quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2038: Os pára-quedistas no mítico Cantanhez: Operação Tigre Poderoso (I parte) (Victor Tavares, CCP 121 / BCP 12)

Guiné > Algures > O 1º Cabo Pára-quedista Tavares, da CCP 121/BCP 12 (1972/74). Sob a capa do duro e eficiente operacional, um grande homem, generoso e sensível, ontem como hoje...


Foto: © Victor Tavares (2007). Direitos reservados.


I parte do texto enviado em 2 de Julho de 2007 pelo nosso camarada Victor Tavares (ex-1º Cabo Pára-quedista, CCP 121/BCP 12, Brá, 1972/74). Fixação do texto e subtítulos, da responsabilidade do editor L.G.


Cantanhez > Operação Grande Empresa (Comando Chefe) / Operação Tigre Poderoso (BCP 12) > De 12 Dezembro de 1972 a 19 de Janeiro de 1973 (1)


Um grande aparato bélico para frustrar as intenções da ONU

Esta operação foi planeada e realizada na sequência da visita de uma delegação de observadores da ONU à região do Cantanhez, a qual o PAIGC considerava zona libertada. A existência de regiões libertadas era condição essencial, no âmbito neste órgão internacional, para que a Guiné viesse a ser reconhecidA tornasse como estado independente.

Com o tempo de permanência no Cantanhez, fomo-nos apercebendo que na realidade o PAIGC tinha uma forte componente militar na zona e nas regiões próximas (Bedanda, Cabolol, Tombali, Guilje)e aonde dispunha de fortes unidades de reserva, em número bastante considerável.

Em resposta a este organismo internacional e para provar o contrário o Comando Chefe decidiu demonstrar que o controlo daquela região era nosso, o que na realidade era mentira.

A partir daqui só com uma grande intervenção militar é que se justificaria o domínio do Cantanhez, o que até aí não acontecia.

O Comando Chefe entrega então esta dura e epinhosa missão ao BCP - Batalão de Caçadores Pára-quedistsas nº 12, Comando e duas companhias, as CCP 121 e 123, tendo ainda sob o seu comando outras unidades terrestres, navais e aéreas.

No início desta grande operação e quando de Cufar nos deslocávamos helitransportados para o objectivo, o espectáculo visto do ar era impressionante: no rio, várias lanchas de desembarque, intercaladas com navios patrulhas e botes dos Fuzileiros que protegiam as embarcações; havia Sintex em grande quantidade; os aviões e os helicópteros uns iam para Cadique. outros para Caboxanque; os FIAT 91 bombardeavam os objectivos... Enfim, foi a operação mais espectacular e não menos perigosa, das muitas em que participei.

No mês de Novembro, antes do início desta Operação as Companhias de Pára-quedistas fizeram vários heliassaltos a objectivos nesta região, tendo tido alguns contactos de alguma dimensão que por vezes nos obrigavam a recorrer ao pedido de apoio aéreo do helicanhão. Capturámos então vário armamento e também um comandante de um grupo de artilharia do PAIGC, mais concretamente de canhão sem recuo, o qual veio a ser utilizado como guia para nos levar a alguns objectivos.

Ao tomar a decisão de reocupar o Cantanhez, o Comando Chefe quis dar a entender que as nossas forças controlavam toda a província, o que não era verdade. Tal como aqui, muitas outras zonas eram na realidade controladas pelos guerrilheiros do PAIGC. Quem, de resto, percorreu aquela Província nos vários sectores e zonas operacionais, sabe perfeitamente qual era a realidade.

Pouco se tem falado do Cantanhez, no entanto esta operação embora não empregando muitos efectivos militares na reocupação efectiva da região, foi em minha opinião a de maior envergadura realizada na Guiné e talvez em todas as nossas províncias na altura em guerra.

A par da amplitude da missão, e a sua muito longa duração, houve que ter em conta a complexidade da manobra, a força do Inimigo no terreno, as clareiras, as muitas linhas de água com imensas e dificílimas zonas de tarrafo nas quais tínhamos obrigatoriamente que passar.

Um desembarque desastroso em Cadique

Em Cufar antes de partir para Cadique, o primeiro bigrupo, e para Caboxanque, o segundo, fomos informados pelos nossos comandantes de pelotão que nesta operação iriam estar envolvidas outras forças alem dos Pára-quedistas e que as mesmas desembarcavam em três locais diferentes, Cadique, Cafine e Caboxanque. Nestes dois últimos os desembarques correram bem, as bolanhas que separavam o rio da orla da mata eram grandes e propícias à actuação do IN, o que felizmente não veio a acontecer, isto também derivado aos patrulhamentos que tínhamos aí executado.

Em Cadique o desembarque foi bem mais complicado, não houve resistência do IN porque já patrulhávamos há alguns dias aquelas zonas, mas o local escolhido para o efeito não foi o melhor, era bastante alagadiço e era também numa bolanha, onde apenas deu para descarregar o pessoal de uma companhia do exército. As viaturas e tractores da engenharia que iriam abrir caminho, logo que saíram das lanchas ficaram atoladas, o que veio a complicar bastante a manobra da acção planeada. O material só veio a ser desenterrado, com grande dificuldade, tendo atingido terreno seguro ao fim de três dias.

A CCP 123 no ataque a um quartel do PAIGC: à terceira foi de vez


Ao mesmo tempo desenrolava-se o ataque a um quartel do PAIGC, executado por uma Companhia de Pára-quedistas, a 123, aonde se encontravam os comandantes da Guerrilha daquele sector e estavam concentradas bastantes forças. Este quartel foi bombardeado pelos FIAT 91 e logo de seguida foi colocado um bigrupo helitransportado que foi ao assalto encontrando forte resistência dos ocupantes do quartel, e não tendo conseguido a sua ocupação nesta primeira tentativa. Por isso novo bombardeamento foi feito e nova tentativa fizeram os Pára-quedistas, mesmo assim ainda não foi desta que o assalto se concretizou.

Só após nova tentativa, a terceira, é que foi de vez, embora com as nossas forças já reforçadas por mais um grupo de combate que para ali foi deslocado. A luta para entrar neste quartel foi terrível: não fosse a coragem a determinação e a disciplina de fogo dos Pára-quedistas e poderia aqui acontecer uma enorme tragédia e uma grande derrota para as nossas forças e um revés enorme para o Comando Chefe que apregoava aquela zona como estando sobre o nosso domínio.

Aqui os Pára-quedistas sofreram um morto e vários feridos, incluindo o Comandante de companhia que só aceitou ser evacuado depois da tomada do aquartelamento se consolidar.

Esta acção foi uma dura machadada nas hostes do PAIGC naquela zona, tirando-lhe alguma margem de manobra e capacidade de actuação.

No entanto as forças que o PAIGC tinha em todo aquele sector eram em elevado número como se viria a confirmar durante o tempo em que nós lá permanecemos, atendendo à quantidade de contactos que viemos a ter durante os patrulhamentos diários que executávamos.

Eis o filme dos acontecimentos:

12 de dezembro de 1972:

A CCP 121 embarca na Base Aéra 12, em Bissalanca, em NordAtlas, com destino a Cufar.

Daqui partiu o primeiro bigrupo composto pelos primeiro e segundo pelotões. depois de recebermos informação sobre o tipo de acção e os moldes como iria ser desenvolvida no terreno. O destino do meu bigrupo era Cadique para onde fomos helitransportados em equipas de 5, sendo colocados em locais estratégicos isoladamente e batendo a zona indicada até ao ponto de reunião, local onde veio a nascer o destacamento.

Durante toda esta acção nenhuma das equipas teve contacto com o IN, apenas encontrámos população desarmada que conduzimos para o ponto de reunião, aonde foram interrogados pelos nossos guias – intérpretes.

Aqui neste local existiam várias Tabancas, a zona era aberta e dali partiam picadas em várias direcções, bastante utilizadas. Bem perto deste local os residentes tinham lavras onde semeavam os seus alimentos, milho, mandioca, mancarra e várias qualidades de hortaliça. Também aqui havia algumas bananeiras, mangueiras, a partir desta horta no sentido de Caboxanque existiam varias ruínas de grandes habitações que tudo indicava serem de grandes senhores que por lá passaram antes do abandono desta zona. Até a carcaça de um automóvel lá se encontrava, estacionada no meio de um arvoredo. Aqui as picadas eram algumas delas já bastante largas embora sem utilização a muito tempo.

Entretanto iniciámos um patrulhamento a nível de pelotão até junto a uma picada pedonal que dava para Jemberem e que era bastante utilizada , aonde emboscámos durante cerca de uma hora sem que o IN se tivesse revelado. Regressámos ao ponto de encontro e foram-nos dadas indicações das posições onde ficariam instaladas as secções e os dois pelotões. Foi aí que pernoitámos, sendo pedido o bombardeamento da zona pelos obuses de Cufar, para no dia seguinte se abrirem valas e descapinar a área mais próxima das nossas posições e tentarmos arranjar as melhores condições para podermos passar e sobreviver da melhor forma o tempo que nos estava destinado ali passar.

Quero também referir que o segundo bigrupo da CCP121 formados pelos terceiro e quarto pelotões, foi também colocado em Caboxanque com o mesmo tipo de missão.

13 de Dezembro de 1972

Patrulhamento feito pelo 2º Pelotão: a registar, que fizemos vários km ultrapassando a picada que dava para Jemberem, indo na direcção de Cadique Nalu e chegando até à bolanha que antecedia este lugar aonde nos emboscámos durante algum tempo, perto de uma picada que ladeava a bolanha e que era bastante utilizada. No entanto não referenciámos qualquer elemento IN, armado.Posto isto levantámos a emboscada fazendo o regresso pelo lado das Caxambas Balantas.

Passados pouco tempo, 20 a 30 minutos, o Pára-quedista Domingos que seguia na frente, apercebeu-se da aproximação de algo que não se estava a espera, por não ter sido ainda referenciado. Porque a mata era tremendamente densa, fazíamos a deslocação a corta mato, e netão deparámos com várias Tabancas ordenadas em círculo, e bem construídas.

Um revés para o PAIGC ... que continou a controlar o Cantanhez

Instalámo-nos,embrenhados na mata sem sermos detectados. Estaríamos a cerca de 50 metros deste objectivo. Formámos em linha, aguardando ordens para o assalto com uma frente de 10 a 12 homens. O movimento de pessoas era pequeno dentro do círculo referido. Foi dada ordem para avançarmos com redobradas cautelas, até sermos referenciados. A partir desse momento os elementos do grupo de assalto ultrapassaram todas as tabancas, instalando-se depois delas e montando segurança enquantp os restantes elementps passavam revista às moranças. Foram encontradas várias peças de fardamento de tipo cubano e algumas munições.

É de referir que aqui encontrámos varias pessoas, todas de idade avançada, que sendo interrogadas nada de importante disseram como já era habitual. Abandonámos então este local por uma de várias picadas que partiam deste aldeamento em várias direcções e que nos levaria até à margem de um rio antecedido por uma pequena bolanha.

A partir daqui continuávamos o patrulhamento por picada que nos levou até junto de uma pequena lavra, onde trabalhava uma mulher de 30 e poucos anos e dois meninos entre os 6 e os 10 anos. Foi interrogada pelo Baldé, nosso intérprete, o resultado foi o mesmo: Mi ca sibe, nunca sabiam de nada.

Entretanto à nossa esquerda, não muito distante, é dada uma rajada curta, seguida de mais uns tiros isolados. Eram os guerrilheiros que estavam por perto e que tentavam desviar-nos as atenções e ver se mudávamos de direcção perseguindo-os. Não foi o caso, seguimos embora ainda com mais atenção, prontos para o que desse e viesse.

Já há algum tempo ouvíamos uns batimentos em algo que nos metia espécie, batimentos contínuos e compassados, mais pareciam o bater de um relógio. Este som ia aumentando quanto mais nos aproximávamos.

Fizémos uma pequena paragem para passado pouco tempo continuarmos a marcha agora a corta mato, em zona de difícil progressão. Esta era a forma mais segura de chegar ao local de onde vinha o som que teimava em continuar cada vez mais intenso.

Além deste som começámos a ouvir o cacarejar de galinhas. Era sinal que perto existiriam Tabancas. Já perto destas mas ainda sem as ver, o som entoava cada vez com mais e mais intensidade, os homens da frente chegam a uma picada que se apresentava na nossa perpendicular.

Já a uma escassa centena de metros do objectivo transpusemos esta picada e logo de seguida outra nos aparece, parámos durante alguns minutos para receber ordens para fazer a entrada no aldeamento do qual não se sabia a dimensão.

É dada ordem para avançar em linha em direcção ao som, andados nesta direcção mais ou menos 50 metros conseguimos ver algumas das Tabancas. Parámos mais um pouco e o movimento de algumas pessoas era notório, faltava saber era se estavam armados.

Demorou pouco, pela nossa retaguarda por uma das picadas que davam acesso ao aldeamento aparece um grupo de Guerrilheiros que se estimavam na ordem de 15 a 20 - pelo menos 11 contei eu pelas as pernas, a mata era como digo atrás muito fechada , daí a dificuldade de ver todo o grupo que ainda por cima se deslocava paralelamente à nossa posição.

Segundos depois a escassos 20 metros de nós, o primeiro homem deste grupo abrandou o andamento e parou ao mesmo tempo que abriu fogo na nossa direcção , recebendo de imediato uma forte reacção dos Pára-quedistas que abateram este e mais dois guerrilheiros.

Depois de um contacto que durou vários minutos, capturámos 1 Degtyarev, 1 Kalachnikov, 2 RPG 2, várias fitas de transporte e 5 granadas de RPG 2, além de uma mochila com livros e documentos.

Durante este contacto os Guerrilheiros do PAIGC utilizaram vários RPG. É de referir que a utilização destas armas aqui nesta zona em maiores quantidades tinha a sua justificação. De facto, a mata as bolanhas e os rios que éramos obrigados a atravessar eram sítios propícios para ataques a uma distância considerável. Os guerrilheiros sabiam perfeitamente isso e tiravam daí algum partido, pelo menos em termos psicológicos, porque o efeito dos seus rebentamentos metia respeito e por vezes fazia ronco.

Terminado o contacto foi feito o reconhecimento ao local onde os guerrilheiros estavam instalados, recolhendo o material atrás referido.

Simultaneamente um grupo de Pára-quedistas avançou para o aldeamento aonde se encontrou peças de fardamento e munições de armas ligeiras e algumas granadas de RPG 2 e 7.

Quando nos encontrávamos a passar revista as palhotas que eram em grande quantidade, entre 20 a 30, fomos atacados à distância por lança-granadas que os Guerrilheiros apontavam aos troncos e ramos das árvores, escavacando as mesmas de forma que alguns ramos caíam acompanhados de chuva de folhas que se soltavam com as fortes explosões. Aqui por sorte não tivemos qualquer problema , aqui também se verificou então a origem do som que se ouvia anteriormente, era a construção de uma canoa feita de uma enorme árvore com 6, 7 metros de comprimento. Dos construtores, nem vê-los aqui, apenas encontrámos população idosa e alguns garotos. De dentro do aldeamento ainda fizeram alguns tiros na nossa direcção talvez protegendo a fuga de pessoal que lá se encontrava.

Fizemos a retirada deste local através de uma das picadas existentes que nos levaria até junto de um rio o qual viemos a atravessar com grande dificuldade uma vez que a água se encontrava a subir, o que nos surpreendeu pela rapidez, tendo em alguns locais a água chegado até ao peito.

Saindo da Bolanha , dirigimo-nos para Cadique Nalu seguindo por um pequeno trilho até a um pequeno aldeamento abandonado. Daqui rumámos em direcção a Cadique City onde chegamos perto do anoitecer.

(Continua)

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 27 de Junho de 2007 Guiné 63/74 - P1891: O Cantanhez (Cadique, Caboxanque, Cafine...) e os paraquedistas do BCP 12 (1972/74) (Victor Tavares, CCP 121)

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2037: Memória dos Lugares (2): de Elvas a Bissorã e de Lamego a Biambe, com a CART 730 (Parte II) (João Parreira)

1. Segunda e última parte do texto do João Parreira, evocativo do seu reencontro com os antigos camaradas da CART 730

Metrópole – Biambe- II Parte (1)

O tempo foi-se passando em Bissorã. O Capitão de Artilharia Aníbal Celestino Rocha, Oficial de Operações do Batalhão, deslocou-se a Bissorã por razões que desconheço, e falou-me dos Comandos, dizendo-me que um dos Grupos em Brá precisava de pessoal.

Várias diligêncis depois, ofereci-me. Por motivos que não vêm ao caso agora, perdi a coluna militar para Bissau,para prestar provas. O meu comandante aproveitou o facto de ainda ali estar para me dizer que eu iria participar na operação à base de Biambe e que o Gomes, o meu substituto, não ia.

Era costume estarmos presentes nos briefings que antecediam as operações, em que nos era permitido expôr as nossas opiniões sobre os pormenores das mesmas, e eu não me acanhava, alvitrava uma ou outra alternativa à que era exposta, por me parecer que seria mais viável e menos perigosa. Por hábito, ia sempre no quarto ou quinto lugar da frente, dependia se levámos prisioneiro ou não.
Nem sempre as minhas sugestões eram do agrado do comandante de Companhia (capitão de Artilharia, que não duvido seria óptimo naquela arma, mas não tanto a comandar pela 1ª vez no terreno uma companhia de Infantaria).

Neste curto briefing relativo ao golpe de mão àquela base, o Comandante da Companhia, indicou-nos que iam 4 africanos mas cujas funções não foram claramente mencionadas pelo que segui para a operação com a impressão de que eram 3 guias e 1 guia prisioneio, por ser o único que se encontrava amarrado. Só depois de ler o relatório é que fiquei a saber que afinal eram 2 guias e 2 guias prisioneiros.

Embora a minha seccção, a 1ª do 1º Pelotão, seguisse sempre à testa da Companhia (da 2ª era o Cruz e da 3ª o Bragança), naquele dia, devido à ausência do meu comandante de Pelotão, o Alferes Ferreira que, tal como eu, tinha sido ferido, na operação em Cancongo, encontrando-se ainda hospitalizado, parti do princípio que no final da reunião o Comandante da Companhia ia dar ordem para um oficial seguir à frente com o respectivo pelotão.

Estava enganado pois deu-me instruções para seguir à frente da coluna, levar um dos guia e o prisioneiro que estava amarrado, acrescentando que quando chegasse a altura devia tomar as decisões que fossem necessárias. Assim partimos para a operação às 23,15h.

Furriéis da CART 730 – Da esq para a dir: Venda, Vira, Alcides, Cruz (minas e armadilhas , à frente), Almeida, Passos (transmissões), Parreira (oe), Reis (manutenção auto) e Ribeiro (sapador).

Esta operação, embora o resultado esteja correcto não foi exactamente, nem podia ser, como consta no relatório. Na realidade apenas 5 homens incorporados na Companhia estiveram nas 12 casas de mato que faziam parte da referida base, conforme passo a descrever.



Seguíamos há várias horas pelo trilho em direcção ao que pensávamos ser o objectivo quando, num certo ponto, o guia, que ia à frente da coluna precedido pelo prisioneiro que ia amarrado com uma corda pela cintura e que estava ao cuidado do Leitão, colocou-se ao lado do prisioneiro, trocou umas breves palavras e depois disse-me que nos estávamos a aproximar de uma tabanca.

Dei ordem para prosseguir e quando a mesma estivesse visível que me avisasse. Passado algum tempo apontou-me a direcção de uma enorme tabanca que se podia avistar, não muito ao longe, e disse-me que devia estar abandonada.

Nesse momento parámos, pelo que não querendo assumir a responsabilidade que me tinha sido dada por não se tratar da Base de Biambe, disse ao soldado que seguia atrás de mim para informar o Capitão, que se estava a avistar uma tabanca que, pelo silêncio, devia estar abandonada, e assim ficava a aguardar instruções, no pressuposto que o Comandante me ia chamar para trocar impressões ou então mandar dizer para evitar a Tabanca e seguir por outro trilho na direcção do objectivo.

Fiquei algum tempo à espera das instruções quando para minha surpresa sou ultrapassado por soldados que se encontravam atrás, pensando possivelmente que aquele era o objectivo e por ordem não sei de quem avançaram na direcção da tabanca. Por outro lado, não compreendi a razão pela qual o Cruz e o Bragança também avançaram com as suas secções.

Continuei no mesmo sítio com a minha secção até que, juntamente com os camaradas que passavam por mim dirigindo-se à tabanca, apareceram os outros 2 guias que vinham algures na coluna (afinal, um era guia prisioneiro, muito embora se encontrasse com liberdade de movimentos) que não avançaram e ficaram também ali parados a meu lado.

Com os 4 africanos na minha presença, disse aos guias que perguntassem aos prisioneiros onde ficava a base. Falaram entre eles e um deles disse-me que um dos prisioneiros lhe garantira que a base de Biambe ficava a pouca distância dali, mas numa direcção diferente.

Na posse desta informação, e inconformado com a atitude do pessoal e pela pacifidade dos restantes graduados face à distorção da missão, disse à minha secção que aguardasse pois ia lá atrás falar com o Capitão Garcia.

Naquela altura já ele tinha começado a avançar e acompanhando-o disse-lhe que ali à frente não devia haver nada, conforme o tinha informado, e que o objectivo Inimigo, que era a razão da missão que ele nos tinha indicado no quartel, eram as casas de mato, a base de Biambe, que ficavam noutra direcção, segundo tinha acabado de me dizer o prisioneiro e não aquelas palhotas, e que por conseguinte poderia ser mais conveniente e proveitoso esquecer a tabanca e seguir.
Não ligou às minhas palavras, e, irritado, disse-me que ele é que era o Comandante da Cª. e que quem ordenava o que se devia fazer era ele.

A resposta seca, dura e autoritária na presença dos camaradas que estavam a seu lado, doeu-me tanto como se tivesse sido atingido por uma chicotada. Imediatamente, passou-me pela cabeça, que ia mesmo aventurar-me à procura do acampamento Inimigo,
apoiado por quem quizesse ir comigo.

Animado com a ideia que me tinha acabado de ocorrer, acompanhei-o até ele ter chegado ao lugar onde eu tinha deixado os africanos e a secção. O capitão e os militares que com ele seguiam continuaram em frente, e eu fiquei ali e disse aos africanos para me levarem à Base.

Falei com os meus soldados que ainda ali continuavam no sentido de tentar persuadi-los para avançarmos para a base Inimiga mas não se mostraram entusiasmados, dizendo-me que preferiam seguir também para a tabanca o que me causou grande frustração. Reconheci, contudo, que estavam no seu direito de recusarem.

Para não perder mais tempo, já perto das 4 horas da manhã, disse ao João Maria Leitão, a quem tinha sido entregue o prisioneiro amarrado, se se sentia com coragem para aquela digressão e ele disse-me que sim.

Foto com dois camaradas que sairam da minha secção na CART 730 e depois do 2ºCurso ficaram na 1ª equipa do Grupo cmds. Vampiros: António Paixão Ramalho “Monte Trigo” e o João Maria Leitão ao lado do Alf Mil António Vilaça (ex-CCaç 726), o Djamanca e o Justo. O João Leitão nos Comandos foi agraciado com a Medalha de Mérito Militar.

JP,Saraiva,VB,Marques em Set 65,em Brá

Da minha secção, aproveito para referir que também saiu o Cândido Tavares, o “República”, que ficou no mesmo Grupo mas noutra equipa. Sairam ainda o Furriel Joaquim Prates (que acabou por não frequentar o Curso de Comandos e foi transferido para a CCaç 763 em Cufar), o 1º Cabo Faustino dos Santos Viegas que foi para o gr. Cmds “Centuriões”, ferido em Jolmete em 3Ago65 e evacuado para o HMP, e os soldados Jacinto da Conceição Venâncio que foi para os “Apaches” e o José de Oliveira Gonçalves.

Desconheço os motivos pelos quais quizeram sair da CART 730 para frequentarem o 2ºCurso de Comandos uma vez que todos nós os que o fizemos não tínhamos qualquer problema disciplinar, pelo contrário, o Comandante da Companhia exerceu até alguma pressão para nos desencorajar, pelo que não sendo para seguirem as minhas pisadas, deduzo que deva ter sido, como todos os que foram para os Comandos, pelo espírito de aventura.

No meu caso, não foi pelo facto de ter sido ferido numa operação anterior, juntamente com outros camaradas. O Alf. Ferreira, meu Cmdt. Pelotão, também instruendo no CIOE, onde foi um dos melhores, uma vez chegado à Guiné desinteressou-se totalmente do exército, de tomar qualquer decisão ou até de dar qualquer opinião sobre as operações.

Mas continuando, a caminho de Biambe.


Embrenhados num dos trilhos do mato a caminho do acampamento, no último dia do mês de Fevereiro de 1965, fiquei convencido que os africanos não me estavam a enganar e que o guia prisioneiro que melhor sabia a localização não ia fugir, e que por isso íamos encontrar a Base que segundo a minha perspectiva o inimigo devia ter abandonado ao tomar conhecimento que a tropa andava por ali perto, e não teria tempo de se organizar para nos montar uma emboscada.

Naquela altura, a adrenalina estava ao rubro. Pelo sim pelo não, dei instruções aos guias para que a principal preocupação fosse a de avançarmos com todos os sentidos alerta e concentrados em pequenos pormenores que nos dessem a conhecer com a devida antecedência se o Inimigo se encontrava mais à frente à nossa espera. Assim, iniciámos uma lenta e cuidadosa progressão.

Segundo me tinham dito a Base situava-se perto, o que me fez pensar que me dava tempo para ir e regressar à Companhia, antes de terminarem de vasculhar e, eventualmente, como era hábito, incendiarem a tabanca, o que ia demorar algum tempo, ou que pelo menos não os faria esperar muito.

Estava redondamente enganado, pois por experiência própria fiquei a saber, durante os cerca de 20 anos que andei por países africanos, que para eles africanos era tudo perto, independentemente das distâncias. Todavia há sempre um senão, e a operação não correu exactamento como tinha previsto, já que perto do alvorecer, mas ainda escuro, vi um vulto que em frente do único soldado que ia à minha frente saiu do trilho e correu para o mato.
Apercebi-me que o guia prisioneiro tinha conseguido libertar-se da corda que o atava à cintura pelo que estando totalmente fora de questão tentar abatê-lo a tiro, como levava no bolso uma navalha espanhola, abria-a o mais depressa que pude e atirei-a com toda a força na direcção onde ele tinha entrado no mato, mas claro que não lhe acertei.
Passado pouco tempo chegámos à base de Biambe que, segundo contámos, era composta por 12 casas de mato que tinham sido recentemente abandonadas, possivelmente quando o inimigo viu as labaredas das 26 palhotas da tabanca a subirem para o céu.

Perante este panorama mandava a prudência que saíssemos dali o mais rapidamente possível, tanto mais que um prisioneiro que conhecia aquela zona tão bem como as palmas da mão tinha fugido e, caso entrasse em contacto com os seus camaradas, iria denunciar a nossa presença.

Revistámos apenas algumas casas de mato e encontrámos: 1 GMO-RG34, 4 carregadores de PM, muniçoes de 9mm, 1 bolsa de pano, 1 sabre, 1 cinto de cabedal, 1 grade para GMO e vários documentos.Regressámos com as mesmas precauções, mas por um trilho diferente.

Tendo a Companhia acabado de incendiar a tabanca e preparando-se para retirar, vim a saber depois, o Capitão mandou procurar os guias e os prisioneiros e deu então pela minha falta, altura em que lhe disseram que tinha seguido com eles para a base
inimiga.
Dada a demora em regressarmos começaram a fazer conjecturas sobre o que nos teria acontecido, tendo então decidido dar ordem para 4 Secções irem à nossa procura.

Sem nos terem encontrado pelo facto de terem seguido por uma direcção diferente, as Secções regressaram ao seio da Companhia primeiro do que nós. Quando passadas várias horas chegámos à zona da tabanca, a arder, vimos a Companhia estacionada a aguardar o nosso eventual regresso.
Os soldados da minha secção vieram ao nosso encontro, e perguntei-lhes onde se encontrava o Comandante da Cª. Quando me dirigia para ele,reparei numa bajuda, provavelmente fugida da tabanca, rodeada por soldados.

Postal com bajuda “balanta”, Mansoa

Durante o curto trajecto, alguns soldados da minha secção acompanharam-me e aproveitaram para me informar que um dos assunto badalados durante a longa espera que tiveram que fazer era que o Fur Parreira tinha saido com os guias e ninguém sabia em que direcção. Um deles, bastante agitado, referiu que esteve perto do Capitão, e que o ouviu dizer aos outros oficiais que me ia levantar um processo discipinar. Perante este facto, e devido ao perigo em que estávamos envolvidos, nem sequer me tinha passado pela cabeça essa possibilidade pelo que me deu então para perguntar se na tabanca tinham apanhado algum material de guerra ou documentos e foi-me dito que não.

Quando, acompanhado pelo Leitão, pelos três africanos e também por soldados da secção me abeirei do Capitão que, juntamente com os outros oficiais, ainda se encontrava encostado à àrvore, pude constatar que a sua expressão não era nada agradável.
Sem o deixar falar perguntei-lhe de chofre se tinham apanhado algum material nas palhotas da tabanca e ele que não devia estar à espera que lhe perguntasse fosse o que fosse, muito pelo contrário, respondeu-me laconicamente que não. Não lhe dando oportunidade para falar, e sem lhe dar pormenores do que tinha acabado de fazer, disse-lhe calma e respeitosamente:
- Meu Capitão, afinal esta operação não foi de todo infrutifera, pois trazemos-lhe este material.
Foi com tristeza que de seguida lhe tive que comunicar que o prisioneiro tinha fugido, porém ignorou tal facto e não fez qualquer comentário.O material foi o mencionado no relatório, mas foi a tabanca que foi incendiada pela Companhia e não as casas de mato, que eram 12 e não 8 conforme mencionou.
Foi reconfortante verificar que sendo um oficial amável no trato era todavia um militar exigente, mas também compreensivo,já que não me criticou, limitando-se a dar de imediato ordem para a Companhia se pôr em movimento.

Seguidamente a este episódio fizemos uma batida à área de Chumbume onde localizámos um grupo com cerca de 25 elementos inimigos fardados de caqui amarelo novo, cambando a bolanha e armados de ESP Aut, PM e 1 LGF. etc.

Ataque IN a Bissorã

No dia seguinte das 00h05 as 03h00 o nosso aquartelamento e a vila de Bissorã sofreram ataques do IN. Atacaram de todas as direcções excepto do lado de Binar (tabanca “da outra banda”)e fizeram uso de quase todos os tipos de armamento: P, PM, GM, Esp.aut. e repet,, ML, LGF, Mort 60 e 82. Caíram na área do aquartelamento várias granadas de morteiro e de LGF, felizmente sem consequências.
A forte reacção e posterior perseguição levaram o combate para longe das nossas posições,principalmente do lado da granja e bolanha entre as estradas de Bissorã-Mansoa e Bissorã-Binar.
De madrugada consegui, a muito custo, convencer alguns soldados do pelotão para irmos fazer uma busca ao exterior do arame farpado, e apanhámos uma granada e um frasco de tintura.
De manhã saíu um pelotão que apanhou mais material e à tarde fomos nas Mercedes buscar palmeiras para os abrigos.

Dois dias depois deslocou-se a Bissorã, o Tenente-Coronel Braancamp Sobral(conhecido como o “Cavalo Branco”) que comandava o aquartelamento de Mansoa.
Contava que, mais dia menos dia, houvesse coluna militar para Bissau e assim não ia fazer mais operações com a Companhia. Mas isso não aconteceu. Apesar de já ter um substituto, ainda fiz mais duas operações, uma em Passe e outra em Binar.


Encontro em 5 Mai 07 com o Cmdt. CArt 730 presente


JP, Alf Orlando Valdez (Cmdt.2º.Pelotão), Capitão Garcia e outros camaradas.


Camaradas da m/secção da CART 730, no 4º. Almoço-convívio realizado a 5 de Maio de 2007, no Portal do Infante, na Marina de Lagos (de boina o República, do Grupo Vampiros)

A minha secção era composta pelos seguintes militares: 1º Cabo Francisco Dias, Soldádos José Maria de Oliveira, António Paixão Ramalho, João Maria Leitão, Francisco José Pires, Armindo Jerónimo Barrelas, Cândido P. Tavares, Jacinto Manuel Guerreiro e Custódio António Dias.

A alegria dos soldados!

Durante o período que dei instrução, ainda em Lisboa, passou-se um episódio que nunca poderei esquecer.

Aquele dia estava destinado a um dos treinos de rastejar e decidi que o mesmo fosse efectuado em cima de vários objectos nada aconselháveis, quando o tive que interromper, devido a uma dor súbita, aguda que senti na virilha direita. Chamaram um jipe para me levar de urgência para o Hospital Militar.

Perante o inesperado, eu a torcer-me com dores, e os instruendos a baterem palmas de contentamento por a instrução ter terminado. Fui submetido a uma intervençao cirúrgica e transferido a seguir para o Anexo. Quase a ter alta, fui "provocado" por outro dos internados. Saltei da cama e envolvemo-nos numa vigorosa “guerra” de almofadas. Resultado, os pontos rebentaram e voltei à estaca zero.

Durante o tempo em que estive internado, apresentaram-se do RAL 1 (unidade mobilizadora), o Alferes Ferreira, que iria ser o meu comandante de pelotão e, mais tarde, o Capitão Garcia que iria ser Comandante da Companhia 730.


2. Comentário do co-editor vb:

Completa-se assim o episódio da Metrópole ao Biambe (uma das mais faladas bases do PAIGC no Norte) do nosso Camarada João Parreira.

Estas memórias, tanto quanto me foi dado perceber, ressuscitaram quando se reformou. O Parreira, nos seus tempos de Guiné, fazia um diário, onde anotava desde acontecimentos bélicos a brincadeiras de bom e de mau gosto.

O JP é lisboeta genuíno, nasceu em Alcântara. Antes ainda de ir para a tropa, em Dezembro de 1966, ingressou no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Prestou o serviço militar entre 9 Agosto 1963 e 19 Agosto 1966. Fez a comissão na Guiné de 8 Outubro a 14 Agosto 1966, primeiro na CART 730/BART 733. Foi ferido em 9 Janeiro 1965 numa operação à base de Bafantandem, na zona de Cancongo. Depois, foi para os Comandos Fantasmas do Cap Saraiva. Foi outra vez ferido em 20 Abril 1965 na operação Açor, nas tabancas de Portugal, na zona do Incassol. E como não há duas sem três, voltou a sê-lo em 6 Maio 1965 na operação Ciao em Catungo, Cacine, mesmo ao lado do Morais, que morreu logo ali, com o JP a olhar para ele, sem nada poder fazer.

Regressou ao MNE em Setembro de 1966. Com saudades de África, foi para o Consulado Geral de Portugal em Salisbúria, para a Rodésia em 23 de Dezembro. Geriu o Consulado Geral de 1 Janeiro 1978 a Fevereiro 1980. Passou pelo Malawi entre Abril e Maio de 79 e regressou a Salisbúria. Ia de vez em quando, melhor dizendo, todos os meses a Blantyre, Malawi, fazer a gestão dos consulado. E por lá andou até Março de 80. Depois colocaram-no na Embaixada em Lusaka, Zâmbia, para ajudar a preparar uma visita presidencial e dar apoio consular à comunidade portuguesa. De novo em Lisboa, no MNE em 23 Dezembro 1981. Londres, em 30 Setembro 1982. Depois, Harare, Zimbabwe em Janeiro de 1989. Em Agosto de 1994, outra vez em Lisboa, no MNE.

E medalhas, João?

Da Guiné, as que tenho trago-as comigo, estão aqui, no corpo. Pelo meu trabalho no MNE, o Presidente da República espetou-me no peito a Ordem do Infante D. Henrique, que está guardada num estojo, em minha casa.

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Nota de v.b:

(1) Vd. post anterior > 1 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2020: Memórias dos Lugares (1): de Elvas a Bissorã, e de Lamego a Biambe, com CART 730 (Parte I) (João Parreira)

Guiné 63/74 - P2036: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (11): Dr Brocas, o contador de estórias que era gago

Guiné > Zona Leste > Sector L5 (Galomaro) > Saltinho > 1972 > Vista aérea do Rio Corubal, da ponte e do aquartelamento do Saltinho

Foto: © Álvaro Basto (2007). Direitos reservados

XI Parte das memórias do Paulo Santiago, ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53 (Saltinho , 1970/72) (1). O Paulo é natural de Aguada de Cima, concelho de Águeda. Texto enviado em 1 de Julho último. O Paulo vai hoje encontrar-se com os nossos camaradas de Matosinhos que costumam almoçar juntos, em Leixões, às 4ªs feiras. O António Batista, o nosso querido morto-vivo do Quirafo, irá lá fazer uma surpresa aos nossos tertulianos, juntando-se ao evento.... Um abraço especial para ele e para os demais comensais. Já pedi ao Paulo que tire uma chapa para mais tarde recordar... (LG).


No Saltinho, quando da minha chegada, o Médico era o Alf Mil Martins Faria, chegado um mês antes de mim, substituindo o Alf Mil Méd João Brocas (era com esta alcunha que se apresentava) que esteve destacado na CCAÇ 2701 à volta de três meses. Só conheci o Dr João Brocas numa das minhas passagens por Bissau. Era um contador e um fazedor de histórias incríveis e mirabolantes.
Para ser mais fascinante, era extremamente gago. Já frequentava, ou já tinha a especialidade de Estomatologia, quando foi para a tropa,mas,como no Hospital Militar de Bissau, quando da sua chegada, havia vários estomatologistas, o Dr Brocas teve de passar por vários quartéis do CTIG como clínico geral.

Num dia de Agosto de 70,o Alf Mil Mota andava extremamente nervoso e inquieto e,passando pelo Médico, este pergunta-lhe:
-Oh Fer...Fer...nando que se pa...assa para an...da...dares tãão cha...te a...do?
-Porra, Dr, não me chateie os cornos, tenho avião daqui a três dias para ir de férias e não aparece a merda de um transporte para Bissau.

Depois desta conversa,o João Brocas dirigiu-se ao gabinete médico onde o Fur Mil Enf Freire atendia um civil africano.
-Oh Fre... eire o que é que gai...gai gaijo teem?
-Dr, o tipo tem uma diarreizita, já lhe dei uns comprimidos para ele tomar.
-Oh, Frei...frei..freire quem é você para fa...fazer um dia...dia...diagnós...ti...ti...co clí...clínico, deite gai...aijo na mar...mar...quesa.

Deitado na marquesa, o João Brocas faz-lhe uma apalpação na barriga.
-Frei...freire o... o caso é gra...grave. Soooro no gai..gaijo e peça uma evacuação y...y.ypsi...psi...lon
-Mas, Dr, o tipo fica bom com os comprimidos
-Po... oorra não dis...dis...cuta, eu, eu é...é...é... que sei.

Segue um dos enfermeiros para as transmissões pedir a evacuação ypsilon, enquanto o Freire coloca o africano a soro.

O João Brocas vai ao bar e diz ao Fernando Mota:
-Fer...fer...fer...nando pre...pre...para a ma...a...la da....daqui a trin...trin...ta mikes teens trans...transporte.

Passada meia hora,lá chegou o heli que evacuou o civil e deu boleia ao Fernando Mota.
Em consequência desta cena,chegou uma msg ao Saltinho,pedindo mais critério nas evacuações ypsilon.

Há mais histórias do Dr João Brocas,que ficarão para uma próxima oportunidade.

Paulo Santiago
ex-Alf Mil Comandante do Pel Caç Nat 53

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Nota de L.G:

(1) Vd.posts destas série:

12 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1168: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (1): Periquito gozado

13 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1170: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (2): nhac nhac nhac nhac ou um teste de liderança

19 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1192: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (3): De prevenção por causa da invasão de Conacri

13 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1275: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (4): tropa-macaca, com três cruzes de guerra

4 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1338: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (5): estreia dos Órgãos de Estaline, os Katiusha

13 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1424: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (6): amigos do peito da CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72)

5 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1564: Memórias de um Comandante de Pelotão de Caçadores Nativos (Paulo Santiago) (7): Fogo no capinzal

12 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1653: Memórias de um Comandante de Pelotão de Caçadores Nativos (Paulo Santiago) (8): A pontaria dos artilheiros de Aldeia Formosa

23 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1687: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (9): Maluqueiras na picada Saltinho-Galomaro-Bafatá

3 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1812: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (10): As mulheres dos meus homens eram minhas irmãs

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2035: Alf Mil Guido Brazão, da CCAV 2748/BCAV 2922, morto em acidente com arma de fogo, Canquelifá, 22/10/70 (José M. Martins)

1. O camarada José Martins, nosso especialista em pesquisa militar, também se dedicou a recolher elementos que ajudassem a reconstituir o passado do camarada Guido Brazão, enquanto combatente na Guiné.

Assim, em 31 de Agosto enviou à nossa amiga Conceição Brazão, irmã de Guido Brazão, a seguinte mensagem.

Caros Camaradas,
Amiga Conceição

Começo por pedir desculpa pelo tratamento informal, mas sou da opinião que estamos em família. Se os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são... os familiares dos nossos camaradas, da nossa família são, e, para mais, aqueles familiares dos nossos camaradas que levaram ao extremo o seu juramento perante a Bandeira da Pátria - dar a sua própria vida!

Quanto ao apontado no mail de hoje, e como não consegui executar o scaner dos textos (burrice minha), fiz a cópia dos mesmos e remeto em anexo.

O tratamento para os camaradas bloguistas é o habitual: transmitir os textos produzidos para arquivo e/ou reprodução no blogue.

Para a nossa amiga Conceição, permito-me tecer as seguintes considerações:

Não sei se reside na região de Lisboa. Se sim, pode dirigir-se ao Arquivo Histórico Militar, que fica no edifício do Museu Militar, com entrada pelo lado da Estação de Santa Apolónia.

Aí poderá solicitar para leitura, e reprodução de alguma parte que queira, do documento que se encontra arquivado na Caixa n.º 19 - 2.ª divisão – 4.ª secção, que é a História da Unidade (BCAV 2922) de onde foi retirado o texto que se encontra no anexo. A sala de leitura funciona entre as 11,30 e as 17 horas, se a memória me não atraiçoa.

Se pretender um documento mais personalizado sobre o nosso camarada e seu irmão Guido, poderá solicitá-lo ao Director do Arquivo Geral do Exército, sito no Convento de Chelas, em Lisboa. Dando o maior número de elementos que identifiquem o processo pretendido (nome, número, posto, assim como a sua qualidade de irmã e referindo até a causa e data do óbito, é muito provavel que consiga obter outros elementos que, por serem de índole mais pessoal e familiar, são sempre objecto de um procedimento mais cuidadoso.

A título de exemplo, em tempos consegui cópias das fichas militares do meu avô materno e de um tio paterno, que foram combatentes em França durante a I Grande Guerra, que aliás, não só fazem a minha delícia, como me permitem ir encontrando o percurso militar de ambos, já que um era militar de carreira e o outro, como muitos naquela época, ficou e segiu a carreira militar.

Já vou longo na minha escrita. Não quero deixar de reiterar a minha disponibilidade para esclarecer/aclarar algum facto constante do anexo, inclusivamente traduzir as siglas/abreviaturas que constem no texto.

Com a minha amizade

José Martins
Fur Mil Trms Inf
CCaç 5 - Gatos Pretos
Guiné - Canjadude
1968/1970

2. Segue-se o resultado do trabalho do nosso investigador privativo José Martins.

Extractos de:

RESENHA HISTÓRICO-MILITAR DAS CAMPANHAS DE AFRICA (1961-1974)

Do
8º VOLUME – Mortos em Campanha
Tomo II
Guiné – Livro 1
1ª Edição (2001) Página 553 (2º registo)


Nome - Guido Ponte Brazão da Silva
Posto - Alferes Miliciano de Cavalaria – Operações Especiais
Numero - 19769668
Unidade - Companhia de Cavalaria n.º 2748
Unidade Mobilizadora - Regimento de Cavalaria n.º 3 – Estremoz
Estado Civil - Solteiro
Pai - Manuel Gonçalves Brazão da Silva
Mãe - Cesária Margarida Maria da Ponte
Freguesia - São Vicente
Concelho São Vicente – Madeira
Local de Operações - Camamelifé
Data do Falecimento - 22 de Outubro de 1970, em Canquelifá
Causas da morte - Acidente, com arma de fogo
Local da sepultura - Cemitério da Ajuda – Lisboa
Observações: Accionamento de granada – armadilha IN


Do
7º VOLUME – Fichas das Unidades
Tomo II
Guiné
1.ª Edição (2002) Páginas 284 e 285


Batalhão de Cavalaria n.º 2922
Identificação - BCAV 2922
Unidade Mobilizadora - Regimento de Cavalaria n.º 3 – Estremoz
Comandantes - Ten Cor Cav António Manuel Guerreiro Chaves Guimarães
Ten Cor Cav Raúl Augusto Paixão Ribeiro
2.º Comandante - Maj Cav António José Pereira Calisto
Oficial Operações - Maj Cav João Luís Laia Nogueira Mendes Paulo
Maj Cav Augusto das Neves Oliveira
Comandantes de Companhia
CCS - Cap Cav João Manuel Duarte Moniz Barreto
Cap Mil Cav Rodrigo José Afreixo Ferreira
Cap. SGE Hermann Mendes Schultz Guimarães
CCAV 2747 - Cap Mil Cav José Joaquim Leal de Faria d’Aguiar
CCAV 2748 - Cap Cav José Eduardo Castro Neves
CCAV 2749 - Cap Cav José Luís Pereira Pissarra
Cap Mil Cav Rodrigo José Afreixo Ferreira
Divisa “À Carga!”
Partida - Embarque em 18 de Julho de 1970; desembarque em 23 de Julho 1970
Regresso - Embarque em 18 (CCAV 2747), 19 (CCAV 2748 e 2749) e 20 de Junho de 1972 (CMD e CCS).

Síntese da Actividade Operacional

Em 12 de Agosto de 1970, rendendo o BART 2857, assumiu a responsabilidade do Sector L4, com sede em Piche e abrangendo os subsectores de Canquelifá, Buruntuma e Piche; as suas subunidades mantiveram-se sempre integradas no dispositivo e manobra do Batalhão.

Desenvolveu intensa actividade operacional de patrulhamentos, reconhecimento, emboscadas e de controle e segurança de itinerários, além da protecção aos trabalhos de construção e asfaltamento da estrada de Piche-Nova Lamego, tendo ainda executado acções de reacção a numerosos e violentos ataques aos aquartelamentos e aldeamentos da sua zona de acção.

Da sua actividade ressalta a captura de 1 espingarda, 2 lança-granadas-foguete, 15 cunhetes e 26 granadas de armas pesadas e a detecção e levantamento de 22 minas.

Em 22 de Maio de 1972, foi rendido no sector pelo BCAÇ 3883 e recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

X X X X X

A Companhia de Cavalaria n.º 2747 seguiu em 19 de Julho de 1970 para Piche, a fim de efectuar a sobreposição e render a CCAÇ 2679, tendo assumido a função de intervenção e reserva do sector a partir de 20 de Agosto de 1970, realizando diversos patrulhamentos, batidas e escoltas.

De 30 de Setembro de 1970 a 19 de Janeiro de 1971, cedeu dois pelotões para reforço da actuação da guarnição de Bajocunda.

Em 24 de Maio de 1972, foi rendida pela CCAÇ 3544 e recolheu a Bissau, a fim de aguardar embarque.

X X X X X

A Companhia de Cavalaria n.º 2748 seguiu em 01 de Agosto de 1970 para Canquelifá, a fim de executar a sobreposição e rendição da CART 2439, tendo assumido a responsabilidade do respectivo subsector, com um destacamento em Dunane, em 10 de Agosto de 1970.

Em 24 de Maio de 1972, foi rendida pela CCAÇ 3544 e recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

X X X X X

A Companhia de Cavalaria n.º 2749 seguiu em 31 de Julho de 1970 para Piche, a fim de efectuar a sobreposição e rendição da CART 2440, tendo assumido a responsabilidade do referido subsector de Piche, em 12 de Agosto de 1970, com destacamentos em Cambor e Ponte do rio Caium.

Depois de, em 04 de Novembro de 1971, ter cedido dois pelotões para reforço da guarnição de Bentém, foi colocada nessa base se apoio à construção da estrada Piche-Buruntuma a partir de 29 de Novembro de 1971, mantendo, no entanto, os anteriores destacamentos referidos.

Em 01 de Abril de 1972, voltou a Piche, onde se manteve até ser rendida pela CCAÇ 3546, em 24 de Maio de 1972, após o que recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.


José Martins
Fur Mil Trms Inf
CCaç 5 - Gatos Pretos
Guiné - Canjadude
1968/1970
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Nota do co-editor CV

Vd. post de 30 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2012: Em busca de... (7): Meu irmão, Guido de Ponte Brazão da Silva, alferes, morto em Canquelifá, em 1970 (Conceição Brazão)

Guiné 63/74 - P2034: Bibliografia de uma guerra (22): Putos, Gandulos e Guerra, de Mário Vicente, aliás, Mário Fitas (CCAÇ 763, Cufar)


Vamos mais uma vez falar do escritor Mário Vicente, ou melhor, do nosso camarada Mário Fitas, ex-Fur Mil da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/66), a propósito da apresentação do seu primeiro livro, Putos, Gandulos e Guerra, em 22 de Abril de 2000 (1).

A cerimónia de apresentação teve lugar no Salão Nobre da Junta de Freguesia de Vila Fernando, sua aldeia natal, pertencente ao concelho de Elvas.

O livro foi apresentado pelo seu amigo e companheiro de sempre Dr José Luís Miguel de Carvalho, também ele ex-combatente da guerra do Ultramar, desta feita como Alf Mil em Angola.

Feita a apresentação pelo Dr Miguel de Carvalho, tomou uso da palavra o nosso camarada. Reconhecendo a Mulher como um pilar essencial no seio de cada família, nas diversas vertentes, principalmente como Mãe e, sentindo-se irremediavelmente preso à sua Terra-Mãe, dedicou, em preito de homenagem, ao seu Alentejo e às mulheres alentejanas o seu livro Putos, Gandulos e Guerra.

Introduziu no seu pequeno discurso poemas dedicados ao Alentejo e às suas gentes, de autoria de dois grandes vultos da literatura portuguesa: Florbela Espanca, poetisa alentejana, e Eugénio de Andrade, beirão, mas grande amigo do povo alentejano.



Capa do livro de Mário Vicente, Putos, Gandulos e Guerra (2000).
Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.
A capa do livro também é uma homenagem. Mário Vicente quis homenagear os seus homens colocando na capa do seu livro, uma fotografia tirada no dia 22 de Dezembro de 1965, durante a Operação Tesoura, na região de Cadique.

Atentemos agora ao seu discurso:

-"Porque a vida não se troca, nem se vende por nada! Só não sente, quem não tem capacidade para recordar!

!A influente conspiração contínua, do adquirido sobre o inato, vai metamorfoseando o (barro) Homem, inoculando-lhe na inocência, - o saber de experiência feito - a escola da vida. Assim se vai nesta complementaridade, construindo o Ego de cada um de nós".

"Escrito sobre homens. Subrepticiamente vai revelando a influência da mulher, na sua desmultiplicação de: Mulher mãe, irmã, amante, companheira e amiga. Eis pois, como gato sobre brasas, Putos, Gandulos e Guerra transcreve a observação – vivida - de alguém sobre o que o rodeia".

"Não é este livro,pretensão literária! Mas tão somente o tentar transpor para a escrita, o sentir da vida – sofrida - do povo da Planície. E porque não também, essa força-mulher, que foi Florbela Espanca?"

Dela, o poema:

Pobre de Cristo

Ó minha terra na planície rasa,
Branca de sol e cal e de luar,
Minha terra que nunca viste o mar,
Onde tenho o meu pão e a minha casa.
Minha terra de tardes sem uma asa,
Sem um bater de folhas... a dormitar...
Meu anel de rubis a flamejar,
Minha terra moirisca a arder em brasa!

Minha terra onde meu irmão nasceu
Aonde a mãe que eu tive e que morreu
Foi moça e loira, amou e foi amada!
Truz... Truz... Truz... Eu não tenho onde me acoite,
Sou um pobre de longe, é quase noite,
Terra, quero dormir, dá-me pousada!...

(...) "Sou um sofredor!... O cordão umbilical ainda não me foi cortado. Confio que não o seja!...
Sinto-me bem ligado à Terra-Mãe. Por esse motivo, aqui trago estas folhas, as quais espero sejam o símbolo de uma aldeia una, nesta linda planície".

"Assim sendo: Este livro não é meu! É dos que do nascer ao pôr do sol, - por magra jorna - trabalharam a terra que não era sua".

"É de quem vergado sob o sol escaldante de meio do dia esgotava as forças - dádiva da magra açorda com azeitonas, puxando pela torta, ceifando o-pão-trigo do mítico celeiro de Portugal".

"Este livro é também dos e das que encharcados, sob o agreste frio e chuva do Inverno enterrando as mãos na gélida terra, apanhavam: a fonte que daria força às sopas e luz à humilde candeia".

"Este livro é das mulheres escravas que após um dia de trabalho, em vez do merecido descanso, tinham ainda marido e filhos para tratar e a casa que, limpa e branquinha, lhes dava merecido orgulho!

"Este livro é daqueles e daquelas que sofreram a saudade da partida e a ansiedade da chegada, dos seus mais queridos, que viram partir para a guerra!

"Este livro é dos que aqui nasceram, e dos que aqui chegando criaram raízes!
Também vale a pena recordar" (...):

De Eugénio de Andrade:

Eu sou devedor à terra,
E a terra me está devendo.
Que a terra me pague em vida,
Que eu pago à terra em morrendo.

Finalizou dizendo: "Este livro é vosso, homens e mulheres da minha terra! "

Mário Vicente

2. Comentário de CV.

Ficamos assim a conhecer um pouco melhor a outra faceta do ex-combatente e nosso camarada Mário Fitas. Se o Mário quiser desvendar um pouco do seu livro, para aguçar o apetite a quem o pretender ler, teremos em breve algumas estórias no nosso blogue.
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Nota de CV.


(1) Sobre o seu último livro, Pami Na Dondo, v. posts de:

2 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1911: Bibliografia de uma guerra (19): Pami Na Dondo, guerrilheira do PAIGC, o último livro de Mário Vicente (A. Marques Lopes)

5 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1926: Bibliografia de uma guerra (21): Pami Na Dondo ajuda-nos à reconciliação com a guerrilha (Virgínio Briote / Carlos Vinhal)

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2033: In Memoriam (2): O saudoso Amaral da horta e dos presuntos de Missirá (Jorge Cabral / António Branquinho)

Guiné > Zona leste > Sector L1 (Bambadinca) > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 63 > 1971 > O António Branquinho, de pé, e o Amaral, vestidos à civil. Eram dois dos furriéis milicianos do Pel Caç Nat 63.

Guiné > Zona leste > Sector L1 (Bambadinca) > Cuor > Missirá > Pel Caç NAT 63 > 1971 > O António Branquinho, uma bajuda e o Amaral (sentado).

Fotos: © António Branquinho / Jorge Cabral (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem que nos acaba de chegar, à caixa do correio, enviada pelo Jorge Cabral, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71 :


Caro Luís: Hoje é tristeza que envio. A morte do Amaral causou-me imensa dor. Abraço Grande
Jorge

MORREU O AMARAL!

Andei um ano à procura do número de telefone do Amaral. Na semana passada consegui. Liguei logo, disposto a brincar. Perguntei por ele e ouvi:
- Morreu há dias, sentiu-se mal no casamento do filho, autópsia inconclusiva.

Abafei um soluço, e viu-o, à minha frente, simpático, risonho, bonacheirão... Informei o Branquinho, que me remeteu duas fotografias, e três apontamentos. Fala dos presuntos e da horta, episódios que já referi, romanceando (1), mas prometeu mais.

Passaram já trinta e seis anos. Porquê, então, esta tão grande mágoa? É que ele era, é da Família.

Camarada, Amigo, Irmão, tal como o Branquinho, que sei, sentiu igual desgosto. Amaral! Vamos continuar a contar as estórias da tua estadia em Missirá. Dessa forma, estou certo, continuarás vivo e entre nós.


Jorge Cabral


2. Texto do António Branquinho (ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 63)

Jorge: Conforme pediste, em anexo envio-te 2 fotografias com o saudoso Amaral em Missirá no ano de 1971, eu e ele trajados a civil para esquecer que nos encontrávamos no teatro de guerra na Guiné.

Lembrar o amigo e camarada:

(i) Quando íamos buscar géneros alimentícios a Bambadinca, incluindo nestes o bidão de vinho, logo que o mesmo era descarregado no nosso depósito de géneros em Missirá, dizia:
- Branquinho, vamos meter o espicho no pipo (bidão) para o provar afim de vermos se é de boa colheita.

Após isto, disse ser uma maravilha, comentando ser da colheita de 1969!...

(ii) Outra história, não estória:

Em Missirá conseguiu fazer uma horta, por força de sementes que trouxe da sua zona em Portugal, nomeadamente pepinos, tomates, nabiças, melancias, etc. Quando os produtos estavam quase prontos para consumir houve uma tremenda seca, pelo que a horta sucumbiu.

Perante esta situação fez um grande pranto à horta chorando copiosamente. Em Missirá os milícias caçavam muitos javalis. Perante este excesso de animais o Amaral lembrou-se de fazer presuntos dos mesmos. Dito e feito. Passado algum tempo, junto ao depósito de géneros sentira-se um cheiro nauseabundo. O que seria? Depois de muito cogitar chegámos à conclusão que se tratava dos presuntos do Amaral (javalis) (1). Aquilo eram bichos mais bichos e a carne putrefacta devido ao intenso calor e à falta de gordura dos animais.

Entre estas, muitas mais histórias te poderia contar acerca do nosso amigo e camarada Amaral.

Um abraço

António Branquinho

3. Comentário de L.G.:

Amigos e camaradas:

O In Memoriam foi estreado com o Zé Neto, o primeiro tertuliano a morrer (2)... Hoje recebi a triste notícia de que mais um dos nossos que deixou a Tabanca Grande mais pobre e mais triste... O Amaral, ex-furriel mil do Pel Caç Nat 63, em Missirá, sendo comandante o alf mil Cabral, já não está connosco. Ele não pertencia, formalmente, à nossa tertúlia, mas o Jorge (e agora o Branquinho) já nos tinha evocado aqui a figura desse camarada, que alguns de nós conheceram (a malta de Bambadinca, 1969/71)...

Um abraço de solidariedade para o Cabral e para o Branquinho, seus camaradas e amigos. Se mais alguém o conheceu, ao Amaral, que nos mande fotos ou notas sobre este camarada, cuja memória perdurará através do nosso blogue. Luís Graça, em semi-férias.

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Notas dos editores:

(1) Vd. post de 14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1344: Estórias cabralianas (15): Hortelão e talhante: a frustração do Amaral (Jorge Cabral)


(...) Chamavam-lhe, os africanos, o furriel Barril, não sei se pela sua compleição física, se por via da fama e do proveito que ganhara como bebedor quotidiano e calmo. Estou a vê-lo ao serão, bebendo à colher, com paciência e estilo, enquanto o alferes declamava, e o maqueiro Alpiarça escrevia a uma das dezenas das madrinhas de guerra.

Junto à fonte o Amaral havia construído uma viçosa horta, na qual os tomateiros, as alfaces e as couves medravam fortes, e dera-lhe na cabeça fabricar presuntos utilizando quartos traseiros de onças. Desta actividade lembro o cheiro nauseabundo, que até os mosquitos afastava.

Um dia aconteceu. Três vacas do mato, bichos que pareciam burros, invadiram a horta, banqueteando-se, com as saborosas verduras, o que o deixou, em fúria. Ciente que o criminoso volta sempre ao local do crime, eis na manhã seguinte o Amaral, emboscado, pronto a vingar-se. Pum, pum, pum, três tiros certeiros, e logo, eufórico, pedindo-me para ir a Bamdadinca transaccionar a carne.

Desmanchados os bichos e face à avaria da única viatura, contratou carregadores, aos quais pagou. Fazendo de cabeça as contas, anteviu um lucro fácil que lhe atenuasse a dor da horta destruída. Chegados ao Batalhão, porém, o vaguemestre olhou, cheirou e concluiu. Carne estragada, imprópria para consumo. Catorze quilómetros ao tórrido calor ...tinham sido fatais.

Gastou dinheiro, perdeu a horta e nunca o vi tão triste. Para o animar, aventurei-me a provar dos seus presuntos. Intragáveis, quase vomitei...

Ai, Amaral, Amaral, porque não te dedicaste à pesca!...

Jorge Cabral


Vd também post de 13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá (Jorge Cabral)

(...) Nem respondeu este Major. Logo outro se adiantou, interrogando o Amaral, sobre as povoações mais próximas. Em sentido, sério, calmo, respondeu o Amaral:
- Mato a Norte, mato a sul, mato a leste, mato a oeste, meu Major.

(Ah! Grande Amaral, vais fazer-me companhia na porrada!). Mas o pior estava para vir! Sua Excelência queria testar o plano de defesa:
- Qual o sinal, nosso Alferes?
- Uma granada - improvisei eu.

Tendo-me dirigido à arrecadação não encontrei nenhuma granada ofensiva. Peguei então numa defensiva, e zás, lancei-a. Tudo tremeu! Manteve-se de pé o General, mas o caco caiu.

Entretanto os meus soldados, querendo mostrar heroicidade, encostaram-se ao arame, de peito descoberto, alguns mesmo sem arma.

(Agora sim, está tudo perdido! Que vergonha! E logo eu, neto de um herói de Chaimite).

Recomposto o Caco, olhou-me uma última vez e disse:
-Já vi tudo!.

Ao encaminhar-se para o helicóptero, ainda lhe ouvi comentar para a comitiva:
-Porra, que não é só o Alferes! Estão todos apanhados!

Deve porém ter ficado impressionado, pois três dias depois voltou. Eu não estava. Tinha ido a Fá, buscar uma garrafa de whisky, prenda mensal do Capitão João Bacar Djaló. Contou-me o Branquinho que, quando o informaram da minha ausência, Sua Excelência exclamou:
- Ainda bem!

(2) Vd. post de 31 de Maio de 2007> Guiné 63/74 - P1805: In memoriam (1): Adeus, Zé Neto (1929-2007) (José Martins, Humberto Reis, Luís Graça, Virgínio Briote e outros)

Guiné 63/74 - P2032: História de vida (4): Ainda sobre o meu irmão, o Srgt Mil Sérgio Neves, que foi amigo em Moçambique de Daniel Roxo (Tino Neves)

Moçambique > Mueda > CART 2369 (1968/70) > O 2º sargento miliciano Sérgio Neves

Foto: © Tino Neves (2007). Direitos reservados.



1. Mensagem enviada, em 26 de Julho, pelo Tino Neves, ex-1º Cabo Escriturário, CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego (Gabu), 1969/71:



Camarada Luís:

Serve este para responder às tuas dúvidas sobre o meu irmão, 2º. Sargento Mil Sérgio Neves (1). Mas primeiro que tudo, o meu agradecimento, pelo facto de editares o material que te mandei sobre o meu irmão.

Já tinham sido publicadas várias estórias sobre ele no sítio Moçambique – Guerra Colonial , enviadas por mim.

Sobre a relação que o meu irmão tinha com o Cmdt Daniel Roxo, quero fazer primeiro uma pequena introdução. O Sargento Neves era uma pessoa muito dada, e amigo do seu amigo, e por onde passava arranjava sempre grandes e bons amigos, pois era um grande falador, um extrovertido, e também um bom copo ou garrafa, conforme a situação. Quero com isto dizer que por norma é neste embiente que se convive, e se fica a conhecer os outros e se fica amigo do amigo, pois pode-se apresentar uma pessoa a outra, trocar-se algumas palavras, e depois fica por ali, se não houver algo como Vamos beber um copo (escusado será dizer que nessa altura era o que se fazia mais).

Portanto, quando o meu irmão se encontrava com o Cmdt Daniel Roxo, que não era todos os dias, porque o Cmdt DR, muitas vezes, passava semanas a fio no mato, havia copos com toda a certeza, e nessas alturas era então que o Cmdt DR o convidava para ir com ele para o mato (desconheço se para fazer alguma operação em especial, ou simplesmente para fazer alguma patrulha à zona).

Mas que eram grandes amigos, eram, porque quando ele me falou do Daniel Roxo pela primeira vez, ele descreveu-o assim: UM GRANDE AMIGO!... E alguns anos depois do 25 de Abril 1974 veio cá a Portugal um irmão do Cmdt Daniel Roxo que visitou o meu irmão.

Como operacional, só me contou que uma vez houve uma grande operação com Forças especiais (Páras, Fuzos, etc) e também FAP. Estando todas as tropas posicionadas a cercar o objectivo, começaram a fazer fogo com tudo ao seu alcance, mas numa determinada altura o meu irmão, que estava junto do Comandante da operação, reparou que não havia resposta do IN, sugeriu que acabassem o fogo e, se depois não houvesse resposta do IN, ele com a sua Secção iria lá entrar e sair pelo outro lado.

O Comandante aceitou a sua sugestão e avisou o resto das tropas de que se iria fazer aquilo.O resultado foi que o meu irmão fez precisamente o que prometeu, havia lá só meia dúzia de elementos IN (não me recordo se foram abatidos ou capturados) e várias armas e munições. Quando o meu irmão e a respectiva Secção apareceu no outro lado, nem queriam acreditar no que ele tinha feito.

Uma ressalva em relação ao editado no Blogue: Quando se diz Era bom, julgava eu, porque ele dizia-me que só se lembrava que era militar quando fazia de Sargento de Dia, porque na Secção dele era o único militar, e ele era o Chefe, e falava da esposa do Major Tal, da filha do Capitão tal, etc. etc.... Deve ler-se: (...) "porque na Secção dele era o único militar e o Chefe do restante pessoal que era civil, como por exemplo 'esposa do Major, a filha do Capitão, etc.', em suma os familiares dos oficiais de maior patente".

Quanto à fama e alcunha de Mercenário, talvez tenham exagerado muito. Foi ele que me disse que tinha ficado conhecido pelos amigos como o Mercenário.

Quanto ao escrito Em Mueda os cordeiros que chegam são os lobos que saem - Adeus Checas, ele disse-me, quando me mostrou a foto, que tinha sido ele que o tinha feito, daí estar junto da frase, como senda a sua assinatura, ele mesmo.

Aí vai mais uma foto do Mercenário.

Sem mais de momento

Um abraço

Tino Neves

Almada

___________

Nota dos editores:

(1) Vd. posts de:

6 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1928: Estórias de vida (3): Sérgio Neves, meu irmão: em Moçambique, o Mercenário, amigo do lendário Daniel Roxo (Tino Neves)



7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1933: Questões politicamente (in)correctas (30): os cordeiros e os lobos de Mueda ou a adrenalina da guerra (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P2031: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (57): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)

"Depois da flagelação de 19 de Março de 1969, em que perdi todos os meus livros (e discos),escrevi a muitos amigos que prontamente vieram em meu auxílio.

"O Mário Braga foi um deles. Tinha-o como uma referência da litertura neo-realista, sempre me dei bem com os seus contos,admirava-lhe a postura cívica. Ele veio até Missirá com livros de norte-americanos. Foi grande tradutor,e a sua mulher é nome obrigatório da tradução em Portugal. Falei já da tradução do Mário Braga, O silêncio e o Mar, de Vercors, que me deu uma grande companhia. Fui há dias ao seu aniversário, qualquer dia fará 90 anos"...



"Um dia fui visitar o Ruy Cinatti e ele disse-me: Estou a posar três vezes por semana para a minha vizinha. Vou ter quadro de artista, ela melhorou-me bastante.

"A Maluda estava na época no pico da notoriedade, já com as suas janelas e telhados. Vivia na Travessa da Palmeira nº12, 3º Esq., era portanto vizinha do Cinatti. Habituei-me a este belo quadro que estava pendurado na sala, não muito longe de um óleo do António Dacosta, obra que o Cinatti muito estimava. Um dia ofereceu-me esta fotografia que meti numa moldura e estava na minha secretária. Por testamento, este quadro faz hoje parte do património da Obra do Gaiato. É pena que não seja exposto num museu, nem que fosse a título temporário ou numa exposição dedicada ao Cinatti. Vamos esperar".

Fotos e legendas : © Beja Santos (2007). Direitos reservados.




Texto do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviado a 17 de Julho último. Correspondente ao episódio nº 57 (e último) da I Série da OperaçãoMacaréu à Vista, ou ao primeiro volume das suas memórias do Cuor, correpondendo cronologicamente ao seu 1º ano de comissão (1).

Caro Luís, aqui vai o texto revisto. Agora, começa a penitência da revisão geral, da ordenação da papelada toda. Estive a pensar, vou ordenar tudo por mesas: melhora os textos, dá uma melhor sequência ao leitor. Recebe um grande abraço do Mário.

Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)
por Beja Santos (2)

Para o Ruy Cinatti

Ruy, Dear Father:

Agradeço-lhe do coração a sua carta. Tem razão, sou palavroso, manipulador, forço as palavras como forço as pessoas. E o resultado vê - se nos meus pseudo-poemas e nas relações humanas. Sensibilizou-me o seu poema "De um postal seu":

Donde sei
pra onde
não se sabe
sou
retirante.

O resto
irá por carta
ou
pelo telefone
- . -
Que outros relatem
o meu cansaço.

Eu anuncio
o poder da morte
lembrando tudo o que me prende à vida.

Viver a pedir,
receber, porquanto
quem recebe deve
- estranha condição.

Eu nunca pedi.
Devo solidão.

As minhas notícias, hoje não são famosas. Continuo punido, não posso ir a férias, vou repensar a minha vida e as decisões que vou tomar com a Cristina. Por aqui, com o contigente de Missirá reduzido, com a obrigação diária de irmos a Mato de Cão e fazermos uma emboscada, com a tropa doente em plena época das chuvas, ainda com obras em acabamento, estou atado de pés e mãos. Há quem pretenda consolar-me em Bambadinca dizendo que não há mais exigências operacionais para Missirá e Finete... como se eu pudesse desdobrar-me ou fazer uma vida operacional deixando dois aquartelamentos às moscas, entregues à população civil.

Dentro do que é possível fazer, há um pouco mais de conforto neste quartel, não tem falhado a abastecimeto de arroz para a população civil, os salários são pagos a tempo e horas, não há neste tempo sinais das destruições de Março, conseguimos pagar a um professor para dar aulas às crianças, acabou-se um paiol de munições e combustíveis, os cozinheiros podem fazer esparguete com chouriço, feijão com carne enlatada, galinha com legumes em conserva, a padaria funciona, temos no frigorífico águas Perrier e Vichy, os inimigos de Missirá e Finete sabem que andamos constantemente na mata.

Procuramos ajudar as famílias nos seus cultivos, não é fácil mantermos aqui centenas de pessoas na época das sementeiras mas é muito bonito ver as hortas cheias de tomate e beringela, as papaias são deliciosas, a população civil leva sempre um reforço militar quando vai cultivar para as antigas tabancas, há uma, chamada Canturé, entre Missirá e Finete, cheia de cajueiros, laranjeiras e limoeiros, com imensos morros de baga-baga, que é uma beleza. Tenho as consciência tranquila de que há empenho, uma boa relação entre civis e militares, o inimigo em respeito. Mas não podemos fazer mais nada, não posso levar civis para os patrulhamentos, não os posso pôr nas emboscadas nem nos reforços.

Os guerrilheiros estão relativamente perto de Missirá, no Gambiel, onde trabalhou o Prof. Armando Cortesão, colega do Teixeira da Mota. A propósito, estive com ele no início de Julho, jantámos, ofereceu-me livros e revistas (daí na sua carta escrever: "O Teixeira da Mota diz-me que V. está metido num buraco, vivendo como uma toupeira", o que não é verdade pois não me escondo debaixo da terra). Estou doente e não sei como resistir a algumas dores. Há dias, numa emboscada, um dos meus colaboradores mais capazes perdeu a cabeça e chamou-me branco assassino, sei muito bem que são frases demenciais, gritadas no instante, mas deixam marcas profundas, laceram o tecido afectivo, destroem a confiança. Enfim, o primeiro ano de guerra está feito, não sei por quanto mais tempo estarei em Missirá, adoro as gentes, a floresta, pergunto-me às vezes como é que esta experiência enformará o jovem adulto que sou. Receba a saudade e a profunda estima.

Carta para Luís Zagalo Matos

Estimado Luís Zagalo,

Desculpe ser breve. A Missirá civil e militar quer notícias suas. A sua recordação está muito vincada nesta gente que cultiva o heroísmo. Posso compreender que V. pretende esquecer o que aqui viveu, mas asseguro-lhe que deixou memórias e amigos. Tornou-se uma lenda em Missirá. Todos falam de si como aquele que não tinha medo, que se dava ao respeito, que se interessava pelos problemas de todos. Estamos a viver um período difícil, subtraíram-nos mais soldados milícias, quase que não posso dar passo sem contar quem vai e quem fica, quem está doente ou vai de férias.

Despeço-me com uma novidade: regressou o bom senso, Enxalé voltou ao sector de Bambadinca. Eu vou comemorar, farei como V. fazia tantas vezes, meto-me ao caminho e vou almoçar com os camaradas de lá, na primeira oportunidade (espero que não se tenha esquecido que são cinquenta quilómetros ida e volta). A gente de Madina está muito activa, acabo de ter a notícia que foram descobertas nos Nhabijões várias canoas enterradas no lodo, com que eles fazem a cambança a partir da bolanha de Gambana. Ali perto, há dias, encontrei uma coluna de noite, escusa de me perguntar se havia mais militares ou população civil, morreu uma mulher, os outros fugiram porque um dos meus cabos perdeu a cabeça e desatou aos gritos. Escreva, por favor. Bem gostava de lhe mandar toda a estima que vejo no olhar de toda a gente quando se fala em Luís Zagalo.






Portugal > Bilhete postal > Edição Lifer - Porto, s/d. Colecção Postales Escudo de Oro > Impresso en España / Print in Spain, Barcelona / Nº 516 > Vouzela (Portugal) > Vista panorâmcia / Panoramic view / Vue panoramique...Enviado ao Alf Mil Mário Beja Santos, SPM 3778, por sua mãe:

S. Pedro do Sul, 27/8/1969:

Meu estimado e querido filho: Estou sem notícias tuas há uma semana. Mas possivelmente [há] atrasos na correspondência... De Lisboa, escrever-te-ei uma longa carta. Peço que rezes pelas minhas melhoras e que as águas produzam o seu efeito na minha saúde. Sigo com o Rudolfo para casa. Estive aqui 15 dias. Vês como é lindo, este sítio ? Muito tenho pensado em ti, meu querido filho. Como estarás de saúde ? (...).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Carta para Ângela Carlota Gonçalves Beja


Querida Mãezinha,

Fiquei muito contente em saber que as suas férias nas termas de S. Pedro do Sul lhe trouxeram mais saúde. Cá recebi os seus livros, adorei o do Ruben A. Como se recorda, dediquei-lhe um programa que fiz nos serviços mecanográficos, onde trabalhei, fou uma exposição em 1966, depois disso ele recebeu-me na sua casa perto do Estremoz quando lá fui com o Ventura Porfirio fazer a reportagem sobre uma colecção de Cristos para o jornal Encontro. A sua autobiografia (O mundo à minha procura) é uma obra-prima.

Venho informá-la de que a redacção da minha punição foi alterada mas os dois dias de punição mantêm-se, pelo que só a poderei ver no próximo ano, se Deus quiser. Peço-lhe que não se mortifique, a vida continua, eu vou resistir como me ensinou. Ainda chove muito por aqui, mas estou cheio de saúde, o trabalho prossegue. Pergunta-me se vou ficar aqui mais tempo. Nada sabemos, até há uns meses atrás as comissões estavam divididas em doze meses em locais de alto risco e doze meses em locais com mais tranquilidade (em Bolama, por exemplo, a dar instrução). Agora é diferente, permanecemos praticamente nos mesmos locais e sempre ligados à mesma tropa. Fico contente quanto a este aspecto, a minha relação com os soldados guineenses é fraternal, gosto muitíssimo deles.

Estou a preparar a documentação para me casar, indeciso quanto à deslocação da Cristina, dadas as novas circunstâncias. Rezo todos os dias pela sua saúde, sinto-me cada vez mais feliz pela formação que me deu, sem ela eu não teria sabido resistir a todas as dificuldades com que me defrontei e defronto. Aceite a muita saudade e receba muitos beijinhos.


Carta para Cristina Allen

Meu adorado Amor,

Começo por te dar notícias de um livro arrebatador que trouxe de Bissau, A sangue frio, do Truman Capote. A tradução é preciosa, da mulher do Mário Braga, a Maria Isabel. Ao princípio, eu não sabia se estava a ler uma reportagem, um documentário ou um romance. Capote anuncia que o livro se baseia em relatos oficiais e em entrevistas. Começa-se a ler e fica-se confuso: ficção ou realidade? Fala-se de uma aldeia onde houve o assassínio de uma familía de quatro pessoas. O autor descreve com tanta agudeza o pai austero, o dia-a-dia de uma mãe convencional e dois jovens perfeitamente triviais, que se vacila entre a reportagem e o romance. Os diálogos, as descrições, as entrevistas são impressionantes. Depois a polícia descobre os dois homicídas. Regressa a confusão: é o autor que conversa com os homicidas? O detective é mesmo aquele homem que se chama Dewey? Os dois homicidas mataram por ódio ou por dinheiro? São centenas de páginas que se lêem com grande comoção, tal o gigantismo da palavra.

Enquanto lia este romance-documentário (existirá este género literário?) eu interrogava-me, roído de inveja, se não era um livro como este que gostaria de escrever sobre esta guerra da Guiné. Felizmente que tenho consciência da falta de méritos literários, mas gostava de dignificar um dia a epopeia nestas terras dos Soncós.

Obrigado por tudo quanto me tens escrito, os sopros de coragem e de ternura que aqui fazes chegar. Para ser sincero contigo, como tu gostas, ainda não me refiz da acusação de "branco assassino". Sei que vai sarar, mas sei também que me vou olhar de maneira diferente. Mantendo-se a punição, e sabendo-se agora em definitivo que só voltarei em 1970 aí, e não antes de Agosto, vamos ter de tomar os dois decisões importantes. Do meu lado, vou reagir à ofensa desta punição injusta, vou procurar de novo recorrer. Já me disseram que não é fácil recorrer de uma punição de um oficial general, mas estou por tudo.

Prometo-te que volto a Bafatá, para refazer os nossos documentos, já que havia declarações mal preenchidas, não estava lá o teu nome completo, faltava até a morada do meu pai ( a que propósito é que tenho que pôr a morada do meu pai, sendo eu maior e vacinado?). Não sei se estou a ser praxado, mas também me informaram que tenho de pedir ao comandante de Bambadinca autorização para o enlace. E lá vou ouvir de novo o secretário do Sr. Administrador, com o seu bigodinho à Clark Gable, a explicar-me o que é um casamento com separação de bens e uma convenção antenupcial. Nós não vamos desmoralizar. Sê prudente, não sofras com tudo aquilo que não se deve sofrer só porque não se compreende. Vivemos os dois esta agrura, não deixemos que as lágrimas se percam na terra.

Assim se passou um ano desde que a chorar me acenaste para o "Uíge". Graças a ti, ao ânimo que me trazes todos os dias, aconteceu este milagre de eu ter aprendido a resistir, a saber ultrupassar as dificuldades. Aprendi a fazer contas, a saber o que era a gestão de um quartel, aprendi a meter-me na mata profunda, a encarar como uma obrigação o defender e o combater. Não sabia o que era matar, aconteceu e não sei se voltará a acontecer. Sinto-me muitas vezes entorpecido, tenho saudades do cinema, do teatro, da música, do bailado, das conferências, das exposições, dos meus queridos amigos. Mas a vida ensina-nos as prioridades de um momento, colamo-nos a elas, e, a uma dada altura, descobrimos que valeu a pena e aceitamos a mudança como uma dádiva do Senhor.

Dói muito não poder fazer planos para o futuro. Missirá, a sua defesa e o seu combate, é o que tenho ao alcance da mão. Promete-me que me continuas a ajudar. Um belo dia, descobriremos os dois que mais um ano se passou. E que estamos preparados para viver um grande amor. Muito cansado, e para te dizer a verdade doente, beijo-te daqui até Lisboa.

_______

Notas dos editores:

(1) Vd. último post desta série: 20 de Julho de 2007 >Guiné 63/74 - P1978: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (56): Mataste uma mulher, branco assassino!

(2) nVd. post de 22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1870: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (51): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (5)

domingo, 5 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2030: Estórias do Zé Teixeira (19): A G3ertrudes encravada que salvou duas vidas (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Guiné > CCAÇ 2381, Os Maiorais ( Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) > O 1ºCabo Enfermeiro Teixeira, em Empada, em 1969, com a sua namorada, a G3ertrudes, com quem irá manter um conflituosa relação que acabará mal. Quem lhe manda, entretanto, um grande Alfa Bravo (abraço) é um dos antigos Maiorais, o ex-Fur Mil Armas Pesadas Samouco, José Manuel Samouco.

Como o mundo é o pequeno e o nosso blogue já é grande, conheci-o pessoalmente, na Praia da Areia da Areia, a caminho da Praia de Vale de Frades, no nosso passeio matinal. Ele reconheceu-me, do blogue... Demos um grande abraço e ficámos um bom bocado à conversa. Ex-bancário, ex-dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Bancários do Sul e Ilhas (durante 10 anos), acaba de reformar-se, prometendo mandar algum material documental para o blogue. Tem casa aqui na Praia da Areia Branca. Falámos, inevitavelmente, dos Maiorais, do Alf Belo e do enfermeiro Teixeira, do blogue, de uma próxima ida à Guiné... Ao fim da tarde, ligo o computador e temos o Zé Teixeira em cena... Nem de propósito! Telepatia ? Boa continuação de férias para o pessoal da Tabanca Grande que se pode dar a esse luxo! Desculpa, Carlos, de meter o bedelho no teu serviço... (LG).

Foto: © Zé Teixeira (2006). Direitos reservados.


A G3ertrudes encravada que salvou duas vidas

por Zé Teixeira

O Encontro

Na quinzena de campo (IAO) que antecedeu a partida para Guiné, deram-me uma companheira, a namorada que, afirmaram, me ia acompanhar durante todo o tempo em que ia estar na guerra. Se houvesse alguma infelicidade, me acompanharia até ao caixão. Era uma G3 ou a G3ertrudes.

Disseram-me também para a tratar com carinho. Cuidar dela era cuidar de mim próprio.

1º. Trazê-la sempre limpa e asseada, sobretudo o cano, para que a baba, ao tentar sair, furiosa por não conseguir devido a sujidade, não rebentasse o cano. Pois, na pior das hipóteses, as tiras de aço voltavam-se para trás e atingiam o crânio do atirador, mandando-o de volta no sobretudo de madeira.

2º. Pôr-lhe creme (óleo) nas partes mais sensíveis, para responder rapidamente aos estímulos.

3º. Sempre travadinha, para não fazer asneiras.

4º. Nunca a abandonasse, pois, se perdida, dava origem no mínimo, mais meio ano de comissão. O importante era chegar, sempre, ao aquartelamento com uma G3ertrudes.

Durante os primeiros três meses, foi de facto, a minha companheira preferida e inseparável. Pendurada no meu ombro, ao lado da bolsa de enfermeiro. Deitada a meu lado à sombra de uma árvore protectora do sol e do IN, ou no chão de cimento na caserna em Ingoré.

Antes da partida, prometera a mim mesmo não lhe tocar nas partes sensíveis, porque vomitavam fogo, matavam vidas e isso não fazia parte da minha missão como enfermeiro e muito menos dos meus planos. Cantei de alegria, quando soube que as sortes me tinham destinado a ser enfermeiro, convencido que escaparia à guerra dura e que com o meu trabalho iria minimizar dores e, quem sabe, salvar vidas.

Da guerra dura e crua, não escapei, mas cumpri, apesar dos parcos conhecimentos da arte de enfermagem que me proporcionaram, a missão que me destinaram, com dedicação.


O início do fim de uma relação impossível

Ao fim de três meses de companhia dedicada, algo de grave se passou que me levou a repudiar a G3ertrudes para sempre.

Estávamos em plena época das chuvas. Partimos de Buba às seis da matina com destino a Aldeia Formosa , terra até então desconhecida, onde deveríamos chegar à tarde.

A CCAÇ 1792 veio buscar-nos. Os Lenços Azuis foram, assim, testemunhas no meu baptismo de fogo em aquartelamento. Mal chegámos (tínhamos ido ao seu encontro), fomos recebidos com fogo cruzado das duas margens do Rio, mas foi só o susto. Uma amostra do que nos ia esperar no futuro.

Para além de uma enorme coluna de viaturas carregadas com mantimentos, seguiam três obuses de 14 cm. Toneladas de aço a atravessar lamaçais contínuos, pontes montadas e desmontadas por nós e o IN à espreita.

Ao meio da tarde, depois de uma tempestade de... abelhas, quando tínhamos andado, apenas uns três quilómetros, uma traiçoeira mina destrói a 5.ª viatura, a das transmissões, levantando uma nuvem de lama. As transmissões terminaram a sua missão.

Ficámos isolados do mundo. Aparentemente, os quatro camaradas que voaram com o sopro, ficaram apenas combalidos, mas um deles, o rádiotelegrafista, projectado com o forte impacto, ao cair, ficou ferido interiormente. A morte foi-se aproximando lentamente. A vida dele caminhava para o fim devido à perda de sangue, que não podíamos controlar. Só uma evacuação urgente o salvaria. Tínhamos ficado sem comunicações.

Foram tremendamente dolorosos, para mim e para os enfermeiros das duas companhias, viver estes momentos, horas, de vida, a lutar sem armas, pela vida de um camarada que se apagava. Ele sentia que as forças lhe estavam a escapar. Nós sentíamo-nos impotentes para o salvar. Só o milagre do helicóptero, que não aparecia, porque ninguém sabia, que aquela jovem vida se estava a apagar.
- Já não vejo ! - gritava.
- Ajudem-me a levantar - balbuciava ele, mesmo no fim, com a esperança de ainda conseguir recuperar forças e poder gritar bem alto Safei-me! Mas não. Não era possível. O seu destino fora traçado, quando alguém pegou num lápis e riscou o nome dele, assinalando-o para ser mobilizado para a guerra. A guerra que ele não queria...

O sol começou a esconder-se como que envergonhado e o camarada irmão disse adeus à vida, serenamente, sem pressas, em silêncio...

Na azáfama de tratar os feridos, esqueci-me da G3ertrudes. Foi posta de lado, esquecida, algures. Agora, era preciso procurá-la. Onde? Tinha-lhe perdido o lugar.

Apareceu uma abandonada junto a uma árvore. Deitei-lhe a mão. Estava safo. E segui caminho.

Uma noite sem sono, com milhares de mosquitos a perseguirem-me e o IN à espreita.

Até que o Sol raiou de novo e com ele a ordem de marcha. A partida para o desconhecido. Chão que eu nunca pisara. Lama e mais lama. Mata cerrada. Grandes palmeiras que furaram a selva verdejante à procura do sol, apontavam o céu...

Não demorou muito a aparecer o IN. A coluna era demasiado longa e pesada. Lentamente lá se ia movendo à procura do destino. Deu para emboscarem a frente. Recuaram face à forma como ripostamos e voltaram a atacar a retaguarda.


O meu baptismo de fogo na mata

Deitado sobre os rodados das viaturas, com o coração a bater como nunca o tinha sentido, escutava o tiroteio que me rodeava, ao ritmo dos rebentamentos das morteiradas que me faziam vibrar violentamente os tímpanos. A G3ertrudes, a meu lado muito quietinha, quando senti que estava a ser incomodado directamente. Alguém estava a querer brincar às guerrinhas comigo. As balas assobiavam muito por perto e vinham do alto. Olhei para as palmeiras e vislumbrei fogachos de luz.

A raiva contida, pela morte do camarada, veio ao de cima.
- Ah! G3ertrudes de um raio! Anda cá.

Apontar, disparar e... um tremendo coice, um som seco e abafado, seguido de um ruído estranho.

À minha frente jazia a G3ertrudes, com o cano esventrado em tiras. Uma espécie de fole, ou balão.

Fui desarmado para que pudesse cumprir o voto de não matar na guerra para onde me atiraram sem me perguntar.

Deus esteve comigo neste momento. Contrariamente ao que me disseram na instrução de armamento, o cano não abriu em leque, o que a acontecer, muito provavelmente se viria espetar no meu crânio e era a morte certa. O tapa-chamas foi o impecilho que me salvou a vida. Uf! Desta já escapei.

A G3 que no dia anterior tinha encontrado abandonada pertencia ao Salvaterra Bernardes (*), natural de Salvaterra de Magos. Um jovem português, deficiente motor e deficiente mental, que assassinos (não encontro nome mais apropriado)´apuraram para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialização como atirador e veio cair na CCAÇ 2381, quando já aguardávamos embarque para a Guiné.

A arma na mão deste homem, não servia para nada. Não tinha utilidade prática. Limpeza para quê? O cano estava cheio de areia. A bala encontrou resistência e provocou o seu rebentamento, mas estava lá o tapa-chamas.

Salvou-me a vida, impedindo o rebentamento em leque e... talvez, assim se tenha salvo a vida do IN que procurava atingir-me.

Restou apenas encolher-me e esperar que a fraca pontaria do adversário desse resultado, o que aconteceu para meu bem.

Não houve feridos de nossa parte. A coluna seguiu caminho.


O divórcio

A meio da tarde a aviação localizou-nos, o héli veio buscar os feridos do dia anterior e a vida continuou. Chegamos ao destino ao fim da tarde, ou seja vinte e quatro horas depois do previsto. Localizei a minha arma na mão do Salvaterra, fiz o relatório que me exigiram para abater a arma destruída e... para não mais ser tentado a fazer fogo e correr o risco de matar vidas humanas, fui entregar a minha arma ao quarteleiro, sob a ameaça do capitão que me daria uma porrada se me apanhasse sem a minha G3ertrudes.

Fui só e apenas enfermeiro durante o resto da comissão. Afinal era a minha missão (2).


Zé Teixeira
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Nota do autor:

(*) Vd. a descrição que o José Belo faz do Soldado Salvaterra [no post anterior]:

Pobre Salvaterra que aparentava ser uma figura de comédia. Uma caricatura barata de Soldado. Desde o quico, às botas, do cinturão à G3, tudo nele estava mal vestido, mal assentado. Um sorriso contínuo, não irónico, mas de assustado nervoso. Uma cara continuamente contorcida por pequenos espasmos, enquanto a saliva lhe escorria continuamente de um dos cantos da boca.

Sofria de grave doença motora, atrofiamento muscular, acompanhados de acentuada debilidade mental. Era totalmente impossível ao pobre do Soldado Salvaterra controlar os mais simples movimentos. Acertar o passo pelos outros quando marchava, coordenar os movimentos dos braços, e muito menos, com o movimento das pernas.

Na ordem unida tornava-se o momento certo das gargalhadas gerais, perante a crescente irritação, e falta de paciência, dos responsáveis. Nas aulas de ginástica o circo repetia-se! Tropeçava continuamente sempre que pretendia correr. Caía desamparado, ao solo, ao pretender saltar um simples degrau de escada. O primeiro degrau da escada!
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Notas do editor:

(1) Vd. último post desta série > 18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1853: Estórias do Zé Teixeira (17): Quando não se acautela a vida, a morte pode espreitar

(2) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

Guiné 63/74 - P2029: Da Suécia com saudade (3) (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (3): O Soldado Salvaterra ou mais uma peça de carne para canhão

Mais um trabalho do camarada ex-Alf José Belo (que vive na Suécia desde 1976), como sempre encaminhado até nós pelo nosso companheiro Zé Teixeira.
Ambos pertenceram ao 2.º GComb da CCAÇ 2381, Os Maiorais (Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).

Tudo servia para carne para canhão
por José Belo (1)

Era cedo. Uma daquelas manhãs geladas, húmidas, cinzentas, dos invernos de Abrantes.
O Pelotão ia formando na parada para mais um dia de instrução enquanto se aguardava o embarque para a Guiné.

Um dos Furriéis dirigiu-se para mim, acompanhado por um Soldado.
-Meu Aspirante, este é o Salvaterra! Apresentou-se ontem. Faz parte da Companhia e foi colocado no 2.º Pelotão!

Olhei-o pasmado. À minha frente estava o que aparentava ser uma figura de comédia. Uma caricatura barata de Soldado. Desde o quico, às botas, do cinturão à G-3, tudo nele estava mal vestido, mal assentado. Um sorriso contínuo, não irónico, mas de assustado nervoso. Uma cara continuamente contorcida por pequenos espasmos, enquanto a saliva lhe escorria continuamente de um dos cantos da boca.

Tentei, com a ajuda do Furriel, melhorar, dentro do possível, todo o caos que era o fardamento do Soldado. Foi o nosso primeiro contacto!

A partir daí, o Soldado Salvaterra tornou-se no involuntário palhaço do Pelotão. Sofria de grave doença motora, atrofiamento muscular, acompanhados de acentuada debilidade mental. Era totalmente impossível ao pobre do Soldado Salvaterra controlar os mais simples movimentos. Acertar o passo pelos outros quando marchava, coordenar os movimentos dos braços e, muito menos, com o movimento das pernas.

Na ordem unida tornava-se o momento certo das gargalhadas gerais, perante a crescente irritação, e falta de paciência, dos responsáveis. Nas aulas de ginástica o circo repetia-se! Tropeçava continuamente sempre que pretendia correr. Caía, desamparado, ao solo, ao pretender saltar um simples degrau de escada. O primeiro degrau da escada!

OS ANOS SESSENTA! O período em que nas escolas, jornais, televisão e rádio, nos
bombardeavam com o Portugal do Minho a Timor. Dos terroristas fanáticos, que pretendiam destruir a civilização Cristã - Ocidental em Africa, subvertendo os bons nativos resultantes de séculos de Portugalidade - missionária!

O período em que Camões foi apropriado para ser usado, e abusado, como bandeira da... Lusitaneidade! Não o Luís Vaz, exilado, empobrecido - vivendo de amigos - nos extremos do Império. O que nem dinheiro tinha para a viagem de regresso! Mas antes o Luís de Camões! Sacro! Divinizado de espada em punho...e Lusíadas debaixo do braço!

Era o período em que Os Descobrimentos e os descobridores quase se tornavam conversa de pequeno-almoço em família. Tanto se falava, a nível educacional e governamental, no Infante D. Henrique que não sobrava tempo para lembrar que o mesmo tinha introduzido a lucrativa escravatura negra na Europa de então, tornando-se um dos mais ricos do Reino.

Gravura do Livro da Terceira Classe, Ed. Domingos Barreira, 4ª Ed., 1958, por onde todos estudámos e aprendemos a amar a Pátria. Era, no entanto, um manual profundamente ideológico... servindo o propósito de um Estado, sem legitimidade democrática, de educar o povo, do berço à tumba.... (LG)

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

No Portugal dos anos sessenta quem seriam os Excelentíssimos Membros da Junta Médica que apurou o Soldado Salvaterra para todo o serviço Militar? Quem seriam os Excelentíssimos responsáveis militares que, depois de O VEREM, acabaram por o mobilizar como Atirador de Infantaria para a Guiné? Com essas Excelências, de certo modo, as contas ficaram provisoriamente assentes aquando dos primeiros tempos de Abril-74.

Mas comigo próprio? O Aspirante comandante do pelotão em que o Soldado Português - Salvaterra era o MÁRTIR, o palhaço, o momento constante de irritação? O jovem conduzido, ou melhor, imbuído, a repetir...gestas de antanho? Não era a nossa geração que se apropriava da História; era a História que se apropriava de nós!

Mais do que o remorso e a vergonha, é a pergunta: - Como foi possível que o Aspirante, militarão, ingénuo e estúpido, não tenha então reagido? Não tenha sequer exigido da parte dos superiores a atenção para o caso do pobre doente que era o Soldado Salvaterra?

Hoje, olhando-me ao espelho da memória, o que mais me assusta, é que ENTÃO ... nem sequer me dei ao trabalho de nisso pensar!

SOLDADO DE PORTUGAL - SALVATERRA BERNARDES - PRESENTE!

(O Maioral do 2.º Pelotão da CCAÇ 2381 – Salvaterra Bernardes - já faleceu.)

José Belo
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Nota de CV:

(1) Vd. postas anteriores desta série:

6 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1818: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (1): Hino à Guiné que nós conhecemos

26 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 – P1883: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70 (2): Periquitos, no Rio Cacheu, sem munições