quinta-feira, 20 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P973: Estar ou fazer-se 'apanhado' para não enlouquecer (Jorge Cabral)

Mensagem do Jorge Cabral, antigo alferes miliciano de artilharia e comandante do Pel Caç Nat 63, afecto ao Sector L1 (Bambadinca) da Zona Leste, tendo estado em Fá Mandinga e em Missirá (1969/71).

Amigo Luís,

Cá estou eu revolvendo os trilhos da memória, evitando pisar as minas da tristeza.

Interessa-me, como sabes, realçar o burlesco de situações vividas num quotidiano, onde a lucidez se embaciava propositadamente, porque só dessa forma era possível aguentar. Estar ou fazer-se apanhado constituía afinal a solução para não enlouquecer…

Nós, os brancos dos Pelotões Nativos, caíamos desamparados e ignorantes, num meio totalmente desconhecido. Numa semana passeávamos no Rossio, e na seguinte estávamos em Missirá… Obviamente que nos espantávamos com tudo:
- Que raio de terra é esta, onde as mulheres mijam de pé e os homens de cócoras? - interrogou-me, um dia depois de ter chegado, a Cabo Gulherme.

Claro que o tempo dissipava a nossa inicial estupefacção, e alguns de nós acabavam por adoptar os costumes e práticas da população onde estavam integrados. Uns mais que outros, é verdade, mas isso também dependia do comportamento do Comandante do Destacamento… Se o Alferes mastigava cola (1) e lavava os dentes com terra, talvez fosse um exemplo a seguir… Apanhado o Comandante não existia vacina que evitasse o contágio!

Boas férias Amigo! Mando estória (2) e, como sempre, um Grande, Grande Abraço!

Jorge


P.S. – Alguns acrescentos e pequenas correcções:

a) quando comandei Missirá, continuavam a existir 2 Pelotões de Milícias (um Missirá e outro em Finete).

b) Também as famílias dos meus soldados os acompanhavam sempre, o que levantava problemas nas transferências. De Fá para Missirá, contámos com a ajuda da Marinha, por solicitação do vosso Major Brito. Mulheres, crianças, cabras, galinhas, camas, panelas, alguidares…foram de Lancha.

c) A Sulimato da minha última estória (2) era afinal Salimato, como me informou, o António Duarte [antigo furriel miliciano da CCAÇ 12, 1972/74], que a conheceu demasiado bem (pelos vistos a dama continuou em comissão…).

d) O Alferes Machado pertenceu à CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).

e) Recebi uma amigável e elogiosa mensagem do vosso Alferes Abel (3), que quase me emocionou. Então não é que ele escreveu “Alguém disse um dia que eras o único oficial do exército porreiro”.

____________

Notas de L.G.

(1) Noz de cola

(2) Vd. post de 4 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P936: Estórias cabralianas (11): a atribulada iniciação sexual do Soldado Casto

(3) Alf Mil Inf 01006868 Abel Maria Rodrigues, Comandante do 3º Gr Comb da CCAÇ 12 (Bambadinca 1969/71)...

quarta-feira, 19 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P972: Cacimbados ou apanhados do clima? (Zé Teixeira)


Guiné > Guidaje > CCAÇ 4150 (1973/74) > Trata-se de um Unimog 411 (e não Hanimog, como vem escrito por lapso da legenda da foto). Esta viatura transportava uma secção (8 homens com o condutor). Era conhecida por burrinho ou salta-pocinhas...

Foto: © Albano M. Costa (2005)


Texto do Zé Teixeira, ex- 1º cabo enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70.

Cacimbados ou apanhados pelo clima ?

Eu gosto mais do segundo termo, pois reflecte a realidade do que se afirmava no meu tempo de Guiné, quando algum de nós cometia actos que expressavam um estado de espírito ou força anímica anormal, estados esses a que nos fomos habituando desde o primeiro dia:
- Este já está apanhado pelo clima!

Desde o Frank que se punha a gritar, nos primeiros dias de Guiné, a altas horas da noite, “Apetece-me voar", ao Lemos que gritava “Apaguem a luz que não vejo para dormir” até ao Chamusca que, quando éramos atacados no quartel, subia para a alta árvore e punha-se a berrar, dizendo as palavras próprias com que baptizávamos os adversários, que de tão bonitas que eram, não cabem neste blogue de gente educada.... Neste último caso, foi preciso o alferes Barbosa fazer-lhe uma espera e prometer-lhe quatro borrachos se ele voltasse a repetir a cena.

Estava em Mampatá (2), um oásis no meio da guerra, quando o restante pessoal da Companhia foi fazer segurança à coluna de transporte de mantimentos a Gandembel. A ida foi, como de costume, agitada e quando tomamos conhecimento, via rádio, que a coluna tinha recomeçado o caminho de regresso a Aldeia Formosa (2), o alferes e um furriel decidiram pegar no salta-pocinhas (*) e arrancar ao seu encontro.

Como era um acto demasiado arriscado, naquela zona, decidiram partir, mas sem G3 ou qualquer outra arma de defesa pessoal, e lá se foram a grande velocidade, pois a estrada tinha sido picada de manhã no início da coluna.

Atravessaram Chamarra (2), onde estava outro Grupo de Combate aquartelado e, ao localizarem a coluna, inverteram a marcha e, seguindo na sua frente, regressaram a casa, felizes e contentes pelo desfecho positivo da aventura.

Num dia, após um ataque a Aldeia Formosa (2), que começou cerca das 17.30 e acabou altas horas da madrugada, o Caco Baldé (1) apareceu por lá para apreciar os estragos, que felizmente para os militares tinham sido nulos e ao comentar com o comandante da guarnição o local de onde o IN tinha atacado, este sugeriu que possivelmente tinha havido apoio logístico de uma tabanca colocada para lá da fronteira. O Homem do monóculo, só fez uma pergunta:
– Nunca te lembraste de apontar para lá os obuses ?

Claro que nessa noite foi um corridinho de granadas de 18 Kg naquela direcção. Eu guardei a frase, quando em Mampatá se comia arroz com arroz, enquanto as vacas do Chefe da Tabanca se deliciavam a pastar entre os arames farpados de protecção da tabanca. Ao fazer a ronda nocturna notei o tilitar de garrafas e perguntei ao sentinela o que se passava:
- É uma vaca que anda aí - respondeu-me ele - não há perigo.

Havendo perigo ou não, resolvi imitar o Caco e dizer-lhe:
- Já pensaste em mandar para lá um tirito, ninguém sabe se está lá uma vaca ou um IN ?!

No dia seguinte, sem eu ter dado qualquer ordem, apareceu uma vaca coxa, e houve bife e do bom ao almoço, pois o Aliu Baldé, para não perder tudo vendeu-nos a vaca pelo preço da chuva.

Só que o IN também queria que repartíssemos com ele e à hora lá estava junto à cerca, sabendo que a fome e o apetite por um bom bife eram factores que nos iriam criar possíveis desatenções. Tal aconteceu de facto. Os postos de sentinela, foram desguarnecidos e o IN chegou a tentar entrar. Creio bem que a população estava avisada e refugiou-se nos abrigos, e só tal facto impediu que houvesse mortos e feridos, tal a proximidade dos guerrilheiros (chegaram a entrar dentro do perímetro da tabanca) e a quantidade de fogo ligeiro, que provocou o incêndio e a destruição em 11 moranças.

A reacção dos meus colegas foi automática: atirando o bife com batatas fritas pelo ar, desataram a correr para os postos e seguraram pelas pontas o ataque. Por outro aldo, a reacção do pelotão de milícias foi excelente. Apraz-me registar ver o Chefe de tabanca e comandante da milícia, Alferes Aliú Baldé a coordenar, de peito aberto, a defesa (tanto quanto soube, veio a falecer em combate cerca de dois anos depois, também na defesa de Mampatá, quando a zona aqueceu, com a reabertura de frente de Colibuia e Cumbijã)(**) .

Estranha foi a minha reacção. Assustado com o fogachal e as labaredas que surgiam de todos os lados das moranças a arder, em lugar de me proteger e aguardar pelo fim da contenda, como era e continuou a ser meu hábito, desatei a correr pela tabanca a perguntar, aos gritos, se havia feridos.

Recordo-me bem da razão do meu estado de espírito: Tinha comigo apenas dois frascos de soro, algumas agulhas e linha de sutura, meia dúzia de Zimema K e pouco mais. Entrei em pânico. A estrada para Aldeia Formosa, estava cortada pelo IN e eu senti-me sem nada para poder valer aos colegas e à população.

Foram vinte minutos terríveis, que se saldaram num grande susto e . . . moranças queimadas, pois nem um ferido para amostra.
- Já estou apanhado! - Foi o meu pensamento íntimo, logo depois e que me obrigou a rever a forma de estar nos teatros de guerra que se seguiriam.

A nossa reacção obrigou o IN a refugiar-se rapidamente na mata e continuar a flagelação, mas um tanto descontrolada.

Como resultado extremamente positivo para a minha pessoa, foi a forma como a partir daquela altura a população em geral me acolheu e o carinho com que me trataram. Se já era bom ficou excelente.

Zé Teixeira
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(*) Unimog 411 (pequena viatura de transporte para uma Secção).

(**) Tive o grato prazer de reavivar a sua memória, quando em 2005 reencontrei a sua filha Naná, mudjer do actual régulo da tabanca de Sinchã Sambel (ele mesmo também milícia em Mampatá no meu tempo), que resultou do reordenamento de Contabane, após a destruição desta tabanca na noite de S. João em 1968 (3).

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá (Jorge Cabral)

(...) Notas de L.G.

(...) "Caco (ou Caco Baldé) era a a alcunha por que era mais conhecido o General Spínola entre os seus soldados. O termo queria referir-se ao vidrinho ou monóculo que ele usava... Baldé era um dos apelidos mais vulgares entre os fulas, aliados de Spínola...

Vd posts de:

29 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXIV: Recordações do 'Caco Baldé' no Xitole (David Guimarães)

24 de SDetembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCX: Oficial do Estado Maior do 'Caco'... por duas horas (João Tunes)
(2) Vs. na carta do Xitole, o triângulo Mampatá- Chamarra - Aldeia Formosa (Ou Quebo)

(3) Vd. post de 6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXI: A viúva do régulo Sambel de Contabane: um símbolo (Zé Teixeira)

Guiné 63/74 - P971: Amílcar Cabral e a Cuba de Fidel Castro ou os mortos também se instrumentalizam (João Tunes)

Guiné > Anos 60 > Uma das mais emblemáticas fotos de Amílcar Cabral (1924-1973), fundador e dirigente do PAIGC. Foto: Fonte desconhecida


Texto do nosso camarada João Tunes, de quem a nossa tertúlia já tinha saudades... Eu, pelo menos, já tinha saudades da sua escrita vigorosa, da frontalidade das suas posições, da sua paixão pela discussão de ideias...

João: Boa continuação de férias, em Cabo Verde, camarada! Ou bom regresso a casa, se for caso disso... Como vês, mal ainda abrimos o dossiê cubano e tu já começas a deitar fogo à savana!... Bom, depois de vários textos, da mesma fonte, sobre o papel dos cubanos - foi há 40 anos que chegaram seceretamente à Guiné os primeiros médicos e instrutores cubanos, que vieram dar apoio à guerrilha do PAIGC - , era já chegada a altura de termos também, no nosso pluralíssimo blogue, um ponto de vista crítico sobre o(s) discurso(s) de propaganda dos seus autores: mas essa função de vigilância crítica compete menos ao sobrecarregado editor do blogue do que aos folgados e fogosos camaradas que estão de serviço ao pelotão de piquete.

João: Tu não precisas, naturalmente, de invocar o direito de réplica (pública): está a utilizar, e muito bem, o teu direito de pensar pela tua cabeça e de exprimir, de imediato, os teus sentimentos de indignação contra a tentativa de reles instrumentalização e apropriação (sempre abusiva) de uma figura que a história agigantou e que tu e eu e outros de nós, nesta tertúlia, ainda admiramos e respeitamos, desde a nossa juventude... Falo do Amílcar Cabral, que sempre soube distinguir o povo português e o regime colonialista que ele combateu, de armas na mão... Infelizmente, guineenses, caboverdianos e portugueses ainda o conhecem mal, a ele, ao seu pensamento e à sua acção... Obrigado pelo teu contributo. LG


OS MORTOS TAMBÉM SE INSTRUMENTALIZAM

Caro Luís,

Uma nova dívida, a juntar a tantas acumuladas e por pagar, fica registada para com o teu ciberlabor - dares a conhecer o despacho da Lusa sobre o fantástico discurso de uma celebridade inspirada, Pedro Donia, embaixador de Cuba na Guiné Bissau. Estando então de férias em Cabo Verde, não conhecia a notícia e, sem o blogue, ficaria a leste de tão inspirada e espantosa sacanice política.

A um morto, ilustre ou não ilustre, nem tudo se deve fazer. Direi mesmo que um morto, qualquer morto, exige sempre respeito. Dar pontapés num morto ou fingir endireitá-lo para que funcione como boneco de eco ventríloco de uma qualquer cartilha política, são das piores canalhices entre as que conheço na face negra do comportamento humano, política e intelectualmente falando. E se instrumentalizar a memória de um morto, projectando-lhe comportamentos fora do contexto em que viveu, não é o cú da propaganda, então é aceitar que a política e a diplomacia, segundo certos propagandistas safados, comem mas não defecam.

Amílcar Cabral, assassinado em 1973, hoje, só tem contas a ajustar com a história pelo que fez em vida e por aquilo que lutou na forma como lutou. Especialmente perante a memória dos povos da Guiné e de Cabo Verde cujos destinos invocou como causa da sua vida e marcou indelevelmente. Pela sua inegável envergadura, mais a força do impacto do seu martírio, a figura de Amílcar ainda sofre do efeito da névoa do mito. Um mito construído, a meias, entre os que o diabolizam e o santificam. E um mito é sempre uma redução.

Pela parte que me toca, até porque marcou alguns dos meus anos de juventude como meu camarada de ideais e simultaneamente meu inimigo na guerra, há muito ainda a descobrir nele, a aclarar, a projectar no seu tempo histórico, respeitado o contexto da época em que viveu e lutou. E há, à volta da figura de Amílcar, mistérios, luzes e sombras. Que só o tempo, na sua distância, mais o acesso a fontes documentais podem permitir aos historiadores a missão ciclópica de nos permitirem conhecer melhor Amílcar.

Neste aspecto, muito tenho aprendido com o nosso amigo Leopoldo Amado, cujos talentos de historiador contribuíram para que, cada vez mais, aumente a minha curiosidade em saber de Amílcar o máximo da substância além do mito. Esse mito desesperante que envolve, inevitavelmente, toda a figura de líder que, no caso - tragicamente, não lhe foi permitido fazer a prova suprema do exercício do poder em vitória total, confirmando-se, desmentindo-se ou negando-se (e como a história é fértil em qualquer destas modalidades!). Está para conhecer, em toda a dimensão, os variados talentos de Cabral na sua panóplia de intervenções - como chefe militar, como político, como diplomata, como pensador político e ideológico, como intelectual sofisticado, como planificador, como homem de Estado antes de ter um Estado mas projectando-o como herança política.

Também desconhecidos são os seus inevitáveis pontos negros no exercício do poder guerrilheiro nas condições em que travou a guerra (e, decerto, os terá). Para dissecar está igualmente a génese da utopia de Cabral na unidade Guiné-Cabo Verde, a qual, vista à distância, tende a surpreender pelo seu aparente absurdo como a praxis depois demonstrou.

Particularmente, um dos pontos mais misteriosos e fascinantes na figura de Cabral, tem a ver com a forma real como ele desenhou a sua luta no quadro geoestratégico e se movimentou no xadrez de apoios e alianças numa época da guerra fria mais quente. E - mera suposição minha - desconfio que, neste domínio, muitas surpresas estão reservadas aos historiadores face a alguns clichés adquiridos, nomeadamente o de que foi um peão dos soviéticos ou dos cubanos. E quando os arquivos soviéticos e cubanos forem abertos aos historiadores, quiçá apareçam surpresas sobre a forma, e as variações no tempo, como soviéticos e cubanos apoiaram Amílcar e o PAIGC e se esse apoio foi sempre leal, incondicional e desinteressado. Ou se, pelo contrário, houve dedos de aliados enfiados, objectiva ou subjectivamente, nos gatilhos das armas que o abateram.

O discurso do embaixador Pedro Donia, instrumentalizando a memória de Amílcar ao garantir que, se vivo, estaria hoje ao lado do ditador Fidel Castro (1), o homem que transformou Cuba numa Ilha-Prisão, é uma peça rasca e indigna de propaganda. E por ter a cumplicidade interessada de Carlos Gomes Júnior, mais os projectos comuns guineenses-cubanos, não aquece nem arrefece, porque de perfídia não passa. Muito menos a memória respeitável dos combatentes cubanos que caíram no combate pelo PAIGC, altera um pau de fósforo na questão.

Não conheço qualquer prova que garanta que Amílcar seria inevitavelmente um ditador e amigo e aliado de ditadores e de ditaduras. Pedro Donia não as apresentou, diminuindo Cabral por via da instrumentalização política, fazendo silogismos de pacotilha. Da mesma forma, no meu caso, não tenho garantias de que Cabral, se vivo, estaria hoje a insurgir-se contra a resistência à democracia cubana, contra as prisões arbitrárias em Cuba, nomeadamente das dezenas de jornalistas condenados a mais de vinte anos de prisão política por teimarem em escrever diferente das versões e dos delírios paranóicos de Fidel Castro. Uma ou outra projecção são delírios, tanto mais se tivermos em conta como o mundo mudou desde 1973 até aos nossos dias.

Mas como Pedro Donia existe, Carlos Gomes Júnior também, é bom que saibamos das suas músicas. Razão principal do meu sincero agradecimento por nos teres dado a conhecer esta peça. Usando, se o permitires, o direito a pública réplica.

Abraços para ti e restantes tertulianos.

João Tunes

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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P956: Antologia (48): Félix Laporta, o primeiro cubano a morrer, num ataque a Beli, em Julho de 1967

(...)

Se Cabral fosse vivo estaria ao lado de Fidel, diz embaixador de Cuba em Bissau
RTP -Informação

O embaixador de Cuba em Bissau afirmou que, se o fundador das nacionalidades cabo-verdiana e guineense, Amílcar Cabral, fosse vivo, estaria "com toda a certeza, a lutar contra o imperialismo" ao lado do presidente cubano, Fidel Castro.Pedro Donia discursava numa cerimónia organizada pelo Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) destinada a celebrar o 40º aniversário da chegada à então província portuguesa da Guiné dos primeiros seis "internacionalistas" de Cuba, que ajudaram o "movimento libertador" na luta pela independência nacional (1963/74)."Os ideais de independência e autodeterminação e de luta contra o imperialismo de Amílcar Cabral, tal como se apresentou perante Fidel Castro em meados dos anos 60, manter-se-iam hoje bem vivos se fosse vivo. E, se fosse vivo, estaria, com toda a certeza, ao lado do líder cubano", afirmou o diplomata (...)

Guiné 63/74 - P970: Os efeitos do 'cacimbo' (Joaquim Mexia Alves)


1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves, ex-alf mil da CART 3492, (Xitole / Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15, (Mansoa) (1971/73):

Caro Luis Graça

Com efeito cacimbo é um termo oriundo de Angola que significa, salvo o erro, a estação mais fria , a estação de maior humidade e chuva.

Penso mesmo que o termo cacimbo significará isso mesmo, uma espécie de humidade tão intensa que parece chuva e que portanto fará mal à cabeça.

Depois de sair da Guiné fui trabalhar para Angola, motivo pelo qual também tenho uma ligação a esta terra extraordinária.

A época do cacimbo começava, salvo o erro, em meados de Maio e iria até meados de Setembro.

Entre aqueles que residiam em Luanda havia um termo que se utilizava que era: "Os inspectores do cacimbo". Este termo era utilizado para designar uns indivíduos que durante essa época do ano vinham de Portugal a Angola, tentando enganar os incautos com dinheiro, propondo negócios fabulosos que na maior parte dos casos não existiam ou não tinham qualquer interesse. Como se dizia então, "vinham vender fábricas de água a ferver".

A alguns as coisas às vezes corriam mal e não se pense que eram só vulgares vigaristas, pois também havia gente da alta.

Aqui fica uma achega, que nada tem a ver com os cacimbados, mas tem a ver com o termo e com África. Prometo escrever mais sobre os efeitos do cacimbo nas nossas tropas na Guiné, especialmente neste teu camarada.

Abraço
Joaquim Mexia Alves
Termas de Monte Real

Guiné 63/74 - P969: Mexia Alves e a malta do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (Sousa de Castro)

Vila Nova de Gaia > Carvalhos > Quinta da Paradela > 10 de Junho de 1989 > 1º convívio do BART 3873. O Mexia Alves, alto, de barbas, é o 2º da 2ª fila, que está de pé, a contar da direita para a esquerda. O 4º, da mesma fila, é o Tenente Coronel António Tiago Martins, comandante do batalhão.


Vila Nova de Gaia > Carvalhos > Quinta da Paradela > 10 de Junho de 1989 > 1º Convívio do BART 3873 > Lá está o grandalhão do Mexia Alves, de barbas, o 1º da 2ª fila, de pé, da dierita para a esquerda, com malta da CART 3494 e da CCS do BART 3873 (1).


Texto e fotos: © Sousa de Castro (2006) (ex-1º cabo de transmissões da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)

Eu sabia que tu, Mexia Alves, não me eras estranho, conheci-te no 1º convívio realizado pelo BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) na Quinta da Paradela, Carvalhos, Vila Nova de Gaia, em 10 de Junho 1989.

Também estive no convívio que realizaste em Monte Real, no dia 5 de Outubro de 1991.

Confirmo o que diz o António Duarte (2): nesse tempo ainda estavas um pouco apanhado do
clima
, declamaste um poema muito bonito e interessante nesse 1º convívio. Tens jeito para a declamação de poesia.

Alfa Bravo.
ZNB SC = Sousa de Castro
(ex. 1º cabo Trams,
CART 3494,
Xime e Mansambo,
1972/74)
__________

Notas de L.G. :

(1) O BART 3873, sedeado com a respectiva CCS em Bambadinca (1972/74) tinha três unidades de quadrícula no Sector L1: CART 3493 (Mansambo, 1972/1973); CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974); CART 3492 (Xitole, 1972/74). O Alf Mil Op Espec Mexia Alves pertenceu originalmente à CART 3492, antes de ingressar no Pel Caç Nat 52 (Bambadinca) e na CCAÇ 15 (Mansoa).

(2) Vd. post de 17 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P966: O Mexia Alves que eu conheci em Bambadinca (António Duarte, CCAÇ 12, 1973)

terça-feira, 18 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P968: Memórias de Mansabá (4): A morte do Alf Couto da CART 2732, dia 6 Outubro de 1970 (Carlos Vinhal)

Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 > A temida mina antipessoal PDM-6 (vd caixa aberta), reforçada com uma carga de trotil de 9 kg (as barras do lado direito). Detectada e levantada na estrada Bambadinca-Xitole pelo furriel de minas e armadilhas Guimarães da CART 2716. "Bem, ia uma GMC ao ar, isso sim!...".

Foto: © David J. Guimarães (2005)
Texto do Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA CART2732, Mansabá (1970/72)


Os fatídicos dias 5 e 6 de Outubro de 1970

O Aquartelamento [de Mansabá] tinha sido atacado na noite de 5 de Outubro. Deste ataque resultou a morte imediata de um soldado milícia e ferimentos ligeiros em alguns militares da nossa CART (1).

Na manhã seguinte havia que fazer o reconhecimento da zona envolvente, pois o IN esteve muito próximo e normalmente deixava pistas que, de alguma forma, serviam para recolher ensinamentos para futuros ataques. Além de tudo, por vezes, antes de retirar, o IN deixava armadilhas nos itinerários utilizados por nós e pela população. A acção de reconhecimento competia ao Pelotão de Piquete.

No dia 6 estava de Piquete o 4.º pelotão, cujo Comandante era o alferes Couto que tinha, como eu, o curso de Minas e Armadilhas. Do mesmo pelotão fazia ainda parte o Furriel Sousa, também com o curso de minas.

Por motivos óbvios toda a malta se tinha deitado muito tarde e descansado pouco, mas manhã cedo lá saiu o 4º pelotão para o mato, reforçado pelo meu, o 3.º, para proceder ao dito reconhecimento.

Decorrido algum tempo após a saída dos pelotões, ouviu-se no aquartelamento um estrondo e quase de seguida, pelo rádio, ouviram-se pedidos de socorro para evacuar um morto e um ferido, vítimas do rebentamento de uma mina antipessoal num carreiro no designado Alto de Bissorã. Saíram imediatamente algumas viaturas para trazerem os sinistrados.

Quando regressaram, traziam o cadáver do Alferes Couto. O ferido era o Alferes Bento, comandante do meu pelotão, que também tinha sido atingido ao tentar socorrer o seu camarada e amigo.

O Alferes Couto era um homem com cerca de trinta anos que tinha sido incorporado com aquela idade, quando era tripulante dum navio da Marinha Mercante. Não sabemos a razão de tão tardia ida para a tropa, nem vem ao caso. Sabíamos sim que ele era casado e pai de dois filhotes. Muito comunicativo, pouco adaptado aos cerimoniais militares, apreciava mais o convívio dos soldados do seu pelotão em detrimento dos seus colegas oficiais. Lembro-me de, durante o Curso de Minas na EPE, Casal do Pote, ele passar horas a jogar matraquilhos connosco no Bar dos Praças daquela Unidade. Era um homem simples e superior ao seu estatuto de oficial.

Como operacional na Guiné, julgo que o Alf Couto já tinha neutralizado e/ou levantado algumas minas antipessoais até que chegou o fatídico dia 6 de Outubro de 1970.

As minas PMD6 utilizadas na Guiné eram traiçoeiras e por vezes difíceis de manusear. Algumas com a humidade do solo, e porque eram de madeira, inchavam de tal modo que retirar a espoleta era uma autêntica lotaria. Não se sabe exactamente o que ele pretendia fazer, só se sabe que a determinada altura chamou o Alf Bento para lhe dar ajuda naquela mina. Quando este se dirigia para ele, deu-se a explosão que ainda o atingiu.


Guiné > Região do Oio > Mansabá > CART 2732 (1970/72) > Vista aérea do aquartelamento.

Foto: © Carlos Vinhal (2006)

Eu, que na altura não era operacional, estava na secretaria onde colaborava, no momento em que tudo aconteceu. Pude assim acompanhar junto do rádio o desenrolar dos acontecimentos.

Depois de removido o cadáver do Alf Couto e de o Alf Bento ter recolhido à enfermaria para posteriormnete ser transferido para o HM 241 [Hospital Militar de Bissau], havia que voltar ao local do incidente para continuar a neutralizar as outras minas detectadas.

Recebi então ordem do Comandante da Companhia para avançar e dar continuidade ao trabalho que ficou por acabar. Chegado ao local fatídico, estavam assinaladas duas minas antipessoais guardadas por alguns militares completamente consternados. Ao verem-me, desejaram-me as maiores felicidades.

Como se sabe, ao tempo as minas detectadas davam prémio pecuniário a quem as detectasse e a quem as levantasse, mas como o dinheiro não valia o risco de vida, eu tinha prometido a mim mesmo, durante o Curso, que jamais tentaria levantar alguma mina antipessoal, a menos que fosse impossível rebentá-la no local. Depois da morte do meu camarada Couto mais convencido fiquei de que tinha a razão pelo meu lado.

Assim, comecei por juntar às minas detectadas uns pedaços de TNT, que iriam ser accionados por detonadores pirotécnicos alimentados por cordão lento. Na altura ainda não dispunha de disparador eléctrico. Claro que isto exigiu que eu andasse por ali às voltas. Examinei tanto quanto pude o terreno por onde iria correr enquanto o cordão ardesse e um local para me proteger quando aquilo tudo explodisse. Pus o pessoal em bom recato, peguei fogo ao rastilho, corri e abriguei-me, esperando pelas explosões. Quando estas aconteceram, fui ao local ver o resultado e reparei que, em vez de duas crateras correspondentes às duas minas detectadas, tinha três. Na realidade não havia duas, mas sim três minas, sendo que a terceira não tinha sido detectada e eu não a pisei por mero acaso e sorte. Esta rebentou com as outras por simpatia.

Missão cumprida e retorno ao quartel onde o constrangimento era geral. Ainda estava fresco o cadáver dum camarada, que não veria crescer os dois flhos deixados em casa aos cuidados da mãe, há seis meses apenas. Tinha acontecido a nossa primeira baixa.

A partir deste dia passei a ser operacional quase a 100%, sem no entanto deixar de continuar a colaborar na Secretaria e mantendo a gerência dos bares como anteriormente.

Além disto fiquei com a responsabilidade das actividades relacionadas com as Minas na Companhia, porque o alferes substituto do camarada Couto não tinha o Curso de Minas e Armadilhas. Fiz muitas patrulhas em que o meu Pelotão não tomava parte, porque desde que o 1º ou o 2º Pelotões fossem passar em zonas minadas ou armadilhadas por nós, era exigida a minha presença.

O 4º Pelotão não precisava que eu os acompanhasse pois tinha o meu camarada Sousa numa das suas Secções. Embora houvesse relatórios de implantação das zonas armadilhadas, exigiam sempre a presença de um de nós para assegurar que ninguém da Companhia accionava as nossas armadilhas. Diga-se em abono da verdade que quando o meu pelotão saía e a minha presença era dispensável, eu era poupado. Chamada lei das compensações.

PS - Com especial dedicatória ao nosso camarada bloguista David Guimarães, meu contemporâneo no CTIG e companheiro mineiro.

Guiné-Bissau > Bissau > 2001 > O David Guimarães, na viagem de regresso à Guiné e ao seu Xitole onde foi furriel miliciano atirador, da CART 2716 (1970/1972), com a especialidade de minas e armadilhas (2)

Foto: © David J. Guimarães (2005)
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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXI: Breve historial da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)

(...) "É minha obrigação lembrar a memória daqueles que partiram do Funchal e que, por morrerem, não regressaram connosco. São eles:
- Alf. Mil.º Art.ª MA Couto que em 6 de Outubro de 1970 foi vítima do rebentamento de 1 mina A/P;
- Soldado Malcata que em 16 de Maio de 1971 faleceu por motivo de doença;
- Soldado Silvestre que em 17 de Maio de 1971 faleceu por motivo de acidente;
- Soldado Vieira que em 6 de Dezembro de 1971 foi morto numa emboscada;
- e, por fim, Soldado Barbosa que foi ferido na mesma emboscada, acabando por morrer no HM 241 em 17 de Dezembro de 1971" (...)

(2) Vd. posts de
23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXV: Minas e armadilhas (David Guimarães)

3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLI: A região do Xitole, por onde andou o Nino... (David Guimarães)

(...) Tocou-me a mim num belo dia. Eu é que ia a comandar o grupo (o Alferes estava de férias). E lá já bem perto de Jacarajá:

- Mina, mina, porra!... E agora!?

Tocou-me a mim: afinal eu é que era o artista. Em Tancos tinham-me ensinado a trabalhar com aquilo: "manga de cu piquinino", protecção feita, suores frios ao sol quente... Bem, lá consegui operar... Tínhamos que comer... Lá ficou o buraco feito e do chão extraí isso que envio em fotografia... Um Mina PMD-6, espoleta MUV, duas barras de trotil de 4 kg, mais aqueles dois calcinhos do mesmo material a 200 gr cada cada um, sendo que dentro da mina lá estavam os 400 gr habituais da carga base onde actuaria o detonador depois de accionada a espoleta...

- Ufa, que merda!... Já está! - e daqui a pouco lá vinha a coluna, o barulho daqueles motores e, à frente, a Daimler do [Alferes] Vacas de Carvalho....

Pronto, e lá ficamos o dia inteiro até que lá a coluna volta a passar, mas de regresso a Bambadinca. Nós, por nossa vez, lá regressamos ao quartel no Xitole.

Mais tarde lá me deram os 300 escudos (prémio por levantamento de material explosivo):

- Pronto, mais um dinheirinho para beber umas bazucas [cervejas] ...

Foi um dia de rotina, um pouco diferente - uma mina sempre é uma mina.....
(...)

Guiné 63/74 - P967: Antologia (51): Os combatentes cubanos ou a mística da guerrilha (Victor Dreke)


1. No dia 11 de Julho de 2006, mandei a seguinte mensagem para a nossa tertúlia:

Gostaria que comentassem este depoimento de um médico cubano que esteve na guerrilha, em 1966/67... Está em espanhol, lê-se bem... Há um resumo, em português, no post anterior. 

Esta informação chegou-me através do incansável camarada fuzo que é o Jorge Santos... O artigo original cacei-o eu, na Net... Vou pedir a um antigo aluno meu, médico, cubano, que vive em Portugal e que fez a guerra de Angola e da Eritreia, para me pôr em contacto o seu colega Domingo Diaz.

É outro ponto de vista, polémico mas muito interessante, sobre a guerra da Guiné... Sabemos pouco sobre o papel dos cubanos... Só se fala do Capitão Peralta... Sabemos pouco sobre as misérias e grandezas da guerrilha... Enfim, vejam lá se me ajudam a identificar o resto das bases do PAIGC...

Guiné 63/74 - P951: Antologia (47): Um médico cubano no Morés e no Cantanhez (Domingos Diaz, 1966/67)

Guiné 63/74 - P950: Antologia (46): Depoimento de médico cubano na guerrilha do PAIGC (1966/67)



2. Respondeu-me, logo a seguir, o Carlos Fortunato, meu velho camarada da CCAÇ 2591, mais tarde CCAÇ 13. Embarcámos juntos no velho Niassa, com destino à Guiné, em finais de Maio de 1969.

Luís:

Os cubanos desempenharam sem dúvida um papel importante na guerra da Guiné. Para além do apoio médico e do fornecimento de especialistas para os foguetões de 122 mm, houve sempre a suspeita de que estavam por trás do planeamento de muitas das operações realizadas na Guiné.

Queria chamar-te a atenção para outro artigo que considero bastante interessante, e que é da autoria do coronel aposentado Victor Dreke, que foi o chefe dos combatentes cubanos na Guiné-Bissau durante a guerra.

Seria excelente se conseguissemos estabelecer contacto com o comandante Victor Dreke, pois este poderia, se quisesse e pudesse, esclarecer muitas das lacunas existentes [sobre o conhecimento da] guerra da Guiné. Podes tentar um contacto, através desse teu antigo aluno?

Junto em anexo o texto do coronel Victor Dreke, mas aqui vai o a página da Net onde o consultei:

http://granmai.cubaweb.com/portugues/marzo03/mier12/10nues-p.html

Podes encontrar algumas fotos de cubanos na Guiné, num outro artigo, sobre os cubanos em África, que também tem várias referências ao seu papel na Guiné. A página da Net é:

http://www.tricontinental.cubaweb.cu/REVISTA/texto20ingl.html (*)

Um abraço

Carlos Fortunato

(*) Nota de L.G.: Texto em inglês > A History Worthy of Pride, by Dr. Piero Gleijeses, Professor of US Foreign Policy, Johns Hopkins University. Photos: Ediciones Verde Olivo.
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3. Então aqui vai, para efeitos de divulgação mais alargada, o texto de Victor Dreke, publicado no jornal diário Granma, o órgão oficial do Comité Central do Partido Comunista de Cuba, na sua versão internacional e digital, na edição de 12 de Março de 2003. 

Esta versão, em português do Brasil, contém alguns erros, que corrigi, nomeadamente nos nomes das localidades da Guiné-Bissau. A ortografia é brasileira (LG).

Fotos: A History Worthy of Pride (com a devida vénia)


Nossos antepassados levados à América como escravos estão contentes

por Victor Dreke (*)

Amílcar Cabral, um dos dirigentes africanos mais brilhantes, revelou que o Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC), valorizava intensamente o apoio dado pelo povo cubano. Assim informou-o num discurso histórico, em 30 de Agosto de 1966, de visita [a] Brazzaville com outros dirigentes das colônias portuguesas em luta.

Manifestou que não acreditava na imortalidade da alma. «Mas, se assim fosse» - acrescentou - «poderíamos dizer que as almas dos nossos antepassados levados [para a] América como escravos, estão contentes ao verem nesta hora seus filhos reunidos, contribuindo para a libertação e a independência verdadeiras».

Noutro momento desse discurso, Amílcar expressou: «Não são os rios nem as montanhas que fazem a história. A história é feita pelos homens e agradeço aos povos e aos homens que foram capazes de provar antes de nós essa realidade histórica, principalmente ao povo cubano e a Fidel Castro, que o fizeram através de seu exemplo».

Três meses antes, em 29 de abril de 1966, Cabral tinha-se reunido com os seis primeiros cubanos que chegaram à Guiné-Bissau, três deles médicos, Labarrere, Rómulo e Domingo (1), e [os outros] três artilheiros, Aldo, Verdecia e Salabarria, mais conhecido por Horácio, «o homenzarrão». Estes companheiros participaram do seu primeiro combate, [no] 1º de Maio desse ano. Posteriormente nos meses seguintes chegaram outros grupos.

Amílcar não queria que os cubanos se arriscassem e era oposto a que participaram [opunha-se a que participassem em combate] como soldados da infantaria. A morte do primeiro cubano, Félix Barriento Laporte, em 2 de Julho de 1967, no ataque ao quartel [de Beli, a nordeste de Madina do Boé, e não de Melle, como vem no original], foi para Amílcar uma grande preocupação e uma profunda dor, pois era do critério [de opinião] de que a guerra devia ser travada pelos guineenses e pelos cabo-verdianos. O apreço e admiração de Amílcar pelos cubanos foi expresso em cada momento.

A data de 2 de Março de 2003 virou data histórica e inesquecível para os povos de Cuba, da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, com a inauguração, no Parque dos Próceres Africanos, nas ruas 13 e 64, Miramar, [em Havana, Cuba,] do busto desse grande lutador pela liberdade de seus dois povos, da África e da humanidade: Amílcar Cabral.

Este homem nasceu em 12 de Setembro de 1924, em Bafatá. Em 1932, a família mudou-se para Cabo Verde, onde continuou seus estudos até 1945, ano em que lhe foi outorgada uma bolsa de estudos para Lisboa.

Na etapa de estudante destacou-se na luta contra a colônia, realizando várias atividades como membro do comitê antifascista.

Em 1950, retornou a Bissau formado como engenheiro agrônomo, mas em 1955, devido a suas ideias e atividades anticoloniais, foi expulso pelo governador, motivo pelo qual viajou a Angola e aderiu ao movimento de libertação desse país (MPLA).

Em 19 de Setembro de 1956, foi constituído em Bissau o PAI (Partido Africano da Independência), adotando posteriormente o nome de PAIGC.

Amílcar preparou as condições para iniciar a guerra necessária e em 23 de Janeiro de 1962 começou a luta armada com o ataque ao quartel de [Tite e não de Titi, como vem no original], no sul do país. O dirigente africano traçou a estratégia da luta política, militar e econômica do país em guerra.

Em 1964, editou os primeiros livros escolares para a alfabetização, inaugurou uma escola para os filhos dos combatentes e crianças da zona libertadas e organizou a agricultura nas zonas dominadas pela guerrilha.

Em Novembro de 1964, constitui a primeira unidade do exército popular, organizou as milícias, abriu o front [a frente] leste e organizou, com os recursos existentes, as unidades de saúde.


África Ocidental > Congo (Zaire) > Possivelmente Abril de 1965. Da esquerda para a direita, Victor Dreke (Moja), o médico Rafael Zerquera (Kumi) e Che Guevara. Fonte: El Comandante Che Guevara (com a devida vénia)


De 13 a 17 de Fevereiro de 1964, celebrou-se o primeiro congresso do PAIGC em armas, no sul do país em [ Cassacá e não Casacá, como se lê no original], constituindo o bureau político e o comitê central.

No início de 1965, reuniu-se com o comandante Ernesto Che Guevara, na República da Guiné[-Conacri], de cujo encontro o Che fez uma avaliação muito positiva que expressou na sua Mensagem à Tricontinental (2).

Em 1966, por ocasião da primeira reunião da Tricontinental, Amílcar fez pronunciamentos sobre a unidade necessária na luta dos povos contra o colonialismo, os quais foram gravados para a humanidade toda. Visitou com nosso comandante-em-chefe Fidel Castro o Escambray e a partir desse momento Amílcar e seu povo uniram-se a Cuba na batalha por uma pátria livre do colonialismo.

[Nós,] os cubanos lembramos aquele grupo de companheiros cabo-verdianos que, sob as ordens do atual presidente Pedro Pires e com a participação direta do capitão Toledo, Coqui e outros cubanos, prepararam-se física e militarmente.

Posteriormente, os vimos nos campos da Guiné combatendo pela liberdade da [Guiné-] Bissau e Cabo Verde; presentes também na emissora Radio Liberação [Libertação], criada para cumprir a missão de fazer chegar a verdade ao povo, e que começou as transmissões em 16 de julho de 1967, na República da Guiné-[Conacri].

Amílcar Cabral foi um lutador incansável pela unidade e a paz de seus povos, pela cultura e o desenvolvimento de ambos os países, assinalando a esse respeito: «De Portugal só precisamos da língua para poder sair ao mundo».

Não podemos esquecer aquela noite triste do mês de Outubro de 1967, quando na embaixada de Cuba na República da Guiné-[Conacri] reun[iu-se] o bureau político do PAIGC, liderado por Amílcar e Aristides Pereira, para prestar tributo ao Comandante Che Guevara ao ser confirmada a notícia de sua morte na Bolívia (3).

[Em] resumo, Amílcar deu a palavra de ordem: atacar todos os quartéis durante 15 dias na operação que nomeou «o Che não morreu».

É por isso que estamos certos que Amílcar neste momento estaria junto a Fidel na luta pela unidade dos povos em defesa da liberdade e o retorno dos nossos Cinco heróis prisioneiros do Império (4). Com certeza, nossos antepassados levados à América como escravos estão contentes.

Prestamos homenagem aos combatentes cabo-verdianos e guineenses mortos e como tributo também lembramos os cubanos que morreram na Guiné-Bissau: tenente Raúl Pérez Abad, Raúl Mestres Infante, Miguel A. Zerquera Palacio, Pedro Casimiro Llopins, Radamé Sánchez Begerano, Eduardo Solís Renté, Felix Barriento Laporte, Radamés Despaigne Robert e Edilberto González (5).
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(*) O coronel aposentado Victor Dreke foi o chefe dos combatentes cubanos na Guiné-Bissau durante a guerra de libertação desse povo

Fonte: http://granmai.cubaweb.com/portugues/marzo03/mier12/10nues-p.html

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Notas de L. G.:

(1) Vd post de 1 de Jukho de 2006 > Guiné 63/74 - P951: Antologia (47): Um médico cubano no Morés e no Cantanhez (Domingo Diaz, 1966/67)

(...) "A principios del año 66, respondiendo a esa solicitud, lo designan como miembro del primer grupo (muy reducido), de médicos y combatientes que participarían en la liberación de Guinea Bissau, cuya metrópoli era Portugal (...).

"En ese momento yo era jefe de los servicios médicos de la división 1270 en el Mariel. Fuimos nueve médicos (tres viajaron por avión) junto a los instructores, en total 24 hombres. Tenía bastante experiencia en cirugía porque en esa época, desde que uno estaba estudiando podías participar en determinado equipo quirúrgico. Dos meses después de mi incorporación a este contingente, integrado por artilleros, morteristas, cañoneros y médicos, salimos hacia Guinea Bissau, en la motonave Lidia Doce de 2 000 toneladas. El viaje duró casi 20 días, hasta llegar al puerto de Conakry. La nave estaba deteriorada y fue un trayecto difícil, pues se rompió por lo menos tres veces. En una ocasión hubo un inicio de fuego en las máquinas y por poco tenemos que abandonar el barco" (...).

(2) Tal significa que o Che Guevara nunca esteve na antiga colónia portuguesa, como às vezes consta. O texto de Piero Gleijeses, Professor de Política Externa Norte-Americana, na prestigiada Universidade de Johns Hopkins, também não coloca a Guiné-Bissau na missão secreta que levou Guevara à África, de Dezembro de 1964 a Fevereiro de 1965:

In December 1964, Che Guevara went to Africa on a three-month trip that evidenced the increased interest of Havana in the region. In February 1965, in Dar es Salaam, Tanzania, Che came to an agreement with the rebellious Zairians that Cuba would send a group of instructors to help them in their struggle. In April, a Cuban column of about 120 men under Che´s orders entered eastern Zaire through Tanzania. (...). Fonte: A History Worthy of Pride

Em contrapartida, foi a Guiné-Bissau o país de África, em luta pela independência, que beneficiou mais, nessa época, do apoio político-militar de Cuba:

The end of the 1960’s was a period of growing maturation in the relationship between Cuba and Africa. In those years – until 1974 – Cuba’s focus in the continent was centered on Guinea-Bissau, where PAIGC guerilla fighters were fighting to liberate their country from the yoke of Portuguese colonialism.

At the request of the PAIGC, Cuban military instructors came to Guinea-Bissau in 1966 and stayed until the end of the war in 1974. This was the longest Cuban operation in Africa until the dispatching of troops to Angola in 1975; and it was also the most successful.

According to the words of the first president of Guinea-Bissau, “we knew that we could fight and triumph because other countries and people supported us... with weapons, with medicines, with supplies... But there is a country that, besides material, political and diplomatic support sent their sons and daughters to fight on our side, to spill their blood in our earth alongside that of the best children of our homeland. This great people, this heroic people, we all know is the heroic people of Cuba, the Cuba of Fidel Castro, the Cuba of the Sierra Maestra, the Cuba of Moncada... Cuba sent its best youth here to help us in the technical aspects of our war, to help us carry out this great struggle... against Portuguese colonialism.


Mais diz o autor que únicos estrangeiros que combateram ao lado do PAIGC nas bolanhas da Guiné, de 1966 a 1974, foram os cubanos. Cubanos (com uma única excepção, pontual, ao que parece) eram também os médicos que davam assistência à guerrilha, na frente de combate e nos hospitais de campanha. Até 1968 o PAIGC não dispunha de médicos guineenses:


"The only foreigners who fought with the PAIGC in Guinea-Bissau were the Cubans. Likewise, throughout the duration of this long war, the only foreign doctors in the guerilla areas were Cuban (with a single and fleeting exception), and there were no Guinean doctors up until 1968. “The Cuban doctors really made a miracle”, said Francisca Pereira, a health worker of the PAIGC. She observed, “I am eternally grateful to them. Not only did they save lives, but also they risked their own. They were truly selfless.”


Os jovens combatentes cubanos - ao que parece, todos voluntários - seriam apenas motivados pela "mística da guerrilha", no dizer de Piero Gleijeses, cujo artigo tenho vindo a citar. A sua missão era secreta. Em caso algum, poderiam esperar o reconhecimento público pelos seus feitos, ou queixar-se da má sorte da guerra... Eram jovens, sentiam-se "filhos de uma revolução" e tinham sido criados no seio da ideologia castrista e do culto do exemplo romântico de Che Guevara...O próprio Victor Dreke era apontado como o nº 2 da hierarquia dos combantentes cubanos em África, a seguir ao Che Guevara...

The Cubans who went to Africa did so voluntarily. The mystic of the guerrilla war motivated them. “We dreamed about revolution” one meditated. “We wanted to be part of it, to feel that we fought for it. We were young and the children of a revolution.” The volunteers didn’t receive public praise in Cuba. They left “knowing that their history would remain secret.” They didn’t win medals or receive material rewards. Upon their return they could not boast about their feats because what they had done was secret.


(3) Guevara foi capturado, ainda vivo, pelos rangers do Exército boliviano, treinados pelos Estados Unidos, em 8 de outubro de 1967; passou a noite numa escola da aldeia de La Higuera, a 50 quilómetros de Vallegrande, no centro-sul da Bolívia, para depois ser excutado, a sangue frio, com nove tiros, no dia seguinte, 9 de Outubro de 1967, por ordem do presidente da Bolívia, general René Barrientos.

(4) Referência a 5 cubanos, na altura (Março de 2003) presos nos Estados Unidos da América, sob a acusação de terrorismo.

(5) Vd. post de 14 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P960: Antologia (49): Oficialmente morreram 17 cubanos durante a guerra

segunda-feira, 17 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P966: O Mexia Alves que eu conheci em Bambadinca (António Duarte, CCAÇ 12, 1973)

Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > 13º Encontro Nacional de Combatentes > Foto dos seguintes elementos da nossa tertúlia de amigos e camaradas da Guiné, que se conseguiram encontrar, entre as 11 e as 12h: na primeira fila, eu, próprio, Luís Graça (CCAÇ 12, 1969/71), à esquerda, e a meu lado o Carlos Fortunato (CCAÇ 13, 1969/71); na segunda fila, a contar da esquerda para a direita: o Jorge Cabral (Pel Caç Nat 63, 1969/71), o António Duarte (CART 3493 e CCAÇ 12, 1972/74), o Mário Dias (Comandos, 1963/66), o José Martins (CCAÇ 5, 1968/70), o Francisco Baldé (1ª, 2ª e 3ª Companhia de Comandos Africanos, 1969/74) e o João Parreira (CART 730 e Comandos, 1964/66).


Caro Luís Graça,

Quero dar as boas vindas ao Mexia Alves (1). Lembro-me que ele, à época, estava completamente apanhado. Era boa praça.

Recordo-me dele muito bem e de um incidente no início de 1973, numa farra em Bambadinca, em que estava o major de operações do batalhão [BART 3873], os alferes e furriéis da CCAÇ 12 e o Mexia Alves [, Alf Mil Op Especiais, comandante do PEL CAÇ NAT 52].

Armou-se uma bronca a propósito de uns versos de uma canção, adaptada ao comandante do batalhão (Ten Cor António Tiago, já falecido), em que ele era tratado por Manel Ceguinho, o que levou o major a dizer ao Mexia Alves que "não estávamos ali para armar em cobardes".

Ficou um ambiente de cortar à faca, que se ultrapassou com uma tirada do Mexia Alves, na qual dizia:
- Cobarde, eu, meu major ?!... Eu que pico a estrada com os pés... que avanço à frente do pelotão quando não há picadores ?!...

O major colocou um sorriso amarelo e recolheu aos seus aposentos e nós lá ficámos a beber e a cantar as canções habituais. Umas bem sérias e outras de baixo nível, bem ordinárias como a da famosa Maria Bardajona...

Um abraço a todos,
António Duarte (2)

PS - Só mais uma nota: pela quantidade de material já disponível nos dois blogues e sobretudo pela qualidade de alguns conteúdos, já não se justificava editar um livro com textos aqui publicados ? Vamos pensar nisso depois das férias ?

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Notas de L.G.

(1) Vd. postS de:

11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P952: Evocando o libanês Jamil Nasser, do Xitole (Joaquim Mexia Alves, 1971/73)

13 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P958: 'Gajos das tropas africanas eram doidos' (Joaquim Mexia Alves, CART 3492, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)

16 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P962: Pensamento do dia (5): Português, sem dúvida(s) (Joaquim Mexia Alves)

(2) Vd. posts de:

18 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXI: Um periquito da CCAÇ 12 (António Duarte / Sousa de Castro)

(...) "Fui furriel da CART 3493, tendo estado em Mansambo. Antes da companhia seguir para o sul (suponho Cobumba), fui para a CCAÇ 12 onde acabei por passar a rendição individual e regressar [à Metrópole] em Janeiro de 1974 enquanto que o BART 3873 regressou só em Abril" (...).

20 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXVIII: Notícias da CART 3493 (Mansambo, 1972) e da CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973/74) (António Duarte)

(...) "De facto estive na CCAÇ 12 desde Janeiro de 1973, primeiro em Bambadinca e a partir de Abril no Xime, após as rotações das companhias, geradas pela transferência para Cobumba da Cart 3493 (minha unidade inicial). Regressei à metrópole em Janeiro de 1974 (...)

"Quanto ao ano de 1973 na CCAÇ 12 a acção foi mais animada. Instalados em Bambadinca, naquilo que se classificava de hotel, fazia-se operações sobretudo na zona do Xime. Assim em 3 de Fevereiro tive a primeira emboscada na Ponta Varela em que participaram três grupos de combate da CCAÇ 12 em conjunto com 2 pelotões da Cart 3494 (à época aquartelada no Xime). As NT não registaram feridos mas segundo se apurou em informações recolhidas no Enxalé, o PAIGC teria tido baixas" (...).


11 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLV: Ex-graduados da CCAÇ 12 também foram fuzilados (António Duarte)

(...) "Sou o António Duarte, ex-furriel atirador da CART 3493 e da CCAÇ 12. Quero dizer-te que tenho uma nova religião, que passa por todos os dias ver o nosso blogue (peço desculpa pelo nosso, mas já o sinto como tal)" (...).

Guiné 63/74 - P965: 'Cacimbados', 'apanhados do clima'... ou os nossos comportamentos de risco, bravatas, diabruras, loucuras...


Guiné > Fá Mandinga > Novembro de 1969 > Elementos do Pel Caç Nat 63... Quem não era cacimbado, que atire a primeira pedra, podia ser a legenda...

Foto: © Jorge Cabral (2005)

1. Gostaria que continuássemos a falar do cacimbo, dos cacimbados, dos apanhados do clima, dos nossos comportamentos de risco, das nossas loucuras, diabruras, bravatas... Todos nós fizemos coisas de que hoje temos algum pudor em falar... Imputamo-las ao clima, à situação de guerra, mas também aos verdes anos, ao sangue na guelra ou até ao stresse pós-traumático de guerra...

Cacimbo, por exemplo, é o título do blogue do Manuel Basto, de Coimbra, e que tem curiosamente como subtítulo Transtorno Pós-traumático do Stress de Guerra... É um dos mais antigos e pessoalíssimos blogues dedicados à guerra colonial, remontando a sua origem a Novembro de 2003. No primeiro post, Prefácio, o autor dá a sua definição do conceito de cacimbo e explicita a natureza do seu blogue:

Chamavam (es)gaseados aos ex-combatentes da Grande Guerra e cacimbados aos da Guerra Colonial, associando os seus traumas, no primeiro caso às bombas de gás e no segundo ao clima de África. O povo sempre soube o que os peritos e as autoridades teimaram em ignorar durante tanto tempo: alguns ex-combatentes sofrem do Transtorno Pós-traumático do Stress de Guerra. Para eles a guerra não acaba nunca no armistício.

Aqui compilarei os artigos publicados no jornal Elo da Associação dos Deficientes das Forças Armadas. Respeitarei o texto original mas acrescentarei algumas fotos que aqui ganham outra dimensão.

Confesso a pretensão literária destes textos, pelo que deve ser tomada em conta a intenção de transmitir sensações em vez de veicular informações, isto é, a verdade que transmito não é tanto a dos factos, como a dos sentimentos.

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, cacimbado, em Portugal, em sentido figurado e na linguagem informal é sinónimo de "um tanto maluco".
O termo cacimbo é de origem angolana. No blogue do Jorge Santos, operador cripto no leste de Angola, pode ler-se:
O termo 'cacimbado' era, para os militares, a forma simpática de dizer que o indivíduo estava mesmo 'marado da tola' ou de forma mais clara e entendível, que estava a ficar doido pela pressão do dia a dia.

2. Escreveu o Joaquim Mexia Alves, que foi em tempos Alf Mil de Operações Especiais lá para as bandas da Guiné por onde eu também tinha andado dois anos (e que é hoje um conhecido empresário ligado ao turismo), o seguinte (1):

"Quando estava no Pel Caç Nat 52, junto a Bambadinca, tinha uma forte ligação à CCAÇ 12, não só operacional mas de amizade com todos eles, especialmente o Capitão Bordalo e os seus Alferes (...).

"Para além das operações e outras actividades que iamos fazendo,sobrava-nos tempo para algumas loucuras, resultantes de algum cacimbo e do cansaço provocado pelo stress permanente, e por alguma incompetência, de quem deveria ser competente.

"Entre algumas de que lembro, fomos uma vez à noite, o Capitão Bordalo, os seus Alferes e eu, armados até aos dentes, de Unimog, jantar ao Xime, pela estrada de todos conhecida e que naquela altura só se fazia em coluna protegida, mercê das emboscadas que nela tinham acontecido.

"Quando regressávamos, num alarde a roçar a loucura, talvez também ajudados por uns uísques, parávamos na estrada, no sítio das emboscadas, e voltados para a mata, aliviámos as bexigas (2).(Itálicos de L.G.)

"Foi um momento hilariante, mas muito intenso, que nos uniu ainda mais na amizade e companheirismo. (Itálicos de L.G.)

"Escusado será dizer que o caso foi conhecido e muito comentado, tendo recebido, como é lógico, olhares de reprovação de quem de direito, mas não mais que isso, porque os gajos das tropas africanas são doidos e isto bem o prova.

"Claro que não foi nada de muito importante ou heróico, mas apenas um modo de aliviar a tensão, com uma tensão ainda maior" (...)(Itálicos de L.G.).

3. Conheci bem aquela estrada, Bambadinca-Xime ou Xime-Bambadinca. Tratava-se de um troço que toda a malta da zona leste conhecia: era a via estreita, obrigatória, para se chegar a qualquer ponto da região de Bafat ou do Gabu (Nova Lamego)!), vindo de Bissau, de LDG, pelo Rio Geba acima, até ao Xime...

No meu tempo, já no final da minha comissão, a estrada, com um novo traçado construído pela Tecnil, estava praticamente pronta para ser alcatroada... Julgo que o Joaquim Mexia Alves só já conheceu o troço alcatroado...

No meu tempo, o único troço alcatroado que existia era o de Bambadinca-Bafatá, uma autêntica autoestrada onde não foram poucos os acidentes, com viaturas militares, e pesadas baixas, devidas apenas ao excesso de velocidade...

Nunca houve qualquer emboscada nesse troço, na época em que lá estive (Junho de 1969/Março de 1971)... O mesmo não acontecia no troço Xime-Bambadinca ou Bambadinca-Xime... A Ponta Coli, entre o Xime e Amedalai, era um dos sítios fatídicos.

O que é interessante é que eu, num gesto quase automático de cumplicidade e solidariedade, fui logo evocar uma loucura que eu também fiz, pelo menos uma vez, e que poderia ter tido graves ou até trágicas consequências... Eis o meu comentário:

"Obrigado, camarada... Andámos pelos mesmos sítios, fizemos as mesmas loucuras, como essa de ir de Bambadinca ao Xime, beber um copo... Fi-lo de Daimler, sozinho, eu e o condutor, em finais de 1970, quando a Tecnil ainda estava a abrir a estrada, mais tarde alcatroada...

Devo acrescentar que não fui sozinho, com o condutor da autometradalhadora Daimler (e ainda por cima sem a competência autorização ou o simples conhecimento do Alf Mil Cav, o J.L. Vacas de Carvalho, nosso tertuliano!)... Fui ao Xime beber um copo, desenfiado, cacimbado... E, o mais grave, levei comigo a mascote da messe de sargentos de Bambadinca, que era um puto africano, órfão, gordinho, de alcunha o Tchombé... Um puto de quatro ou cinco...

4. Evoco aqui esta minha loucura (hoje nunca o faria!!!), apenas para corroborar a ideia de que os operacionais (metropolitanos) das unidades de recrutamento local - a nova força africana tão acarinhada por Spínola - eram tão (ou mais) cacimbados dos que viviam em estado de sítio, bunkerizados, confinados ao perímetro do seu aquartelamento, rodeados de arame farpado e de minas... Exemplos não faltam destas unidades de quadrícula onde o pessoal vivia debaixo do chão como toupeiras: Mansambo, Gandembel, Guileje ou Banjara são apenas alguns dos sítios bunkerizados, já aqui evocados no nosso blogue...

Após alojado e alimentado,
Acerquei-me da cerca de arame
E pelo que vi, constatei, arrepiado:
- Isto aqui era o nosso Vietname (2).

5. Acho que é um exercício inútil, idiota mesmo, esse de tentar avaliar quem eram os mais cacimbados, os mais doidos, os mais irresponsáveis, os mais cobardes ou os mais corajosos... Já aqui, em tempos, referi os nossos comportamentos de bravata, as nossas praxes, os nossos rituais de guerra, as nossas formas de lidar com o medo, o risco, o perigo, a morte...

O Magalhães Ribeiro tem um notável texto que é revelador do estado de insanidade mental das NT, a que chegaram as NT, mesmo já depois do 25 de Abri e da descompressão que foi o fim da guerra anunciado... Aqui fica o relato da recepção, perfeitamente surreal, da sua companhia, de periquitos, pelos velhinhos de Mansoa... em Agosto de 1974 (2):

"Para eles, nós – os periquitos ou piras -, éramos, para todos os efeitos, os mais reles, insignificantes e desprezíveis piras de toda a tropa da Guiné e do mundo inteiro.Viam-se cartazes com diversos escritos alegóricos:

"- Bem-vindos, periquitos, ao inferno dos vivos!
"- Aqui, morrer é o único meio de voltares para casa mais cedo.
"- Aqui entras de pé e vais pró Continente deitado num caixote, etc.

"Também não faltava uma câmara de TV (uma imitação feita com um velho caixote de madeira), e as respectivas entrevistas fúnebres, extensas e desconexas.

"Os efeitos do álcool e dos vinte e muitos meses de mato faziam das suas (Itálicos de L.G.). Os festejos eram ambíguos, umas vezes alegres, outras tétricos. Alguns soldados riam e choravam dizendo coisas macabro-hilariantes, com piadas de todos os tipos: disparatadas, indignificantes e, por vezes, insultuosas.

"A imaginação vagueava por ali, vendo-se várias urnas fechadas (mais caixotes com cruzes desenhadas em cima) e simulações de funerais que, eventualmente, seriam dos nossos cadáveres…

"Isto tudo passou-se já depois do 25 de Abril de 1974! Já a guerra tinha sido dada como finda! Isto não é ficção! Aconteceu mesmo!" (...).

6. O álcool!!!... Era a droga mais barata, ao alcance do soldado do contingente geral e do miliciano, praticamente os únicos a quem, a par dos nharros, competia combater, de armas na mão... Tirando honrosas excepções, os oficiais (superiors) e os sargentos do quadro não pegavam na G-3, não saíam para o mato, dormiam - uns melhor, outros pior - na sua cama... Era humanamente compreensível: a meio da guerra, em finais da década de 1960, muitos deles já estavam a caminho da terceira comissão no Ultramar (Índia, Moçambique, Angola, Guiné...)três comissões em cima do corpo!!!


7. Tive a ocasião de comentar estes estranhos comportamentos dos nossos camaradas, já depois do fim da guerra, com o seguinte texto:

"Este testemunho do nosso ranger [, o Magalhães Ribeiro,] é muito interessante, obrigando-nos a reflectir e a especular sobre o estranho comportamento que atingia a velhice, completamente apanhada pelo clima, na hora da rendição pelos periquitos... Muitos de nós passaram por estas cenas, enquanto periquitos, e voltaram a repeti-las, enquanto velhinhos...

"São uma extensão das violentas praxes dos militares, fundamentais para a criação do espírito de corpo e reforço da capacidade de resistência à exposição ao perigo, à captura pelo IN, à morte, à humilhação, à derrota... Julgo que do outro lado, do lado dos combatentes do PAIGC, também as havia: faz parte das culturas guerreiras (dos índios da América do Norte aos felupes do Cacheu)... A ideologia (revolucionária) não chegava para os homens (e as mulheres) do PAIGC darem a vida, arriscarem a sua integridade física, perderem a sua liberdade no caso de captura pelos tugas... Os tipos do PAIGC usavam mezinhos tal como os meus soldados fulas da CCAÇ 12...

"Nós, tugas, tínhamos também as nossas praxes e rituais para exorcizar o medo, para reforçar a nossa crença da invulnerabilidade do nosso corpo... Ora, nada como evocar e desafiar a morte, invectivar Deus e o Diabo, fazer bravatas, armar-se em fanfarrão, inocular ainda mais medo aos pobres diabos que chegavam ao mato, o mítico mato da Guiné...

"São também ritos de passagem: os mais velhos inciando os mais novos, transmitindo-lhes valores como solidariedade, coragem, determinação, sacrifício, desprezo pelo perigo, audácia, inconsciência, bravata... Todos fomos heróis e cobardes, velhinos e periquitos, deuses e homens... O problema é que, quando desembarcámos no cais de Alcântara, em Lisboa, já não éramos mais os mesmos... Não se foi impunemente para a Guiné, para o mato, para a guerra, para aquela guerra... Recorde-se que muitos de nós tiveram, no mínimo, 36 meses de tropa... Ora três anos representam (ou representavam na época) 6% do tempo da nossa vida activa (dos 15 aos 65)...

Como diz o Joaquim Mexia Alves, no seu blogue, apresentando-se ele próprio à comunidade bloguista: (...) "Pai e Avô. Português sem dúvidas. Serviço militar cumprido e comprido"....

8. Sobre a violência, mais ou menos ritualizada no quotidiano das nossas casernas, há já vários posts no nosso blogue, cuja releitura sugiro (3)... Retenho aqui uma expressão usado pelo João Parreira: "brincadeiras de mau gosto, diabruras ou disparates, tanto faz". 

Todos nós temos estórias destas... Seria uma pena perdê-las... Por seu turno, as estórias cabralianas, da autoria do Jorge Cabral, têm de ser inseridas no registo do exorcismo do medo, através do humor castrense, da efabulação do insólito e do grotesco no quotdiaino da guerra da Guiné (3)...

Luís Graça
____________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 13 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P958: 'Gajos das tropas africanas eram doidos' (Joaquim Mexia Alves, CART 3492, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)

(2) Vd. post de 15 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVIII: Cancioneiro de Mansoa (7): Os periquitos do pós-guerra

(3) Vd por exemplo os seguintes posts (lista exemplificativa, não exaustiva):

12 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P868: Diabruras dos comandos (João Parreira)

13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá

Guiné 63/74 - P964: O Nosso Livro de Visitas: Obrigado, camaradas (José Bastos, 1º Cabo Trms, Bafatá e Bula, 1973/74)

Guiné > Zona Leste > Bafatá > 1970 > Vista aérea da sede de concelho de Bafatá, elevada a cidade em Março de 1970. Vista da bela mesquita local.
Foto, tirada de héli, do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).

Caro Luis Graça,

Chamo-me José Bastos, estive na Guiné em serviço militar desde Janeiro de 1973 a Agosto 1974, fui 1º cabo de transmissões (STM), estive todo o ano de 1973 em Bafatá, tendo vindo a Portugal de férias no início de 1974 e voltado à Guiné, desta vez para Bula, onde estava quando se deu o 25 de Abril.

Quando vejo qualquer notícia ou outro tipo de escrita que fala em Guiné-Bissau, sinto como que alguma coisa de mim esteja nessa pequena palavra e não resisto a ler, reler e voltar a ler... Daí que tudo o que se encontra neste e noutros sítios , como o da Guiné-Bissau > Contributo [o sítio do Didinho], eu consulto, leio, releio e muitas vezes me comovo com aquilo que os camaradas contam e que muito me toca.

Voltei à Guiné em 1976 e daí para cá tem sido uma corrida quase constante: este ano ainda só lá estive em Março, mas no ano de 2005 fui lá 5 vezes, 2004 igual, 2003 idem, etc.

A minha vinda a este blogue é simplesmente para agradecer aos camaradas que vão deixando aqui as suas histórias, agradecer-lhes, agradecer ao Luís Graça e a todos quantos fazem com que, um dia, quando a nossa geração desaparecer, os nossos filhos, os nossos netos, quer brancos, quer pretos, saibam tirar a lição que já todos nós tirámos, concerteza, sobre a guerra colonial: tanto nós como o PAIGC lutámos por objectivos que, no meu ponto de vista, só o do PAIGC era um objectivo válido, consistente, assente na determinação nobre de serem independentes.

Nós fomos defender um património que não nos pertencia, mas ficou uma grande lição de humanismo e respeito entre dois povos que falam a mesma língua e que choram ambos os seus mortos. Tenho que respeitar e respeito as decisões de um Estado soberano como a Guiné-Bissau, mas não deixo de lamentar e sentir uma grande tristeza pelos fuzilamentos do pós-guerra, exercidos sobre os comandos africanos que estiveram do nosso lado. Está será sempre uma grande mágoa que me acompanhará até à morte.

Da última vez que fui à Guiné estive na Residencial Coimbra e encontrei 2 militares da Liga dos Combatentes, o vice presidente e outro da marinha. Andavam a fazer o levantamento dos militares que ficaram sepultados na Guiné, achei um trabalho muito interessante.

Bom, já vai chegando por hoje, voltarei ao contacto e estou também inteiraqmente disponível para ser contactado para:

E-mail > j.s.bastos@netvisao.pt e j.s.bastos@vodafone.pt
Telemóvel > 965 392 507
Telefone > 256 422 006
Fax > 256 188 801

Um abraço
José Bastos
__________________

Comentário de L.G.:

Meu caro Zé Bastos:

(i) Pelo indicativo do teu número de telefone e fax és capaz de ser de Ovar ou de São João da Madeira, terras de gente laboriosa e boa, não desfazendo nas restantes...

(ii) De Ovar já temos dois camaradas, curiosamente ambos de transmissões: o Afonso Sousa e o Hernâni Acácio Figueiredo, como poderás ver na nossa tertúlia;

(iii) As transmissões são, de resto, umas das armas que mais membros, voluntariosos e activos, tem dado à nossa tertúlia, a qual, como sabes, vive sobretudo das estórias que vamos contando uns aos outros;

(iv) Presumo que queiras ficar connosco, na nossa tertúlia, na nossa caserna virtual onde cabe sempre mais um (ainda não formamos uma companhia mas para lá caminhamos);

(v) Que sejas, pois, bem-vindo ao nosso convívio e que este seja mutuamente enriquecedor;

(vi) Vejo que és um fã da Guiné, um profundo conhecedor do país, pelo que deduzo que tenhas contigo muita documentação, incluindo fotográfica; o que puderes e quiseres partilhar connosco, será apreciado e acarinhado... Tens negócios na Guiné, para lá ires assim, praticamente de dois em dois meses ? (Não precisas de responder, já que a pergunta é demasiado pessoal);

(vii) Muito em particular, gostaria de saber duas coisas: como viveste aí, em Bula (que já pertence à região do Cacheu), o 25 de Abril; e como foi feita a passagem de testemunho entre as NT e o PAIGC... Tens fotos dessa época ?

(viii) Fala-nos, já agora, dos meses de 1973/74, que passaste em Bafatá... Como estava a situação político-militar na 2ª maior cidade da Guiné, até à data da tua ida de férias ?

(ix) Vê o post de 2 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXI: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Manuel Mata) (4): Elevação de Bafatá a Cidade , com várias fotos de Bafatá, da época em que foi elevada a cidade (!) (Março de 1970)

domingo, 16 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P963: Antologia (50): Português, língua africana, com muitas (ciber)dúvidas (Luís Graça)

O português, a língua portuguesa, pode (e deve) ser uma janela de oportunidades para todos os seus falantes e para todos os povos cujos Estados o(a) têm como língua oficial... Não confundir este recurso (essencial) - a língua como elemento estruturador da identidade e da cultura de um ou mais povos que a história pôs em contacto, aproximou, modelou - com um instrumento de dominação e exploração... Se um guineense, angolano ou moçambicano já não vê a língua portuguesa como a língua oficial de uma potência colonial ou até um instrumento de dominação de uma dada cultura, é bom que os portugueses, alguns portugueses, tomem consciência de que o português já não lhes pertence, tem uma dinâmica própria, uma dinâmica universal, é também património de outros povos... Falar bem e escrever melhor o português são duas coisas essenciais para todos nós, para o futuro dos nossos povos... Adicionalmente, é um ponto de honra da nossa tertúlia e dos seus membros...

Foto: Parede exterior de uma casa, pintada com os símbolos e as cores da bandeira portuguesa... por ocasião do Campeonato Mundial de Futebo dee 2006. Local: Lourinhã, Bairro de Santa Catarina; data: Julho de 2006.

Fotógrafo: © Luís Graça (2006)


Agora que acabou (felizmente!) o Campeonato Mundial de Futebol de 2006 e o nosso coração pôde finalmente repusar em paz, no sítio do costume, deixámos de falar futebolês e voltámos a preocupar-nos com as mil e umas outras coisas de que também é feita a vida... A começar pela língua (materna e/ou oficial) de cada um de nós...

Selecionei e vou aqui reproduzir - com a devida vénia aos respectivos autores e fontes -, dois textos, a propósito da importância estratégica do português, num mundo global, permitindo a comunicação, por exemplo neste blogue, entre guineenses e portugueses que passaram por uma experiência comum que foi a guerra de 1963/74, conduzindo à independência da República da Guiné-Bissau... Mas também sobre as dúvidas (incluindo as ciberdúvidas) sobre o que se tem feito no domínio das políticas da língua por parte da CPLP, em geral, e de cada um dos membros da CPLP, em particular...

Justamente, amanhã, em Bissau começa mais um encontro oficial da CPLP, dos oito países da CPLP, numa organização que teve o apoio (político, logístico e financeiro) de parceiros tão inesperados como a China e a Líbia... Do português se ouvirá falar, de certo, nestes próximos dias e em português se entenderão, em Bissau, os representantes dos países da lusofonia...

Embora modestamente, o nosso blogue pretende, também ele, ser em português um traço de união entre os nossos povos...

1. CPL QuÊ?
editorial Nuno Pacheco
Público 16 de Julho de 2006

Por estes dias, reúnem-se em São Petersburgo os mais ricos, vulgo G8; e em Bissau reúnem-se noutra cimeira alguns pobres (uns mais que outros, evidentemente) sob a sigla CPLP. São também oito e, ao longo de uma década de voluntária união, alinhada em quatro consoantes de difícil pronúncia, pouco mais conseguiram do que a fama, simpática, de bons mediadores em conflitos. Nos seus conflitos, diga-se. No mundo, as tais letras pouco pesam. Falta-lhes "visibilidade", lamentam-se os seus líderes. Na verdade faltam-lhe outras coisas: mais empenhamento colectivo nos objectivos há muito traçados, mais capacidade de execução prática, mais acção e menos retórica.

Amanhã, em Bissau, a tal cimeira que reúne chefes de Estado e outros governantes de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, decorre num cenário de algum "luxo" visual: como relatava ontem a agência Lusa, "as ruas foram limpas, as paredes pintadas, os buracos nas estradas tapados e até um hotel de cinco estrelas foi construído em tempo recorde para acolher os cerca de 400 participantes, entre delegações e jornalistas". Num país que tem vivido mergulhado em permanentes conflitos políticos e militares e apresenta ainda hoje um dos piores índices de pobreza do mundo, vão circular também doze limusinas de luxo com "chauffeur" e 18 motorizadas, emprestadas pela Líbia a fim de servirem de transporte aos participantes na cimeira. Sob este artificial e fugaz fausto, a CPLP bem pode encontrar meios eficazes de sair da sua semi-sonolência e rumar a territórios onde pode, de facto, ser útil. Assim o queiram os seus membros. Pode dizer-se que, na VI cimeira da sua primeira década de vida (haverá outras? Deixarão algum lastro na história?), a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa só pode aspirar a um balanço magramente satisfatório. Montou uma máquina burocrática que se aprimorou em diplomacias e salamaleques de ocasião mas se mostrou fraca ou quase inútil para levar a bom termo dois dos objectivos primordiais a que propôs na sua génese: a projecção da língua portuguesa e a cooperação no desenvolvimento.

Num comentário colocado no site Ciberdúvidas, a propósito do futuro da língua portuguesa no mundo, há uma síntese exemplar assinada por José Manuel Matias: "A expansão do Português no mundo surgirá naturalmente, quanto mais ciência se fizer em língua portuguesa, quanto mais cultura for criada em língua portuguesa, quanto mais arte for criada em língua portuguesa e quando os países integrantes da CPLP se afirmarem nas relações económicas internacionais. Estes factores serão essenciais para que falantes de outras línguas necessitem e queiram aprender a falar Português." Se a nível da projecção económica as dificuldades se avizinham maiores, já em termos da criação ou investigação há um caminho que pode e deve ser incentivado. Isto cuidando, sempre, de respeitar as outras línguas ou dialectos no espaço onde também (embora não exclusivamente, é bom não esquecer) se fala o português. Quanto à cooperação no desenvolvimento, só os mais ricos de entre os tais oito pobres poderão acentuar incentivos e práticas recomendáveis e úteis. Pode ser que as tais consoantes de difícil pronúncia passem, até, a soar melodiosas com o tempo.


2. Português, língua africana *
José Manuel Matias**
Ciberdúvidas da Língua Portuguesa

Os países de língua oficial portuguesa constituem uma base da maior importância para a expansão do português em África. A opção pela língua de Camões foi tomada pelos movimentos independentistas ainda no decurso da luta de libertação e resultou do reconhecimento de que a sua utilização concorreria eficazmente para consolidar as fronteiras políticas e culturais dos futuros Estados, contribuindo também para fortalecer a independência e unidade nacional.

Naturalmente que nessa decisão pesaram os exemplos dos processos de descolonização no continente africano, mas, igualmente, a contribuição da língua na construção da unidade do Brasil. O fundador do PAIGC, Amílcar Cabral, sintetizou a relevância da língua portuguesa, ao afirmar que «o português é uma das melhores coisas que os portugueses nos deixaram».

O potencial da nossa língua em África é extremamente significativo, sobretudo no hemisfério sul. Além dos PALOP, cuja população crescerá, segundo as estimativas da ONU, para 58 milhões em 2025 e para 83 milhões em 2050, regista-se uma crescente procura da aprendizagem do português nos diversos sistemas de ensino de países que integram a SADC, com particular destaque para a África do Sul, Namíbia e Zimbábue. Idêntico movimento se verifica em vários Estados da UEMOA e CEDEAO, assumindo especial relevância os casos do Senegal, da Costa do Marfim e do Gabão.

Procurarei, de seguida, sintetizar algumas reflexões que permitam deduzir a importância do português para os países africanos de língua oficial portuguesa, no limiar do séc. XXI:

A Língua Portuguesa como elemento estruturante das identidades nacionais

O Estado africano foi criado durante a implantação do colonialismo europeu que, na sua génese, não teve em consideração as identidades africanas. Assim, o clássico modelo de nação, ambicionada pelas soberanias ocidentais, foi adoptado pelos povos africanos que se tornaram independentes no processo de descolonização da última metade do século XX.

Surgiram, assim, Estados formados pela integração de grupos com identidades culturais e linguísticas muito diferenciadas. Neste contexto histórico, político e cultural, pela sua capacidade de endogenizar povos linguisticamente vários, a língua portuguesa é um elemento substancial da construção das identidades nacionais.

Por outro lado, a afirmação e assimilação do português em espaços africanos com fronteiras estatais que separaram uma mesma identidade linguística – fa(c)to muito comum em Angola, na Guiné-Bissau e em Moçambique – opera um processo de diferenciação de comunicação linguística em relação à do outro Estado que é, em si, um factor de identidade nacional. Muitos intelectuais africanos dos países da CPLP afirmam que o português «exprime a construção das nacionalidades.

Neste contexto de contingência histórica, a língua portuguesa em África (principalmente em Angola e Moçambique, onde a geografia não forjou nenhum crioulo) não é um instrumento neutro, um contigente meio de comunicação entre os africanos, mas a expressão da sua afirmação nacional. Em suma é um factor de apaziguamento político e social.

A Língua Portuguesa e o desenvolvimento econó[ô]mico

Nas sociedades contemporâneas o desenvolvimento económico dos Estados está intimamente associado aos avanços da ciência e da tecnologia. O Produto Interno Bruto depende muito dos índices de investigação científica. Nos países africanos membros da CPLP a forma mais imediata de acesso ao conhecimento é através da língua portuguesa, língua do sistema educativo.

Por outro lado, nestes países, o domínio da língua portuguesa é fundamental como elemento estruturante do próprio Estado, pois o português é a língua da administração, e uma administração pública eficaz é outro fa(c)tor essencial do desenvolvimento econó[ô]mico, tanto mais que, nestes países, o seu tecido empresarial ainda se encontra em processo de formação histórica. O escasso domínio da língua da administração provoca, em certas circunstâncias, uma certa impotência do Estado para solucionar problemas quotidianos.

A Língua Portuguesa como afirmação de cidadania
O domínio da língua portuguesa é igualmente uma afirmação de cidadania e de democratização das sociedades africanas. O fraco domínio da língua da administração dificulta a comunicação entre estas populações e o Estado e com as elites políticas, marginalizando-as do desenvolvimento econó[ô]mico e da participação política e cívica.

O domínio da língua portuguesa é, assim, fa(c)tor imprescindível de resgate dos diversos espaços e linguagens, para que toda a população se afirme como cidadãos sujeitos responsáveis pela sua posição nas sociedades.

O espaço do português em África
Nas últimas décadas, assistiu-se a uma expansão exponencial do português nos países africanos de língua oficial portuguesa com a possível excepção da Guiné-Bissau, embora seja difícil estabelecer quantitativos exa(c)tos de falantes de português.

Dados do Recenseamento Geral da População de 1997 de Moçambique (Ministério da Educação) indicam que, numa população de doze milhões de habitantes (população com mais de cinco anos de idade), cerca de 6,4 por cento fala o português como língua materna, em zonas urbanas, e 1,2 por cento em zonas rurais. Assim, possivelmente mais de quatro por cento dos moçambicanos terão o português como língua materna. Ainda segundo este mesmo recenseamento, cerca de 40 por cento da população fala o português como segunda língua, havendo uma taxa de cerca de 59,9 por cento de analfabetismo. Poderemos admitir que alguns milhões de moçambicanos não conseguem comunicar em português.

Em relação a Angola, o sítio www.ethnologue.com estima que a percentagem de população que tem o português como língua materna seja muito superior à de Moçambique, possivelmente o dobro. Este fenó[ô]meno resulta de décadas de guerra civil que transformaram a cidade de Luanda numa megametrópole constituída pelas muitas nações angolanas que, para comunicar entre si, tiveram de se socorrer do português. Este país com uma taxa de 55,2 por cento de analfabetismo, tal como Moçambique, terá alguns milhões de habitantes que não conseguem comunicar em português.

Segundo o mesmo sítio na Internet, somente 11 por cento da população da Guiné-Bissau fala o português; e sobre Cabo Verde e São Tomé e Príncipe apontam para percentagens de cerca de 70 por cento de populações bilingues (têm o crioulo como língua materna e o português como segunda língua).

Dizem que um pessimista é um optimista bem informado. Eu não queria carregar excessivamente na nota negativa, quero apenas sublinhar que, com estes dados, torna-se necessário maior investimento na difusão do português em África, designadamente na Guiné-Bissau. Estes dados evidenciam uma realidade: a língua portuguesa em África ainda não ultrapassou as fronteiras da cidade; é um meio de comunicação essencialmente urbano; não conquistou as comunidades rurais.

Já em Angola, em Moçambique e na Guiné-Bissau, para as comunidades do interior a língua portuguesa é-lhes estranha, pois os seus processos históricos foram outros. Contudo, para a constituição do Estado-Nação formado, como diz o sociólogo catalão Manuel Castells, por «nós de uma rede de Poder mais abrangente», para um Estado-Nação, dentro do qual as comunidades rurais se possam afirmar plenas da sua identidade, é necessário o domínio do português. A língua portuguesa ajudará estes países a caminhar para um tempo exclusivamente seu, num processo de reconstrução da sua própria identidade

A expansão do português para o mundo rural destes países, porém, não poderá corresponder à extinção das línguas africanas. Com a morte de uma língua, morre uma criação humana, uma forma particular de exprimir uma concepção do mundo, um modo de expressar uma relação com a natureza, uma tradição oral, uma poesia.

Para que este fenó[ô]meno não ocorra é necessário a adopção de Didácticas que assumam uma relação de diálogo autêntica entre as diferentes línguas, de tal modo que se pressuponha a não existência de uma língua com estatuto privilegiado. As sociedades africanas estão assim perante o desafio de desenhar e construir relações de igualdade entre as suas línguas incluindo a portuguesa como componentes essenciais do seu património cultural.

Trata-se de um desafio não somente linguístico, mas sobretudo cultural. Assim se exprimiu recentemente Mia Couto:

«A língua portuguesa tem de romper com o estatuto de oficialidade para se tornar uma língua de expressão plena, de tradução da intimidade. Os que pensam que isso só é possível se se agride a africanidade estão cativos de uma atitude estética. Afinal é preciso acreditar que os africanos, ao adoptarem um língua europeia, não ficam em posição de inferioridade, a sua cultura originária fica até mais forte.»

(comunicação lida no Congresso Bienal da Língua Portuguesa na CPLP, em Viseu, dias 19, 20 e 21 de Abril do corrente ano de 2004)

* Organização do Instituto Piaget de Portugal

** Vice-presidente da Sociedade da Língua Portuguesa e co-coordenador editoral do Ciberdúvidas.

2004-04-23

Guiné 63/74 - P962: Pensamento do dia (5): Português, sem dúvida(s) (Joaquim Mexia Alves)

Como diz o Joaquim Mexia Alves, no seu blogue, apresentando-se ele próprio à comunidade bloguista: (...) "Pai e Avô. Português sem dúvidas. Serviço militar cumprido e comprido".

Recorde-se que ele deambulou pela Guiné entre Dezembro de 1971 e Dezembro de 1973, tendo passado pela CART 3492 (Xitole), Pel Caç Nat 52 (Bambadinca) e CCAÇ 15 (Mansoa), como Alf Mil Op Especiais (1)... E que é hoje um conhecido empresário do sector do turismo (e do termalismo)...

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Nota de L.G.

(1) Vd. posts de

13 de Juho de 2006 > Guiné 63/74 - P958: 'Gajos das tropas africanas eram doidos' (Joaquim Mexia Alves, CART 3492, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)


11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P952: Evocando o libanês Jamil Nasser, do Xitole (Joaquim Mexia Alves, 1971/73)