paulo: Leva-me contigo!... Já não vou àquela terra desde 1996 (há mais de 9 anos). São mais que pobres, paupérrimos, mas continuamos a gostar daquilo, da terra e das gentes. Já sei que o voo é às 09,10 de 6ª feira.

Um grande abraço e FELICIDADES no desempenho da tua HUMANITÁRIA MISSÃO. Pelo que percebi já não é a 1ª vez que voltas à NOSSA Guiné. Não te posso ser de grande utilidade mas conheço um comerciante português, cuja família é de origem libanesa (é filho da D. Rosa de Bafatá ex-ten.cor paraquedista) e que passa a maior parte do tempo lá em Bissau no negócio da castanha de cajú. Ele mora aqui perto de Lisboa, em Linda A Velha, encontrando-se cá neste momento mas em breve vai voltar a Bissau.

Se precisares de alguma coisa que ele possa levar é só dizeres-me que eu tenho confiança com ele para lhe pedir. É ele normalmente que me leva as canetas, borrachas, lápis, etc. com que eu costumo abastecer a escola de Bambadinca.
Dá notícias, não te desligues desta malta.

Humberto

3. O Marques Lopes também vem desejar "boa estadia" ao Paulo:

Amigo Paulo :

Os meus desejos de uma boa viagem e óptima estadia e bom trabalho naquela terra das saudades. Não sei quando, mas pode ser que eu um dia apareça por lá.

Se tiveres oportunidade dá um abraço meu a este meu amigo que está em Bissau há anos (e que muito me apoiou quando lá estive em 1998): Manuel Pires Nabais - Av. 3 de Agosto - Cx. Postal 611 - telefone 201661.

É um homem bem conhecedor de Bissau, conhecedor daquela gente (sabe bem de todos os mandantes...). Era (não sei se ainda é) Administrador Delegado da GUIPORT (a empresa gestora do porto de Bissau) e de uma empresa de camionagem sedeada na cidade. É primo de um ex-alferes, o António Moreira, que esteve comigo em Geba.


© Paulo Salgado (2005)

O Alf. Mil. Salgado, da CCAV 2712, no Olossato, prestando ajuda como voluntário ao Fur. Enf. Carvalho.

Ele já tinha vocação, na época, para a administração de serviços de saúde. E particular motivação e sensibiliddae para as questões da cooperação e da solidariedade (LG).



Ele, o Manuel Pires Nabais, que te apresente outro amigo meu, o Luciano. Um bom amigo, embora com feitio próprio, ex-comando que se sedeou em Bissau há anos, depois de ter passado como mercenário na zona dos diamantes de Angola. É dos poucos que sempre lá se aguentou durante todas as convulsões na Guiné-Bissau. Conhece o Cupilon como eu conheço a minha casa.

Um e outro estão por dentro de tudo, conhecem todos os meandros, de baixo acima.
Um abraço

A. Marques Lopes

4. Comentário final do Paulo:

(i) O Luís é assim: põe-nos a todos loucos! É a camaradagem, a solidariedade, o companheirismo. Agradeço a todos e prometo-vos que cumprirei com lealdade as funções que vou desempenhar...! Por isso, o que for mandando, o Luís Graça fará o favor de remeter a TODOS!

(ii) Luís e Todos!

Vou prás terras quentes durante um ano - com intervalos. Em 1970 não dava só tiros! Ajudei o furriel Enfermeiro Carvalho no registo dos doentes. Agora a minha missão (e de mais quatro parceiros, 35 anos depois) é muito semelhante a esta...

O branco loiro que está nesta foto é um "louco" de um holandês!!! Como ele trabalha!

(iii) Amigo e camarada Humberto

Como é bom ler esta mensagem! Fica descansado: irei cumprir o que me pedes - sempre são meses a cumprir nesta missão, agora de paz.

(iv) Grande Marques, camarada,

Farei o que me mandas, com muito orgulho em pertencer a esta tertúlia - mais uma vez vem ao de cima a camaradagem. É belo ter camaradas e amigos assim.

Vou mandar para o Luís (o nosso "mensageiro") as mensagens e fotos e textos que for fazendo - sempre é um ano! - embora venha cá três ou quatro vezes. Uma espécie de comissão: já conto dezenas de vezes a idas a Bissau! Conheço de Norte a Sul quase tudo, embora me falhem algumas tabancas de que os camaradas falam...

(v) João Camaradão [João Tunes],

Estás "desculpado".

Já recebi mails de camaradas a desejarem boa estadia - e a ti também agradeço com muita amizade.

Vou tentar dar o litro na missão de paz que envolve quatro parceiros - qual nave de loucos - e também tentar dar um contributo forte ao teu blogue e ao "nosso" blogue.

Comigo podes contar com o contacto que farei em Bissau com o Jorge Neto (*). Ele tem que me contactar no [Hospital] Simão Mendes - lá junto da Administração...

Em Bissau, programarei uma estadia de uma semana e mandarei notícias breves. Acho que já dei provas: vós não me conheceis (eu vivo em Gaia, mas sou transmontano - de MONCORVO), mas o que prometo ... tento não falhar.

Como já disse, embarco a 30 e, apesar de muito trabalho que me espera, agora tenho esta "emboscada" com a equipa de segurança de retaguarda - que sois vós.

Mantenhas do
Paulo Salgado
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Nota de L.G.

(*) O autor do blogue Africanidades, cooperante em Bissau. Possível contacto em Bissau, de acordo com uma sugestão do João Tunes, para uma possível viagem de retorno àquelas terras, para matar saudades e não só...

Este blogue é obrigatório para quem quiser conhecer a realidade da África de hoje, e em particular a Guiné-Bissau. Excelente documentação fotográfica. Um tuga que conhece e ama a África. Podem contactá-lo, ao Jorge Neto, por e-mail. Façam uma primeira visita ao seu blogue.