sexta-feira, 22 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1102: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (12): Os meus irmãos de Finete

O Mário Beja Santos, hoje.

Foto: © Beja Santos (2006)

Texto enviado pelo Beja Santos, com data de 15 de Setembro último. Continuação da publicação das suas memórias, como alferes miliciano, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).



Meu caro Luís, imagina tu tinha há meses para ler a obra do embaixador Pinto da França Em Tempos de Inocência, editado este ano pela Prefácio. Eu conhecia os trabalhos do Pinto da França através do Ruy Cinatti e que têm a ver com a cultura indonésia e luso-indonésia. Foi uma grande surpresa começar a ler o seu diário enquanto embaixador de Portugal na Guiné-Bissau, a partir de 1977.

Há os olhos inocentes do diplomata interpretando a nova classe política do PAIGC. Por exemplo: "É uma nação simultaneamente africana e mestiça, vagamente muçulmana e cristã sobre um fundo de aminismo, funcionando na base de uma elite cabo-verdiana, ligada por uma intrincada rede de parentescos. Apesar de instrisecamente burguês, esse grupo vive no culto de ideiais marxistas, credo que lhes é contranatura".

Comporta relatos saborosos dos nossos cooperantes, do pessoal da embaixada, das azelhices do protocolo, do irrealismo de certos diplomatas ocidentais e orientais. Se me autorizares, farei a recensão para a semana e convido toda a gente a conhecer este olhar personalizado do Pinto da França.

Como sabes, voltei à Guiné como cooperante em 1991, assisti à decomposição política que levou ao afastamento do Nino Vieira, mas pelo correio que recebemos do Didinho, as esperanças não são melhores na actualidade.

O Pinto da França que vai viver em Bissau até 1979 põe a questão básica da orfandade do grande líder Amílcar Cabral: a luta pela independência dos guineenses era prestigiada em África e noutras partes e os sucessores de Cabral sentaram-se à sombra da inércia deste prestígio. Outra realidade que Pinto da França observa pude confirmá-la e chega aos tempos de hoje: ausência quase absoluta de quadros intermédios. Dói, nós não podemos intervir a não ser através do modelo de cooperação que contribua para formar in loco uma administração exigente, altamente qualificada e que saiba actuar acima das etnias e dos partidos.

Para a semana, por razões profissionais, serei mais parcimonioso. Aqui vai mais um episódio, pedindo a tua atenção para uma fotografia em que vou atravessar a bolanha de Finete com o Saiegh em destaque (2). Recebe um abraço do Mário.



Bacari Soncó e Fodé Dahaba, os meus irmãos de Finete

Beja Santos


Para a minha primeira semana em Finete (1) ainda pensei levar o gira-discos a pilhas, mas decidi concentrar-me num saco de leituras. A escolha recaiu em obras sobre o Império Romano, o Corão (naquela época não havia nenhuma tradução portuguesa, comprei num alfarrabista uma boa edição da Garnier) e literatura surrealista, um pouco de Boris Vian, Carlos Oliveira e outros desalinhados do neo-realismo.

Falei do Alexandre O'Neill de que me empolgavam os seus textos no Diário de Lisboa à semelhança da Guidinha, do Sttau Monteiro. O'Neill, insisto, irá influenciar-me na formação do gosto, na renovação audaz da língua, na combinação do castiço com a claridade cosmopolita. Lembro-me de ter metido no saco A Ampola Miraculosa que pertencia à colecção dos cadernos surrealistas editados pelo António Pedro. A Ampola é uma colagem de ilustrações antigas, uma brincadeira imaginativa sem direcção, mas que me ajudava a compreender a mistura da poesia, da pintura e do panfleto político.

O'Neill foi pintor e criou poemas ditos ortográficos, uma originalidade que infelizmente ficou sem continuadores. Para não ser repetitivo, A Ampola ficará reduzida a cinzas dentro em breve. Podem, pois, os meus gentis leitores tertulianos imaginar a satisfação que tive quando há dias, antes de passar a limpo este fio de memória, ter descoberto que a Assíro & Alvim deu à estampa a edição fac-similada da Ampola, mostrando o O'Neill como vate coroado. Confio na vossa bondade em interessarem-se pelo O'Neill( se não o fizeram antes), e para os mais timoratos a minha sugestão é que se atirem à Ampola que começa assim: "Pais que fazeis? Os vossos filhos não são tostões, gastais-os depressa" (Ó Luís, sê amigo dos surrealistas e mostra coisas da Ampola).

Pronto, cheguei a Finete. A Finete de que eu sou militarmente responsável coincide com o registo do mapa. Ou seja, eu faço a cambança do Porto de Bambadinca e de Unimog ou a pé percorre-se a nesga de um caminho entre arrozais, qualquer coisa como 3 Km.

É uma povoação que vive dos tombos da guerra, já que alberga gente que veio de Malandim, Canturé, Gambana, Chicri e até Sansão, fundamentalmente fulas e mandingas (os manjacos e balantas vivem entre Madina e Belel)(2). Para quem vem do outro lado, ou seja, a partir de Canturé, há uma enorme rampa em rocha que vai ajudar a dissuadir as flagelações: disparar obuses é possível, mas só um milagre é que pode permitir a precisão da pontaria.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea da tabanca de Bambadinca, tirada no sentido sul-norte. Em primeiro plano, a saída (lado leste) do aquartelamento, ligando à estrada (alcatroada) Bambadinca-Bafatá. Ao fundo, o Rio Geba Estreito. São visíveis as instalações do Pelotão de Intendência. Finete e a sua extensa bolanaha ficavam do outro aldo do rio.

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) © Humberto Reis (2006)


Finete vive da agricultura desta vastíssima bolanha, que, não houvesse a guerra, podia ser cultivada até à Aldeia do Cuor. Chegou a ter um Pelotão de uma Companhia de Caçadores em 64, conforme referi a propósito da granada incendiária que vitimou Abudu Cassamá. Tem hoje para sua defesa o Pelotão de Milícias nº 102. Nos poucos contactos havidos, verifiquei haver pouca preparação e para a defesa das populações só existiam armas automáticas. O quartel está murado por duas fieiras de arame farpado não mantido, os abrigos estão podres e não há valas.

Levo comigo um plano de levantamento das necessidades e a firme intenção de preparar com Bassilo Soncó, o Comandante, e os 2º Sargentos Bacari Soncó e Fodé Dahaba, um calendário de preparação militar a negociar com Bambadinca (relembro que está para breve a chegada do BCAÇ 2852)(3). A primeira surpresa tive-a em Missirá. À porta da minha morança, vários soldados insistiam em ficar comigo em Finete: recordo Tcherno Suane, Ieró Baldé, Bubacar Baldé e Serifo Candé:
- Isto não é uma excursão nem uma expedição. Fiquem aqui nas obras dos abrigos e nos patrulhamentos a Mato de Cão.

Mas subitamente iluminou-se o espírito: e se levasse voluntários para passar a pente fino todo o terreno sólido entre Finete, Malandim e o Rio de Gambana? Dando o dito por não dito, acertei com Saiegh a formação de um grupo de dez voluntários. Com esta ajuda, a 23 de Agosto, descubro um trilho bem marcado que passava entre Finete e Canturé, atravessava o rio de Gambana e internava-se , acima de Chicri, em direcção de Sinchã Corubal. As suspeitas estavam confirmadas: ainda sem se saber a relação entre o PAIGC e os Nhabijões, na outra margem do Geba, havia visitas (periódicas ou irregulares) para Mero e Fa Balanta, ou coisa parecida.

A experiência virá confirmar que o PAIGC cambava armamento pesado entre Enxalé e Mato de Cão (ligação entre o Norte e o Sul da Guiné) e abastecia-se e promovia recrutamentos através de itinerários entre Missirá e Finete. Será um contra-terror que irá crescer a partir do episódio já conhecido como O Presépio de Chicri (4). Seguir-se-ão esperas junto ao Geba com a apreensão de alimentos, captura de civis e também mortes pela calada da noite quando não for possível distinguir o potencial do inimigo.

Sabia que a relação com Bassilo Soncó não seria das melhores. Este irmão do régulo Malã (que irá falecer nas prisões do PAIGC, salvo erro em 1976) era desdenhoso, pouco colaborante e incapaz de motivar as suas tropas. Para evitar confrontações, aliei-me aos 2º Sargentos, dois mandingas lúcidos e críticos da situação que se vivia nesta entrada do regulado do Cuor. Bambadinca cedeu-me materiais para os abrigos (cimento, chapas, bidões, serras), consegui uma metralhadora Breda e começou a preparação de seis apontadores de dilagrama. Fodé acompanhou-me a Bambadinca para estudar com a CCS um programa de carreira de tiro em Samba Silate, perto de Amedalai. E ficou acordado com o oficial de operações que este deixaria com o relatório para o seu sucessor a referência que este Pelotão de Milícias iria ser regularmente experimentado nos teatros das operações.

Percorrer a bolanha em direcção a Finete era um encanto ao fim da tarde quando a bola de fogo do rápido crepúsculo mergulha nos palmeirais. Logo que descobri este espectáculo, tudo fiz para ser seu espectador efectivo. Bacari ajudou-me a fazer um plano para criar segurança nos depósitos de granadas, cartuchos das G3 e das Mauser que eram usadas por todos os civis. Serifo Candé ofereceu-se ao terceiro dia em Finete para fazer pratos simples: atum com batata cozida e ovo ou o interminável bacalhaucozido.

E foi à volta da mesa, bebendo Fanta, que cimentei os laços com Bacari e Fodé (1). Bacari passará a acompanhar-me em quase todas as operações, ficará responsável por acompanhar os doentes ao posto médico de Bambadinca. No futuro, passará sempre alguns dias em Missirá ajudando-me nas obras, a desmatar na zona dos cajueiros , a fazer pontões entre Caranquecuenda e Cansonco, a patrulhar junto do rio Gambiel, que ele conhece desde a infância. Para meu profundo pesar, Fodé ficará brutalmente ferido na Op Anda Cá. É hoje 2º Sargento das Forças Armadas Portuguesas, reformado,tem um negócio de candongas (para quem já esqueceu, são os autocarros que viajam com seres humanos, porcos, galinhas e cereais) que não corre bem e visita-me regularmente. Está completamente cego, afectado por uma daquelas doenças que regressaram com a perda de médicos tropicais, a falta de higiene e prevenção, sobretudo nos rios Geba e Corubal.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > 1969 ou 1970 > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na margem direita do Rio Geba. No primeiro plano, para além de municiador da Metralhadora Ligeira HK 21, Mamadú Uri Colubali (salvo erro), vê-se o Furriel Miliciano Tony Levezinho, ao meio, ladeado pelo 1º Cabo Branco (à sua direita) e pelo 1º Cabo Alves (à sua esquerda) (LG).

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.



A Finete que eu voltarei a visitar em 1990/1991 está irreconhecível com a nova ponte que vai para Bambadinca, com os novos aglomerados trazidos pela paz. A partir de Setembro de 1968, e por decisão minha, farei a guerra mais a partir de Missirá. Não escondo o meu remorso por não ter conseguido encontrar o reequilibrio desejável numa defesa consistente e que ajudasse a promover as populações de Finete. São coisas da inexperiência. Subsistirão as boas relações pessoais e uma recordação muito forte do fanado de raparigas que ali assisti e que deu para perceber que a força do Irã era tão ou mais poderosa que a doutrina de Maomé.


Comentário de L.G.:

Meu caro Mário, prometo tratar bem o nosso O'Neill, já que é um dos nossos poetas favoritos, meu e teu... Não conhecia a Ampola. Acabo de receber o exemplar que tiveste a gentileza de me mandar pelo correio. Vou ver se posso digitalizar e publicar algum dos seus poemas-colagens. Há as questões (delicadas) dos direitos de autor. Tenho que contactar a editora (Assírio & Alvim). Um abraço. Luís

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 16 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1081: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (11): Matar ou morrer, Saiegh ?

(2) Madina/Belel era uma zona sob controlo do PAIGC: vd. Vd. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

(3) O BCAÇ 2852 ficou sedeado em Bambadinca (Sector L1) desde meados de 1968 a meados de 1970.

(4) Vd. post de 21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P888: Antologia (44): O presépio de Chicri (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P1101: Foi você que pediu a carta de Bula? (Luís Graça)


Guiné > 1965/66 > A famosa jangada que atravessava o Rio Mansoa em João Landim, ligando Bissau com a região do Cacheu. Actualmete a travessia faz-se poor uma ponte. Esta parte do Rio Mansoa é coberta pela carta de Bula (1/50.000), doravante disponível on line.

Foto: © Virgínio Briote (2005)


1. Recebemos no sábado passado, dia 16, um curioso e-mail, subscrito por Pedro Correia da Silva:

Olá. Tenho um cunhado que esteve na Guiné, na região de Bula nos anos 60 como alferes miliciano.E como muitos outros ficou profundamente marcado. As memórias da Guiné são muito importantes para ele.

Estive a procurar na Net mapas da Guiné para fazer uma gravura e oferecer-lhe no dia 19 (faz anos). O mapa que ele mais gostaria seria o mapa militar que você tem no seu site, mas infelizmente não encontro o da região de Bula.

Se o tiver, é possível mandar-mo para este email ?

Agradeço-lhe uma resposta rápida pois hoje já é dia 16.

Cumprimentos, Pedro Silva

2. Eis a surpresa que quisemos fazer a este nosso antigo camarada, cujo nome desconhecemos, através do seu cunhado Pedro, através do seguinte e-mail, com data de 19:

Caro Pedro:

(i) Acabei de satisfazer o seu pedido. A carta de Bula (1/50.000) passou a estar, hoje, disponível, on line, no nosso blogue. É uma carta magnífica. O seu cunhado, que hoje faz anos, vai gostar. Com este pequeno presente, dê-lhe também um abraço de parabéns, do Luís Graça & Camaradas da Guiné, incluindo o Humberto Reis que gentilmente nos cede as imagens digitalizadas de todos estes mapas que honram a cartografia militar portuguesa. O seu cunhado, nosso antigo camarada que andou por aquelas terras, que apareça por aqui um belo dia destes… Gostaríamos de o conhecer…

(ii) Amigos & Camaradas da Guiné: Mais um inestimável serviço do nosso blogue… Obrigado ao Humberto. Este mapa andava perdido num dos meus três computadores… O Carlos Fortunato também andava à procura dele, já que está a planear a sua próxima viagem à Guiné.

A imagem é de boa qualidade, graças também à fotolitografia da Papelaria Fernandes (em geral, são os melhores trabalhos, os desta casa)… e à posterior digitalização feita na Rank Xerox. A imagem original tem 10 MB. Como habitualmente, a imagem que está disponível on line foi reduzida a um 1/3 da dimensão original…


3. O Pedro não perdeu tempo a agradecer o nosso e-mail e o nosso presente de aniversário: "Caro Luís Graça - Chegou mesmo a tempo. Obrigado, Pedro Correia da Silva"...

Por nossa parte ficamos felizes por saber que alguém, que esteve em Bula, durante a guerra colonial, ficou feliz por receber como presente de aniversário a carta de Bula, em formato digital.

Guiné 63/74 - P1100: Recordando os primeiros cabos Rocha e Monteiro, do Pel Caç Nat 63 (Jorge Cabral)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > 1969 ou 1970 > "Aqui está o Rocha afagando um cão, de quem aliás já falei na minha estória O Amoroso Bando das Quatro (1). Os outros são: de pé – Soldado Mamadú, eu, 1º Cabo Injai; em baixo – Soldado Demba, 1º Cabo Marçalo, Soldado-maqueiro Adão".

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > 1969 ou 1970 > "O 1º Cabo Monteiro. Às costas um pequenino Alfero Cabral ".

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > 1969 ou 1970 > "Eu com o Chefe Tabanca de Fá Mandinga, meu professor de História da Guiné".

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > 1969 > "Eu em Fá, talvez em Novembro de 1969"... Jorge Cabral foi Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, 1969/71); hoje, é advogado e professor universitário.

Textos e fotos : © Jorge Cabral (2006)

Companheiro Luís,

Continuo a acompanhar com todo o interesse o blogue.

Como te disse pelo telefone, ando agora a tentar reunir todos os Amigos do meu Pelotão.

Encontrei o 1º Cabo Rocha o que me causou uma enorme alegria. Possui melhor memória do que eu, e na Guiné escreveu um diário, do qual te mandarei em breve alguns trechos.

Todos estes diários, muitas vezes mal escritos e com erros ortográficos, são importantes. O que lhes escasseia em mérito literário, sobra-lhes em autenticidade. Ficamos a conhecer como pensava e quem era o soldado português, nesses anos sessenta e setenta.

Agora irei à Corunha procurar o 1º Cabo Monteiro, um dos homens mais habilidosos que conheci. No destacamento fez de tudo. Até construiu o forno e cozinhava o pão.

Achei interessante que o Tigre de Missirá, o nosso estimado camarada Beja Santos, tenha lido agora e recomende René Pélissier e a sua História da Guiné (2). Trata-se sem dúvida de uma obra notável que arrasa a colonização portuguesa na Guiné, transformando-a numa mera ficção.

Como já escrevi, e tu publicaste no blogue em 15 de Fevereiro (3), após o meu regresso procurei estudar a História da Guiné, “convicto de que é impossível compreender a guerra colonial e o que se seguiu, sem reflectir na história do país e nas múltiplas acções de resistência armada contra os portugueses”. Com esse objectivo, creio que li tudo, o que existe na Biblioteca da Junqueira, tendo posteriormente consultado alguma bibliografia francesa.

Assim, antes da tradução da História da Guiné, ser publicada em Portugal, em 1989, já havia lido e relido o original Naissance de la Guiné, Portugais et Africains en Sénégambie (1841-1936). Porém, penso que não necessitei de nenhuma leitura para, ainda lá, ter percebido que “uma Guiné idílica e pacífica, de negros portuguesíssimos, nunca existira…” (3).

Aliás, mais do que nos livros, foram os relatos dos Homens Grandes, principalmente do Chefe de Tabanca de Fá Mandinga, que me fizeram compreender o que havia sido e o que era a Guiné. Relembro a descrição da batalha de Kansala, tão viva, que quase me fez ouvir os relinchos dos cavalos…

Mentimos? Penso que não! Aprendemos a viver um faz de conta, o que foi útil porque continuamos a viver, parecendo. Faz de conta…

Com um Grande Abraço,
Jorge
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Notas de L.G.


(1) Vd. post de 17 de Fevererio de 2006 > Guiné 63/74 -DXLVI: Estórias cabralianas (5): o Amoroso Bando das Quatro em Missirá

(2) Vd. post de 19 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1089: História da Guiné Portuguesa, mitos e realidades (Beja Santos)

(3) Vd. post de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)

quinta-feira, 21 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1099: O cemitério militar de Guidaje (Manuel Rebocho, paraquedista)



Mapa do cemítério militar de Guidaje, fornecido pelo Estado Maior da Força Aérea. A imagem foi-nos gentilmente cedida pelo nosso camarada Manuel Rebocho.

Foto: © Manuel Rebocho (2006)


Texto do Manuel Rebocho, que é sargento-mor paraquedista na reserva, e foi operacional na Guiné entre os dias 8 de Maio de 1972 e 8 de Julho de 1974 (1)

Luís Graça

Um abraço, extensivo a todos os tertulianos.

No seguimento de outros contactos sobre a transladação dos restos mortais de camaradas que foram enterrados em Guidaje, trago hoje alguns elementos novos.

Antes de tudo, gostaria que colocasses no blogue um outro mail que te enviei e que, naturalmente por falta de tempo, não consta ainda editado (2). Porém, o importante nesse mail, era a minha sugestão, na sequência de outra opinião de outro camarada, para que encabeçasses um grupo de trabalho com o objectivo da transladação dos restos mortais destes oito camaradas.
Dizia também, que confiava com base no que “conhecia da pessoa do Chefe do Estado-Maior da Força Aérea” que ele nos iria facultar o mapa das campas dos camaradas que tinham ficado em Guidaje. Com efeito, não me enganei e, em boa verdade, estou muito satisfeito por isso.

O referido e importante mapa acaba de me ser entregue, via familiares, a quem o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, a requerimento destes, o mandou entregar. Mapa que junto em anexo para conhecimento de todos os tertulianos e quantos consultam o blogue, que sei serem muitos milhares de ex-combatentes, mas não só.

Este mapa pode ser muito melhorado, quanto à sua interpretação, pois, como sabemos, o camarada Albano Costa domina e dispõe da fotografia de satélite, de toda aquela área, pelo que lhe faço aqui um convite, para além de um expresso pedido, para que represente o mapa, que agora junto, sobreposto numa fotografia de satélite.

Legenda do mapa:

Coloco a legenda noutra página, porque a legenda contida no próprio mapa está manuscrita e lê-se com muita dificuldade, para além dos nomes não estarem completos. Eu decifrei facilmente os nomes porque tenho outros documentos que me auxiliaram, documentos, estes, que me foram enviados pelo Albano Costa, a quem é devido o reconhecimento pelo esforço desta pesquisa.

Campa 1 > Manuel Maria Rodrigues Geraldes, Sold. n.º 06471572, da 2.ª CC/BC 4512/72. Filho de António Emílio Geraldes e de Ascensão dos Santos Rodrigues. Natural da freguesia de Vale de Algoso, Concelho de Vimioso.

Campa 2 > Bacote Tanga, Soldado nativo, da 3.ª Companhia de Comandos Africanos.

Campa 3 > António das Neves Vitoriano, Soldado Pára-Quedista n.º 528/72, da CCP 121.

Campa 4 > José de Jesus Lourenço, Soldado Pára-Quedista n.º 544/72, da CCP 121.

Campa 5 > Manuel da Silva Peixoto, Soldado Pára-Quedista n.º 1176/70, da CCP 121.

Campa 6 > Talibú Baió, Soldado nativo, da C C n.º 19.

Campa 1-A > José Carlos Moreira Machado, Furriel Miliciano n.º 02893771, da CC 3518. Filho de Manuel Machado e de Delta de Jesus Moreira. Natural do lugar de Sá, freguesia de Ervões, Concelho de Valpaços.

Campa 2-A: João Nunes Ferreira Soldado n.º 09477371, da CC 3518. Filho de Luís Ferreira e de Maria Martinha. Natural da freguesia de Câmara de Lobos, Concelho de Câmara de Lobos – Madeira.

Campa 3-A > Gabriel Ferreira Telo, 1.º Cabo n.º 03117871, da CC 3518. Filho de João de Jesus Telo e de Maria Filomena Ferreira Telo. Natural da freguesia de Paul do Mar, Concelho de Calheta – Madeira.

Campa 4-A > António Santos Jerónimo Fernandes, Fur. Miliciano n.º 09486271, da CC nº. 19. Filho de Domingos António Jerónimo Fernandes e de Maria da Glória Fernandes Jerónimo. Natural da freguesia de Garção, concelho de Vimioso.

Nota que considero muito importante:

Apresento a filiação e naturalidade dos camaradas do Exército, porque, em minha opinião, não se devem transladar os corpos, para os cemitérios das suas freguesias, sem autorização dos familiares. Os elementos apresentados permitem obter essas autorizações, a quem tiver condições para isso.

Quanto aos camaradas Pára-Quedistas, não apresento os mesmos elementos porque já possuo as citadas autorizações.

Tenho agora reunidas todas as condições para a transladação dos restos mortais destes camaradas: tenho os mapas, que eram imprescindíveis, e tenho as devidas autorizações das autoridades da Guiné Bissau. Faltam, porém, os meios financeiros, já que as autoridades portuguesas, segundo me informaram, não têm meios para o efeito. É a minha próxima tarefa: encontrar os meios.

Continuo, todavia, a considerar, que não devem ser transladados apenas os Pára-Quedistas, mas todos os camaradas cujos restos mortais ali se encontram. Conto convosco.

Um abraço a todos os tertulianos

E até breve. O mais tardar até 14 de Outubro, onde alguns nos conheceremos pessoalmente, o que de momento não acontece.

Manuel Rebocho


Guiné > O sargento paraquedista Rebocho (Maio de 1972/Julho de 1974), hoje Sargento-Mor Paraquedista, na Reserva, e doutorado pela Universidade de Évora em Sociologia da Paz e dos Conflitos (tese de doutoramento: "A formação das elites militares portuguesas entre 1900 e 1975").

Foto: © Manuel Rebocho (2006)
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 28 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P919: Vamos trasladar os restos mortais dos nossos camaradas, enterrados em Guidage, em Maio de 1973 (Manuel Rebocho)

(2) Julgo ser este o e-mail do Manuel Rebocho, que recebi em 24 de Julho de 2006 e que, por lapso ou falta de tempo, não chegou a ser dvulgado no blogue. Passo a transcrevê-lo:

Meus Caros Idálio Reis, Luís Graça e todos os TERTULIANOS

Em resposta ao mail do Idálio Reis, de hoje, dia 24 de Julho, tenho a informar:

1. Efectivamente fui eu quem esteve em casa dos pais do Lourenço, em Cantanhede; da irmã do Peixoto, em Vila do Conde; e da mãe e dos irmãos do Vitoriano, em Castro Verde. A todos prometi que havia de lhes entregar os restos mortais dos seus entes queridos. Tudo farei para cumprir a minha promessa, mesmo que pague do meu bolso.

2. Quanto ao ponto da situação:

a) As autoridades políticas e militares portuguesas não se recusam a trazer os corpos, o que vão dizendo é que não têm dinheiro;

b) Desloquei-me ao Estado-Maior da Força Aérea para solicitar os mapas do local onde foram enterrados os Soldados Pára-Quedistas. Recusaram-mos;

c) A família do Vitoriano remeteu requerimento ao General CEMFA, solicitando os mapas. Do que conheço do General CEMFA, considero que ele lhos vai entregar. Se os mapas forem recusados, a família irá recorrer a Tribunal.

d) Organizou-se, na Universidade de Évora, um Grupo de Arqueólogos, de que faz parte uma das irmãs do Vitoriano, para se deslocarem à Guiné com o objectivo de procederem às escavações para recolherem e catalogarem os restos mortais dos militares que foram enterrados em Guidage;

e) Reuni-me em Évora, com o núcleo de Estudantes da Guiné, para os auscultar sobre a eventualidade de se ir à Guiné transladar os restos mortais de alguns antigos combatentes. Todos os alunos se mostraram completamente disponíveis para ajudar e esclareceram que nem as autoridades nem as populações colocariam qualquer entrave ao que eu pretendia;

f) Solicitei audiência e reuni-me com o Senhor Chanceler da Guiné, Dr. Mbala Alfredo Fernandes, Licenciado em Sociologia pela Universidade de Évora, que me informou da sua total disponibilidade para colaborar no que fosse necessário, expressando mesmo, a disponibilidade das autoridades do seu país para ceder toda a documentação possível. O Dr. Mbala considerou mesmo que o Presidente da República, General Nino Vieira, estaria disponível para nos receber.

3. Quanto à organização de uma comissão com este objectivo, considero uma ideia generosa, porquanto, já percebeste, que a tarefa não é de fácil resolução.

4. Como Lisboa fica numa posição mais ou menos central, para além de não poucas outras razões, sugiro desde já, que a comissão seja coordenada pelo Luís Graça (3) e integre todos os que tiverem possibilidades de dar algum contributo. E então, estou certo, cumprirei a minha palavra, com a vossa ajuda.

5. A partir dos elementos que me foram fornecidos pelo Albano Costa, um entusiasta de Guidage (ou Guidaje, segundo o Luís Graça) (4), ao lado dos três Pára-quedistas estão enterrados outros cinco militares metropolitanos.

6. Trabalhando eu sozinho, não podia ir além dos Pára-quedistas, por mais que isso me desagradasse. No passado fim-de-semana reuni com a família do Vitoriano, onde esta questão foi muito discutida, mas a falta de meios colocavam-nos limitações.

7. Trabalhando, neste assunto, uma comissão, considero que se terá que falar em oito corpos e não em três.

Um abraço ao Idálio Reis, ao Luís Graça e a todos os TERTULIANOS

NOTA:
Este mail vou igualmente enviá-lo ao Luís Graça.

(3) Meu caro Manuel: O coordenador da comissão só pode ser... o Manuel Rebocho. O teu exemplo de dedicação, solidariedade, camaradagem e patriotismo é inexcedível. Tu és o homem certo no lugar certo. Nós pomos o nosso blogue à disposição desta belíssima causa. E daremos a cara se for preciso. Mas a liderança está bem entregue. (LG)

(4) Guidaje (e não Guidage) é a grafia usada pelos nossos serviços cartográficos que elaboraram a respectiva carta (1/50.000)

Guiné 63/74 - P1098: Um Estado que não honra os seus mortos é um Estado sem memória (Manuel Castro)

1. Mensagem do Manuel Castro, comentando o conteúdo do anterior post, do António Santos:

É efectivamente uma vergonha. Não há dinheiro!... Quando precisaram de nós tiveram dinheiro para nos arrancarem, no auge da nossa juventude, aos nossos pais, e nos enviarem para uma guerra que não nos dizia rigorosamente nada.~

Um Estado que não tem capacidade de honrar os seus mortos é um Estado sem memória e sem dignidade. Não é Pessoa de Bem.

Eu desconhecia a situação dos nossos Mortos em Bambadinca. Não tive, como gostaria, oportunidade ver a reportagem da RTP1. Pode ser que alguém a tenha gravado e me possa ceder essa gravação.

É recompensador saber que há camaradas cuja nobreza de sentimentos lhe faz lembrar os camaradas que tombaram na frente de combate. Bem hajam!...

Se for preciso contribuir para trazer de volta e entregar às suas famílias os nossos ex-camaradas, eu contribuirei.

Um abraço a todos os tertulianos
Manuel Castro (1)
__________

Nota de L.G.

(1) Sei que o Manuel Castro é da rede de relações do Sousa de Castro e de outros camaradas de Viana do Castelo. Mas na nossa tertúlia não há qualquer referência à sua eventual condição de ex-combatente da Guiné. Se o não for, será um amigo, que faz parte, há muito, da nossa nossa de e-mails. De resto, já tenho recebido mais e-mails dele, nomeadamenet um, de 25 de Maio de 2005 (!), a perguntar de algum de nós (na altuar ainda eram poucos...) conhecia "alguém que tenha feito parte da CART 6254 - Os Presentes (Março de 73/Agosto 74). Fiquei sem saber se o Eng Manuel Castro pertecenceu àquela unidade. Talvez ele ou os seus amigos me possam agoar esclarecer esse assunto.

Guiné 63/74 - P1097: Imagens chocantes do cemitério de Bambadinca (A. Santos)

Beja > 1971 > O António Santos na recruta.

Foto: © António Santos (2006)


Mensagem do António Santos, ex-soldado trms, Pel Mort 4574/72 (Nova Lamego, 1972/74) (1)

Amigos e camaradas tertulianos:

Nós que estivemos na Guiné, estamos de luto, enquanto este País, ou quem manda nele, não repatriar os nossos mortos, que é o dever de todas as nações. Já não estamos no século das descobertas, nesse tempo sim, não havia meios, mas hoje!, até se faz turismo (rico) no espaço.

Antes de entrar no blogue, nem se quer me passava pela cabeça que algum dos nossos camaradas mortos, estivesse enterrado na Guiné. Sempre pensei que todos os que caíram regressassem como seria normal, mas afinal parece que foram muitos os que ficaram por lá.

Fiquei chocado com tudo o que vi ontem [no progama Em reportagem, da RTP1], mas as imagens de Bambadinca!... Nunca esperei que fizessem casas em cima de um cemitério, é incrível.

Se houver algum movimento de solidariadade para com os nossos mortos, estou presente.

Um Alfa Bravo

A. Santos
Pel Mort 4574/72

__________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 29 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXI: Os cagaços de um periquito a caminho do Gabu (A. Santos, Pel Mort 4574/72)

Guiné 63/74 - P1096: Álbum das glórias (5): Futebol em Bambadinca, oficiais contra sargentos (Beja Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1969 > A equipa de futebol de oficiais.

Texto e foto: © Beja Santos (2006)

Temos aqui uma equipa de futebol em miniatura. Em Dezembro de 69, já eu estava afecto a Bambadinca, às ordens do BCAÇ 2852. Com a tradicional divisão de classes, houve um jogo de oficiais contra sargentos ou vice-versa. Joguei à baliza e deixei entrar três frangos.

O Taco Calado (1) fracturou um braço e foi direito à enfermaria. Na fotografia constam, da esquerda para a direita, um camarada que já não consigo identificar, o Alf Mil Rodrigues, da CCAÇ 12 (já falecido), o Alf Mil Carlão (CCAÇ 12) e o Alf Augusto (CCS do BCAÇ 2852) (2).

De pé, também da esquerda para a direita, estou eu, o então major Cunha Ribeiro (hoje coronel), o médico David Payne (já falecido), o capitão da CCAÇ 12, Carlos Brito (hoje coronel) e o Alf Mil Abel (também da CCAÇ 12).

__________

Notas de L.G.

(1) Fernando Carvalho Taco Calado, Alf Mil Transmissões, da CCS do BCAÇ 2852 (1968/70)
(2) Ismael Quitério Augusto, Alf Mil Manutenção, da CCS do BCAÇ 2852 (1968/70)

Guiné 63/74 - P1095: Por onde andam os nossos mortos ? (José Martins, CCAÇ 5)

1. Mensagem do nosso camarada José Martins, ex-Fur Mil TRMS da CCaÇ 5:

Caro Luís:

Havemos de voltar a este assunto. Tenho os livros com todos os militares, do exército, que tombaram na Guiné e a localização das suas sepulturas, quando os corpos foram recuperados.

Há metropolitanos enterrados na Guiné e Africanos enterrados em Lisboa.

As causas da morte, desde os ferimentos em combate, até à queda de árvores quando montavam antenas para os rádios, há de tudo. A mais curiosa, e vou ter de investigar, é a morte de um elemento da CCAÇ 5 - dos Gatos Pretos - que faleceu vítima de atropelamento por um comboio... É uma morte estranha, mas é o que vem no registo.

Um abraço
José Martins
Ex- Fur Mil Trms Inf
CCAÇ 5 - Canjadude (1968/70)

Guiné 63/74 - P1094: O abandono dos Mortos pela Pátria (Afonso Sousa)

Mensagem do nosso camarada Afonso M.F. Sousa, ex-furriel miliciano de transmissões da CART 2412 (Bigene, Binta, Guidaje e Barro, 1968/70):

Caro Sousa de Castro (1):

Também vi e reparei no estado de abandono em que estava essa campa (só a lápide vertical era visível, mas muito degradada - o resto era terra coberta de ervas daninhas).

É intolerável que tantos homens a quem foi roubada a sua juventude e, nestes casos, até a sua própria vida, tenham sido abandonados pelos governantes do seu país. Se abandonados pelo regime que lhes ordenou a partida para aquelas paragens, ainda aí talvez se compreendesse, mas esquecidos por um regime dito regime democrático que deve assegurar o respeito pela pessoa humana e pela liberdade dos cidadãos e pelos seus direitos, isso é altamente preocupante e faz sorrir velhos adeptos da era fascista.

Como estes governantes se livraram dessa vida difícil de combatente colonial, não dão, por isso, o devido valor ao que foi esse martírio de 13 anos de luta e de morte, tudo em prol da pátria.

Por isso é que esses cobardolas, esses miseráveis, se portam desta maneira vergonhosa. Para eles isto é que é a democracia ?!

Um abraço
Afonso Sousa
____________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de hoje > Guiné 63/74 - P1092: Programa da RTP1 de hoje faz-me recordar camarada morto no Rio Geba e enterrado em Bambadinca (Sousa de Castro, CART 3494)

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1093: Programa da RTP1, hoje, às 21h, sobre as campas abandonadas dos nossos mortos (José Martins)


Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério (colonial) > Abril de 2006 > Restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram como foi o caso do Soldado Anastácio Vieira Domingos, nº 688/64, que pertencia à CCAÇ 727. Era muito provavelmente alentejano. A CCAÇ 727 teve como unidade mobilizadora o RI 16, de Évora. A comissão foi de Outubro de 1964 a Agosto de 1966. O Soldado Anastácio não chegou a conhecer a época das chuvas: morreu ao fim de dois meses de Guiné, mais exactamente a 13 de Dezembro de 1964. O seu nome consta do memorial aos mortos das guerras do ultramar, junto à torre de Belém (1). (LG).

Mensagem do camarada José Martins:

Caro Luis e Tertulianos:

O programa [Em Reportagem] acabou há momentos. Do que vi, retive:

(i) Ou foi muito curto para um tão grande tema;
(ii) ou eu liguei a TV, demasiado tarde.

Em minha opinião, vou pela primeira hipótese.

Opinião: A Liga dos Combatentes assinou um protocolo com o Ministério da Defesa para reabilitar os cemitérios em Africa e outros países, mas é um protocolo. Foi dito pelo Gen Chito Rodrigues que não aconselhava as autoridadesportuguesas a deslocarem-se a alguns cemitérios, porque não têm a dignidade mínima. E pelas imagens se viu que não.

Em Bambadinda já se encontra uma tabanca onde era o cemitério. Há muito que sabemos que tudo foi arrazado e, sobretudo, que, apesar dos acordos diplomáticos, muitos ainda não passaram do estado de choque por se verem com um país novo nas mãos, sem saberem o que fazer e, ainda por cima, com o inimigo enterrado às portas das cidades. As famílias - e vi/ouvi testemunhos de irmãos - querem ter os seus entes queridos ao pé de si, mesmo que sejam só as ossadas.

Portugal tem o dever de fazer como outros estados fizeram: se não trouxeram os militares mortos para casa, deixaram-nos no terreno de combate, mas em locais dignos. Em Portugal, isto também aconteceu na I Grande Guerra em que, cinco anos depois do armistício, já se tinha erigido um monumento aos combatentes, não só na Batalha, mas por tudo o que era terra de combatentes, de norte a sul.

Os próprios mortos foram transladados dos diversos cemitérios situados na Alemanha, Bélgica, França e Holanda, para o cemitério de Richebourg. Vale a pena ler o texto Os Nossos Mortos na revista Combatente, edição nº 329/330, de Jul/Dez-2004, da autoria do Coronel de Infantaria Nuno Santa Clara.

Esta é mais uma batalha que se nos apresenta. As diversas associações de combatentes não deixarão de dizer, tambem, PRESENTE! Temos que ir em frente. Vamos trazer os nossos camaradas para CASA.

José Martins
Ex- Fur Mil Trms Inf CCAÇ 5 - Canjadude

Guiné 63/74 - P1092: Programa da RTP1 de hoje faz-me recordar camarada morto no Rio Geba e enterrado em Bambadinca (Sousa de Castro, CART 3494)

Guiné > Bissau > 1966 > Cemitério onde ficaram sepultados os primeiros combatentes da guerra colonial. Há placas funerárias de militares de origem metropolitana que vão, pelo menos, até 1968. O estado de abandono do cemitério faz doer oc oração, diz-nos o Marques Lopes, que esteve lá recentemente, em Abril de 2006, com o Xico Allen (LG).

Foto: © Virgínio Briote (2005)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > 1972 > O Sousa de Castro, 1º cabo radiotelegrafista da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74).

Foto:© Sousa de Castro (2005)

Mensagem acabada de enviar pelo nosso camarada de Viana do Castelo:

Foi com grande emoção que vi o programa minúsculo [Em Reportagem, de menos de 15 minutos], que a RTP1 apresentou hoje às 21,00 horas sobre os nossos mortos nas colónias, que por lá ficaram em cemitérios completamente abandonados.

Num dos cemitérios em Bambadinca, existe actualmente novas moranças, conforme disse o narrador, mas, num outro, apareceram vestígios de uma campa de um soldado da CART 3494 que aí ficou. Revi, como se fosse hoje, a situação pela qual passámos nesse período: foram dias de grande consternação, muito difíceis de superar. Veio-me as lágrimas aos olhos.

Junto em anexo um documento de como a estória se passou.


Situação de risco elevado provocado pelo Major de Operações

Xime, CART 3494 > 10-08-1972.

A companhia neste dia recebeu instruções para uma operação no Mato Cão, seguindo através do rio Geba em lanchas, e depois por terra à ao Mato Cão. O Major de Operações teimou em levar a cabo a operação, mesmo depois de ter sido avisado - por quem conhecia as marés naquele rio - que aquela hora não seria a mais indicada indicada para sair devido a que, dentro em pouco, passaria o Macaréu (*).

Mesmo assim, fazendo orelhas moucas, entendeu que ainda haveria tempo de passar o rio antes da chegada do Macaréu. Os pelotões envolvidos nesse patrulhamento não tiveram outra alternativa senão obedecer. Os soldados, pela experiência adquirida, sabiam que uma desgraça iria acontecer e dá-se aquilo que todos esperavam, não se pôde evitar, são apanhados pelo Macaréu.

A embarcação virou e então cada qual tenta desenrascar-se como pôde do perigo de morrerem afogados. Muitos não sabiam nadar, depois com todo peso de armamento que transportavam, para além da farda que envergavam, viram-se e desejaram para se safarem, mas nem todos o conseguiram. Assim, morreram afogados dois camaradas, sendo um da Póvoa de Varzim, casado e com uma filha, e outro de Famalicão, este solteiro.

Nesse mesmo dia todo pessoal da companhia desdobrou-se em esforços tentando encontrar os que desapareceram. Só apareceu o de Famalicão no dia seguinte, já com sinais de decomposição. Creio que este ficou enterrado em Bambadinca (1).

Sousa de Castro
____________

(*) Macaréu, Sm. Sublevação brusca das águas que se produz em certos estuários no momento da cheia e que progride rapidamente para as nascentes sob forma violenta, capaz de fazer estragos em pequenas embarcações.

Nota de L.G.:

(1)Vd., entre outros, o post de 30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXIX: Do Porto a Bissau (23): Os restos mais dolorosos do resto do Império (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P1091: Memórias de Mansabá (5): O terrível ataque ao aquartelamento em 12 de Novembro de 1970 (Carlos Vinhal)


Guiné > Região do Oio > Mansabá > Aquartelamento > Novembro de 1970 > Aspecto da enfermaria, destruída por canhão sem recuo.

Guiné > Região do Oio > Mansabá > Tabanca > Novembro de 1970 > Moranças destruídas na sequência do ataque do dia 12, que causou 14 mortos e 45 feridos à população.


Guiné > Região do Oio > Mansabá > Novembro de 1970 > A nova estrada (alcatroada) de Mansabá-Farim

Texto e fotos: © Carlos Vinhal (2006) (ex-furriel miliciano da CART 2732, Mansabá, 1970/72

Caro Luís e Camaradas:

O nosso camarada Vítor Junqueira veio avivar-me a memória, lembrando-me os conturbados tempos da construção do lanço da estrada Bironque-K3 (1). Foram tempos muito difíceis para todos os intervenientes, especialmente para a CART 2732 e CCAÇ 2753 que tinham a dupla função de forças de quadrícula e de intervenção.

Assim segue um trabalho sobre o ataque ao aquartelamento e povoação de Mansabá em 12 de Novembro de 1970.


Ataque a Mansabá em 12 de Novembro de 1970


Foi o terceiro ataque a Mansabá desde a nossa chegada (2). Foi ao escurecer apanhando toda a gente mais ou menos desprevenida.

O último tinha acontecido em 5 de Outubro, provocando a morte imediata a um milícia. No dia seguinte, no reconhecimento à zona envolvente da povoação e aquartelamento, morreu o alferes Couto, vítima do rebentamento de uma mina antipessoal quando a tentava neutralizar.

Desta feita, fomos atacados por um numeroso grupo IN, durante 45 longos minutos, que utilizou para bombardear Mansabá morteiro 60 e 82 e canhão sem recuo. Não faltaram as armas ligeiras (vulgo costureirinhas) para ajudar a desorientar.

As NT reagiram como puderam ao fogo, mas as forças do PAIGC não retiravam. A nossa artilharia começou a varrer a zona e nós, com armas ligeiras, bazucas e morteiro 60 e 81 tentávamos que eles não se aproximassem demasiado do arame farpado.

A determinada altura, e porque a situação ficou fora de controle, foi pedido apoio aéreo para Bissau. Na tabanca, também atingida pelo fogo IN, eram já visíveis vários focos de incêndio e a população, gritando, fugia desordenadamente.

Para sorte nossa o IN acabou por retirar e nós pudemos descansar um pouco, redistribuindo as poucas munições que sobraram e começando a recolher os mortos e feridos na tabanca. Ainda bem que não voltaram à carga, porque não tínhamos praticamente munições e resistiríamos pouco tempo. Se tivessem voltado bem podiam entrar pela porta de armas e apanhavam-nos à mão.

Falando de estragos: uma morteirada caiu junto dos quartos dos oficiais, outra junto à casa dos geradores, outra junto à Secretaria de Comando e outra junto ao bar dos sargentos. O bar dos praças foi mesmo atingido no telhado. A enfermaria foi atingida por canhão sem recuo provocando destruição parcial, seguida de incêndio. Tentou-se fazer corte ao fogo, mas mesmo assim os estragos foram elevados. Pelos alvos atingidos, é de supor que o IN tinha conhecimentos precisos do interior do aquartelamento.

Na tabanca havia muitas moranças a arder e os gritos dos populares eram horríveis. As nossas viaturas, num vaivém constante, recolhiam as vítimas, trazendo-as para o interior do quartel, onde eram tratados os feridos e posto de lado os mortos. Contabilizaram-se 14 mortos e 45 feridos só na população.

Felizmente que na altura tínhamos um médico na unidade e o nosso furriel enfermeiro Marques, que era enfermeiro na vida civil, tinha muita experiência. Havia também muitos militares da nossa CART a quem tinha sido dadas noções de primeiros socorros e enfermagem que se tornaram preciosos na colaboração que prestaram.

O apoio aéreo veio muito mais tarde e sobrevoou-nos muito lá por cima.

Este ataque fez parte de um programa do PAIGC para desestabilizar os trabalhos de construção do último troço que faltava para completar a estrada Mansabá-Farim que nessa altura ia só até ao Bironque. Neste mesmo dia tinha chegado a Mansabá muita gente vinda de outras tabancas com o fim de trabalhar na construção da referida estrada. Como na confusão do ataque muitos fugiram, foi preciso ir no dia seguinte, pelo mato fora, procurar e trazer de volta aqueles que por medo tinham partido.

No dia seguinte recebemos a visita do General Spínola que veio dar apoio moral às NT e fazer acção psicológica junto da população, para que eles não voltassem a fugir e convencê-los a colaborar na construção da estrada, que iria ser um factor de progresso e segurança na mobilidade de tropas e civis até Farim.

Há apenas dois dias, tinha sido reactivado o COP6 em Mansabá para coordenar as forças de protecção aos trabalhos (Operações Faixa Negra). No âmbito deste COP foram criados dois agrupamentos, um de Intervenção e outro de Trabalhos compostos por tropa especial como Companhias de Comandos, Companhias de Caçadores Paraquedistas, etc. A CART 2732 tinha como missão dar apoio logístico a todas as forças presentes, dispor de forças de intervenção e ainda participar na segurança próxima aos trabalhos.

Ao fim de muitos meses de sacrifício, contactos com o IN, accionamento de minas pelos trabalhadores civis, acidentes mortais, etc, esta estrada ficou pronta, passando-se a ir de Bissau ao K3 (na margem esquerda do rio Cacheu) em estrada alcatroada numa distância de mais de 120 Km. Para se chegar a Farim era só atravessar o rio de jangada. Valeu a pena, pois nós próprios ainda pudemos gozar deste conforto.

Carlos Vinhal
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Os Barões da açoreana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72) (Vitor Junqueira)

(2) Vd. posts de:

25 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLI: A madeirense CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)
18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXI: Breve historial da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)

(...) "Na manhã do dia [21 de Abril de 1970], [a CART 2732] seguiu para Mansabá [entre Mansoa e Farim, na região do Oio], onde chegou cerca das 13H00 para render a CCAÇ 2403. Neste mesmo dia, Mansabá foi flagelada pelo IN com morteiro 82 e armas ligeiras, causando 16 feridos na população. Assim estava consumado o baptismo de fogo".

8 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P857: 'Periquito vai no mato': de Bissau a Mansabá, passando por Safim, Mansoa, Nhacra, Cutia e Mamboncó (Carlos Vinhal, CART 2732)

Guiné 63/74 - P1090: Op Mar Verde: O cabo enfermeiro paraquedista que foi no Grupo Sierra, do Capitão Morais e do Tenente Januário (João Tunes)


Guiné > Região de Tombali > Cacine > 1970 > O Alf Mil Transmissões João Tunes . Legenda do fotógrafo: "Em Novembro de 1970, eu estava enfiado num quartel de uma aldeia do sul da Guiné, Catió, metido numa guerra sem vitória possível e ainda menos sentido que o de soprar contra a história" (...) (1)


Foto: © João Tunes (2006) (com a devida vénia, do blogue do João Tunes, Água Lisa (6) > post de 2 de Agosto de 2006 > Foi no stress, não foi ?)


Texto de João Tunes:

Caro Luís, tens razão na correcção que fizeste (1). Obrigado.

Calhou há dias encontrar-me com um velho amigo que participou na Operação Mar Verde (sem lhe darem margem para se negar a isso, pelo que a treta de que só participaram voluntários é mesmo treta) (2).

Ele era cabo enfermeiro paraquedista e foi mandado para os Bijagós, por ordem do seu comando e sem saber ao que ia. Lá metido, não teve forma de se baldar. Integrou a força comandada pelo Capitão Morais (julgo que este, posteriormente, morreu em combate em Moçambique) que tinha como missão destruir os Migs (que lá não estavam...) no Aeroporto de Conacri.

Na fila de assalto ele vinha imediatamente à frente da força africana comandada pelo Tenente Januário que desertou. A certa altura, quando olhou para trás para não perder a ligação, reparou que era o último da fila (os desertores, pelo visto, estavam já pré-combinados e não deram qualquer sinal do desenfianço) e disso deu conta ao Capitão Morais.

Depois, foi o que se sabe: os Migs não estavam lá, começaram a ouvir-se movimentações de viaturas militares do Exército de Conacri e foi dada ordem de retirada para as lanchas. No regresso a Bissau à sua unidade de Páras, foi-lhe dada ordem de absoluto segredo sobre a Operação em que participara. Isto quando lhe faltavam dois meses para ir para a peluda.

Como era dos poucos (se não o único) paraquedistas que participaram no Mar Verde, foi apertado com a curiosidade impaciente dos seus camaradas de unidade. Não resistiu e lá deu umas dicas a um Oficial Pára. Foi topado pelo comando e foi imediatamente enviado para o mato onde passou os últimos tempos da comissão. Na altura, havia que negar perante a comunidade nacional e internacional que Portugal tinha invadido um país estrangeiro e soberano.

Abraço.
João Tunes
___________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXII: Onde é que vocês estavam em 22 de Novembro de 1970 ? (João Tunes)

(...)"22 de Novembro de 1970 e dias seguintes, foram especialmente tensos. A tempestade que carregava a rotina quarteleira era mais pesada que costume. O comando andava de sobrolho mais fechado. Tinha de haver bernarda grossa. Depois amainou. Para se voltar à rotina das morteiradas do Nino. Dia sim e dia não. E o dia 22 de Novembro de 1970 ficou-se como um dia em que até pouco se passou. Ali, em Catió. Porque não longe dali, muito se passara.

"Só mais tarde vim a saber um pouco do que se tinha passado nesse 22 de Novembro de 1970, tornado um dia particularmente tenso na rotina militar de Catió". (...)

(2) Vd. post de 9 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1088: Pensamento do dia (7): Capitão do Exército Português: 'O filho da p... do Tenente traiu-me miseravelmente' (João Tunes)

terça-feira, 19 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1089: Historiografia da presença portuguesa em África (4): Mitos e realidades (Beja Santos)

Guíné > Bissau > Catedral > Postal ilustardo do final dos anos 60. Gentilmente cedido por Beja Santos.

Foto: © Beja Santos (2006)

Texto do Beja Santos, com data de 13 de Setembro de 2006:

Caro Luís, como prometido, volto às minhas responsabilidades com a tertúlia.
Envio pelo correio três bilhetes postais:
(i) rapariga Papel tatuada, (ii) muçulmanos em oração e (iii) Cais do Pidjiguiti (vê se insistes para que toda a gente te envie estes valiosos elementos gráficos que fazem parte da nossa memória);
Envio também: (iv) fotografia que recebi do Pel Caç Nat 52 por altura do Natal de 70, quando a unidade já estava em Fá: à frente sei que estão o António da Silva Queiroz, o 81 (era ele que nas noites de fogo e com uma braçadeira suportava o morteiro 81, façanha que repetia nas operações, como se comentará oportunamente) e o Nélson Wahnon Reis; (v) uma pagela alusiva à morte de Carlos Sampaio, o meu maior amigo na juventude de que iremos falar quando chegarmos a Fevereiro de 1970; e (vi) uma ordem de serviço que encontrei com o meu primeiro louvor: trata-se de um documento que iremos analisar ao longo de 1969, quando o Hélio Felgas me aplicou dois dias de prisão simples invocando que eu não dava o máximo da minha competência na manuntenção do aquartelamento de Missirá e que me levou a querer recorrer junto do Conselho Superior de Disciplina Militar. Este oficial general procurou ressarcir-se concedendo-me um louvor pela minha actividade operacional. Esta história é exemplar: se eu vivesse a engonhar e não saísse do quartel não teria ganho as antipatias ou caído na alçada dos maus génios...

Durante a minha semana em Casal dos Matos decidi ler a História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia, 1841-1936 , em 2 volumes (Editorial Estampa). Precisava e preciso de elementos mais consistentes sobre os mandingas no Geba, no Cuor e na luta contra os portugueses. Explico em texto destinado à tertúlia porque é que esta obra é de leitura obrigatória.


Afinal, o que era a Guiné Portuguesa?

Beja Santos

Quando cheguei à Guiné, ouvi repetidamente que a nossa presença datava do século XV e que tinha sido uma constante a partir de então. Interroguei-me porque é que a língua portuguesa era pouquissimamente usada, o animismo a tendência ético-religiosa mais difundida, o islamismo recente e cheio de tensões e o cristianismo quase nulo fora do reduto das missões católicas.

Contei com auxílio do então Comandante Avelino Teixeira da Mota, um dos vultos culturais proeminentes da Guiné e um dos maiores cartógrafos do mundo (a seu tempo, quando divulgar as cartas que me escreveu, falarei da nossa amizade e da forma dilacerada com que ele teve de abandonar a Guiné ao tempo do General Spínola), que me indicou uma série de leituras.

Confesso que fiquei sempre insatisfeito com aquela historiografia hagiográfica, louvando factos e eventos espúrios da presença portuguesa. A situação agravou-se quando estudei as campanhas de Teixeira Pinto e verifiquei que 60 anos antes do PAIGC a Guiné Portuguesa era pura ficção.

A leitura da "História da Guiné" de René Pélissier é recomendada a vários títulos:

(i) O mosaico étnico que aprendíamos em rigor nada tinha a ver com a história da Guiné. Os fulas do Império do Gabu tinham vindo do Futa-Djalon e a partir do século XIX modificaram radicalmente a relação de forças até então existente. Os comerciantes que viviam na Fortaleza de S. José de Bissau ou em Cacheu eram apoiados por escassas tropas portuguesas onde pontificavam os cabo-verdianos, os mestiços ou lusitanizados. Os fulas, ao entrarem em guerras fratrícidas, possibilitaram alianças entre o colonizador que jamais vivera no interior da Guiné. Os Papéis de Bissau foram sempre extremamente agressivos com o colonizador, como está altamente documentado.

(ii) O território onde combatemos a partir de 1963 era uma minúscula parcela da Senegâmbia ou a Guiné de Cabo Verde: só no fim dos anos 70 do século XIX é que se cria a colónia da Guiné independente das autoridades da praia. É preciso estudar a sério a presença cabo-verdiana para se perceber todo o rol de conflitos que se prendem com a história do PAIGC e o próprio golpe do Nino Vieira em 1980. A Guiné era negreira, os brancos na sua maioria presidiários e o comércio era constituído por escravos, amendoim, palmiste, cera, couros e borracha. Ainda no fim do século XIX, depois do Ultimatum britânico, ainda se pensou em entregar a Guiné à França, tal a indiferença que aquela região merecia às autoridades de Lisboa. O Alto Casamansa onde ainda hoje se fala crioulo português foi entregue à França e Bolama foi feitoria britânica (estamos a falar de história moderna, é claro).

(iii) As insurreições foram uma constante em toda a colónia ao longo do século XIX e do século XX: grumetes de Bissau, guerras na feitoria de Cacheu, intervenção dos franceses, britânicos e americanos, tudo aconteceu. Ninguém sabia qual a superfície da Guiné Portuguesa: em 1877 o número andava entre os 69 Km2e os 20 mil Km2.. os governadores eram negreiros, déspotas e o seu poder foi sempre brutal neste império de febres e doenças palustres. Quando a Guiné é desafectada de Cabo Verde sucedem-se os desastres militares e os contenciosos permanentes recorrendo as autoridades aos simulacros de tratados de paz com chefes tribais. Este período é fascinante pela organização das alianças do colono com uma parte dos colonizados, nos rios grandes de Geba ou de Buba. É também nessa altura que aparece a luta no Cuor, acima do antigo Forte de S. Belchior, em Sambel Nhanta, muito perto de Missirá. Sambel é historicamente referenciada e destruída pelas tropas portuguesas (entenda-se tropas portuguesas alguns brancos, muitos grumetes e mestiços, cabo-verdianos, angolanos, biafadas ou fula-forros...).

(iv) As guerras luso-mandingas datam do final do século XIX, foram sangrentas sobretudo na região do Oio. Foi Teixeira Pinto que ajustou contas com os rebeldes e "pacificou" mandingas e biafadas pondo termo brutal às diferentes rebeliões. Em 1936 a Guiné conhece a paz e assume-se a soberania portuguesa. Boncó Sanhá, régulo do Badora (porventura avô do Tenente Mamadu Sanhá que muitos de nós vimos em Bambadinca) foi promovido a Capitão de segunda linha, o mesmo acontecendo com outros régulos. Só duas gerações depois é que apareceram as Kalachinikov.

O que convém destacar é que a presença portuguesa não corresponde ao que propalou a literatura oficial. E quando se acaba de ler esta história da Guiné, nós, os que lá combatemos, somos levados a reflectir sobre a nossa ignorância e os fundamentos que legitimaram à luta pela independência. Mentimos todos , mesmo aqueles que prometiam uma visão idílica para a união entre a Guiné e Cabo Verde.

Guiné 63/74 - P1088: Pensamento do dia (7): Capitão do Exército Português: 'O filho da p... do Tenente traiu-me miseravelmente' (João Tunes)


Fonte: Água Lisa (6), blogue do João Tunes > 12 de Setembro de 2006 > Da história da guerra colonial (com a devida vénia...).

Na imagem, uma mensagem enviada por um Capitão do Exército Colonial para o seu Posto de Comando, durante a famosa “Operação Mar Verde” (*), dando conta da deserção de uma companhia de comandos africanos (1).



(*) – Invasão da Guiné-Conacry em Novembro de 1970, arquitectada e comandada por Alpoím Calvão, com o patrocínio de Marcelo Caetano, Spínola e PIDE. A operação destinava-se a liquidar Amílcar Cabral e toda a direcção do PAIGC, assassinar o Presidente Sekou Touré, substituir o governo da Guiné-Conacry por um “governo amigo dos colonialistas portugueses” e libertar os prisioneiros militares portugueses das cadeias do PAIGC. Só o último objectivo foi alcançado.

Nas “baixas do lado português”, contabiliza-se, além de alguns mortos e feridos, a deserção de uma companhia (1) de comandos coloniais-africanos (que seriam, posteriormente, todos liquidados) e a condenação veemente e barulhenta da comunidade internacional que isolou ainda mais o colonialismo português.

Até ao presente momento, o Estado Português ainda não pediu desculpas ou sequer reconheceu a realização desta invasão de um país estrangeiro e soberano. Também sobra como curiosidade misteriosa desta Operação o facto de os milhares de kalashnikov que armaram os invasores terem sido compradas pela PIDE à União Soviética através do comerciante de armas e cavaleiro tauromático Zoio.

A “Operação Mar Verde” está excelentemente descrita e analisada num livro do jornalista António Luís Marinho (de onde copiámos a mensagem na imagem).

João Tunes
__________

Nota de L.G.

(1) Julgo haver aqui um lapso do João: trata-se de um grupo de combate, comandado pelo tenente graduado Januário, e não propriamente de uma companhia inteira. A equipa Sierra era comandada pelo capitão-parquedista Lopes Morais, e tinha como missão a destruição dos Migs russos, estaccionados no aeroporto de Conacri.

Vd. entre outros os seguintes posts:

11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)

4 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXVII: Antologia (12): Op Mar Verde (Alpoím Galvão)

Guiné 63/74 - P1087: Rosa Gonçalves, o alentejano (CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada, 1972) (Quim Pinheiro)


1. Texto e foto do Joaquim Pinheiro da Silva (CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada/Catió, 1972/74):

Amigo Luís, boa tarde!

Fiquei muito sensibilizado com a mensagem da Sra. Maria Clarinda, esposa de um ex-militar CCAÇ 3566, infelizmente já falecido (1).

Peço o favor, se possvel, de publicar a foto anexa, onde aparece o Antonio Joaquim Rosa Gonçalves, mais conhecido pelo Rosa, o alentejano.

Esta foto esta tirada num patrulhamento rotineiro pelas matas de Empada, no ano de 1972: à direita, estou, o Joaquim Pinheiro, o brasileiro; e à esquerda, o Rosa, carinhosamente chamado de alentejano.

Antecipadamente agradeço com um abraço
Joaquim Pinheiro da Silva


2. Resposta da viúva do Rosa Gonçalves ao recente convite para integrar a nossa tertúlia:

Será para mim um prazer fazer parte do vosso blogue, mas de momento não me é
possível enviar fotos do meu marido (António Joaquim Rosa Gonçalves) para
que todos vocês se recordem melhor dele.

Tudo o que faço - podem crer - é porque tenho a certez de que se ele estivesse entre nós assim o faria! E mais uma vez lhes digo, o vosso colega (Rosa Gonçalves), deixou-me um gosto muito grande por todos vocês, os amigos da tropa como ele se referia a todos.

Sinto que o devo de fazer, os anos passam e as lembranças do tempo que passamos sem estarmos juntos porque o dever tinha de ser cumprido, é hoje recompensado com boas e más recordações... Sinto ao mesmo tempo alegria
envolta com muita tristeza junta... Mas algo me diz que em memória dele o devo fazer.

Bem hajam a todos OS METRALHAS
Maria Clarinda (Lina) e Venâncio Gonçalves
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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1054: Agradecimento da viúva do Rosa Gonçalves (CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada/Catió, 1972/74)

segunda-feira, 18 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1086: Viva o Fernandes, o 'soldado desconhecido de Mansoa' (Beja Santos)

Mensagem do Beja Santos (ex-alf mil, Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), sob o título Saudação à Vida:

Camarada Aires Ferreira, recebi com muita emoção o teu esclarecimento (1). A guerra não anda longe da vida: tudo pode acontecer, do mais insólito ao transcendente. Pouco antes de me deitar e de me encomendar a Deus, recordando todos aqueles que já partiram, faço um exercício de rememoração dos primeiros meses em Missirá, de modo a que a Operação Macaréu à Vista seja um folhetim documental digno da nossa tertúlia.

Acredita que o Fernandes veio mesmo por inspiração, já que nos acontecimentos de Missirá ele teve uma passagem fugaz. Creio que faríamos justiça enviando-lhe este texto, e tu farás o favor de lhe dizer que estou cheio de alegria sabendo que ele vive. Vê lá se consegues enviar ao Luís uma fotografia do nosso Atleta, para embelezar o album de memórias.

Aguardo na maior expectativa que nos expliques como é que o Fernandes foi apanhado à mão, como é que vocês reagiram ao seu desaparecimento e ao seu aparecimento, que versão deu ele dos acontecimentos...

Fico inteiramente ao teu dispor para o que der e vier,

Tigre [de Missirá].

_______

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1075: O soldado desconhecido de Mansoa (Aires Ferreira, CCAÇ 1686, BCAÇ 1912)

(...) "O soldado Fernandes pertenceu à minha Companhia, a CCAÇ 1686. Tinha a alcunha de Atleta e foi sem dúvida o soldado mais conhecido de Mansoa.

"Pelas suas características psíquicas, não devia ter sido apurado para todo o serviço militar e muito menos ter sido enviado para a Guiné integrado numa companhia de Caçadores. Mas foi. Era um homem muito estranho, afável, disciplinado e tinha inteligência embora não parecesse.

"Fez a guerra à sua maneira, ganhou um estatuto especial na hierarquia e teve sorte, muita sorte. Fez todas as Operações, fazia questão de ir sempre na frente e era bom a combater, um pouco temerário, por vezes.

"Nos almoços [de convívio do BCAÇ 1912] que fazemos todos os anos, o Atleta é sempre o primeiro a chegar, seja onde for o almoço, de bicicleta, a pé, à boleia, nunca falta.

"É hoje uma espécie de mascote do Batalhão e fazemos sempre uma colecta que rende algumas centenas de Euros que lhe são entregues, o que o faz muito feliz, pelo menos por uns dias" (...).

Guiné 63/74 - P1085: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (5): O improvisado fato de banho do Alferes Parrot na piscina do QG

Guiné-Bissau > Bissau > 1996 > A antiga piscina da antiga messe de oficiais do Quartel General (QC), entretanto transformado no Hotel 24 de Setembro. No tempo do Rui Felício (1968/70), a messe de oficiais do QG era conhecida como a Vala Comum... Quem ia passar uns dias a Bissau e tinha dinheiro, instalava-se no Grand Hotel...

Foto: © Humberto Reis (2005)


Guiné > Bissau > 1969 > O Paulo Raposo, alferes miliciano da CCAÇ 2405, camarada e amigo do Rui Felício, com o seu pai, de férias, no Grand Hotel.
Foto: © Paulo Raposo (2006)
Mais uma estória de Dulombi, da autoria do Rui Felício, ex-Alf Mil, CCAÇ 2405 (Mansoa, Galomaroi e Dulombi, 1968/70)

Meu Caro Luis Graça,

Em primeiro lugar, mantém presente o dia 14/10 na Ameira!

Em segundo, peço-te, se tal for possivel, que no teu blogue alguém possa dizer algo sobre o paradeiro do Parrot, que andou por Mafra em 1967 e de quem perdi completamente o rasto.

Depois disso foi para a Guiné e depois nada mais soube àcerca do que foi a sua vida.

Insiro abaixo uma história passada com ele na Guiné que divulgarás se para isso lhe achares interesse.

Um abraço do
Rui Felicio


A PISCINA
( onde se aborda o grave problema de não existir fato de banho no espólio do fardamento militar ...)

No começo, em Mafra...

Já de si, o apelido originário da ascendência estrangeira da sua Família, o tornava notado.
A sua invulgar estatura de quase dois metros, os olhos salientes, o cabelo arruivado, a pele branca e sardenta e o corpo magro, longilíneo e desengonçado, completavam a estranha figura propicia ao sorriso e aos mais díspares comentários.

Falo do Parrot, que conheci em Mafra e que fez parte do meu pelotão do 1º Ciclo do COM da incorporação de Abril de 1967.

Não era fácil, porém, tirar o Parrot da sua fleumática postura de não te rales, por mais provocações que se lhe tentassem fazer. Ele era a calma personificada, e senhor de uma inteligência fora do comum.

Não eram portanto as piadas sem graça que alguns lhe dirigiam que o faziam reagir ou mostrar desagrado. Mostrava-se superior a essas coisas...

Era fácil perceber que colmatava os sacrifícios da vida militar, para a qual claramente não nascera, substituindo-os por insondáveis pensamentos que lhe davam o ar de quem pairava acima dos comesinhos problemas de quase todos nós.

Fez quase toda a recruta em Mafra de fato de treino e sapatilhas, porque só já muito perto do juramento de bandeira é que lhe foi conseguido fardamento adequado às suas medidas. Enquanto não teve fardamento, estava autorizado a sair do quartel à civil o que lhe proporcionou algumas vantagens em relação ao resto dos cerca de 800 cadetes que como ele ali recebiam instrução militar.

De facto, enquanto todos nós, para sairmos do quartel, tínhamos de nos sujeitar a formatura de saída e à revista, com os inerentes riscos de sermos chumbados nessa revista, o cadete Parrot saía calmamente à civil do quartel pela porta de armas, como se de um oficial se tratasse. Aliás, por mais de uma vez o sentinela da porta de armas, incapaz de conhecer todos os muitos oficiais que serviam no Regimento, tomava o Parrot como mais um e saudava-o com as honras militares que supunha lhe serem devidas!

Perdi completamente o rasto do Parrot desde que saí da tropa, o que lamento... Assim como já o havia perdido antes, quando depois da recruta ele foi fazer a especialidade não sei em que outra Escola Militar.

O reencontro, em Bissau...

Reencontrei-o uns dois anos mais tarde em Bissau, onde ambos pernoitávamos na Vala Comum do Quartel General.

A Vala Comum, para quem não se recorde, era uma espécie de caserna situada no QG, onde dormiam os oficiais milicianos que por algum motivo vinham do mato até Bissau, durante alguns dias.

Das poucas vezes que consegui pretexto para vir a Bissau, esquecendo por alguns dias a monotonia e os perigos do mato, fiquei quase sempre no Grand Hotel, a minhas expensas, mas desta vez em que reencontrei o Parrot, tinha decidido ficar na Vala Comum.

Não lhe perguntei o que fazia em Bissau, porque era óbvio que a razão oficial para ali estar não passaria de mero pretexto, tal como o meu, para fugir por uns dias à chatice do mato. E nem sequer lhe perguntei nada sobre o que tinha sido a sua vida militar desde que saiu de Mafra, porque quem conhecesse o Parrot sabia que ele não gostaria de falar disso. Preferia falar de coisas ligeiras, de preferência sem qualquer ligação à tropa.

Ao lado da Vala Comum, existia a piscina do Quartel General que o Parrot frequentava pelo meio da manhã, depois de acordar. Como não tinha calções de banho, enrolava uma camisa nº 3 da sua farda de trabalho, atava as mangas em volta da cintura e dirigia-se para a prancha de saltos mais alta da piscina, de onde se despenhava em mergulho desengonçado para a água da piscina. Repetia isto duas ou três vezes e regressava à Vala Comum, para tomar um duche, vestir-se e sair para dar uma volta pela cidade.

Acontece que as esposas dos oficiais do QG que viviam com os maridos nas instalações do quartel, como não tivessem nada que fazer, estacionavam ora no Bar de Oficiais ora na Piscina, tentando matar o tempo com conversas e mexericos. E, qual púdicas e ofendidas damas da falsa alta sociedade militar guineense, decidiram queixar-se ao Tenente Coronel que geria a Piscina, pelo comportamento, a seu ver incorrecto e imoral, do Sr. Alferes Parrot!

O motivo da queixa assentava no facto de o Parrot não só não se apresentar decentemente ataviado para frequentar a piscina, mas também e principalmente porque ao voar da prancha de saltos para a água, permitir que a camisa nº 3 que lhe servia de fato de banho esvoaçasse ao vento, deixando exposto aos olhares das senhoras o seu sexo pendurado e desnudo.

Na verdade, o Parrot achava que não valia a pena usar cuecas por baixo da camisa nº 3!
O Tenente Coronel, contra a sua vontade, mas pressionado pelas esposas dos seus camaradas, não teve outro remédio senão mandar chamar o Parrot.

Esclareço que os oficiais colocados no QG, na sua maioria, nunca tinham estado no mato e evitavam entrar em conflito com os alferes que de lá vinham esporadicamente a Bissau, porque receavam as reacções indisciplinadas de alguns que, apanhados do clima, achavam que já nada tinham a perder.

Por isso, o Tenente Coronel rodeou-se de todos os cuidados, mediu bem as palavras e abordou cautelosamente o Parrot, dizendo-lhe que as senhoras que frequentavam a piscina se sentiam incomodadas pelo facto dele usar a camisa nº 3 da farda de trabalho quando ia mergulhar.
Pedia-lhe por isso, para evitar problemas, que não a usasse quando quisesse ir para a piscina.
O Parrot, com o seu habitual ar desprendido acatou a sugestão do Tenente Coronel e sossegou-o, prometendo-lhe que tal não voltaria a suceder.

Parecia tudo resolvido. Mas não estava...

O Parrot, logo na manhã seguinte, voltou à piscina, com a camisa enrolada à cintura a fazer de fato de banho, subiu as escadas da prancha de saltos e mergulhou como habitualmente!
À semelhança dos dias anteriores, repetiu os saltos duas ou três vezes e regressou impávido e molhado à Vala Comum.

Comportamento atípico este! O Parrot era desprendido mas não era um provocador, e muito menos propositadamente indisciplinado! Posso garantir! Inexplicável portanto o seu comportamento!

O Tenente Coronel também sabia disso e não compreendia... Por isso, chamou de novo o Parrot e pediu-lhe que se justificasse, que lhe explicasse porque quebrara a promessa do dia anterior...
O Parrot, com ar cândido e aparentando grande admiração por ter sido de novo chamado ao Tenente Coronel, explicou:
- Oh meu Coronel, acho que houve aqui uma deficiência de comunicação. Quando o Senhor ontem me disse para eu não voltar a usar a camisa nº 3, entendi que a não considerava adequada por fazer parte do fardamento de trabalho...E acatei... Compreendi que queria que, em vez dessa, eu usasse antes a camisa do fardamento de saída, ou seja, a camisa nº 2, da farda de saída, atendendo a que se tratava de um local onde se justifica alguma etiqueta na apresentação... E foi o que fiz!!!! - culminou o Parrot, com o ar mais celestial do mundo - A camisa que hoje usei era uma camisa nº 2, meu Coronel!

Rui Felício
Ex-Alf Mil Inf
CCAÇ 2405

___________

Nota de L.G.

(1) Vd. última estória: post de 5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1046: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (4): a portuguesíssima arte do desenrascanço

Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

Guiné > Zona leste > Gabu > Canjadude > 1974 > O Fur Mil Enf Carvalho, da CCAÇ 5, com um guerrilheiro do PAIGC, equipado a rigor e empunhando a mítica espingarda-metralhadora Kalash...

Foto: ©
João Carvalho (2006)

Texto do Vitor Junqueira, ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72) (1).

Caro Luís Graça,

Entre o material que diariamente me chega via e-mail, o que mais aprecio é sem dúvida aquele que resulta da produção dos nossos camaradas tertulianos. Li com muito gosto aquela crónica do Beja Santos acerca do soldado desconhecido de Mansoa (2). Esta história teve o condão de limpar algumas teias de aranha de uma carunchosa prateleira da minha memória, onde havia um registo já velhinho de um episódio em que um soldado desconhecido, mas este do lado de lá, resolveu apresentar-se à minha companhia.

Estávamos para aí a meio da comissão e as coisas até corriam bem: praticamente sem baixas e, com uma razoável liberdade de movimentos numa zona em que os que nos antecederam, passaram o cabo das tormentas.

Com a notável excepção dos oficiais, sargentos e alguns especialistas ( transmissões, cozinheiros, mecânicos e pouco mais ), os homens da CCAÇ 2753 eram quase todos açoreanos, que se tinham oferecido como voluntários para servir naquela "sagrada parcela do Território Nacional" chamada Guiné. Que me perdoem os mais sensíveis, mas era assim que se dizia!

Diplomados pelo B.I.I.17 (3), então aquartelado na fortaleza de S. João Baptista no sopé do Monte Brasil, em Angra do Heroísmo com uma suadíssima recruta e temerária especialidade (*), os Barões rumam ao Continente, chegando a Lisboa mesmo a tempo de prestar as honras militares ao Dr. Botas que entretanto se aboletara numa câmara, dita ardente, no Mosteiro dos Jerónimos (4).

Nas redondezas da capital do Império (Serra da Carregueira, Amadora, Pragal), fazem-se mais uns cursos e ensaiam-se umas guerras da treta, à espera do dia do embarque que nunca mais chega.

É aqui que a companhia recebe um reforço de peso: o soldado Lima. Nortenho, vindo dos lados de V. N. Gaia, era baixote, gago e tinha o hábito de deixar descair a cabeça para o lado quando alguém o abordava (défice auditivo?). Alegre, simpático, sorria com facilidade. No olhar, um brilho entre o matreiro e o irónico.Típico rato de celeiro!

O nosso pronto Lima conseguiu uma proeza digna de registo: manteve-se em completo anonimato, a bem dizer incógnito, sem que ninguém desse por ele até ao momento em que a Companhia foi colocada em quadrícula. Claro que se sabia que ele estava lá, fazia parte da unidade e o seu nome até constava na papelada da secretaria ...

Mas ao certo ninguém sabia por onde é que andava o Lima, de que pelotão fazia parte, se estava escalado para algum serviço... nada! Até que um dia foi obrigado a dar à costa.

Tinha havido uma rebelião que opôs praças (manjacos) da CAÇ 17 aos seus alferes e furriéis. O general Spínola ordenou a imediata retirada desta companhia que se encontrava no Bironque, um ponto no mapa entre Mansabá e Farim, para Bula, sendo substituída no terreno pela CCAÇ 2753 que era a única força disponível naquele momento em Bissau.

Trasladados à pressa e sem aviso prévio, lá fomos malhar com os ossos num buraco no meio de uma belíssima mata, para as bandas do Oio deixando para trás aquela vidinha boa, com qualidade, quase requinte em Bissau. E aí tornou-se impossível ao Lima continuar a escapulir-se. Sorte malvada!

Para surpresa do maralhal, fica-se então a saber que o Lima é... Básico, funcionalmente falando. Passa portanto a desempenhar tarefas adequadas à sua simplicidade de cabeça: racha lenha, ajuda na cozinha e nas limpezas, faz recados e claro está, enquanto os espertos embrulham no mato, ele bate umas sornas.

Do Bironque seguimos umas semanas depois para Madina Fula e mais tarde atingimos o términus desta peregrinação em Saliquinhedim (K 3). Durante este período não tínhamos dado grandes motivos de regozijo ao nossos camaradas do PAIGC pelo que era mais do que natural que não tivessem grande apreço pela presença da Companhia dos Açoreanos na região.

É aqui que entronca a história deste outro soldado desconhecido. Estamos então no K 3 e são cerca das cinco da tarde. O cozinheiro aperta com o Lima, vocifera, pragueja, berra que nem um danado. O motivo é este: quer ultimar o jantar e o lume debaixo do caldeirão dos feijões está a ir-se abaixo por falta de combustível. O pessoal já tomou o seu banhito balanta e está a anoitecer. É preciso comer antes de se fazer escuro como mandam as normas, de maneira a que quando começar a chover a bernarda, já todos estejam nos seu postos. O aquartelamento é atravessado a meio, no sentido norte - sul, por uma estrada asfaltada acabada de construir.

Junto ao cavalo de frisa da entrada sul está um monte de lenha e o Básico tenta abnegadamente transformar aqueles cibos em cavacas.Transpira, resmunga, ofega, está exausto.Talvez para retomar o fôlego, levanta a cabeça e avista a cerca de uma centena de metros do arame farpado, caminhando calmamente em direcção a ele, um militar (usava camuflado e estava armado)! Era negro, portanto só podia ser do IN já que entre os nossos não havia nenhum africano. Além disso, o tipo de arma e a maneira como ele a trazia cruzada sobre o peito, desvaneceram-lhe quaisquer dúvidas.

A sua agilidade mental tomou-lhe conta dos gestos. Sem qualquer hesitação, empunha a ferramenta e corre na direcção do militar a quem ordena que levante os braços. O homem do PAIGC, com Kalashnikov carregada, bala na câmara, e quatro carregadores pendurados no cinturão obedece prontamente.

Entretanto alguém deu o alarme e, à parada até então quase deserta, começa a afluir o pessoal que se preparava para o tacho. A cena deixa-os estupefactos. De machado em riste apontado à cabeça do elemento capturado e caminhando à sua retaguarda, o soldado Lima trespassa aquela espécie de porta de armas com pose de general. Dirige-se ao comandante da companhia e diz-lhe sem gaguejar:
- Meu capitão, fiz este prisioneiro!

Entre o receoso e o incrédulo, o capitão mandou desarmar o prisioneiro e nomeou quem deveria ficar responsável pela sua vigilância. Com grandes dificuldades de comunicação, reais ou de conveniência, lá foi explicando que desencantado com a vida que levava no mato resolvera entregar-se à tropa portuguesa.

Seguiu um Sitrep para o estado Maior a contar o sucedido e, até ser evacuado uns dois dias depois, o recém chegado foi tratado como uma vedeta. Comeu e bebeu à la gardère, tabaqueou quanto quis e até mamou umas bujecas à pala do pagode. Recebeu palmadas de amizade nas costas, riu com as graçolas do tugas e passeou-se livremente por todo o perímetro interno do arame farpado, casernas, paióis e espaldões incluídos. Afinal ele agora era um dos nossos e portanto, merecedor de amizade e depositário da nossa confiança.

Algum tempo depois chegam notícias de Bissau. O nosso amigo está a colaborar bem nos interrogatórios e tem fornecido informações de grande interesse para as NT. Mais tarde: o elemento do IN que se entregou no K 3 foi transferido para a Psico para um período de reeducação e observação, após o que será restituído à liberdade.

Pouco depois, mais notícias: o prisioneiro fugiu! E finalmente, um mês ou dois mais tarde: o prisioneiro foi (re)capturado em combate na região do Morés. Afinal é capitão das tropas do lado de lá, terá recebido formação no exterior e foi designado para esta missão de pura espionagem, sendo essa a verdadeira razão pela qual se deixou capturar. Manga de ronco!

Tansos? Ingénuos? Que importa isso agora!? Siga a marinha.

Um abraço do Vitor Junqueira
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(*) Tivemos mais baixas na especialidade do que no TO [da Guiné]!
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Notas de L.G.

(1) Vd. post anterior, P1083, assinado também pelo Vitor Junqueira,

(2) Vd. post de 14 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido

(3) Referência à morte do Dr. António de Oliveira Salazar, em 27 de Julho de 1970.

(4) Batalhão Independente de Infantaria 17

(5) Vd. primeiro poste da série Histórias de Vitor Junqueira de 18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)

Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)


Texto do Vitor Junqueira, ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), já aqui reproduzido em post de 4 de Agosto de 2005 (Na altura não tínhamos as cartas que temos hoje, em linha)(1). Actualmente o Vitor é médico e vive em Pombal.



(...) Estávamos nos primeiros dias do mês de Fevereiro de 1971. A nossa Companhia era uma das Unidades que compunham o COP 6, cujo comando estava sediado em Mansabá. Fazia parte do Agrupamento T, tendo-lhe sido atribuída a missão (transcrevo dos registos oficiais, que constam da História da Unidade e Feitos e Factos da CCAÇ 2753):

"Assegurar a protecção dos trabalhos da estrada Mansabá - Farim, em ordem a garantir um ritmo acelerado de construção e evitar as flagelações do IN sobre os meios técnicos empenhados.

"Na segurança dos trabalhos as forças adoptam o dispositivo com as seguintes
missões:

"- Montam a segurança próxima dos trabalhos em ordem a garantir a interdição de itinerários de aproximação, eliminando a possibilidade do IN exercer acções de flagelação sobre a zona dos trabalhos, para o que monta emboscadas nas possíveis bases de fogos e executam patrulhamentos na ZA atribuída.

"-Garantem a segurança imediata dos trabalhadores e equipamentos, detectando ou aniquilando quaisquer elementos IN infiltrados através do dispositivo próximo, para o que realiza patrulhamentos frequentes nas imediações da zona de trabalhos e ocupa posições sobre os eixos da mais possível infiltração.

"- Realizam acções ofensivas sobre as áreas fulcrais do Morés, Canjaja e Biribão em ordem a anular a pressão do IN sobre o eixo Mansabá - Farim".

(...) Há anos que nenhuma força militar portuguesa tivera condições para se movimentar naquele itinerário, a partir de e para norte de Mansabá até ao K3. A região estava agora a ser (re)conquistada diariamente, palmo a palmo, metro a metro. Por sua vez, o IN tentava a todo o custo impedir ou retardar o avanço dos trabalhos, pois aquela era uma via estratégica para o desenvolvimento das suas acções. Nela desaguavam os corredores do Sitató e Lamel, que lhe permitiam uma ligação fácil e rápida entre as bases junto à fronteira sul do Senegal e o coração da Guiné (Oio, Morés e região dos Sares).

As frequentes escaramuças consistiam em emboscadas e flagelações sobre a frente de trabalhos, com baixas entre trabalhadores e danos nas máquinas. Após o pôr do Sol, invariavelmente pela hora do jantar, era preciso estar atento ao som inconfundível das saídas dos CSR [Canhão sem recuo], MORT 82 e RPG que, vindo da orla mata, anunciava uma saraivada de balas e estilhaços a rasgar o céu por cima do aquartelamento.

Localizado num ponto do mapa, onde antes da guerra existia uma pequena povoação, o Destacamento Temporário do Bironque foi ocupado pela CCAÇ 2753 em 1 de Dezembro de 1970, que aí veio substituir a CCAÇ 17 (2).

Dias antes, tinha havido uma espécie de motim com cenas de tiros entre os oficiais e sargentos daquela Companhia e os seus elementos nativos, de etnia maioritariamente manjaca. Estes, fartos de bordoada, recusaram-se a sair para o mato, alegando que, a terem levar porrada forte e feia, preferiam apanhá-la defendendo o seu Chão [cujo coração era Canchungo ou Teixeira Pinto]. O gen Spínola resolveu o contencioso através de umas despromoções e da transferência da Companhia para Bula.

De Bissau, avançam os Barões da CCAÇ 2753 até então afecta ao COMBIS como força de reserva. Passam assim da noite para o dia de uma espécie de tropa VIP, bem alojada, bem alimentada e com tarefas aligeiradas, ao grau mais elementar de tropa- macaca. Cheirando ainda a periquito, sem qualquer treino operacional e, não tendo beneficiado de rodagem por sobreposição com tropas mais batidas, vêem-se entregues à bicharada, obrigados a aprender à própria custa. Certo é que provaram ser dignos do lema que orgulhosamente ostentavam nos crachats, Noblessse Oblige [Nobreza Obriga]!

Acompanhando a progressão dos trabalhos, a Companhia transfere-se com armas e bagagens em 13 de Janeiro de 1971 para um novo Destacamento mais a norte, na zona de Madina Fula, a uns 8 Km de Farim. Nestes Destacamentos Temporários não existia qualquer construção ou barraca, apenas algumas tendas de lona, insuportáveis durante o dia devido ao calor. À noite não ofereciam a quem estivesse no seu interior, qualquer protecção contra balas ou estilhaços, pelo que toda a gente preferia pernoitar nos abrigos. Tratava-se em rigor de um acampamento que as poderosas máquinas Caterpillar ao serviço da empresa construtora, edificavam do seguinte modo:

(i) Sobre uma das faixas desmatadas de cerca de 100 metros de largura que se estendiam de cada lado da estrada em construção (para evitar o ataque próximo às nossas colunas), erguiam quatro barreiras de terra com dois metros de altura, de maneira a formar um quadrado com mais ou menos 50 metros de lado;

(ii) No topo destas barreiras, escavavam-se então os espaldões para as armas pesadas, trincheiras e simples covas que abrigavam um ou dois homens;

(iii) Era a partir deste arremedo de fortim que se montava a vigilância e defesa, tanto do pessoal como das máquinas que no final do dia de trabalho, recolhiam ao seu interior. Como vizinhança , muita força de mosquitos e matacanhas!

Logo nos primeiros passeios pela natureza, tivemos a visão clara do inferno que teria sido a vida dos camaradas que nos precederam. Numa região enxameada por bases do PAIGC localizadas nas regiões de (e volto a citar dos registos) Cã Quebo, Santambato, Cambajú, Iracunda, Mansodé, Cubonje, Canjaja, Biribão, Ionfarim, Uália, Mansomine, Binta, Queré, Banjara e Manhau, qualquer movimento nosso era acompanhado por acção semelhante por parte do IN, tornando-se o contacto inevitável.

Em alguns pontos, nomeadamente ao longo do que antes tinham sido as bermas e valetas da estrada, as cápsulas de munições de armas ligeiras, apanhavam-se aos milhares, nalguns sítios literalmente à pazada. No entanto, o sortido abrangia um pouco de tudo, desde velhas minas anti-pessoal com a tampa de madeira carcomida pela formiga mas ainda capazes de nos pregar uns sustos, até granadas anti-tanque, algumas intactas, bojudas, matulonas que se chamavam (?) Panzerovkas.

Havia armadilhas na estrada e nas zonas de mato contíguas. Por ali confiscamos também em operações subsequentes, variadas peças do arsenal do IN que incluía itens antigos, como obsoletos canhangulos, novíssimas granadas de RPG 2 e 7 e respectivos lançadores, Mort 82, munições de Browning 20 mm e os tripés das mesmas (utilizadas então como anti-aéreas), muitas pistolas de várias proveniências, PPSH, Degtariev e kalashnikov, Espingardas M44 americanas (!). E ainda, Met Pesadas Breda (2) e Dreyses (1), por certo gamadas ao Exército Português. Também faziam parte deste catálogo um par de lindíssimas espingardas Mauser, com ferragens cromadas e, gravado sobre as câmaras, o sêlo da República Portuguesa. A quem teriam pertencido? Quem terá ficado com elas?

O dia começava bem cedo para o pessoal engajado nas operações de segurança próxima, e não só! Ainda não eram quatro da matina e já uma das sentinelas tinha obrigado o russo (cozinheiro) e o básico, seu ajudante, a porem-se de pé a fim de preparar o pequeno almoço e a merenda para o 3º Gr Comb que iria emboscar em Farim 2 C6 97.

Os restantes, guarnição e pessoal da segurança imediata, comiam mais tarde, por volta das seis e meia ou sete horas. Junto à banca que servia de refeitório, a parelha dos tachos aguardava impaciente (queriam voltar para o choco!) os homens que iam assomando em pequenos grupos para o dejejum. Apresentavam-se praticamente em estado de prontidão. Devidamente equipados. Emoldurando-lhes os cachaços, cachos de granadas de mort 60 e grinaldas de munições de bazuca 6 cm, 10.7, Instalazzas, dilagramas e outro material de efeito pirotécnico. GMD [granadas de mão defensivas] penduradas em tudo o que era grampo ou presilha e, naturalmente, quilómetros de fitas para as HK.

Todo o material se encontrava limpo e bem cuidado. Com as canhotas então, tinham desvelos amorosos, tratando-as tão bem ou melhor do que se fossem namoradas!Suspensos do cinturão, um ou dois cantis de água e todos os carregadores de G3 próprios e alheios a que pudessem deitar mão. Sem contar com aquele sistema inventado pelo Zé soldado em momentos de aperto, que consistia em embutir um carregador na arma, ficando outro amarrado a este, preso em cruz com fita adesiva. E não se disse ataviados, como impõe a gíria militar.

Porque fardas era coisa que já não existia havia tempo, tinham ido à vida. Mergulhos forçados nas bolanhas, lavagens frequentes com pouco sabão e muita paulada aliadas às carícias de gravetos e espinhos do mato, tinham decretado o seu desgaste precoce. Por esta altura, iam-se combinando os restos dos camuflados com peças n.º 1, 2 e 3. Botas de cabedal bambas com várias comissões no coiro, umas já sem rasto, outras com ventiladores nas biqueiras, alternavam com as de lona a dar as últimas e chanatos adquiridos pelos próprios. Já então era a crise!

Vitor Junqueira

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 4 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXV: Informação & propaganda: de que lado estava a verdade ? (2)

(2) A história da unidade a que pertenceu o nosso camarada Carlos Vinhal, a madeirense CART 2732, cruza-se com a da CCAÇ 2753: ambas pertenceram ao COP 6 (Mansabá), quando estiveram a fazer segurança à construção da estratégica estrada Mansabá-Farim:

Vd. posts de

21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P890: Uma mina no Bironque (Carlos Vinhal)

(...) "Ao fim da tarde do dia 16 de Julho de 1971 o meu pelotão, que estava de piquete, ia fazer uma coluna auto ao K3 para levar correio à CCAÇ 2753. Aparentemente tratava-se de mais uma normalíssima coluna, que por se tratar de uma distância tão curta, se faria numa hora, ir e vir" (...)

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXI: Breve historial da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)

(...) "Em 11 de Novembro de 1970 a CART 2732 deixou de pertencer ao BCAÇ 2885, passando a estar integrada no Comando Operacional n.º 6, reactivado pela necessidade da construção da estrada Mansabá-Farim. O COP6 ficou instalado em Mansabá e a CART apoiou, fornecendo todos os meios logísticos necessários à sua operacionalidade.

(...) "No dia 8 de Fevereiro de 1972 começou a rendição pela CCAÇ 2753, pelo que 2 Gr Comb da CART 2732 partiram para Bissau.

domingo, 17 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1082: Notícias da CCAÇ 2402 e do BCAÇ 2851 (Raul Albino)



O BCAÇ 2851 e o BCAÇ 2852 viajaram juntos, em finais de Julho de 1968, no Uíge, de Lisboa a Bissau.

N/M Uíge > Foto da excelente página Navios Mercantes Portugueses (com a devida vénia)...

1. Reproduzo aqui a correspondência trocada recentemente entre o nosso camarada Beja Santos e um novo elemento que pede para entrar na nossa tertúlia, o Raul Albino.

1.1. E-mail do Raul Albino, datado de 23 de Agosto:

Vejo que já voltaste de férias, espero que bem recuperado.

Aproveito para agradecer todo o esforço que dispendeste na organização do Almoço-Convívio de Figueiró dos Vinhos. Na minha opinião e na dos militares e seus familiares com quem falei, todos são unânimes em considerar este evento o mais interessante e bem conseguido de todos os que até agora foram organizados. Por isso os meus parabéns.

Tenho problemas nos caracteres especiais incluídos nos textos do blogue, que me dificultam a sua leitura completa. Sabes como posso ultrapassar este problema?

Outra ajuda, podes-me dar o endereço de email do Luís Graça? Para que alguma coisa venha a ser colocada no blogue, basta enviar-lhe correio pelo email ou tem de ser de outra forma qualquer?

Um abraço amigo,
Raul Albino

1.2. Resposta do Beja Santos:

Caro Raúl, obrigado pelas tuas notícias. Ainda bem que toda a gente ficou contente com o encontro de Figueiró. Por favor, evitem reuniões em quartéis e discursos do Vargas para não termos uma atmosfera excessivamente militar. No conhecimento tens os contactos do Luis Graça, que seguramente providenciará as informações que pedes. Tanto quanto me é dado ler no blogue, pouco se sabe sobre as companhias do nosso batalhão. Assume as tuas responsabilidades, entra no blogue, apela a que toda a gente da CCAÇ 2402 ofereça materiais, como fotografias, postais, etc.
Sempre ao teu dispor, Mário Beja Santos

1.3. Outro e-mail do Beja Santos, de 23 de Agosto:

Caro Albino, só para te desejar saúde e confirmar que continuo activo no blogue Luis Graça e Camaradas da Guiné. Tu tinhas obrigação de dar uma perninha, depois do livro que coordenaste e pôr outras pessoas a colaborar.

Esta história só vai interessar aos nossos netos mas temos obrigações morais de não fazer desaparecer estupidamente a nossa memória.

Recebe um abraço do Mário Beja Santos.


2. Em 27 de Agosto de 2006, recebi o pedido formal do Raul para entrar na nossa tertúlia:

Através do Mário Beja Santos tive conhecimento do vosso blogue e ele convenceu-me a participar nele.

Esta primeira mensagem tem a finalidade de testar o endereço electrónico e dar-lhe os parabéns pela iniciativa. (...)
Como apresentação ligeira, fui Alf Mil Inf na CCAÇ 2402 do BCAÇ 2851, na Guiné entre 1968 e 1970 (1). Como primeiro pedido gostaria de saber se é possível enviarem-me um mapa do tipo dos que o vosso blogue contém, das localidades de Có, Mansabá e Olossato, que não encontrei na vossa lista já bem extensa.

Agradecia também uma explicação geral do vosso projecto e a forma mais adequada de participar. Os textos e/ou fotos deverão ser enviados para este endereço? Ou existe outra rotina de contacto?

Ao vosso dispor,
Raul Albino

PS - Aproveito para lhe pôr um problema: - quando tento visualizar os textos do vosso blogue que o Beja Santos me enviou, os caracteres especiais (ç, ã, á, atc.) não são convertidos e eu tenho dificuldade em ler os artigos. Pode-me dar alguma dica para eu resolver o assunto?

3. Resposta do editor do blogue, em 17 de Setembro de 2006:

Caro Raul:

(i) És bem vindo: o tratamento por tu serve para quebrar barreiras e distâncias, é o tratamento adequado entre velhos camaradas;

(ii) As poucas regras que temos constam da página específica sobre a tertúlia.

(iii) Se quiseres e puderes, manda-me duas fotos tuas (digitalizadas, em formato.jpg), uma do tempo da tropa e outra mais actual... E conta-nos a tua estória... Aqui tens os meus contactos e endereços... Tudo passa por mim, por enquanto (...).

(iv) O Beja Santos já me falou em ti...

(v) O problema técnico que tens na visualização do nosso blogue, vou estudá-lo ou aconselhar-me... para dar uma resposta correcta. Em princípio, o teu PC não reconhece os caracteres portugueses... Também podes pedir a opinião de um algum informático teu amigo... Para já tenta isto:

Tools > Internet Options > General > Languages > (Acrescenta) Portuguese (Portugal) [pt]

(vi) Temos mais uns tantos mapas / cartas para inserir... O problema é o tempo... Tem paciência...

(vii) Desculpa só agora responder-te...

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Nota de L.G:

(1) O BCAÇ 2851 partou para a Guiné no N/M Uíge, no final de Julho de 1968, juntamente com o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70):