terça-feira, 25 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P238: Antologia (22): Madina do Boé, por Jorge Monteiro (CCAÇ 1416, 1965/67) (Luís Graça)

Vista aérea do aquartelamento de Madina do Boé (1966)

© Manuel Domingues (s/d) (?) (1)

Madina do Boé foi varrida do mapa da memória dos portugueses, excepto muito provalvelmente no nosso caso, ex-combatentes. A geração dos nossos filhos e netos não conhece esta pequena parte da nossa história do Século XX. Madina do Boé não lhes diz nada, a não a ser talvez o termo bué, que nada tem a ver com Madina do Boé: Bué "é um calão luandense, que tem o significado do beaucoup francês, muito de: bué de charros, bué de confusão, bué de preconceitos. Tudo o resto (incluindo a variante boé) são corruptelas derivadas de uma apropriação crescente da linguagem popular portuguesa" (Fonte: Ciberdúvidas da Língua Portuguesa).

Para a nossa tertúlia e demais ciberamigos, achei por bem transcrever uma velha entrevista que o ex-capitão miliciano Jorge Monteiro, comandante da CCAÇ 1416 (1965/67) deu ao semanário luandense A Palavra, em 1 de Fevereiro de 1974.

Este depoimento foi depois reproduzido no livro do Manuel Domingues, já aqui recenseado pelo nosso camarada A. Marques Lopes (2): Uma campanha na Guiné (1965/67): história de uma guerra: relatos e memórias dos intervenientes.

Neste livro, que é edição de autor e que relata a experiência dos homens do BCAÇ 1856, espalhados pela região do Gabu (Nova Lamego, Madina do Boé, Béli, Bajocunda, Copá, Buruntuma, Ponte Caiúm)(3), há pelo menos quatro depoimentos sobre Madina do Boé:

(i) Afinal o que é Madina do Boé?", por Jorge Monteiro, Cap Mil da CCAÇ 1416;

(ii) Retalhos de uma campanha, por António Sousa Madureira, Fur Mil da CCAÇ 1416;

(iii) Aconteceu em Madina do Boé, por José Miranda Alves, 1º Cabo da CCAÇ 1416;

(iv) Aspectos caricatos de uma guerra, por António Araújo, da CCAÇ 1416.

Infelizmente ainda não encontrei nem li o livro. Reproduzo, com a devida vénia, o depoimento do Jorge Monteiro, a partir de uma versão digital que encontrei no Blogue do Fernando Gil > Moçambique para todos. A uns e a outros a minha homenagem e agradecimento.

Mais do que a leitura que entrevistado e entrevistador fazem da retirada de Madina do Boé (que é a da desvalorização do seu significado político-militar) e da proclamação posterior de Madina do Boé como capital - não do PAIGC, mas da nova Guiné-Bissau, imediatamente reconhecida por dezenas países -, importa sobretudo perceber as duras condições físicas e psicológicas em que os nossos camaradas viveram, durante anos, em Madina do Boé. Tiro o meu quico aos bravos de Madina do Boé, heróis de ontem, hoje já esquecidos tal como a sua/nossa guerra, perdida (4). L.G.


2.2. Afinal o que é Madina do Boé? Por Jorge Monteiro, Capitão Miliciano da CCaç 1416

Nota: Este documento foi-me entregue por Jorge Monteiro e reproduz uma entrevista que concedeu ao Semanário de Luanda A Palavra, em 1 de Fevereiro de 1974. O motivo próximo, conforme é referido pelo entrevistador, cujos comentários aparecem no texto em itálico, tem a ver com o facto de o PAIGC, em 24 de Setembro de 1973, ter proclamado a unilateralmente a Independência, exactamente em Madina do Boé.

O significado político deste acto era muito mais importante do que o valor que Madina do Boé militarmente pudesse representar para o Exército Português, o que na altura parece ter passado despercebido aos estrategas militares. Mantivemos o texto integral da entrevista de quem viveu onze meses, naquele que em 1966/67 era considerado o pior local da Guiné. MD [Manuel Domingues]

Entrevista de Jorge Monteiro, ao semanário A Palavra, Luanda, 1 de Fevereiro de 1974:

A recente visita de Baltazar Rebelo de Sousa, Ministro do Ultramar, a terras guineenses, aproximou de mim Madina do Boé. Ela veio personificada num amigo de todos os dias, o ex-capitão miliciano Jorge Monteiro, que em 1965 iniciou prestação e serviços na Guiné como comandante de Companhia 1416 (integrando o BCAÇ 1856) reconhecido posteriormente como um dos mais valorosos servidores da causa portuguesa em terras ultramarinas.

Em 1967, regressado à Metrópole, ele foi condecorado, nas cerimónias do 10 de Junho, pelo próprio Salazar, com a condecoração de grau mais elevado atribuída esse ano, a medalha de valor militar com palma, ganha precisamente por actos praticados na defesa intransigente, durante onze meses, de Madina do BOÉ, ora apontada pelo PAIGC como capital da Guiné Livre.

Já tinha lido muito sobre essa localidade, tão na boca do mundo ultimamente, mas jamais poderia ter chegado a conclusão tirada após a conversa esclarecedora: Madina, afinal, é apenas um escroto, um resto deixado ao desbarato pelos planos tácticos portugueses, desde que se entendeu ter ela pouco ou nulo valor estratégico, mesmo olhada como base tamponária.


Diz-me Jorge Monteiro:

Madina do BOÉ eram (hoje não são) cinco casas, incluindo uma escola. Escola, que já nessa altura, estava completamente abandonada, Aliás, tudo estava abandonado, por que Madina servia em tempos tão somente como passagem entre a desolação Sul do BOÉ e as riquezas nortenhas do Gabu, parecendo incrível como um rio, o Corubal que separa as duas regiões, seja suficiente para demarcar uma fronteira de potencialidades.

O BOÉ, a zona mais pobre de toda a Província, sofre a inclemência impiedosa do tempo que vai de Maio a Setembro, com chuvas torrenciais contínuas que alagam por completo a região vedando portanto qualquer tipo de plantio para a agricultura mesmo arcaica.

Como te disse já, em 1967 só lá havia a minha Companhia, completamente isolada nessas alturas do mundo circundante, a tal ponto que só podíamos ser abastecidos de pára-quedas. Felizmente que assim era, pois esse isolamento fazia com que não tivéssemos uma população civil por quem responder, toda ela preventivamente evacuada Não nos podemos esquecer, aliás, que o primeiro indício de actividades do PAIGC, no BOÉ, data de Novembro de 1964.

Com efeito, o PAIGC tinha começado muito antes a sua actividade, organizando-se burocraticamente desde aquele ano de 1959 quando Amílcar Cabral, hoje falecido por causas ainda não totalmente determinadas ingressou no Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), quando do regresso da União Soviética.

Porém, o conflito armado, com acção directa sobre o território português da Guiné, só se verificaria mais tarde, em 1962, nas povoações limítrofes de Susana e Varela, na fronteira Norte, muito longe do Sector Leste, onde está integrado o BOÉ.

Nesse lado, vis-a-vis o Senegal, há uma fronteira de quarenta quilómetros, muito mais pequena do que a que delimita o território português a Sul e a Leste, num total de 350 quilómetros face à República da Guiné, de e por onde, a infiltração dos efectivos do PAIGC nunca encontrou quaisquer dificuldades, progredindo sem perigos de retaguarda, por todo um baldio, e dominando as posições estratégicas que sobranceavam Madina, flagelada constantemente com fogo cerrado, acobertados pelos contrafortes que dominavam a antiga povoação em três quartos do seu perímetro topográfico.

Madina, diz-me o ex-capitão Monteiro, era o penico dos gajos. Havia horas certas para eles fazerem as suas dejecções muito desajeitadamente com obuses, granadas, rockets, e utilizando indiscriminadamente bazucas, morteiros e canhões sem recuo. Foi assim sempre, eu e os meus homens aguentámos aquilo durante onze meses, contados dia a dia pelas salvas com que eles nos mimoseavam.

Naquela, altura a ordem era AGUENTAR, por ser necessário tamponar convenientemente a retaguarda, implantando um sistema defensivo eficaz. Porque aquilo era mesmo de abandonar, pela pobreza da Zona e sobretudo não merecer sequer a conclamação das atenções, a vigília constante e a tensão desgastadora com que lá se vivia. Com um cordão defensivo, como o que se efectivou, atrás da posição de Madina ter Madina ou não ter era a mesma coisa.

Vou explicar: 200 homens da minha Companhia, aliás antes eram também 200 de outra e, depois de mim, eram outros 200 da que nos substituiu, chegaram e sobraram para manter a posição. Um número tão diminuto de homens nunca foi ultrapassado territorialmente pelos efectivos do PAIGC, que se entretinha a dar tiros de longe para marcar uma posição mais sonora que física.

Só uma vez tentaram o assalto, chegando mesmo a lançar cordas com ganchos para destruir a vedação farpada, servindo-se da chuva mais opaca que já vi na minha vida que nos impedia a visibilidade e lhes abafava ou confundia os ruídos dos passos. Mesmo assim foram repelidos, sofreram baixas bastante consideráveis e optaram por voltar à origem preferindo continuar no dia seguinte os tiros de longe e repudiando para sempre o corpo a corpo. Ora bem: se 200 homens aguentaram a posição ano após ano, e repara que em 1967 eles já tinham todo aquele potencial bélico, quem acredita que o abandono de Madina foi imposto?

Pensar isso é ridículo, mesmo objectando que eles poderiam ter aumentado os seus efectivos para um ataque maciço: Mas ainda há dois meses o general Bettencourt Rodrigues esteve lá, e quem faz guerra, quem viveu ou vive a guerra sabe que não se brinca com essas coisas, mesmo num bluff cuidadosamente calculado, mas mesmo assim sempre irresponsável, as balas matam seja lá quem for e os próprios jornalistas que o acompanharam por certo também não arriscavam de ânimo leve, as suas vidas, eles que são correspondentes de guerra com experiência de outras, por virtude muito mais violentas e que ainda se desenrolam. Em resumo: ninguém estava lá. O interesse de Madina era limitado a um certo tempo, e a partir daí não contava mais.

Eu, que vivi em MADINA durante onze meses, que constatei a inutilidade daquele chão, o clima inóspito, a desolação desértica, sei que Madina não vale sequer a chuva que lá cai. E eu, deixa-me ser um pouco contemporizador, que me apercebi duma certa coerência por parte de quem norteava a táctica das guerrilhas do PAIGC (porque é sempre preciso ser-se coerente para não se perder tudo de uma só vez, contra um adversário técnica e tacticamente muito mais evoluído), não posso sequer admitir que ATÉ ELES apregoem Madina, uma autêntica fossa, como capital do seu orgulhoso desiderato. Se isso for verdade, se de facto eles dizem isso, então nem sequer é um grito de liberdade, mas apenas um facto ridículo, caricato até, mesmo para os olhos de quem confere as guias de despacho do armamento que eles utilizam...

Madina, a sete quilómetros da fronteira da Guiné-Conackry, está ligada por estrada a Nova Lamego ao Norte, ramificação rodoviária para toda a Provinda, com estradas que servem bem no tempo seco mas que são pântanos autênticos nos dias de chuva, principalmente os de Julho e Agosto.

O Boé, tem solo muito pouco permeável, sem elevações consideráveis e consequentes declives escoatórios causando portanto a estagnação da água, que só a absorção lenta pela terra, já de si saturada de humidade, fará acabar com a ajuda do sol violento de Setembro, a apressar a evaporação. São dezenas e dezenas de quilómetros de área inundada charco imenso de que apenas as rãs parece acharem uma justificativa.

Quando tínhamos uma operação, fosse de que tipo fosse, andávamos com água pela cintura. Há por lá muitos riachos e rios pequenos (o único verdadeiramente rio, é o Corubal, o maior da Guiné) mas quando a chuva cai, e eu conheço a chuva de Angola há mais de vinte anos!, tanto faz caminhar pela estrada, pelo capim ou pelo leito dos rios: o "boal" imenso é raso, e a água nem sequer é mais alta aqui ou acolá. O nível é sempre igual, como se a Natureza caprichasse em transferir para ali toda a inutilidade que a chuva possa querer significar na Guiné.

Ao princípio, causava-nos uma certa perturbação andarmos com os fundilhos molhados, depois de habituados acabámos por aceitar a nova situação com uma filosofia muito própria — enquanto caminhássemos, era sinal de que não boiávamos, o que, naquelas circunstâncias, não era bem uma questão de natação. Mas como se pode depreender, tanto a manobra táctica, como a movimentação física, e sobretudo enfim, a própria lei da sobrevivência, estavam reduzidas em muito, com um desgaste anímico, multiplicado por um coeficiente que só os nossos corpos conheciam...

Acontece, contudo, que tínhamos uma vantagem: a exemplo do sol, a chuva quando vem também é para todos e assim os elementos do PAIGC tinham precisamente os mesmos problemas.

E por muito paradoxal que pareça, a tropa da Europa, habituada à amenidade do seu próprio clima, dava melhor conta de si naquelas condições verdadeiramente incríveis, por inóspitas e insalubres, do que no tempo seco, já que o desaparecimento das águas activava sobremodo os nossos «amigos» do outro lado...

O refúgio da Companhia 1416 era um acampamento subterrâneo protegido por arame farpado e seteiras, um alvo apetecido para os ataques diários dos revolucionários, que em Dezembro de 1966 bateram todos os recordes de desperdício de munições. Recorrendo ao seu diário de combate Jorge Monteiro diz-me, entre irónico e nostálgico:

Tenho um certo carinho por este livro, não só por ter sido escrito por mim, mas sobretudo por ser eu a ler, ainda algumas passagens para teu esclarecimento, sinal óbvio de que estou vivo e de boa saúde.

Ora vê: No dia 01 de Dezembro às 18H15, mandaram-nos seis granadas de morteiro 82. Às 19H30, se calhar por não terem acertado, mais seis. Estas deviam ser as do dia seguinte, porque só no dia 03 voltaram à fogaceira, e desrespeitosamente às seis da manhã: mais meia dúzia.

À tarde do dia 4 (para eles era demasiado acordarem dois dias seguidos às seis da manhã...) nove granadas, também de 82. No dia 5 descansaram, mas o dia seis vingaram -se bem, puseram dois morteiros e dois canhões sem recuo a trabalhar, conseguindo deitar abaixo uma parede. Uma das tais casas abandonadas. No dia 7, sem olhar a que merecíamos descanso começaram as três da madrugada: 15 granadas.

No dia 8, às seis da tarde, cinco granadas, e logo a seguir, às sete e meia, e duas granadas de canhão sem recuo. Onde elas caíram não sei... Não vale a pena continuar, por ser fastidioso e maçador. Por que, acredita, foi sempre assim, durante todos os onze meses que lá estive, uma e outra vez sujeitando-nos a um bombardeamento de quatro e cinco horas seguidas.

Como curiosidade, digo-te que houve um dia que assinaram o ponto cinco vezes, mas respeitaram religiosamente o Natal: houve tiros só no dia 23, mas voltaram à carga no dia 26, logo às seis a manhã. Para o fim, já era monótono pois sabíamos a horas certas dos tiros...

Conclui-se, portanto, que o bombardeamento sobre Madina era contínuo e eles próprios lá iam esburacando as casas, já por si a cair de podres. Pouco ficou, e se implantaram lá a Independência, então meteram água pela certa, pois não há qualquer tecto que os proteja da chuva.

Madina do Boé. O vazio de todo um pesadelo muito e mais vazio depois de Spínola ter inutilizado o abrigo e armadilhado tudo aquilo em redor. Madina do Boé, cinco casas esventradas, pântano perpétuo, chão inútil. A capital do PAIGC.
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Notas de L.G.:

(1) Imagem reproduzida, sem menção da fonte, no Blogue do Fernando Gil > Moçambique para todas. Presumo que a sua autoria seja do Jorge Monteiro ou do Manuel Domingues.

(2) Vd. post de 18 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CXI: Bibliografia de uma guerra (5)

(3) Para uma melhor localização destes sítios, vd. o mapa da Guiné dos Serviços Cartográficos do Exército (1961).

(4) Vd. posts de:

(i) 17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790);

(ii) 2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969).

segunda-feira, 24 de outubro de 2005

Guiné 63/64 - P237: A contabilidade dos mortos na operação de retirada de Madina do Boé (José Martins)

Texto de José Martins:

Caro Luis Graça:

Ví no blogue-fora-nada o texto sobre a retirada de Madina do Boé (1). Na realidade morreram nesse desastre quarenta e sete homens, apesar da maioria das referência apontar para 46. Efectivamente a 47ª vítima era um caçador nativo (2), pelo que não consta das estatísticas militares.

Sei do que se passou, dado ter sido eu, na altura, Furriel de Transmissões da CCAÇ 5, de Canjadude (3), a proceder ao levantamento dos desaparecidos, junto de cada companhia, e de ter redigido a mensagem que foi enviada, momentos depois, para todos os escalões superiores.

Em nota de rodapé, registe-se a preocupação dos sobreviventes, traduzida na tentativa de enviar TELEGRAMAS, para avisar a família de que se encontravam bem. Não foi enviada nenhuma mensagem/telegrama, dado que, mesmo que transmitidos para o batalhão os enviar depois via Marconi, seriam fatalmente censurados no percurso (4) (5).

Um abraço do camarada
José Martins
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (1969)

(2) Presumo que o autor do texto quer dizer soldado africano de um Pelotão de Caçadores Nativos, tropa regular, emboar de recrutamento local, que deve ser confundida com as milícias.

(3) Vd. Carta da Guiné (1961). Na zona leste da Guiné, hoje região do Gabu, entre Nova Lamego (hoje Gabu) e Cheche (ou Ché Ché), na estrada Nova Lamego-Madina do Boé que atravessa o Rio Corubal precisamente em Cheche, sítio onde se deu a tragédia que vitimou os 47 militares.

(4) Madina do Boé tem um significado mítico tanto para nós, que fizemos a guerra colonial, como para os guerrilheiros do PAIGC. Depois da nossa retirada, o aquartelamento, abandonado e armadilhado pelas NT, terá sido imediatamente ocupado pelos sitiantes.

Em Julho de 1973, o PAIGC realiza em Fulamor, a oeste de Madina do Boé, o 2º seu Congresso. E, finalmente, em 24 de Setembro de 1973 é ali proclamada a Independência Unilateral da Guiné-Bissau pelo PAIGC, sendo Luís Cabral eleito Presidente do Conselho de Estado.

domingo, 23 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P236: As estórias que não contamos aos nossos filhos

Não houve mata na Guiné que o Alferes Comando Briote não tivesse pisado uma ou mais vezes, incluindo Satecuta/Galo Corubal, na região do Xitole, por onde andou 19 dias, na época das chuvas (!). E mata aqui significa território sob controlo (militar, político e adminmistrativo) do PAIGC. L.G.

Entre outros camaradas africanos, o tuga Briote - que foi em rendição individual, nos finais de 1964, para a CCAV 489 (Cuntima, região do Cacheu) e que seis meses depois estava em Brá a fazer o curso de comandos - trabalhou com o Marcelino da Mata e o Jamanta que vieram mais tarde a integrar a 1ª Companhia de Comandos Africanos que eu vi crescer em Fá Madinga (1). L.G. © Virgínio Briote (2005)


Texto de Virgínio Briote, ex-alf mil comando (1965/67):

Pois, a Guiné! A Guiné faz parte de mim. Entrou-me no sangue aos 21 anos, tenho 62, vive comigo. Percorrem-me sentimentos contraditórios, não devia ser, mas é o que sinto às vezes. Assaltos, pé ante pé, ao nascer do dia, ou ainda de noite, de heli a qualquer hora do dia. Descargas de adrenalina e de tiros, estardalhaço de rockets, granadas, 10 minutos no máximo, retirar a seguir no goss-goss. Depois, o regresso a Bissau, o banho e o sono, o almoço farto no Fonseca. E o desassossego e a dor tantas vezes levados àquelas gentes, um peso que trago comigo, que me curva. Passou-se comigo, não ouvi contar.

O Virgínio Briote em Mansoa, já com as insígnias de comando, o crachat na boina (Julho de 1966)

© Virgínio Briote (2005)

Tenho respeito pelas tropas especiais, que fizeram aquilo que lhes pediram. E muito mais pelos soldados, furriéis, sargentos e alferes milicianos que, sem lhes perguntarem nada, os arrancaram ao trabalho e ao estudo. Espalhados pelas Mafras do País, encaixotados nos comboios, nas camaratas, nos beliches ou nos porões sujos e escuros dos Uíges, de G3 na mão pelas matas, savanas, tarrrafos e bolanhas, corações aos saltos, T6 e Fiats G-91 no ar, helis à procura de locais para pousarem, macas com feridos e mortos, os regressos aos abarracamentos, partir para outra, sempre assim, até ao fim dos dois anos. Viram derreter-se 2 anos da vida deles, a fazerem contas aos dias, dentro do arame farpado, entre abrigos, à luz do petromax, sem frescos, à mercê de tudo, da Dornier, das colunas de reabastecimentos, do valente IN.

Quartel de Brá, a nordeste de Bissau. Aqui nasceram os primeiros comandos da Guiné, primeiro organziados em grupos e depois em companhia. Estes comandos, de primeira geração,antecederam a primeira companhia de comandos metropolitana, formada em Lamego, e aqui chegada em Junho de 1966 (3ª CCmds). L.G.

© Virgínio Briote (2005)

Alguns nem chegaram a ir ao Cupilom, saíram dos Niassas, meteram-nos em GMCs, Mercedes, Unimogs e, ala que se faz tarde, estrada fora, a caminho de Nhacra, Mansoa, ou Geba abaixo, Buba a aparecer ao longe. Dois ou três dias depois, parecia que estavam em Bissorã, Mansabá, Cacine, há que meses.

Muito tempo, manga de chatice passada, o caminho do regresso, directos para as lanchas, quando deram por eles, nem acreditavam, era o velho Niassa ou Uíge, outra vez. E, quando chegavam a Lisboa, à terra deles, encontravam gente que lhes fazia perguntas:
- Mataste muitos turras, juntaste algum?

Cemitério de Bissau onde ficaram muoitos dos nossos os e alguns dos nossos melhores (1966).

© Virgínio Briote (2005)

Tempos difíceis que a nossa geração viveu e, valha a verdade, tudo tem sido feito para fazer de conta que nada se passou. E, se calhar é melhor assim, foi só um sonho de uma noite, uma noite que durou 13 anos.

E os que viveram aqueles tempos, quando se encontram agora, recordam episódios, pequenas histórias, quase nunca factos da guerra. Devem ter motivos bem fortes para recordarem os episódios marginais e esquecerem histórias que muitos de nós preferia não ter vivido.

Desculpa lá esta lavagem, Luís. Muito raramente abordo estes assuntos, nunca contei um episódio de guerra que fosse aos meus filhos. Quando desembarquei em Lisboa, jurei a mim próprio nunca mais pegar numa arma, nem na Feira Popular. Quase quarenta anos ao arrumar um sótão de uma casa na aldeia, bem lá para o Norte, vi duas malas cheias de pó. Cartas, roupas, facturas, e uma pistola dentro de um estojo. Quebrei a promessa. Peguei-lhe, meti-me a caminho das margens de um rio e lancei-a para o sítio mais fundo.

E pronto, Luís, a minha prosa bélica acaba aqui, por hoje. Na próxima semana vou estar fora, só regresso no próximo sábado e na semana a seguir, a primeira de Novembro, tenho muito gosto em tomar um café contigo (...).
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

Vd. também a página não oficial dos comandos portugueses > Comandos - Tropa de Elite

Guiné 63/74 - P235: Virgínio Briote, ex-comando da 1ª geração (1965/66)

Os mais diversos sítios da Guiné, de norte a sul, de leste a oeste, por onde o ex-alf mil Virgínio Briote andou, nos anos de 1965 a 1966.

© Virgínio Briote (20905)

1. Texto do Virgínio Briote, ex-comando e novo membro da nossa tertúlia:

Pelo que tenho visto o blogue-fora-nada continua com a mala aberta para os companheiros que passaram as passas da Guiné.

Conforme combinado, aqui vai o meu bilhete de identidade militar:

- Mobilizado para a Guiné em Dezembro de 1964
- Colocado, em rendição individual, na CCAV 489 (Cuntima), pertencente ao BCAV 490 (com sede em Farim)
- Cuntima (de Janeiro a Maio 1965)
- Admitido para o curso de comandos em Junho (1)
- Formação em Brá (Junho / Agosto de 1965)
- Constituição e Formação do grupo, formado por voluntários de várias unidades espalhadas pelo território (Setembro/Outubro de 1965)
- Actividade operacional (Outubro de 1965/Outubro de 1966): Óio (várias vezes), Suzana, Jolmete, Canjambari, Cuntima, Canquelifá, Buba ( várias vezes), Tite, Jabadá (a 1ª heliportagem de assalto na Guiné), Xitole, Barro, Bigene...
- Chegada da primeira Companhia de Comandos (3ª CCmds), formada em Lamego, com destino à Guiné em Junho de 1966 (2);
- Colocado no QG, de Novembro de 1966 a Janeiro de 1967;
- Regresso à Metrópole em 19 de Janeiro de 1967.

Envio, em anexo, algumas imagens daqueles tempos que podem ser disponibilizadas no blogue.


Mulheres africanas trabalhando no campo. Em frente ao quartel de Brá, centro de instrução e formação da primeira companhia de comandos da Guiné (criada em 1964 e extinta em 1966) . Os velhos comandos, como ainda hoje eles gostam de ser conhecidos.

© Virgínio Briote (2005)

Luís, para um melhor entendimento daqueles anos de 19665/66, tenciono enviar-te alguma informação escrita.

Mas, antes de disponibilizares isto no blogue, talvez seja indicado falarmos pessoalmente antes.

Um abraço,
vb
______

Notas de L.G.

(1) Os comandos na Guiné nasceram em finais de 1963 e princípios de 1964. Em Outubro de 1963, há um grupo de oficiais e sargentos, em serviço no Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG) que vai a Angola (RMA) fazer a sua formação de comandos.

É a partir daqui que nasce o primeiro Grupo de Comandos da Guiné. Logo no iníco de 1964, partipa na famosa Op Tridente (14 de Janeiro a 24 de Março de 1964), nas Ilhas do Como, Caiar e Catunco, integrado nas forças à disposição do BCAV 490. O grupo recebe as insígnias de comando em 29 de Abril de 1964, em cerimónia pública realizada em Bissau.

Em Julho de 1964 inicia-se, em Brá, o 1º Curso de Comandos da Guiné, tendo-se constituído mais 3 grupos. Estes grupos foram utilziados em acções independentes ou integradas em operações dos batalhaões (Madina do Boé, Catió, Farim, Jabadá, Canjambari...).

O curso que o Briote frequentou terá sido o segundo, onde se formaram mais quatro grupos de comandos. A partir de 1 de Novembro de 1965, o Centro de Instrução de Comandos passou a constituir e a designar-se por Companhia de Comandos (CCmds), com sede em Brá. Participou em diversas operações nas regiões de Bula, Bigene, Pelundo, Guileje, entre outras. Esta CCmds é extinta com a mobilização e a chegada da primeira CCmds, formada em Lamego (a 3ª CCmds).

(2) Três anos depois, em Julho de 1969, é criado o Batalhão de Comandos da Guiné.

Fonte: Comandos: tropa de elite.


2. Resposta de L.G.:

Camarada Virgínio:

Espero poder ter a honra e o privilégio de tratar-te por tu... E espero que fiques à vontade para fazeres o mesmo comigo. Essa é, de resto, uma das poucas regras que temos na nossa tertúlia... Fico entusiasmo com a resposta rápida que deste, à comando, e sobretudo com a confiança que demonstra (em mim e no nosso blogue).

A documentação que nos envia é valiosa e merece, de facto, ser partilhada pelos nossos tertulianos e restante comunidade bloguística... Prometo abrir uma página só para ti e os teus comandos: de facto, as tropas especiais não tinham poiso certo...

Mas primeiro quero falar contigo, como sugeres. Dá-me um nº de tefefone teu (...).

Um ciberabraço.
L.G.

sábado, 22 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P234: Cabo Verde (1941/43) (3): sodade di Son Vicente (Luís Graça)

Fotos do velho album de meu pai, 1º cabo nº 188/41, que esteve como expedicionário em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente, de 1941 a 1943:

Legenda: "No dia em que fiz 22 anos tirei esta fotografia em Mindelo, encerrando (?) as minhas vinte e duas primaveras felizes. Luis Henriques. Em 19/8/943. S. Vicente, C. Verde

"Senti neste dia muitas saudades dos meus, dos amigos e também da minha terra. Luís".

© Luís Graça (2005)

O meu pai tem hoje 85 anos feitos. Nasceu, portanto, em 1920. Aos vinte e um anos partiu para Cabo Verde, no paquete Mouzinho, integrado no 1º Batalhão do Regimento de Infantaria nº 5 (Caldas da Raínha), para reforço do sistema de defesa do arquipélago (1).

Ao longo de 26 meses, foi mandando cartas e fotografias (estas, geralmente em formato pequeno), sempre com legendas no verso. As cartas infelizmente perderam-se. Mas das fotos ainda restam algumas dezenas. Têm algum interesse para documentar a vida dos militares, expedicionários em Cabo Verde, naquela época.

Ainda hoje ele me conta estórias e factos desse tempo. O que me impressiona é a sua memória: sabe de cor os nomes e os números de identificação de alguns dos seus melhores amigos e camaradas. Era, além disso, um jovem sensível à miséria com que então vivia a população local. Quando estava no hospital, "fraco dos pulmões", recebeu a visita da irmã do seu "impedido", o Joãozinho, de cinco anos:
- Bo cabo Luís, o bo impedido Joãozinho morreu!

O meu pai pegou no dinheiro que tinha, ali à mão, na enfermaria do hospital - "dezasseis escudos e oitenta centavos" - e deu-o á família do Joãozinho. Acho que foi um gesto bonito e solidário...

Naquela época, o pré de um 1º cabo deveria andar nos 130 escudos por mês. As mulheres cabo-verdianas, muitas vezes com os filhos às costas, trabalhavam no porto, descarregando milho: uma equipa de duas ganhava 2 tostões (um tostão para cada uma) por cada saco de milho descarregado dos barcos...

Além disso, o 1º cabo 188/41 gostava de ajudar os seus camaradas, escrevendo-lhe as cartas para a Metrópole. Ele terá escrito centenas ou até milhares de cartas. Só para um dos seus amigos, rancheiro, analfabeto, ele escrevia 22 cartas por semana. Mas tinha muitos mais clientes. Ele diz-me que no seu pelotão (na época 45 homens), "se calhar metade não sabia ler nem escrever"...

© Luís Graça (2005)

Legenda: "Junto às cozinhas. Pessoal rancheiro. Dia de vinho, dia de alegria. Depois de um jantar à portugesa. Lazareto. Abril 43. Luís Henriques [na foto, é o primeiro, do lado esquerdo]. 3/5/43" .

As dificuldades eram muitas para o pessoal expedicionário. A alimentação era má e pouco ou nada variada: "Massa com feijão ao almoço; feijão com massa ao jantar". A morbimortalidae elevada (tuberculose, febres intestinais, doenças venéreas...), fazendo jus à frase que ele memorizou e que estava na parede do fotógrafo no Mindelo: "Ouro, seda, vaidade, podridão / No cemitério, igualdade / Mas debaixo do chão"...

© Luís Graça (2005)

Legenda: "Tubarão das águas de S. Vicente, apanhado em Junho de 1942. Luis Henriques".

A tropa, em S. Vicente, não teria muito que fazer, paa além de uns exercícios de manutenção de homens e material. Uma das actividades favorias dos militares portugueses era a praia e o mergulho. O meu pai, nascido à beira-mar, filho, neto e bisneto de gente ligada ao mar, adorava nadar e fazer mergulho, mas tinha medo dos tubarões... Há várias fotos de tubarões apanhados ao largo da ilha. Todavia, os ataques a seres humanos não seria muito frequente, embora ele ainda hoje me conte estórias de tubarões que arrancaram pernas e deixaram marcas de dentes no corpo de alguns incautos...
_________

(1) vd. posts anteriores

12 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIV: Os mortos e os esquecidos do Império: Cabo Verde (1941/43)

26 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXVI: Antologia (11): Cabo Verde (1941/1943)

Guiné 63/74 - P233: Notícias da açoriana CCAÇ 2636 (Bafatá, Contuboel, Saré Bacar, Pirada)

1. Tefonou-me o João Varanda, que nos tinha contactado em Maio passado, mas cujo endereço de e-mail estava errado. Por esse motivo, ele deixou de estar integrado na nossa tertúlia: os e-mails para ele eram sistematicamente devolvidos. Agora percebo o motivo: como na tropa, o material tem sempre razão!

Pelo que ele me contou, é fã do nosso blogue, que lê com regularidade e crescente entusiasmo. Recorde-se que ele fez parte de uma companhia açoreana, a CCAÇ 2636, que esteve na Zona Leste (Bafatá e depois Saré Bacar e Pirada, na fonteira norte, com o Senegal), mas primeiro passou pela região do Cacheu (Pelundo e Teixeira Pinto).

Ele vive e trabalha em Coimbra, mais exactamente nos serviços académicos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Secção de Alunos), Porta Férrea - Paços da Escola, 3004 - 545 Coimbra.

O João confidenciou-me que gostaria de voltar à Guiné, mas devido a um problema de saúde nunca se atreveria a ir sózinho. Esuqeci-me de perguntar como ia o livro dele... Ficou de mandar umas estórias (e fotos, espero) para a semana que vem.

Em contrapartida, prometi-lhe que publicar, uma dia destes, o relato da Op Tigre Vadio, a Madina/Belel, no regulado no Cuor, já no corredor do Morès, em 1970. Não tenho aqui à mão os meus apontamentos, mas tenho ideia que um pelotão de morteiros de Bafatá, do tempo do João Varanda, participou nessa operação, cujo ponto de partida foi Missirá e o regresso, dramático, Enxalé... Foi, como se costuma dizer, uma volta ao bilhar grande!

A propósito, tenho que arranjar um voluntário, na nossa tertúlia, para ir espetando os alfinetes no mapa da Guiné com o número dos pelotões, companhias e batalhões. Já é muita areia para a minha camioneta. Às tantas, a gente perde-se no mato...


2. Reproduzo aqui parte do e-mail que ele em tempos mandou ao Guimarães e que foi depois inserido no nosso blogue: vd. post de 25 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXV: Aerogramas de amigos e camaradas (1)

18 de Maio de 2005:

Amigo David Guimarães:

Cá recebi o seu e-mail, fiquei muito sensibilizado pela sua gentileza. Como todos os que passaram por aquela guerra, naqueles vinte e quatro meses, a Guiné-Bissau é hoje uma terra mítica, algo inesquecível que vive presente para todo o sempre na nossa cabeça. Daí a necessidade de buscar algo sobre aquele tempo passado relacionado com a guerra, o que se torna para nós uma forma de dizer que estamos vivos.

Meu bom amigo, também fui companheiro de luta na nossa querida Guiné, como elemento da CCAÇ 2636 (companhia açoreana) e fizemos o percurso coroa com o seu início em Brá-Có (fizemos a segurança da estrada alcatroada para Pelundo e ligação a Teixeira Pinto).

O Pelundo era a região onde, em 20 de Abril de 1970, o comando de zona do PAIGC traíu as negociações que decorriam com o grande Chefe General Spínola para a rendição das forças do PAIGC que operavam naquela zona e a respectiva população), fazendo o PAIGC o assassinato dos três majores, Passos Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório (1).

Depois saltámos para a zona leste, para Bafatá, ficando metade da companhia adstrita ao Batalhão de Caçadores 2856 (2), e a outra metade ao Esquadrão de Cavalaria 2640. No leste e naquela altura o homem grande da guerra o era o Carlos de Almada, o célebre Chefe Gazela [3). Um grupo de combate entrou em auto-defesa em Ualicunda, outro em Sare Uale (4) na linha limite da fronteira do Senegal, ficando a base do comando destes dois grupos sedeada em Contuboel.

Os outros grupos ficaram em actividade operacional no sector leste com sede em Bafatá, para cortar a eficácia de ataque do PAIGC, assim tudo o que era risco foi batido em operações de sector como sejam Fá Mandinga, Xime, Bambadinca, Porto Cole, Capé e Mansomine (5) (Mansomine, de má memória, na durissíma Operação Fareja Melhor onde tivemos a primeira baixa, que foi um voluntário que, em acto de coragem e bravura, quis dar solidariedade ao grupo a procurar, detectar e aniquilar quaisquer elementos inimigos, destruindo todos os meios de vida e recuperar as populações civis sob controlo inimigo).

No leste (6) tudo quanto foi matas, rios ou bolanhas foi por nós calcorreado à procura de quem não prometeu vir até nós, para tudo quanto mais não fosse dialogar os caminhos da paz. Por fim, assentamos arraiais em Sare Bacar, a pouco mais de cem metros da linha limite com o Senegal.

Operacionalmente estivemos em exercício em Pirada e Paunca(7), ficando com dois grupos de combate estacionados em Sare Aliu, Sene e Sora (corredores de infiltração do PAIGC para selecção de guerrilheiros e por onde infiltravam o armamento pesado).

Meu bom amigo, muitas peripécias se passaram fizemos a guerra sem querer, enfim agora isto faz parte da história que está pouco passada para o papel. Temos de unir esforços e todos contar o que foram aqueles dias, não podemos deixar para trás o que foram esses tempos e deixá-los esfumar-se como o fumo de um cigarro.

(...) Não quero findar este e-mail sem dizer ao meu bom amigo que estou a escrever um livro de memórias sobre a nossa passagem pela guerra colonial na Guiné-Bissau.

Com um grande abraço. Varanda

Tomem nota do endereço de e-mail : maito:jvaranda@fd.uc.pt (jvaranda e não jvarandas)
______

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLIX: Antologia (15): Lembranças do chão manjaco (Do Pelundo ao Canchungo)

(2) Este Batalhão editava, em 1969, o jornal Macaréu.

(3) Vd. carta da Guiné (1961): na fonteira cpm o Senegal há, pelo menos, duas povoações com este nome, Sare Uale: uma a nordeste de Farim, na região do Cacheu; outra já na zona leste, no triâmgulo Cambau-Contuboel- Sare Bacar

(4) Na região do Óio, a nordeste de Mansambá.

(5) Chefe ou Comandante Gazela ?

(6) Hoje, região de Bafatá e região de Gabu

(7) No nordeste, na fronteira com o Senegal, região do Gabu.

quinta-feira, 20 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P232: Cooperação, caridade ou negócio ? (3) (Paulo Salgado)

Escola de Dugal, no Olossato, na região do Cacheu.

© Paulo Salgado e João Faria (2005)

Texto enviado de Bissau, através do bombolom do Paulo Salgado:

A proposta do João Tunes é excelente: partilhar um pouco do nosso sentido (ou sentimento?) de solidariedade é algo que dignifica e honra quem o faz, e minora parcelas de penúria, para não dizer miséria.

O que se passa em S. Domingos [que fica no norte, na região do Cacheu], conforme ele descreve, é o registo de um acto singelo de ajuda que parece (?!) ter viabilidade. Acredito que tenha êxito, se acompanhado ao longo do tempo por algum guineense que mereça confiança e que garanta o eventual pequeno projecto.

Estes gestos só alcançarão os objectivos dos doadores (passe a expressão) se permanecerem no tempo, se acompanhados. A hipótese de uma ONG – só com grande credibilidade (eu sei, que estou cá, como é) - mas ainda assim, preferível a um guineense.

Garanto-vos que é assim.

Há a hipótese das igrejas (católica, adventista, evangélica e outras); têm aqui escolas que sobrevivem, com muito mérito porque conseguiram construir-se à custa de sacrifícios pessoais dos missionários, sejam eles quais forem – sacrifícios físicos e psicológicos - e das dádivas de muitos homens e mulheres que, com contributos diminutos ou vultosos, asseguram uma permanente ajuda, com coerência, e na certeza de que os lápis ou cadernos não vão ter ao mercado do Bandim.


Guiné-Bissau > Guiné-Bissau > Bissau > 2001: Mercado de Bandim, símbolo de um país onde predomina a economia informal (e o Estado não cumpre as suas obrigações mínimas em sectores fundamentais como a saúde e a educação). É aqui, em Bandim, nas imediações de Bissau, que vai parar uma parte substancial das doacções, em géneros, da cooperação internacional. LG.

Foto: © David Guimarães (2005)

Por isso, os poucos euros que pudéssemos juntar poderiam ser encaminhados para uma escola apoiada no terreno por uma estrutura mínima. Esta seria uma hipótese que, pessoalmente, me agradaria mais. As crianças aprendem português e outras matérias, e a ser rigorosas e disciplinadas. Se não, acontece o que está ali na foto (escola do Dugal).

Outra possibilidade de colaboração – esta bem mais exigente do ponto de vista da entrega pessoal de camaradas e amigos - seria uma ajuda financeira a um qualquer bolsista que fosse fazer um curso a Portugal (o meu receio – confesso que já vi muitas situações dolorosas e empobrecedoras para o País – é esse alguém ficar e nunca mais regressar para ajudar o seu Povo).

Pensai nisso. Eu tenho hipótese de falar com o Jorge Neto (que deve estar aqui ao lado a trabalhar, neste fim de sexta-feira, na sua actividade intelectual).


Ajuda portuguesa à escola de Dugal, no Olossato.

© Paulo Salgado e João Faria (2005)

As ajudas – assumam elas a realidade ou dimensão que assumirem – têm que ser concretizadas num determinado contexto. Muitas vezes chegam ajudas em contentores que, infelizmente, não são canalizadas para o seu destino: para a educação ou saúde. Poderia contar-vos alguns casos, alguns mais antigos, outros recentíssimos, de doações mal encaminhadas, não inseridas numa verdadeira dinâmica.

Independentemente da proposta amiga, e já concretizada, o Humberto tem uma acção meritória. Eu próprio já fiz isso no Olossato, em Dugal e a verdade é que, suspensa a ajuda, ou interrompida, tudo volta à estaca zero.

Lembro-me da 'distribuição dos alimentos' que o cabo Costa fazia no destacamento do Maqué ou mesmo ali em Nhacra – porventura isso aconteceria um pouco por toda a parte onde houvesse aquartelamentos. Não nos iludamos: saciámos a fome, com muito carinho... Ainda há dias um homem que encontrei no Cumeré, jovem era no tempo da guerra, me falava da sopa dos tropas, imaginai! – mas verdadeiramente, a 'ajuda' que podemos dar tem que cimentar-se em coisas concretas e duradouras.).

A propósito destas coisas permito-me deixar-vos um poeminha:

Por detrás da sebe
da tabanca
uma criança espreita.

Faço-lhe um adeus
aberto
e um sorriso nos une
para sempre…!

Paulo Salgado, Bissau, 15 de Outubro de 2005.

Créditos fotográficos: © Paulo Salgado e João Faria (2005)

Guiné 63/74 - P231: Cooperação, caridade ou negócio ? (2) (João Tunes)

Texto do João Tunes:

Humberto e mais os outros camarigos (os que tugem e os que nem mugem):

Se vamos pela interpretação sobre o que se passou e passa na Guiné antes, durante e depois "de lá sairmos", se calhar o consenso não é fácil. Nem talvez o caminho seja por aí. O importante é que estejamos unidos no respeito pela Guiné-Bissau como país soberano (não aceito outra base de princípio), sentirmos todos uma profunda ligação àquela terra pelo que lá passámos de bom e mau e dispormo-nos a ajudar (sobretudo as crianças que estão isentas de culpas nossas e de outras quaisquer. (*)

Já tinha sabido da tua ajuda a meninos da Guiné. E acho isso não só é meritório como te honra e, desculpa a sensibilidade de velho, acho até comovente. Só demonstras que és um velho guerreiro honrado e humanista. Mas se cada um de nós se dispuser a uma ajuda avulsa de enviar umas coisas para aqui ou acolá, a eficácia é reduzida, depois há as dificuldades logísticas, saber-se se chegou ao destino certo, a gente chateia-se e desiste, etc e coisa. Também acho que temos de superar os regionalismos (eu daria preferência a Pelundo ou Catió, outros ao Xitole, outros a Bula, a maioria dos tertulianos claro que puxava por Bambadinca, grande salganhada...).

Já nos basta a história dos mouros para nos entretermos entre portas e qb em tretas regionalistas. Um menino é um menino e na Guiné todos são carenciados. Eu deixava isso ao critério da ONG AD, dirigida pelo nosso amigo Carlos Schwarz. Julgo que ter uma ONG (e uma ONG tem de ter a credibilidade para poder ter direito a sê-lo) no apoio é uma base não só de fiabilidade (e de garantia contra descaminhos) como um apoio logístico e de selecção fundamentais.

Se a ideia fosse aprovada, havia que estabelecer regras - quem adere e como fazer chegar os contributos, a ONG definir o ponto a ser apoiado e selecionar as crianças, organizarmos - entre os aderentes - uma Associação de Acompanhamento dos Afilhados e fazer-se a interface com a ONG (esses ESTÃO NO TERRENO). Se se vir o projecto de ajuda dos espanhóis, está lá quase tudo.

Para mim, o problema, o principal problema de qualquer projecto e desta tertúlia, é que a maioria dos tertulianos são mudos, não piam - nem sim, nem não, nem nim. Terão piado tudo quando foram periquitos ? Mas, talvez com esta provocação, acordem e digam das suas...

Abraços a todos,
João Tunes
________

(*) Claro que reconheço o direito a qualquer opinião porque hoje, felizmente, podemos e devemos falar. Todos, de todas as opiniões. O que considero é que, quando se tratar de levantar projectos, devemos escolher a via mais consensual. E exactamente por isso é que me dispenso, aqui e hoje, de rebater as opiniões que formulaste sobre os males da Guiné e com as quais não estou minimamente de acordo. Fora isso, fogo á peça a toda e qualquer opinião.

Eu, por exemplo, expremi-me forte e feio aqui e ali Não foi para te responder (ainda não tinha lido o teu mail) mas serve para o efeito. Vai lá, Humberto, e tens exemplo de opinião simétrica à tua. Mas na hora de fazer obra, ajudando, estas divergências não devem contar nada para fazermos bem em comum. É bom sermos frontais e leais. E eficazes, já agora. Não achas?

2. Resposta do Humberto Reis:

João:

Estou de acordo contigo que temos de ter opiniões diferentes, desde que respeitemos as dos outros, que é o que nós só sabemos fazer e outras convergentes (por exemplo gostar do nosso SLB (...).

Vamos aos factos e tirar o rabinho do sofá para tentar fazer alguma coisa por aquela gente. Já viste a mensagem do Carvalhido da Ponte sobre o apoio que Viana do Castelo está a dar ao Cacheu? Não seria uma boa ideia auscultar o Carvalhido sobre o funcionamento do sistema?

Oh Carvalhido. diz lá a malta como é que funciona esse intercâmbio? onde se deposita dinheiro?onde se entregam géneros?onde se entregam medicamentos?quem diz o que faz lá mais falta em determinado momento?

Temos de começar por algum lado e, como sugere o João Tunes, temos de espicaçar o touro para ele sair do curro, ou seja despertar a rapaziada para tugir e mugir.

Fico à espera de novidades.

Um abraço

3. Mensagem do Carvalhido da Ponte:

Em Viana [do Castelo] funciona uma Associação de Cooperação com a Guiné-Bissau que tem estado, desde 2005, a colaborar , especialmente, com o Cacheu uma vez que o município minhoto está geminado com aquela antiga cidade guineense. Uma das nossas práticas é o apoio didáctico e médico-medicamentoso.

Eu, José Luis Carvalhido da Ponte, servi na CART 3494, no Xime, entre 71 e 74, com o Salta-me a Cabeça, o Silva Pereira, O 1º Simões, o 1º Bagorro, o Castro, o Fur Godinho, o Fur Sousa Pinto, o Alf Pereira, o Alf Araújo, etc.

4. Comentário do Sousa de Castro:

Antes demais gostaria de dizer que também não me soa bem a palavra camarigos nem encontro o verdadeiro significado da palavra, mas tudo bem (...).

Vamos ao tema que está em discussão. É um facto que todos nós gostamos daquele país que se chama Guiné, foi lá que passamos a fase final da nossa adolescência (digo eu). Concordo que naquele país falta tudo.

Pergunto: Porque falta tudo? O que se viu nas eleições? Viu-se um sr. exilado em Gaia, entra na Guiné de helicóptero, faz a sua campanha e ganha as eleições!... Não percebo como nem quero perceber. Não discordo das boas intenções do Tunes nem de nenhum tertuliano, apoio a maioria no que ficar decidido, mas não podemos esquecer dos Miseráveis do nosso país. A falta de emprego, salários de miséria, a fome em muitas aldeias deste país à beira-mar plantado e falando em nós próprios, a contagem do tempo de serviço prestado no Ultramar a dobrar para efeito de reforma para todos os ex-combatentes e a reforma aos 55 anos para tos os ex-combatentes. Acrescento também que Lisboa e Vale do Tejo têm um nivel de vida superior ao Norte aproximadamente 40%.

Penso que uma forma de ajudar é fundar associações de geminação com localidades como Xime, Bissorá, Xitole, Gabu, etc. Depois conseguir nas mais variadas empresas, nas Cãmaras Municipais e outras do nosso país, pedindo apoio para esse fim, da mesma forma como o Carvalhido da Ponte tem posto em prática em Viana do Castelo. Apareçam mais ideias.

Guiné 63/74 - P230: Cooperação, caridade ou negócio ? (1) (João Tunes)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca (2001): Uma escolinha...

© David J. Guimarães (2005)


1. Texto do João Tunes:

Camarigos e estimados tertulianos,


Lembrei-me hoje, ao ler um dos Projectos dos amigos da AD, que está a ser desenvolvido em parceria com cidadãos da localidade espanhola de Elx, se esta não era uma boa inspiração para que a nossa Tertúlia promovesse um projecto semelhante com crianças guineenses de uma qualquer localidade da Guiné-Bissau (a escolha seria da AD porque seria necessário o apoio deles no terreno e eles é que sabem quem mais necessita, quem estaria lá receptivo, fazerem a selecção e as linhas com que se cosem os seus meios logísticos).

Que tal, por 6 euros/mês (ou quantia próxima disso), cada um dos tertulianos ser padrinho de uma criança guineense para a ajudar a tirar o ensino básico, acompanhando-a depois nos seus estudos e no seu crescimento? Que melhor recompensa para nós, todos com idade (e alguns já com a prática) de avôs, de termos um afilhado cujo melhor futuro seria uma boa forma de memória da nossa passagem pelas bolanhas daquela terra que nos ficou entranhada no pensamento?

E se a solidariedade (meritória!) de cidadãos de uma terreola espanhola chega até este nobre fim, quem somos nós menos para vencermos a inércia e nos dispormos a passar das boas intenções às boas acções? Nos nossos quartéis na Guiné, dávamos os restos de comida do rancho à criançada da tabanca que formava filas ordeiras com as suas latas na mão para recolherem o que já não nos cabia nas barrigas. E julgo que todos nos comovíamos com isso, sobretudo aqueles olhos muito abertos e alguns de nós, entre a pequenada, ia escolhendo o seu favorito e amigo especial. Ajudar uma criança guineense de hoje não seria uma boa forma de voltarmos a fazer aquilo que, se calhar, foi do melhor que por lá fizemos e nos deixaram fazer.

Deixo esta proposta aberta à discussão e democrática decisão dos camarigos tertulianos. Caso se aprovasse a ideia, seria de contactar a AD para saber a melhor forma de a concretizar.



Abraços a todos. João Tunes


2. Transcreve-se a notícia do Projecto de apoio de Elx às crianças de São Domingos:

"Um grupo de cidadãos de Elx, Alicante, Espanha, decidiu em 2005 organizar-se para apadrinhar crianças guineenses da cidade de S.Domingos, garantindo um apoio aos seus estudos, contribuindo mensalmente com uma pequena quantia para cada criança (6 euros).

"Este fundo será exclusivamente utilizado na compra de material escolar, pagamento dos professores, outras despesas escolares, equipamento de ginástica (sapatilhas, t-shirts, etc.), roupa pessoal (camisas, sapatos e calças) e, em caso de doença, a compra de medicamentos.

"Por sua vez, os pais destas crianças criaram uma Associação dos Afilhados de Elx, a qual determinará a utilização do fundo e fará a gestão do mesmo em estrita observância para os fins a que se destinam. Os seus sócios obrigam-se a um acompanhamento muito seguido dos estudos e vida escolar dos seus filhos.

"Numa fase inicial o número de crianças apadrinhadas é de 16, embora as perspectivas sejam de que, a partir de Outubro deste ano, o número venha a aumentar.

"Foram feitas 16 fichas individuais das crianças, com as respectivas fotos e uma descrição dos seus principais dados, às quais cada padrinho tem acesso, bem como as fotos do seu afilhado acompanhado dos pais." (Fonte: AD - Acção para o Desenvolvimento).


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 2001: Meninos da escola...

© David J. Guimarães (2005)



3. Resposta do Humberto Reis:

João Tunes e restantes camarigos (não sei porquê não gosto deste termo
camarigos)

Por mim plenamente de acordo. Eu, pessoalmente, envio com alguma periodicidade material escolar, esferográficas, lápis, canetas, blocos de papel A4, borrachas, etc. (até já enviei compassos) para a escola de Bambadinca, à atenção do professor de lá, que conheci em 1996 quando revisitei aquela terra mítica. É para Bambadinca, como poderia ter sido para Binta, ou Contuboel, ou Sangonhã, ou Cacoca, ou qualquer outro lugar, visto que são todos tão pobres.

O Paulo Salgado (que tive a enorme alegria de conhecer e abraçar quando ele há dias partiu para Bissau) que está lá sedeado é que vê como é aquela miséria. Acontece que, e falo por mim, tenho laços mais afectivos com aquela Bambadinca, onde passei bastante tempo da minha comissão [como furriel milicianod a CCAÇ 12, 1969/71], do que com qualquer outro lugar (Xime, Saltinho, Madina Xaquili, etc. e tantos outros por onde passei).

A escolha da localidade é bastante difícil pois todas elas sofrem do mesmo mal de FALTA DE TUDO. Admito que alguns portugueses, mas muito poucos, tivessem sido "aprendizes de colonialistas" na Guiné (colonialistas, na verdadeira acepção da palavra, só existiram e continuam a existir, os ingleses).

Uma coisa é certa, e confirmei isso quando lá voltei em 1996, no nosso tempo, em que fomos alcunhados de "colonialistas e exploradores", as populações com quem nós contactávamos, que estavam sob a nossa jurisdição, não passavam as privações que agora passam. Não vi como eram as condições dos combatente do PAIGC, por isso não me pronuncio sobre elas. Os chamados "do lado de cá" ainda iam tendo uns cuidados de saúde, de comer, de beber (e por vezes de que maneira).

A título de exemplo refiro que:

(i) em 1996 tive de comprar gasolina no mercado negro em Bafatá pois no posto de abastecimento não havia;

(ii) o hospital não tinha luz eléctrica pois não havia gasóleo para o grupo gerador (foi exactamente por causa de um projecto de energias alternativas que eu voltei à "nossa" Guiné).



Agora o que é que eles têm? Liberdade para comer e beber o que não há? Obrigadinho, Oh Chico, mas disso não quero. Liberdade para falar, comentar, etc. é que talvez já não seja a mesma coisa. Vejam o que se passou comigo quando quis comprar as cartas da Guiné em que tive de obter uma autorização da embaixada. E em Bafatá que não me permitiram fotografar sequer a zona exterior do antigo esquadrão de cavalaria (não queria fotografar o interior do que é agora o aquartelamnto das forças militares). Enfim tínhamos aqui estórias para contar até vir a mulher da fava rica.
O melhor é escolher uma povoação e avançar-mos sem preconceitos e ajudar aquela gente, que bem precisa. Na minha opinião, seja qual for o tipo de ajuda que consigamos, temos de ter alguém no terreno que controle os donativos e não permita os habituais desvios de material, equipamento, ou dinheiro (a miséria é tão grande que é fácil as pessoas serem corrompidas tal como vemos todos os dias nos meios de comunicação social).

A minha opinião está dada. Um abraço à rapaziada

Humberto Reis

Guiné 63/74 - P229: Xime, Mansambo, Xitole: Armas pesadas, questões de calibre (Sousa de Castro / David Guimarães)

Isto é um obus 10,5 (ou 105 m/m) , esclarece o Sousa de Castro. Xime (1972) > CART 3494.

© Sousa de Castro (2005)









... e isto é (era) um obus 14 (ou 140 m/m)

Bambadinca > 2001: Restos de peças de artilharia portuguesa (obuses 14) que o Guimarães fotografou quando lá voltou.

© David J. Guimarães (2005)


1. Texto do Sousa de Castro:

Luís, quando referes nas fotos Obus 107, não está correcto. O Obus em questão é 10,5 ou se quiseres 105 m/m. No Xime existiam três e um morteiro 81 m/m. Eram estas as armas fixas no quartel em 1972 , para além de outras que todos conhecemos como a Breda, as Bazucas, a [metrahadora ligeira] HK21 , etc.

Em Mansambo havia um Obus 14 ou 140 m/m, como quiseres.
Abraços.

2. Texto do David Guimarães:

Luís, desculpa-me uma coisa: com o entusiasmo meti o pé na poça ou enterrei-me na bolanha... De facto, o morteiro não é o nosso 61 e o deles 62 mas sim nosso 60 e o deles 61, como é óbvio e naquele documento está bem referido [relatório da Op Lança Afiada].

Olha, que burro!... Eu, Furriel atirador, com o curso de minas e armadilhas e comandante de secção, exatamente do morteiro 60, meti o pé na poça...

Bom, estávamos na época das chuvas na Guiné, saímos em patrulhamento e, pumba, meti mesmo os pés e pernas até aos ossos... na bolanha!

Num dos patrulhamentos que fazíamos amiúde, até perto de Seco Braima [a oeste do Xitole, vd. mapa do Sector L1 / Zona Leste], um dia foi determinado o seguinte: (i) esperaríamos que as pessoas viessem labutar para a bolhanha; (ii) faríamos depois uma flagelação; (iii) tudo a postos, um guia numa árvore; (iv) ordem para disparar três tiros de bazuca e três de morteiro...

Eu dispensei de imediato o prato-base do morreiro, tinha grande experiência em fazer tiro assim e era facilitador...Eu apontava muito bem, modéstia aparte, gostava, nenfim...

Fogo, três bazucadas e três morteiradas! Eu tinha-me esquecido é que as chuvas tinham terminado há pouco tempo, pelo que o meu morteito ficou metido na terra até meio - e esta, hein???

Coisas de guerra de morrer a rir - ainda hoje me interrogo como foi possível rir tão perto do inimigo... Bem regressámos rapidamente ao quartel [Xitole] e eles ripostaram, de morteiro, quando já estávamos no acampamento...

Nota: o morteiro não partiu... E, ao que parece as morteiradas, segundo posteriores informações, foram bastante certeiras... E assim se faziam os heróis, por vezes.

Abraço, David.

quarta-feira, 19 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P228: Virgínio Briote, velhinho de 65, comando, contador de estórias

1. Caro Luís,

Estou a fazer um trabalho na área da formação que me tem ocupado os dias das 14 às 23h, motivo pelo qual ainda não dei seguimento ao teu correio e que tenho muito gosto em manter. O blogue-fora-nada está cheio de motivos de interesse, merece uma atenção diferente.

No próximo fim de semana vou enviar-te os elementos que indicaste [fotos, nº da companhia, etc.]. Fiquei sensibilizado com a publicação do conto do Ansumane [, caçador de crocodilos]. Pareceu-me até que está muito melhor do que aquele que escrevi há anos. De resto, a minha prática de escrita em quase 40 anos de actividade profissional resumiu-se invariavelmente a relatórios comerciais, problemas, oportunidades, fraquezas, forças. Relatórios para multinacionais, sabes do que estou a falar, nada de margem para poesias...
Um abraço. Virgínio Briote.


2. Resposta de L.G.:

Vírginio, mais uma razão para te dedicares à escrita criativa... Faz-te bem a ti e a nós. Eu adoro aproveitar as estórias que os antigos camaradas me mandam. Há histórias fabulosas, contadas de maneira às vezes um pouco tosca, literariamente pobre... O que eu tenho feito, sempre com grande respeito pela proprieddae intelectual, pelo conteúdo, pelo estilo, pelas nuances, é dar-lhe pequenos retoques (pontuação, gramática e pouco mais). O mesmo faço às fotos: com pequenos retoques recupera-se e valoriza-se uma velha foto com interesse documental...

Eu também sei o que é isso da linguagem de pau: como professor universitário tenho que escrever e ler mil e uma coisas chatas para burro, sem graça, sem talento, sem alma... Tive algum receio em pôr as falas das personagens do teu conto, em discurso directo... Mas a ideia era tornar o teu texto mais amigável, facilmente legível, com parágrafos curtos, para o tipo de leitores do nosso blogue... Todos nós temos o direito de escrever à nossa maneira... Se o Saramago e o Lobo Antunes são pós-modernos e aplaudidos, quem somos nós para dizer que eles escrevem bem ou mal?... Aqui a questão não é o estilo pessoal mas o interesse (e a necessidade) em comunicarmos uns com os outros...

Dito isto, fico à espera de mais... E tiro-te já o quico, que é como quem diz: aqui vai uma chapelada, um aplauso... A avaliar pela tua experiência de Guiné, tu tens que ser tratado como um homen grande... Tu és de 1965, eu de 1969 e muitos outros de nós ainda mais periquitos do que eu. Pouco ou nada se tem falado dessa época, do ´período inicial da guerra na Guiné (1963, 1964, 1965...). Além disso, foste um operacional, como eu, e para mais comando, enquanto uma boa parte do pessoal da nossa tertúlia era de transmissões... Fico , pois, a aguardar as tuas surpresas. Um abraço, camarada Virgínio!

PS - Como vês, a malta vai juntando peças para fazer o puzzle da memória
da guerra (colonial ou do Ultramar, como queiras), sem sentimentos de culpa, sem acusações, sem vanglórias... Tem sído bonito, dizem-me e eu também sinto que sim. E talvez para o ano, a gente se possa juntar, conhecer pessoalmente e beber um copo.

Guiné 63/74 - P227: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (3)

Texto do Paulo Salgado.

Créditos fotográficos:

© Paulo Salgado e João Faria (2005)


Legenda: Clube de Caça, no Saltinho:
Na foto, recordações das tropas portugueses.
Ao centro é visível (na foto original) o brazão
da CCAÇ 2406 (1968/70) e a frase: "Sacrifícios
não contámos" (1)


Continuação do Capítulo I - Viagem ao Saltinho:


Hoje, sábado, fomos até ao Saltinho, com os cooperantes da Saúde que chegaram ontem no avião (já agora: a Dra. Adelaide, ginecologista; o Dr. Justiça, hematologista e que também fez a guerra em Angola) e ainda o João Faria, engenheiro hospitalar (que já cá está há oito dias… Manga di tempu! , que esteve em Angola, e que se está a aguentar com brio e companheirismo nas lides do Hospital Civil... Todos eles emprestaram à viagem de 350 km um sabor especial).

As fotos falarão por si. Apenas alguns comentários:

a) Em Bambadinca, apenas uma foto ao antigo aquartelamento, e tirada à socapa... É que o sargento de dia (ele estava ali, mas o que dizer do abandono das instalações se estão em uso?) só permitia com autorização do capitão...

Confesso que não estava virado para cerimónias e explicações e salamaleques;

Legenda:

Bambadinca, antigo aquartelamento
das tropas portuguesas. Por aqui andaram, entre
outros, a malta da CCAÇ 12 (1969/71), do BCAÇ
2852 (1968/70), do BART 2917 (1970/1972), do BART 3873 (1972/74)... Por aqui passaram milhares de homens e toneladas de material de guerra, vindos de Bissau, em LDG, pelo Rio Geba, depois de desembarcados no Xime, com destino aos diversos aquartelamentos da Zona Leste (Bafatá, Nova Lamego....). L.G.


b) Depois a picada antiga de Xitole. Entrámos na tabanca... Será que os camaradas que por ali andaram ainda a reconhecem pela foto?

Na verdade, agora, ao lado, há uma boa estrada asfaltada, todavia com troços horrorosos (mas sem emboscadas, a não ser furos e semi-eixos danificados)...

Legenda: A caminho do Xitole, onde entre outros esteve o nosso grande amigo e fiel tertuliano Guimarães (CART 2716, 1970/72)


Legenda: Aspecto parcelar da povoação do Xitole.














c) Depois a delícia da correnteza das águas naquele oásis... E no Saltinho lá estão os símbolos de algumas companhias que por ali passaram. O fortim que dominava, num pequeno outeiro, a estrada e a ponte inaugurada pelo Gen Craveiro Lopes em 1957 (!), está transformado em clube de caça que muitos antigos militares já visitaram. Na verdade, é agora, e já então - por que não? - um local paradisíaco... E lá comemos a famosa galinha à cafreela , como lhe chamam…


Legenda:

A velha ponte do Rio Corubal, no Saltinho, a caminho do meio século de existência,
lá continua de pé, "de pedra e cal"... LG









Legenda: Ponte e rápidos do Saltinho no Rio Corubal. Uma paisagem sempre deslumbrante,
um dos pontos mais turísticos da Guiné-Bissau. LG.

Bissau, 15 de Outubro de 2005

Mantenhas pa tudus.

Paulo Salgado



PS - Oh, Luís, tem lá paciência, arruma o texto no blogue como tu sabes fazer tão bem (prometo-te, desde já, uma prenda bonita... quando for aí no Natal…!)

E já agora: o teu herói! Debaixo de um qualquer poilão, bem direito, e frondoso, onde pararei um dia destes, pensarei nele (2) e rogarei aos deuses todos que aquela e outras sementes mortas (nossas e deles) possam fazer frutificar a PAZ neste PAÍS. Aceita aquele abraço.

_________

Notas de L.G.:

(1) Esta companhia pertencia, em 1969, ao Sector de Bambadinca (BCAÇ 2852, 1968/70), tendo participado na Op Lança Afiada (3), com 2 Grupos de Combate, tal como a sacrificada CCAÇ 2405 (Galomaro) que, em 5 de Fevereiro desse ano, tinha perdido 17 homens no desastre da travessia do Rio Corubal, em Cheche, na sequência da retirada de Madina do Boé.

(2)Vd. post de 14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau

(3) Vd. post de 15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII: Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

Meus caros Paulo, Conceição e João (Faria): Não sei o que vos dizer. As vossas notas e fotos enchem-nos de alegria. Transmitam aos vossos companheiros os nossos senimentos de admiração e de agradecimento. Noutra altura falaremos do outro tema abordado pelo Paulo, comentando uma proposta do João Tunes que ainda não inseri no blogue: a cooperação (ou caridade ? ou negócio ?), e mais concreamente o apoio a crianças em idade escolar, através da figura do "padrinho" e da tutela de ONG como a AD (Bissau), fundada e dirigida pelo Carlos Scharwz.

Ainda em relação à vossa viagem ao Saltinho, satisfaçam-me a minha curiosidade: (i) Quantas horas leva o percurso de Bissau ao Saltinho (350 km), tendo em conta o estado do piso ?; (ii) Há postos de abastecimento de combustível ? (iii) Como está a vida nos campos ?; (iv) As antigas tabancas destruídas ou abandonadas durante a guerra (por ex., Moricanhe, junto a Mansambo) foram reconstruídas ? Enfim, curiosidade do potencial turista e sobretudo do sociólogo e amigo da Guiné. Um ciberabraço para todos vocês, incluindo os periquitos da vossa equipa.

Guiné 63/74 - P226: Guerra limpa, guerra suja (1) (João Tunes)

1. O João Tunes acaba de publicar, no seu blogue, um post com o título "Guerra limpa, guerra suja", em relação ao qual pede o feedback da nossa tertúlia. Com a devida vénia, passo a transcrever aqui o seu conteúdo, aguardando que este suscite os comentários dos nossos tertulianos. O assunto é delicado mas não podemos ignorá-lo ou escamoteá-lo. Um dia teríamos que falar disto, mesmo que fosse incómodo ou doloroso... L.G.

2. A mensagem, enviada por ele por email, reza assim:

Camarigos,

Gostava, se vos aprouver, de ter os vossos feed-back a este post (...):

Agradecimento antecipado aos que tiverem paciência para lerem e consideração para responderem. Obviamente que exprimo os meus pessoalíssimos pontos de vista, sujeitando-me a qualquer contraditório ou diferença de ponto de vista. Vá de retro a unanimidade!

Abraços.
João Tunes
______________________

Há dias, conversando por telefone com um amigo e antigo combatente na Guiné, a questão colocou-se (ou seja, a grande questão de fundo quando se fala da participação portuguesa nas guerras coloniais) – teríamos sido ou não suficientemente decentes na forma como nos comportámos na guerra?

Isto é, além do cumprimento de missões militares, onde a regra mínima só podia ser (para qualquer dos campos) o melhor para as NT e o pior para o IN, se era norma a prática de excessos e de desumanidades que ultrapassassem os resultados militares e se havia ou não respeito para com os guerrilheiros aprisionados.

O meu amigo garantiu que, na Guiné e pelo menos após a chegada de Spínola, o comportamento generalizado era o de um comportamento ético-militar exemplar, ou seja, fora dos combates, os guerrilheiros não só não eram maltratados, muito menos torturados, como seriam respeitados. Invocava ainda que isso não se devia a um acaso mas obedecia a regras impostas pelos altos comandos e integrando-se na filosofia da “psico” em que se procurava dignificar a condição militar perante as populações. Desta consideração, ele extraía que, fazendo o que tínhamos de fazer (combater), não tínhamos que nos envergonhar da nossa passagem pela Guiné.Na minha experiência, também na Guiné, não assisti a nada que desmentisse este meu amigo.

Era, de facto, assim e como ele diz. [Mas... (há sempre um “mas”)] Os militares a partir de determinada altura (os inícios das guerras foram mais selváticos de parte a parte), entendendo melhor os princípios da importância da ligação e conquista das populações, nas acções de contra-guerrilha, reprimiam as tendências para os excessos (embora, como todas as regras, tenham havido as suas excepções). Só que a mudança do comportamento militar (mais consentâneo com a ética da guerra) assentava num pressuposto de organização das tarefas – o “trabalho sujo” era feito pela PIDE (cuja crueldade nas colónias era imensamente superior à utilizada na metrópole).

Ou seja, as partes “suja” e “limpa” foi distribuído entre polícia e forças armadas, os prisioneiros capturados pela tropa eram submetidos a um primeiro interrogatório (que decorria de uma forma mais ou menos “limpa”) e depois entregues à PIDE que os submetia à tortura, ao assassínio, ao desaparecimento, ao envio para o Tarrafal ou ao aliciamento. Decentemente tratados pelos militares, os prisioneiros da guerrilha, quando entregues à PIDE, desapareciam do quadro das noções de humanidade.

Um livro da historiadora Dalila Cabrita Mateus (*) demonstra como as coisas, combinadamente, se passavam na ligação PIDE-Forças Armadas nos teatros das guerras coloniais.Ora, os militares combatentes sabiam deste jogo combinado entre “trabalho limpo” e “trabalho sujo”. Portanto, havia uma base de profunda hipocrisia consciente e representada, que não permite aos “limpos militares” dizerem, com inteira verdade, da sua estadia lá – eu, e os outros, vimos de “mãos limpas”, cumprimos as regras da ética da guerra, não fomos desumanos para com aqueles que combatemos. Porque os crimes da PIDE (quase ainda totalmente desconhecidos quanto á sua extensão, desumanidade e número e identidade das vítimas) não foram um fenómeno exógeno à gerra colonial. As atrocidades pidescas foram parte fundamental na estratégia da guerra. E era a mesma guerra - a dos pides e a dos militares. Complementares. A lama de uns sujou os camuflados dos outros, porque a lama fez parte da presença portuguesa e da guerra que os portugueses travaram contra guinéos, angolanos e moçambicanos.

(*) – “A PIDE/DGS na Guerra Colonial – 1961-1974”, Dalila Cabrita Mateus, Ed. Terramar.

Guiné 63/74 - P225: A propósito da Lança Afiada e do mítico Corubal (David Guimarães)

1. Ao inserir no nosso blogue a primeira parte do relatório sobre a "grande operação de limpeza" que foi Op Lança Afiada (8 a 19 de Março de 1969, na região compreendida pelo triângulo Bambadinca-Xime-Xitole, e que na estrutura político-militar do PAIGC correspondia ao Sector 2, com sede em Mina)(1), pedi aos tertulianos para fazer comentários," sobretudo aqueles de vocês que conheceram estes sítios ou que levaram porrada nestes sítios (o Guimarães e malta do Xitole, o Humberto, o Levezinho e o Fernandes da CCAÇ 12, a malta de Mansambo, a malta do Xime, etc.)". E acrescentava: "Todos estes nomes, da Ponta do Inglês a Satecuta, sempre inspiraram respeitinho à rapaziada"...

Pois aqui vai o primeiro comentário, o do David Guimarães (ex-furriel miliciano da CART 2716, Xitole, 1970/72).


2. Comentário do David Guimarães:

Ai, ai, que estou faltoso - sou efectivamente muito distraído !... Mas estou a ler... Quero continuar a ler este documento, é capaz de ser muito importante. Pelo menos tem uma coisa importante: fala das terras por onde andámos...

A Ponta do Inglês e Satecuta ficavam ambos muito juntas, sendo que a Ponta do Inglês pertencia à áera de intervenção do Xime enquanto que Satecuta pertencia à área de intervenção do Xitole... A Mata do Fiofioli como que começava numa e terminava na outra zona.

Em 1970, Mansambo foi um aquartelamento invejado por todos... É que foi uma autêntica colónia de férias... Sem querer de qualquer forma tecer algum comentário crítico aos meus camaradas e amigos de lá - CART 2714 (1970/72), que pertencia ao nosso batalhão (BART 2917, Bambadinca, 1970/72) -, as grandes operações que eles tinham era fazerem guardas às colunas de reabastecimento que vinham de Bambadinda para o Xitole e Saltinho, com regresso a casa...

A certa altura quis a sina (o Comandante) que um pelotão por mês - creio -, fosse intregar a companhia do Xime... Um militar era assim, descansadinho a beber uma cerveja e, de repente, lá caía ele na rifa, numa dessas, ir passear até ao Xime.Mas que rica excursão!

Pelo que vi no documento aí escrito, Satecuta foi destruído em certa data. Pois é, só que eles, o pessoal do PAIGC, sabiam fazer casas melhor que nós e bem mais rápido... Em 1970 Satecuta parecia uma cidade!

Quanto a Seco Braima, ali bem perto da foz do Rio Poulon, como dizem não era propriamente um aquartelamento do PAIGC, mas uma tabanca com campos de cultivo. Era como que um acampamento adiantado de Satecuta, com uma pequena força de guarda aos camponeses que aí trabalhavam...

Romantismos de guerra: o documento não refere o nosso destacamento da Ponte dos Fulas... Ainda hoje pergunto porque é que eles nunca nos atacaram... Ainda bem que o não fizeram. E fizeram muito bem... A nossa área de intervenção também ia, por outro lado, até à Tabanca de Tangali, estrada Xitole-Saltinho, até à ponte Carmona, a tal ponte interrompida, que ainda hoje o é, na antiga Estrada Xitole - Aldeia Formosa (Qebo)...

As zona piores efectivamente eram as zonas de margem direita do Corubal como nesse documento se diz e que vai até à sua foz, n o Rio Geba.

Creio que se fala aí no Batalhão que eu fui substituir - tu confirmarás (2). Essa operação de destruição de Satecuta, a 1ª foi possivelmente no teu tempo... Também nós fizemos no Xitole uma operação aí, em que destruímaos um acampamento. Depois v voltamos lá noutra ocasião. Só que dessa vez, eles não nos deixaram entrar, fomos recebidos a ferro e fogo. Essa senti eu bem na pele, que grande fogachada! (Contarei mais tarde).

Eu não qero monopolizar o blogue com os meus escritos. Quero tudo a contento e assim todos escrevem e não se dá injeções pontuais. Como na guerra, hoje o ataque é na Aldeia Formosa, folgamos nós, os do Xitole... E era verdade, ou íam a um lado ou íam a outro...

Aim Luís tanta coisa que ainda há por contar... Essa operação de retirada de (e desastre em) Madina do Boé deu-se já no teu tempo e antes três ou seis meses de eu ir para lá (3)...


3. Um segundo comentário do Guimarães:

Sabes, Luís, apesar de ser tudo in memoriam, acho que deveremos usar o maior rigor na informação. Os documentos feitos na altura pela nossa tropa e pelos nossos chefes sempre foram empolados a nosso favor, o que era natural...

Ainda existem valentes que olham para a guerra que tivemos sem perceberem que ninguém nela ganhou. E e que nós sim - se não a acabássemos depressa, iríamos perder e era mau... pela força das armas. Refiro só à Guiné, era o que conheciamos e tu que andaste já no meu tempo sabias bem que o território já era quase na totalidade dos guerilheiros do PAIGC... Pois nós, mal saímos do arame farpado, íamos armados até aos dentes. E teria que ser assim... Eles no entanto até viviam muito próximo e mesmo dentro de nossos aquartelamentos...

Notam-s por vezes imprecisões em termos usados e armas que tínhamos e outras que eram deles, do IN da altura. Por exemplo, o morteiro ligeiro que eles usavam não era o 61 mm mas sim o 62.

Não nos interessa contar coisas por contar ou porque nos disseram. Como já te disse e continuo a pensar, vamos falar das nossas experiências, essas são as verdades de cada um e serão verdadeiras porque sentidas... Vamos dizer que muitas vezes tivemos "manga de cu pequenino" e não vamos dizer eu fiz, e fiz aquilo e fiz aqueloutro... Porque decerto nem será verdade tudo isso. E ter medo não é vergonha, converter o medo em valentia, isso sim (episódio de Veloso nos Lusíadas, não vamos ser como ele).

Conto-te uma história engraçada: quando eu fui de férias vim com o Furriel Vagomestre da minha companhia, o Marques... Bem, estávamos no café Bento - a famosa 5ª REP, que tu conhecias - , e a certa altura eu comecei a ouvir ele a dizer:
- Bem, quando nós fomos a Satecuta, fizemos e aconteceu e não sei que mais!- Enfim, informava lá uns camaradas que nem sequer eram nossos conhecidos... Um deles era o Branqnuinho, creio que estava em Fá Mandinga... Eu que também não tinha ido a Satecuta, estava já com cerveja na cabeça, virei-me para o Marques, diante daquele gente toda e disse:
- Foda-se, Marques, foste aonde? - E virei para os outros: Este caralho até é Vagomestre.

Efectivamente foi a cerveja que não me deixou estar calado, mas não me arrependi... Mentir não fazia jeito, muito mais armar em herói. Peripécias ao lado da guerra, como vês... Sei que, se estivesse sem cerveja, na cabeça era capaz de ficar calado. Creio que isso é o tal pecado e esse é de omissão.

Também não vamos dramatizar e morrer com os nossos camaradas mortos. Não, vamos recordá-los. E como recordar é viver, a minha intenção, romântica talvez, é ressuscitá-los para cada um de nós, porque eles fazem parte do nosso/teu Blogue.. E digo que fazem parte porque afinal toda a gente os esqueceu, nas nós não, e isso é importante...

Há que então ler os documentos atentamente... Um abraço, Luís, e obrigado pelas palavras sempre animadoras que me dás. Eu continuo, bêbado, a ler a nossa guerra. Digo nossa, sim, porque afinal nós éramos os representantes do poder, mesmo que voluntários à força...

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

(2) BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70)

(3) O desastre foi em Cheche, na travessia do Rio Corubal, ja depois da retirada de Madina do Boé. Foi em 6 de Fevereiro de 1969. Vd. post de 2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé

segunda-feira, 17 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P224: Tabanca Grande: Manuel Oliveira Pereira, ex-Fur Mil da CCAÇ 3547, Contuboel, 1972/74 - Notícias do BCAÇ 3884 (Bafatá, Contuboel, Geba e Fajonquito, 1972/74)

Mensagens do Manuel Oliveira Pereira (ex- Fur Mil da CCAÇ 3547 - Os Répteis de Contuboel, 1972/74) enviadas à nossa tertúlia (1) e ao Maurício Nunes Vieira (2) (ex-radiotelegrafista da CCS do BCAÇ 3884, Bafatá, 1972/74).

1. Amigo (ex-Combatente) Luís Graça,

Terei muito gosto em fazer parte da vossa (nossa) tertúlia.

Constato que o nosso passado comum se voltou a cruzar: trabalho na Direcção Geral de Saúde (já passei pela ENSP - Escola Nacional de Saúde Pública), trabalho também no Hospital da Cuf, mas não sou médico.

Prometo voltar em breve a este espaço com algumas estórias e fotos.




2. Terei muito gosto em fornecer toda a informação sobre o BCAÇ 3884 e em particular sobre a CCS (1).

Para me identificares aqui vai em anexo umas fotos – eu próprio e a outra com o Coronel Castelo e Silva. Entre outras coisas também fui o Delegado do Batalhão e era conhecido por Oliveira Pereira.

O ex-Fur Mil Oliveira Pereira e o Cor. Castelo e Silva, num dos convívios anuais.

© Oliveira Pereira (2005)

Muito embora fosse da CCAÇ 3547 [aquartelada em Contuboel], mas pelas diversas funções que me foram atribuídas, privei de perto com todas as Companhias e no caso concreto da CCS, destaco os Furriéis Pinto Leite, Ferreira, Costinha, Egas Martins, Boga, Dinis, Floro, Barcelos, Tenente Cintra; os Majores Vargas Cardoso e J. M. Gonçalves; os Coronéis Correia de Campos, Castelo e Silva; o 1º Sargento Canelhas; os Soldados Luis Guerreiro e Coutinho; os Alferes Osório, Pinto e Brás, etc.

Ainda hoje e passados todos estes anos ainda nos vamos encontrando, quer nos encontros anuais - vou habitualmente a todos –, quer de uma forma mais amiúde com alguns dos muitos “amigos” de todo o batalhão.

Um Volto em breve.
Um abraço.


O emblema da CCAÇ 3549 (Fajonquito) (2)



Emblema da CCAÇ 3548 (Geba)
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(1) Este batalhão ("Velozes e agressivos", era o seu lema), esteve na Guiné entre Março de 1972 e Julho de 1974, e dele faziam parte, além da Companhia de Comando e Serviços (CCS), sedeada em Bafatá, as companhias de quadrícula estacionadas em Contuboel, Geba e Fajonquito, as CCAÇ 3547, 3548 e 3549, respectivamente.

Vd. post de 9 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXIV: Camaradas do BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972/74), procuram-se!

(2) Fajonquito fica a sudeste do Olossato, entre Bissorã e Farim. vd. Carta da Guiné (1961)

Guiné 63/74 - P223: Tabanca Grande: Virgínio Briote (ex-Alf Mil Comando, Cuntima e Brá, 1965/67) e a história de Ansumane, caçador de crocodilhos (conto tradicional)


Mulheres, bajudas e crianças na fonte.
Nhabijões, Bambadinca.

© Luís Moreira (2005). Foto de finais de 1970 gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-alf. mil. sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).

Texto de Virgínio Briote:

Caro Luís Graça,

Descobri há pouco tempo o seu interessante blogue. Todos os dias à noite passo por ele e vou-me actualizando, lembrando aqueles tempos. Passei também por aquelas terras. Fui mobilizado, em rendição individual, para a Guiné em Janeiro de 65, para um batalhão que tinha participado na Op Tridente, na Ilha do Como (1), e que mais tarde esteve em quadrícula, sediado em Farim.

Fui colocado em Cuntima, na fronteira norte (2). E, quando o Batalhão se preparava para regressar, ingressei nos comandos em Brá. Corri com o meu grupo a Guiné quase toda. Também fui a Satecuta, ao Galo Corubal (3) e por lá andei 19 dias, na época das chuvas.

Tenho muita coisa escrita, coisas que guardei para mim, que fechei numa mala, quase durante 40 anos. Envio-lhe uma história que ouvi lá.

Um abraço,
V. Briote
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ANSUMANE, O CAÇADOR DE CROCODILOS

A agitação interior que eu sentia, miudinha, contrastava com a calma daquela noite de lua cheia nas margens do rio.
- Boa noite, patrão! - O Braima, camisa a arrastar pelo chão, gorro de lã na cabeça, cachimbo há que tempos nos dentes. Braima Dáfé, pés grandes, seco, resistência incomum, dia a dia a remar a canoa entre as margens, levando a mancarra que os nativos tinham para vender aos comerciantes.
- Patrão, tem canoa ali na margem, quer passar?

Rio acima, a brisa fresca e mansa a dar-lhes, o chlap chlap do remo. A agitação a dissipar-se, pouco e pouco a vida a ficar para trás até desaparecer, dobrada a curva do rio. E logo ali, entre os tufos das palmeiras, duas árvores despidas, encostadas uma à outra, ramos entrelaçados de tal forma que àquela distância, lhe pareciam duas pessoas abraçadas uma à outra, uma delas com um braço erguido como se pedisse auxílio ao céu.
- O que é aquilo, Braima?
- Eh, patrão, aquelas árvores são pessoas! Sim, patrão, há muito tempo. Nem tinha ainda nascido o avô do meu avô. Quando as mulheres adúlteras eram castigadas com o desprezo, às vezes até com a morte. No tempo em que havia respeito pela honra, não era como agora...

... Pois nesse tempo, uma bajuda chamada Kadi foi prometida ainda menina ao poderoso Bacar Seidi, um velho rabugento já com oito mulheres. Kadi a crescer, o coração fraco a palpitar, começou a inclinar-se para Ansumane, caçador de crocodilos, o mais famoso da região.

Ansumane correspondia, queria mesmo casar com ela, mas o pai já a tinha prometido a outro, mais dotado que o caçador, a coragem como único dote. Olhavam-se com aqueles olhos que toda a tabanca via, nos batuques Kadi a dançar, seios para cima e para baixo, as ancas fartas, os olhos de Ansumane. Ele bem gostava de satisfazer o seu corpo, ela de casar com ele, ai dela, tinha que cumprir a palavra de seu pai, casar com Bacar Seidi.

Passaram tempos, muitos mesmo até que um dia, com grande desgosto de Ansumane, Kadi foi entregue a Bacar Seidi, e outras luas passaram. Ansumane sem conseguir desviar-se para outra, rodeava a morança, procurava nem que fosse só vê-la, os dias a passarem-se, ele sempre a magicar como a havia de convencer a ser dele, a vontade de caçar crocodilos a passar. O homem dela, conhecedor da amizade que os unia, vigiava as redondezas, nunca se sabe.

Até que um dia as febres tomaram conta de Bacar Seidi. Ansumane, na sua ronda nocturna como era costume, viu a adorada Kadi, ao ar fresco da noite na varanda.

Kadi, como um assobio baixo, ela a correr, o impulso do coração mais forte que o chamamento dele, para os braços do amado.
- Tens que ser minha!.
- Não posso, Ansumane, eu sou do Bacar, ele é o homem a quem Alá me entregou!
- Mas ele é velho e tu não gostas dele, tu gostas de mim, eu sei!
- É verdade, Ansumane, mas ele é o meu homem e eu a sua mulher -. Ansumane a apertá-la mais contra o seu peito, mãos nervosas nos redondos de Kadi, aquele corpo jovem, ela a estremecer, um delírio, ele a insistir:
- Kadi, vem comigo, fujamos, tenho a canoa na margem, se atravessarmos pela bolanha depressa chegamos! Vamos Kadi, para um lugar que ninguém nos conheça, onde o teu homem nunca nos alcance. Kadi mesmo junto ao coração dele, a tentação mais forte, o corpo a palpitar:
- Ansumane sim, é um homem jovem, viçoso, meu homem é velho.

Mão na mão, a passos largos na estreita vereda, a serpentear pelas palhotas, a bolanha, a seguir a margem do rio. Junto à sebe da purgueira, o sussurrar da brisa agitou as ramagens do arbusto. Não contavam, estremeceram, abraçaram-se como se estivessem mais protegidos. Acharam que não podiam esperar mais. E no silêncio da noite, deram-se um ao outro, as estrelas a brilharem como testemunhas. Ficaram esquecidos, a onda de loucura passara, Kadi em si, o erro agora sem remédio, não podia voltar para o seu homem, tinha mesmo que fugir com Ansumane.
- Vamos depressa antes que Bacar dê pela minha falta, vamos!

Na morança, Bacar há muito que despertara a arder em febres, se tomasse um chá de buco talvez ficasse melhor, diria a Kadi que lho preparasse.
- Kadi, Kadi! - A voz dele a voltar para trás. Ergueu-se um pouco para ver a esteira de Kadi, devia estar a repousar, não a viu, Kadi, outra e outra vez o eco sem resposta. Onde estaria Kadi a esta hora que ninguém está fora das moranças, obra de Ansumane, seria?

A cólera deu-lhe forças, levantou-se, a espada de gume curto na mão enrugada, correu para o rio, o que as pernas deixavam, um pressentimento estranho.

Não queria acreditar, as febres, Kadi mão na mão de Ansumane a caminho do rio a dois passos. Não conseguindo alcançá-los, Kadiii…um grito áspero de gelar a chegar até eles. Estacaram, tolhidos sem poder mexer-se!

Que Alá os livrasse da vingança no fio da espada, tão cortante como a voz que os fizera deter, incapazes de mais um passo que fosse!

Morrer! Não, ela não queria morrer às mãos de Bacar, os braços a rodear o corpo forte de Ansumane, mais protegida da fúria de Bacar.

Morrer! Não, ele não queria, nem a morte de Kadi que agora mais que nunca era sua. E erguendo-se para o céu pediu a Alá que os protegesse.

A prece foi ouvida. Quando Bacar já a curta distância, a espada no ar prestes a abater-se sobre as cabeças, Alá livrou-os da morte, transformou-os em árvores! Foi assim que um pedaço de pau encontrou a espada de Bacar!

Dizem que hoje, tantas luas passadas, em noites de tempestade ainda escorrem gotas de sangue daquele lanho já seco pelos tempos!

... Quando Braima acabou a história, fixei melhor as estranhas árvores, a ver se via nelas a infeliz história de Ansumane, o caçador de crocodilos, a fantasia das palavras de Braima ainda no ar.

O silêncio daquela noite brilhante foi subitamente quebrado por um uivo, sinistro de um cão! Braima respondeu com um prolongado:
- Eh! eeeeh! - E estalou repetidamente com a língua…
- Quando os cães uivam é sinal que algum mal está para acontecer! Vamos embora, patrão, é melhor! - Duas remadas fundas viraram a canoa em direcção à vida (4).

Virgínio Briote
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Notas de L.G.

(1) No sudoeste da Guiné, na região de Tombali, abaixo de Catió. A batalha do Como, em 1964, foi um dos momentos mais dramáticos da guerra colonial.

(2) Cuntima ou Cuntim, a oeste de Pirada, na zona nordeste da Guiné ?

(3) A nordestse do Xitole, regulado do Corubal. Vd. anterior post sobre a Op Lança Afiada (Março de 1969).

(4) Para quem gosta dos belíssimos contos tradicionais da Guiné-Bissau, aqui mais alguns, que encontrei no sítio do Instituto de Marquês Valle-Flor, uma ONG muito activa ligada a projectos de cooperação (incluindo o Projecto Guileje).

"O Iran e a Noiva" > Um conto tradicional adaptado pela EB 2/3 da Baixa da Banheira nº3.

«Assim a cabra se salvou duma morte certa» > Um conto enviado pela EB 2.3/S Miguel Torga, em Sabrosa.

«A Assembleia do Reino Animal» > História enviada pela Escola nº53, de Sacavém.

"A Pedra Sagrada" > Uma história de um lobo esfomeado contada pelo povo guineense.

"Tu não podes comigo!" > Uma história da Guiné-Bissau (em duas versões)