quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2134: História de vida (6): A minha convocação para o Curso de Capitães Milicianos (Ferreira Neto)

Ferreira Neto, ex-Cap Mil, CART 2340 (Canjambari, Jumbembem e Nhacra, 1968/69).



1. É sabido que um dos grandes problemas do Regime para manter a Guerra Colonial, foi, a certa altura, arranjar Capitães para comandar o grande número de Companhias enviadas para os Teatros de Operações.

Os Capitães do Quadro Permanente tinham, na sua maioria, efectuado já duas e três Comissões de Serviço, e já apresentavam um desgaste físico e psicológico muito acentuado. Os que não conseguiam evitar mais uma Comissão, tudo faziam para baixar aos Hospitais Militares depois de mobilizados.

Como os Capitães que baixavam e que posteriormente eram abatidos ao efectivo das Companhias, não eram substituídos em tempo útil, eram os Alferes Milicianos que aguentavam a guerra como podiam. Como por vezes também os Alferes baixavam, até os Furriéis Milicianos comandavam Pelotões.

A solução encontrada pelas Chefias Militares foi recorrer aos Oficiais Milicianos na situação de Disponibilidade, que por sorte (ou azar) não tinham sido mobilizados durante o tempo normal de Serviço Militar Obrigatório.

Eram chamados de surpresa para frequentar um Curso acelerado de Capitães Milicianos e lá iam comandar Companhias Operacionais, tendo muitos deles deixado para trás a família já constituída e uma vida profissional estabilizada.

Esta situação foi vivida pelo nosso camarada Ferreira Neto, ex-Cap Mil, Comandante da CART 2340 (1).



2. A minha convocação para o Curso de Capitães Milicianos
Por Ferreira Neto

Terminado o meu serviço militar obrigatório em 15 de Fevereiro de 1959, iniciei a minha vida profissional em Novembro.

Com a vida estabilizada, casei-me em 18 de Agosto de 1960.

Entretando, em 4 de Fevereiro de 1961, os movimentos separatistas nas nossas colónias iniciaram a suas actividades.

Como tinha passado à disponibilidade, havia menos de um ano atrás, fiquei na expectativa de ser mobilizado para a guerra. Expectativa que continuou por muitos meses, com o adicional desconforto na minha vida. No entanto, com o passar dos meses esse estado foi-se desvanecendo, até porque, o número de cursos de oficiais milicianos era maior, e por consequência a quantidade que se interpunha entre mim e uma possível mobilização tornava cada vez mais distante. A consequente probabilidade de ser alistado diminuía a olhos vistos para meu descanso e da restante família. Assim fui progredindo na minha vida profissional e melhoria de proventos do meu trabalho.

Para minha surpresa, em Dezembro de 1966 fui convocado para me apresentar em Mafra, como Tenente, para frequentar o Curso de Capitães Milicianos, que se iniciaria em Janeiro do ano seguinte.

E assim foi, com a consequente diminuição dos meus proventos do trabalho, que passaram a ser muito menos de metade do que auferia até então, separação da família que só me era possível ver aos fins-de-semana, acrescido das despesas de viagem para tal acto.

Nesta altura tinha já um filho com 5 anos de idade. Com a minha mulher, tínhamos planeado ter mais um rebento. A situação descrita iria fazer com que tivessemos que optar por três hipóteses:
(i) - desistir da ideia de ter mais filhos,
(ii) - de os ter depois do meu regresso, ou
(iii)- de iniciar antes da minha partida.

A primeira hipótese não nos agradava, a segunda seria um intervalo bastante grande de idades entre os dois, o que não era aconselhável, pelo que optámos pela terceira, fazendo preces para que eu regressasse vivo.

Tal aconteceu, só que a minha mulher não teve o acompanhamento sempre desejado do marido, eu tinha embarcado para a Guiné no dia 10 de Janeiro de 1968. Nasceu uma menina em Julho desse mesmo ano. Felizmente tive oportunidade de, em Setembro, aquando da minha primeira licença, assistir ao seu baptismo.

Em Fevereiro de 1969, na segunda licença já a cachopinha se encontrava com seis meses e toda bonitinha à custa da minha mulher que teve que se haver quase só com a criação da criaturinha.

Eis o que me aconteceu e também em circunstâncias piores a centenas de outros e consequentes traumas de guerra, ainda hoje precariamente atendidos.

Ferreira Neto
Ex-Cap Mil
CART 2340
___________

Nota do co-editor CV:

(1) Vd. post de 14 de Agosto de 2007> Guiné 63/74 - P2046: Tabanca Grande (31): Apresenta-se Joaquim Lúcio Ferreira Neto, ex-Cap Mil (CART 2340, Canjambari, Jumbembem, Nhacra, 1968/69)

Guiné 63/74 - P2133: Guileje: Simpósio Internacional (1-7 de Março de 2008)(4): Hino de Gandembel, quem se lembra da música ? (Pepito / Luís Graça)

Guiné > Regiã de Tombali > Ponte Balana > Novembro de 2000 > Um grupo de camaradas de visita a Guiné, onde se incluiram os nossos tertulianos Albano Costa, Hugo Costa, Zé Teixeira, Xico Allen e Casimiro Vieira da Silva... Ponte Balana era um destacamento de Gandembel, no tempo do Idálio Reis (CCAÇ 2317, 1968/69).

Foto: © Albano Costa (2006). Direitos reservados.


1.Mensagem do Pepito, com data de hoje:


Amigo Luís:

Para o Simpósio de Guiledje (1) estamos a pensar organizar num dia à noite, uma sessão de músicas, danças e poesia, daquele tempo. Para isso ocorreu-nos introduzir também cantigas que os militares cantavam nas casernas em Guiledje e Gandembel.

Sei que há um famoso Hino de Gandembel (tenho a letra que saiu no Blogue)(2), mas falta a música, que sei ser de um fado conhecido. Será que o Idálio se
lembra da música? Era importante ter uma gravação para os nossos músicos
poderem interpretar a cantiga (3).

Mais te informo que o site sobre o Simpósio estará cá fora na primeira
semana de Outubro, podendo as pessoas colaborar com opiniões, comentários e
sugestões.

abraço
pepito

2. Comentário de L.G.:

Eu sei trautear a música, mas não a consigo identificar... Tal como acontecia com o Cancioneiro do Niassa (o mais completo e mais célebre de todos os cancioneiros da guerra do ultramar / guerra colonial, até por que foi proibido pela censura do regime político de então), a malta na Guiné usava as músicas de fados, baladas e outras canções em voga...

Pepito, vou/vamos fazer um esforço por identicar a música e arranjar uma gravação do famoso hino de Gandembel que trauteávamos em Bissau, nós, os velhinhos e os periquitos...

Lembro-me bem que, nos primeiros tempos da minha comissão, em Contuboel e depois em Bambadinca (CCAÇ 12, 1969/71), era de facto Gandembel, juntamente com Madina do Boé, um dos lugares mais míticos, mais aterradores e mais fantasmagóricos do sul... E eu ainda nem sequer conhecia os relatos dos camaradas que lá viveram, como o Idálio Reis e os seus camaradas da CCAÇ 2317!...

Hoje diria que o hino de Gandembel é uma peça bem humorada, satírica, com uma letra típica do poeta de caserna, cuja função era exorcizar os medos e os fantasmas dos tugas... Desconheço o seu autor, pode até não ser ninguém da CCAÇ 2317, mas um qualquer trovador da guerra do ar condicionado do QG ou da 5ª Rep - o Café Bento... Pode ter sido escrito, numa esplanada de Bissau, com base em relatos que vinham do sul... Não sei, estou a especular... Talvez o Idálio nos possa responder a esta dupla questão: (i) quem escreveu a letra; e (ii) que música acompanhava a sua execução ?

O hino era cantarolado por nós, em noites de copos, de tainadas, enquanto se descansava e se esperava pela próxima saída para o mato... Era usado como se fosse uma espécie de talismã, mezinho ou ritual de exorcismo... Mesmo que não soubessemos onde ficava exactamente Gandembel nem a Ponte Balana, ficámos mais protegidos contra as ameaças, os perigos e os fantasmas que por lá pairavam, no sul, e que eram os mesmos que íamos descobrindo na zona leste...

Em meados de 1969, Gandembel (abandonado em Janeiro desse ano) era pura e simplesmente a visão do... inferno! Gandembel e Madina do Boé (também abandonado uns dias depois, já em Fevereiro)... Guileje virá muito mais tarde (Maio de 1973)...

Pepito, vou tentar arranjar-te e mandar-te o CD com as canções do Niassa, para ficares com uma ideia. É uma edição da EMI/Valentim de Carvalho, 1999. Há gravações originais (Rádio Metangula, 1969) na Página do José Rabaça Gaspar > Cancioneiro do Niassa.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

6 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2084: Guileje: Simpósio Internacional (1-7 Março de 2008) (1): Uma iniciativa a que se associa, com orgulho, o nosso blogue

7 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2086: Guileje: Simpósio Internacional (1-7 de Março de 2008) (2): Programa provisório

(2) Vd. post de 30 de Dezembro de 2005 > e 30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel (José Teixeira / Luís Graça)


Hino de Gandembel

Ó Gandembel das morteiradas,
Dos abrigos de madeira
Onde nós, pobres soldados,
Imitamos a toupeira.

- Meu Alferes, uma saída! -
Tudo começa a correr.
- Não é pr’aqui, é pr’ponte! (i),
Logo se ouve dizer.

Ó Gandembel,
És alvo das canhoadas,
Verilaites (ii) e morteiradas.
Ó Gandembel,
Refúgio de vampiros,
Onde se ligam os rádios
Ao som de estrondos e tiros.

A comida principal
É arroz, massa e feijão.
P’ra se ir ao dabliucê (ii)
É preciso protecção.

Gandembel, encantador,
És um campo de nudismo,
Onde o fogo de artifício
É feito p’lo terrorismo.

Temos por v’zinhos Balana (i),
Do outro lado o Guileje,
E ao som das canhoadas
Só a Gê-Três (iv) te protege.

Bebida, diz que nem pó,
Só chocolate ou leitinho;
Patacão, diz que não há,
Acontece o mesmo ao vinho!

Recolha: José Teixeira / Revisão de texto: L.G.
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Notas de L.G.:

(i) A famosa ponte sobre o Rio Balana, destacamento da CCAÇ 2317 (que estava em Gandembel, Abr 68/Jan 69)
(ii) Verylights
(iii) WC
(iv) A espingarda automática G-3







(3) Vd. posts sobre os vários Cancioneiros que até a esta data já conseguimos recolher no nosso blogue. Quando tiver tempo, vou fazer uma análise de conteúdo de todas as letras !

Bafatá

31 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXV: Cancioneiro da Cavalaria de Bafatá (Radiotelegrafista Tavares) (1): Obras em Piche

31 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXVI: Cancioneiro da Cavalaria de Bafatá (Radiotelegrafista Tavares) (2): Piche, BART 2857

11 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCII: Cancioneiro da Cavalaria de Bafatá (Radiotelegrafista Tavares) (3): O Hotel do RC 8

11 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCV: Cancioneiro da Cavalaria de Bafatá (Radiotelegrafista Tavares) (4): Lavantamento de rancho

Bambadinca

24 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1695: Cancioneiro de Bambadinca: Isto é tão bera (Gabriel Gonçalves)

Canjadude

28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIII: Cancioneiro de Canjadude (CCAÇ 5, Gatos Pretos)

Empada

1 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P828: Cancioneiro de Empada (Xico Allen)

Gandembel

30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel (Zé Teixeira)

Mansoa (autor: Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-furriel miliciano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612, 1974)

1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1): o esplendor de Portugal

1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVII: Cancioneiro de Mansoa (2): Guiné, do Cumeré a Brá

7 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVI: Cancioneiro de Mansoa (3): um mosquiteiro barato para um pira...

10 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLIV: Cancioneiro de Mansoa (4): a arte de ser 'ranger'

1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDIX: Cancioneiro de Mansoa (5): Para além do paludismo

19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLIX: Cancioneiro de Mansoa (6): O pesadelo das minas

15 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVIII: Cancioneiro de Mansoa (7): Os periquitos do pós-guerra

31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXI: Cancioneiro de Mansoa (8): a amizade e a camaradagem ou o comando da 38ª

3 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P837: Cancioneiro de Mansoa (9): A mais alta de todas as traições

Xime:

31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1009: Cancioneiro do Xime (1): A canção da fome (Manuel Moreira, CART 1746)

Niassa (Moçambique)

11 de Maio de 2004 > Blogantologia(s) - XI: Guerra Colonial: Cancioneiro do Niassa (1) (Luís Graça)

(...) Há uma edição discográfica das Canções do Niassa, que resultaram da colaboração do actor João Maria Pinto (que no início da década de 1970 fez, com um grupo de amigos, as primeiras gravações do Cancioneiro do Niassa, vendendo depois as cassetes piratas aos soldados recém chegados) e ao produtor Laurent Filipe: Canções proibidas: O Cancioneiro do Niassa. Lisboa: EMI - Valentim de Carvalho, Música, Lda. 1999. CD. 7243 5 20797 2 8.

Foram seleccionadas e gravadas 13 canções, cantadas pelo João Maria Pinto e seus convidados (entre outros, Carlos do Carmo, Rui Veloso, Paulo Carvalho, Janita Salomé, João Afonso):

1. Ventos de Guerra - João Maria Pinto/Rui Veloso;

2. Taberna do Diabo - João Maria Pinto/Gouveia Ferreira;

3. Fado do Checa - Paulo de Carvalho;

4. O Turra das Minas - João Maria Pinto/Rui Veloso;

5. Erva Lá Na Picada - João Maria Pinto/Janita Salomé;

6. Luta p'la Vida - João Maria Pinto;

7. Neutel d'Abreu - João Maria Pinto/Mariana Abrunheiro;

8. Bocas Bocas - Lura, João Maria Pinto/Mingo Rangel;

9. Fado do Miliciano - Janita Salomé;

10. O Fado do desertor - Carlos do Carmo;

11. O fado do Antoninho - Teresa Tapadas;

12. Hino de Vila Cabral - Carlos Macedo/João Maria Pinto;

13. O Hino do Lunho - João Maria Pinto e outros (João Afonso, Ana Picoito, Tetvocal...).

Destas 13 canções, apenas se conhecem os autores de duas: Gouveia Ferreira (Taberna do Diabo) e Carlos Macedo (Hino de Vila Cabral). (...).

Vd. ainda:

(i) Página do nosso camarada Jorge Santos > A Guerra Colonial > Canções do Niassa

(ii) Página do José Rabaça Gaspar > Cancioneiro do Niassa

"(...) as CANÇÕES que fazem parte da Gravação da Rádio Metangula, da Marinha, em 1969, na voz de João Peneque (Como é evidente, pedimos desculpa das falhas na gravação, que foi recuperada a partir de uma cassete gravada em 1969, pelos bons serviços dos amigos Manuel Aleixo e Manuel Cruz, a quem deixamos os melhores agradecimentos) " (...)

Este camarada fez parte da CART 2326, Os Lobos de Maniamba (Moçambique, 1968/70).

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2132: Convívios (30): CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72 (Paulo Santiago)

O Convívio da CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72) ocorreu perto de Alfeizerão no dia 23 de Setembro de 2007


Mensagem de Paulo Santiago, no dia 24 de Setembro de 2007.

Luís
Todos os dias vou ao blogue, mas a minha participação (escrevendo) tem sido nula.

Foram as férias, são algumas reuniões devido ao ínicio de época para o clube do qual sou director, foi a intervenção cirúrgica da minha mulher e, como não podia deixar de acontecer, foi também a campanha dos Lobos em França.

Devo informar que o assunto do Batista não foi esquecido. Ando a reunir uns elementos para enviar ao Coronel Carlos Clemente que já contactou com a entidade própia, a fim de dar um passado militar correcto aquele nosso camarada, prisioneiro de guerra.

Ontem realizou-se, perto de Alfezeirão, o Almoço Convívio da CCAÇ 2701, no qual estiveram presentes cerca de uma centena de pessoas, ex-militares e seus familiares.

O Tony Tavares, conhecido do blogue, veio da República Checa com a Katerina (uma ternura).

O Bernardo, ex-soldado, veio também propositadamente de França.

Esteve presente uma representação (pequena) do PEL CAÇ NAT 53.

Ficou marcado encontro para Gaia no próximo ano.

Seguem algumas fotos do convívio.

Abraço
Paulo Santiago
P.S.-Espero por uma vitória de Portugal, amanhã, frente à Roménia.



Representação do PEL CAÇ NAT 53 > Ex-Fur Mil Duarte, ex-Alf Mil Santiago e ex-1.ºs Cabos Cosme e Verdete


Paulo Santiago ladeado por Katerina Krocilova e Tony Tavares


O ex-Fur Mil Santos, falando, ladeado pelo ex-Fur Mil Belarmino e pelo ex-Alf Mil Mota


Mesa onde se vê, de frente, o Coronel Carlos Clemente, Comandante da CCAÇ 2701
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Edição: CV

Guiné 63/74 - P2131: Mutilação Genital Feminina: É crime, diz explicitamente o novo Código Penal (A. Marques Lopes / Luís Graça)

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > 1969 > A festa do fanado em Bambadinca. O Fanado, como rito de passagem, é comum aos diversos grupos étnico-linguísticos da Guiné-Bissau. No entanto, é sobretudo entre os islamizados (fulas, mandingas e beafadas) que se pratica a Mutilação Genital Feminina (MGF), prática essa que é criminalizada no nosso novo Código Penal (1). Há quem, em nome do relativismo cultural, tenha tido e mantido até agora uma posição ambígua face à MFG. Pessoalmente, considero e sempre considerei a MGF (deste que estive na Guiné) uma prática (social, cultural e médica) absolutamente indefensável... (LG).

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


1. O nosso camarada A. Marques Lopes, sempre atento ao que se passa no mundo e arredores, mandou-nos há dias a seguinte notícia:


Código Penal inclui mutilação genital feminina > Associações imigrantes, partidos políticos e vítimas aplaudem alteração


14 de Setembro de 2007/ Marta Clemente, da Agência Lusa


Associações de imigrantes guineenses, partidos políticos e vítimas congratulam-se com a inclusão no novo Código Penal da Mutilação Genital Feminina [MGF], uma prática para a qual os médicos em Portugal ainda estão pouco sensibilizados.

«Concordo com a inclusão da MGF no código penal. Até na Guiné-Bissau devia ser», disse o dirigente da Associação Guineense de Solidariedade Social, Fernando Ká, à agência Lusa (2).

A mutilação genital feminina é uma antiga tradição em 28 países africanos, entre os quais a Guiné-Bissau, entre a população muçulmana, e consiste na remoção total ou parcial dos órgãos genitais femininos.

Em declarações à Lusa, o dirigente associativo defendeu que «nem tudo o que é cultural é bom» e lembrou que a MGF é feita em «condições de higiene deploráveis, para além da violência em si porque é feito a sangue frio».

Fernando Ká disse ainda não ter conhecimento de que esta prática seja realizada em Portugal.

Para acabar com a discussão que o Código Penal criava em torno desta questão, por não ser claro, o novo, que entra em vigor no sábado, já prevê a penalização para crimes que tirem ou afectem o prazer sexual.

Uma alteração que foi recebida com agrado pelo CDS-PP e pelo Bloco de Esquerda (BE), que há muito a reclamavam.

Para a deputada do BE, Helena Pinto, a inclusão da MGF no actual Código Penal era «uma questão de interpretação». «Era preciso interpretar nesse sentido. O novo (Código Penal) é mais claro e este tipo de crime não fica sujeito a interpretação», disse a deputada, acrescentando ser «positivo que exista esta clarificação».

Para o deputado Nuno Magalhães, do CDS-PP, «foi dado um avanço» na lei, na medida em que a MGF «fica juridicamente enquadrada», mas ainda não é esta a resposta que o partido pretendia. «Não é a nossa solução, mas registamos que foi um avanço», disse o deputado, acrescentando que o CDS-PP defende a criação de um crime autónomo.

A actual lei não é clara quanto à penalização da MGF, uma vez que apenas refere como crime quem privar outra pessoa de «importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente» ou quem tirar ou afectar, «de maneira grave, (...) a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem».

O novo Código Penal alterou este último artigo, e acrescentou quem «tirar ou afectar, de maneira grave, (...) a capacidade de fruição sexual».


2. Comentário de L.G., editor:

Já aqui temos falado, embora pouco, deste problema no nosso blogue, a propósito da nossa (mal) conhecida festa do fanado (3). Retomo o que escrevi num dos primeiros posts do nosso blogue, e espero que ilustres juristas da nossa Tabanca Grande, como o Jorge Cabral, possam e queiram também participar neste debate (participámos os dois, em Maio do ano passado, numa conferência sobre este tópico; confesso, entretanto, que ainda não tive tempo para ler o novo Código Penal que, de resto, não é meu livro de cabeceira):

(i) Em tempos comentei, em 5 de Agosto de 2002, nos Fóruns do Público > Cidadania - Mutilações sexuais: Salvem as meninas da Guiné (um tema de discussão que hoje só está disponível em arquivo), o seguinte post publicado originalmente por Barbarian Girl, em 16 de Maio de 2002:

Estou indignada com o que acabo de ler, numa reportagem do Público, assinada pela Sofia Branco. Não imaginava, na minha jovem e santa ignorância, que em pleno Século XXI ainda se praticassem mutilações sexuais como a excisão do clitóris nas meninas como parte dos rituais de iniciação à vida adulta...

O mais espantoso é que isto se passa num país irmão(!), onde se fala (?) português, que foi um colónia portuguesa(!), por onde passaram muitos portugueses. Mais: se calhar estas práticas continuam a fazer-se em Portugal, no seio das famílias guineenses islamizadas que por cá se vão instalando, com a complacência ou a conivência de muita gente, a começar pelas autoridades de saúde.

Nunca vi ninguém denunciar esta coisa horrorosa. Vocês sabiam disto, vocês tinham conhecimento disto ? Tenho vergonha da minha ignorância e do meu silêncio involuntariamente cúmplice. Por isso vejo-me na obrigação de publicar aqui, com a devida vénia, o artigo da Sofia Branco, apesar da sua extensão. O que podemos fazer para ajudar a salvar as meninas da Guiné ? Refiro-me a nós, mulheres portuguesas, a começar pelas universitárias. Bárbara.


(ii) Luís Graça:

A Sofia Branco [, jornalista do Público, e destacada figura da luta contra a MGF,] volta a este tema, com um notável e bem documentado dossiê. Parabéns ao Público e à Sofia por este excelente trabalho de jornalismo de investigação. Parabéns pela sua sensibilidade, empenhamento e rigor no tratamento deste tema marginal.

Espero que a Bárbara tenha lido a reportagem ou tome conhecimento do dossiê, disponível on line, nos dossiês do Público.pt: Sofia Branco (2002)- O holocausto silencioso das mulheres a quem continuam a extrair o clítoris. Público. 4 de Agosto de 2002)

Não é difícil a qualquer um de nós, homens e mulheres formatados pela cultura do Ocidente, ficarmos hoje siderados e indignados pelo conhecimento da prática da Mutilação Genital Feminina (abreviadamente, MGF). Aconteceu-me comigo, quando há trinta e tal anos a descobri na Guiné Portuguesa (hoje Guiné-Bissau), nomeadamente entre os fulas (a principal tribo islamizada do território e um dos mais importantes aliados dos tugas).

Só estranho é que a indignação, de que se faz eco o director do Público, no seu editorial de ontem, chegue tão tarde a Portugal. Durante décadas e décadas, todos nós, portugueses (autoridades coloniais, tropas, oficiais do quadro, milicianos, soldados, marinheiros, capelães militares, missionários, comerciantes, antropólogos, médicos, professores, jornalistas...), convivemos com esta realidade. Uns melhor, outros pior. A festa do fanado era difícil de passar despercebida a qualquer branco que conhecesse minimamente o chão fula e o seu povo, ou que convivesse com a ppoluação das tabancas, como era o meu caso.

Na Guiné, entre 1969 e 1971, na Zona leste, nunca vi os tugas (a começar por Spínola e a sua brilhante entourage de especialistas em acção psicossocial, com alguma formação portanto em ciências da saúde e em ciências sociais e humanas) minimamente preocupados com aquilo que hoje é uma evidente violação dos direitos humanos, além de um problema de saúde pública. Dir-me-ão que o Governador e Comandante-Chefe tinha mais que fazer do que usar a sua reconhecida autoridade e prestígio junto dos fulas para influenciar algumas das suas práticas mais aberrantes... Não creio, por outro lado, que no staff do brihgadeiro e, mais tarde, general Spínola houvesse suficiente sensibilidade sócio-antropológica para o problema da MGF que todos os anos matava e mutilava crianças guineenses.

Na época em que lá estive (entre Maio de 1969 e Março de 1971) também não os vi sequer preocupados com a simples promoção do estatuto da mulher guineense. A psico, a famosa acção psicológica, tinha muito pouco de promoção social... Do Minho a Timor, a festa do fanado (e a MGF praticada em pleno mato pelas fanatecas ou excisadoras, fora dos olhares profanos, dessacralizadores, dos homens) fazia parte do folclore ultramarino e era aceite pelos nossos antropólogos, formados pelo ISCPU - Instituto Superior de Ciências Políticas e Ultramarinas, em nome do relativismo cultural. Falava-se, de resto, eufemisticamente em circuncisão, e nomeadamente masculina (enquanto a feminina era praticamente ignorada ou escamoteada)!

E, no entanto, durante a guerra colonial o povo fula foi praticamente todo ele militarizado, mobilizado e martirizado em nome da defesa da pátria comum (que era obviamente uma ficção do regime político que tanto oprimia os tugas da metrópole como os nharros das colónias). A grande maioria dos soldados da minha Companhia de Caçadores nº 12 (CCAÇ 12) eram de origem fula.

Os fulas também foram vítimas da guerra (todos eles, homens, mulheres e crianças!), já que as suas aldeias, também elas, estavam organizadas em autodefesa e, por isso, eram potenciais alvos dos ataques da guerrilha do PAIGC. Os fulas deram o principal contingente da tão sonhada força africana com que Spínola queria ganhar a guerra (ou pelo menos ganhar tempo...).

Hoje é fácil cairmos na tentação de diabolizar os fulas (o principal esteio da comunidade muçulmana guineense, a par dos seus rivais históricos, os mandingas) não só pelo erro histórico da aliança dos seus chefes tribais com o colonialismo dos tugas (e que nós corrompíamos, de uma maneira ou de outra) como pelo seu modo cruel de dominação sexual, social e económica das mulheres.

Dito isto, que fique claro, aos olhos dos meus amigos guineenses, fulas, futa-fulas, mandingas ou outros, que a MGF no meu país é um crime. E como tal deve ser prevenida e reprimida. Parafraseando o editorial do Público, não há, não pode haver, respeito pela identidade multicultural dos povos que incentive, tolere, ignore ou escamoteie as violações dos direitos universais.

Qual é a situação actual na Guiné ? Embora a excisão (nas raparigas) e a circuncisão (nos rapazes) continue a ser uma prática corrente, tem-se procurado formas alternativas à MGF, valorizando os aspectos culturais e simbólicos da festa do fanado e não discriminando as fanatecas (para quem a festa do fanado é o seu sustento e a sua razão de ser).

Segundo fontes da OMS, citadas pela União Parlamentar Internacional (UPI), estimava-se que, nos finais da década de 1990, na Guiné-Bissau, a taxa de prevalência da MGF fosse da ordme dos 50% e afectando 100% das mulheres islamizadas. No caso das muheres das etnias fulas e mandingas, estima-se que 70 80% sejam excisadas. Nas zonas urbanas (Bissau e pouco mais...)calcula-se que a MGF atinja 20 a 30% das raparigas e das mulheres. No entanto, não há estatísticas oficiais, ou outras, de confiança, sobre a frequência e a gravidade desta prática na pátria de Amílcar Cabral.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. Art. 144º do Código Penal > Ofensa à integridade física grave > "Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a [...] b) Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação, de fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem; [...] é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos". O que é novo nos crimes de ofensa à integridade física grave é que passaram a comportar, explicitamente, uma nova circunstância - a supressão ou afectação da capacidade de fruição sexual, que engloba práticas como a MGF.

(2) Na Guiné-Bissau, há legislação que impede a prática da MGF, através do artigo 115º do Código Penal (ofensas corporais graves). As pessoas que a praticam (por exemplo, as fanatecas) podem ser condenadas até cinco anos de prisão efectiva... O problema da Guiné-Bissau (e de outros países, onde a prática da MGF é tolerada ou autorizada) não é falta de legislação... Recentemente a a Eritreia proibiu a MGF, com o novo Código Penal que entrou em vigor em 31 de Março de 2007. Esta prática (a excisão feminina) atinge 89 por cento das mulheres, islamizadas e cristianizadas, deste país do corno de África. Com a Eritreia passam a ser 16 os países que já criminalizam a MFG, num total de 28 onde essa prática é milenar e ainda tem larga aceitação social...

(3) Vd. posts de:

10 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1580: Fanado ou Mutilação Genital Feminina: Mulher e direitos humanos: ontem e hoje (Luís Graça / Jorge Cabral)

15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVI: Conferência sobre a Mutilação Genital Feminina (Luís Graça)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVII: A festa do fanado ou a cruel Mutilação Genital Feminina (Jorge Cabral)

3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(5): ecumenismo e festa do fanado

4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)

Guiné 63/74 - P2130: Álbum das Glórias (28): O Aquartelamento novo de Nova Lamego (Gabu), inaugurado em 31 de Janeiro de 1971 (Tino Neves)




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS do BCAÇ 2893 (1969/71) > 1970 > Tino Neves e os seus amigos, divertindo-se no novo aquartelamento, em construção.



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS do BCAÇ 2893 (1969/71) > Cerimónia de Inauguração do Quartel Novo em 31 de Janeiro de 1971 (1).


Fotos: ©
Tino Neves (2007). Direitos reservados.



1. Mensagem, com data de 15 de Junho último, do Tino Neves, ex-1º Cabo Escriturário, CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego (Gabu), 1969/71 (2):

Camaradas Luís e Vinhal:

O Luís há dias atrás pediu-me que lhe enviasse fotos de Nova Lamego. Resolvi mandar algumas do Aquartelamento novo, que fica a cerca de 1 ou 2 kms da Vila. Digo que fica porque as instalações ainda existem e estão a ser utilizadas pelos soldados do Exército da Guiné-Bissau, como mostra numa foto cedida pelo ex-Furriel Mil José Couto, que foi lá em Fevereiro de 2005, e já foi publicada no blogue em 7 Dezembro de 2006 (1).

Essa mesma foto mostra a placa de homenagem aos mortos do nosso Batalhão (BCAÇ 2893), virada ao contrário e agora a servir de homenagem ao Amílcar Cabral.

Outras fotos (ver em cima) foram tiradas no meu tempo enquanto o Aquartelamento estava em construção. Íamos lá de visita ver como corriam as mesmas, e aproveitávamos para nos divertirmos, fazendo corridas de carros de mão das obras.

Uma delas foi tirada no preciso momento em que se ouviu um estrondo (ainda hoje não sei o que foi), e nós reagimos atirando-mos para o chão. Todos reagiram com cambalhota e eu com voo de cabeça.

As outras são na inauguração do Aquartelamento, em que fui eu o escolhido para içar a bandeira. Outras duas fotos das forças em parada já foram publicadas no post de 7 de Dezembro de 2007.

Sem mais,

Um abraço

Tino Neves
Almada

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 7 de Dezembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1349: Quartel Novo de Nova Lamego: paredes finas e chapa de zinco (Tino Neves)

(2) Vd. posts de:

3 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1146: Constantino Neves, ex-1º Cabo Escriturário da CCS do BCAÇ 2893 (Lamego, 1969/71)

3 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1145: Na fonte... com o Inimigo (ou a água quando nasce é para todos) (Tino Neves, CCS do BCAÇ 2893, Nova Lamego)

9 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1160: Lembranças de Nova Lamego (Tino Neves, CCS/BCAÇ 2893): A fatídica noite de 15 de Novembro de 1970

Guiné 63/74 - P2129: Quero depositar um ramo de flores em Gandembel (José Teixeira)



Guiné > Região de Quínara > Buba > José Teixeira com o seu conterrâneo Mário Pinto (da CCAÇ 2317, Gandembel , 1968/69). Na primeira foto, o obus 10,5 e ao fundo o rio (... Bafatá).


Edição: CV

1. O Post 2117 - Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) (10) - O terror das Colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje) (1), inspirou um trabalho do nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , (1968/70).

Fotos: © José Teixeira (2007). Direitos reservados

Mensagem de 24 de Setembro de 2007

Camaradas editores:

Sáude, paz e felicidade

O Idálio Reis continua a sua estória sobre Gandembel (1). É impressionante a forma como descreve a sua odiseia. Creio que ninguém ficou indiferente.

Junto mais um pequeno texto. Foi esta a forma que encontrei para lhe testemunhar a minha admiração e gratidão.

Para ele um grande abraço.

Junto também uma foto tirada em Buba em que estou eu e o meu conterrâneo Mário Pinto, cujo nome está mencionado no texto.

Fraternal abraço do
J.Teixeira



2. Quero voltar a Gandembel. Quero depositar um ramo de flores em Gandembel.
por Zé Teixeira

Ao ler o último texto do querido amigo Idálio Reis sobre a odisseia Gandembel (1), quero curvar-me em profunda homenagem aos camaradas, dele especialmente e nossos também, que regaram com o seu sangue aquela terra vermelha e inóspita à altura, e que hoje tão bem nos recebe. Os que deixaram lá a sua jovem vida e os que sofreram na carne as agruras do sofrimento na pele e no espírito, e que ainda hoje, possivelmente, não se conseguiram libertar das marcas que lhe ficaram.

Quero felicitá-lo pela coragem de passar ao papel para a história futura, num português profundo de fácil leitura e compreensão, a verdadeira história da odisseia que a CCAÇ 2317 e tantas outras que com ela partilharam mais directa ou indirectamente a aventura, onde eu ouso incluir-me também, perdoem-me a imodéstia (2).

Recordações

O meu espírito vagueou teimosamente pelas picadas que vão de Buba a Gandembel, passando pela bolanha dos passarinhos, a terrível bolanha , ponto de encontro com o IN. Tão verdejante e linda que era, mas tão temida.

Mesmo ali ao lado estava Sare Tuto, (soube-o em 2005 quando lá voltei) base inimiga, de onde partiam os guerrilheiros que gostavam de nos dar as boas-vindas à sua maneira.

Seguia-se Nhala, pequena tabanca que nos servia de apoio e possibilitava uma pausa para descanso, outras tabancas perdidas no mapa, abandonadas e ou destruídas como Samba Sábali e Uane, até se chegar a Mampatá Forreá.

Para tentar enganar o IN, por vezes desviávamos caminho por Sinchâ Cherno e Bolola, voltando de novo este local magnifico (Mampatá), com uma população maravilhosa e acolhedora onde passei os seis melhores meses da minha história de guerra, no centro da guerra.

Quer de um caminho (picada) quer do outro, vêm-me à memória, tristes recordações de emboscadas, minas e mortes, sobretudo as mortes de um lado e do outro. Afloram-me dois momentos terríveis:

O camarada da Companhia dos Lenços Azuis que vi morrer, porque teve o azar de estar na 5ª viatura da coluna, quando esta pisou uma [mina] A/C. Estava a comunicar via rádio (era a viatura do rádio e ele o rádiotelegrafista) para Buba a informar que tínhamos passado a bolanha antes de Sinchã Cherno, onde se teve de montar uma ponte, que nos acompanhava sempre, para, como em Changue Laia, ultrapassarmos um rio, que em época de chuvas nos impedia o caminho. Até aquele momento não tinha havido azar, a não ser um ataque de abelhas. Foi aquele o primeiro terrível momento que nos levou uma vida jovem, que eu e os companheiros de jornada não conseguimos salvar por falta de assistência hospitalar. Teve uma hemorragia interna que lhe roubou a vida em poucas horas. Outros momentos de azar se seguiram nesta coluna, que fez cerca de trinta quilómetros em 36 horas, com minas e emboscadas, mortos e feridos, onde eu definitivamente me zanguei com a D.G3ertrudes.

O amargo olhar para o milícia que ao regressar de uma outra coluna, pela mesma picada, trazia como troféu, as orelhas dos inimigos que abatera num combate feroz, em que nos valeu a coragem e determinação do seu grupo, ao avançar de peito erguido na direcção do IN, que flagelava a coluna violentamente.

De Mampatá até Aldeia Formosa, respirava-se fundo. O medo era esbatido pela segurança de duas pequenas tabancas, Afia e Bakar Dado, perdidas na estrada que lhe davam vida e espantavam o Inimigo, até ao dia em que esta última é visitada, queimada e destruída pelo IN.

Um ou dois dias depois partia-se de novo a caminho de Gandembel. Os mesmos homens, as mesmas viaturas que nem chegavam a descarregar. Até Mampatá, apesar de tudo, era caminho de esperança. Depois seguia-se por Chamarra, Changue Laia, Ponte Balana. Por fim, Gandembel das morteiradas que normalmente vinham logo de seguida, ou pelo menos uns tiritos de costureirinha, como forma de o IN nos lembrar que estavam por perto, mesmo quando estrategicamente não nos esperava pelo caminho ou não nos montava as terríveis armadilhas.

Eu estive lá. Eu vivi de perto. Eu sofri muitos destes momentos dramáticos. Eu tropecei nos buracos dos fornilhos onde caíram os camaradas. Onde iam caindo uns, logo outros se levantavam de dentes cerrados a lutar pela vida que lhes restava. O espanto da minha gente ao ver os buracos onde cabiam GMCs.

Ao chegar a Gandembel pela primeira vez, avistei um colega da escola primária e grande amigo – o Mário Pinto. Corri para ele pela Parada fora. Estranhei gestos e gritos de camaradas que não conhecia:
- Sai daí, encosta-te a um abrigo!

A justificação veio pouco depois. Ninguém atravessava a Parada em linha recta, mas sim a coberto da protecção dos abrigos colocados estrategicamente. O IN tinha por hábito fazer tiro ao alvo, algures do lado de lá da fronteira, empoleirado em árvores ou então enviava de vez em quando umas morteiradas, como aconteceu momentos depois.

Martela-me a memória com a mensagem arrepiante de rádio, depois de largos momentos angustiantes para mim, ao ouvir em Mampatá o fogo cerrado, indicativo de que uma das colunas tinha caído numa emboscada. Não sabia se era a coluna oriunda de Aldeia Formosa se a de Gandembel que estava a beber pela medida grande .
Não me tocara a má sorte de acompanhar esta coluna. Acompanhei-a à distância.

De Mampatá ouvi, via rádio, a mensagem desesperante, a qual foi como que uma ordem de retirada para a minha Companhia, que avançava com a coluna de mantimentos.
-Retirem ! Retirem! Voltem para trás, senão ficamos cá todos. Nós vamos retirar. Temos 4 mortos e manga de feridos. Retirem!(*)

A retirada foi a sorte dos meus camaradas, estavam lá semeadas 68 minas A/P que foram levantadas quinze dias depois.

Diz o Idálio que estranhamente houve um hiato nas colunas, começando o abastecimento a fazer- se por via aérea.Tal aconteceu de facto, mas houve razões concretas que ele naturalmente desconhece.

Como é sabido, o Spínola tinha poderes para nomear os comandantes dos Sub-Sectores, cabendo a Lisboa nomear os comandantes de Sector. Buba era um Sector, Aldeia Formosa um Sub-Sector, comandado pelo seu homem de confiança, Major Azeredo Leme.


Por que acabaram as colunas no tempo das chuvas

Dá-se uma coluna de Aldeia para Buba, em plena época das chuvas, com a estrada intragável. O comandante da coluna faz saber ao Comandante do Sector de Buba que não havia condições para a coluna de regresso se fazer, face ao estado do terreno.
Perante a ordem de seguir em frente, enviou um rádio ao Major Azeredo Leme, contando-lhe a realidade e a decisão superior que teria de cumprir. Este comunicou para o homem grande. O resultado foi aparecer em Buba uma ordem para a coluna se fazer, devendo o Comandante de Sector seguir na mesma para constatar a realidade do terreno.

Ao fim da tarde, lá chegou a coluna de regresso a Mampatá, onde eu estava. Com ela vinha um sujeito gorducho e cansado, era o Coronel Comandante, cuja primeira atitude, ao chegar Aldeia Formosa, foi decretar que até ao fim das chuvas não haveria mais colunas.

Quantas vidas se pouparam ? Não sei. Sei sim que a região acalmou um pouco e não foram só os Páras que contribuíram, sem lhe querer tirar o mérito, pois foram na realidade, com a sua acção, um factor dissuasivo e um travão à acção do inimigo.

Creio que os camaradas que viveram esta terrível odisseia, os que lá deixaram a vida e todos os outros, mesmo os que regressaram incólumes, merecem bem que seja colocado em Gandembel um ramo de flores em sua memória e na memória de todos os que de um lado ou do outro sofreram por Gandembel.

Em Fevereiro do próximo ano conto voltar lá, agora em paz, à procura da minha paz interior. Quero depositar um ramo de flores em Gandembel que reflicta a vida e a esperança de um punhado de jovens que, só e apenas, sonhavam em regressar a casa sãos e salvos, e a vida e esperança de um povo que lutava pela liberdade e felicidade a que tinham direito, mas que passados tantos anos, ainda se encontram tão longe de serem alcançadas.

José Teixeira

(*) Afinal foram 5 mortos. Um foi localizado quinze dias depois, por um camarada meu na célebre coluna apoiada pelos Páras, onde levantámos 68 minas A/P.

________________

Notas de CV:

(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2007>Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)

(2) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2128: Bibliografia de uma guerra (18): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte II)




Uma imagem repetida vezes sem conta.
Da CArt 3492. Álvaro Basto

BARCAS NOVAS

Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de armas
Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens
Barcas novas
levam guerra
As armas não lavram terra
São de guerra as barcas novas
ao mar mandadas com homens
Barcas novas são mandadas sobre o mar
Não lavram terra com armas
os homens
Nelas mandaram meter
os homens com sua guerra
Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas
em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas

Fiama, 1966
__________

Porquê tantas vidas, em tantas naus, durante tantos anos?

"Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países". Aristides Pereira (1).

As primeiras denúncias internacionais sobre o colonialismo na Guiné, os caminhos de Amílcar Cabral e dos seus companheiros em direcção à independência, os esforços, independentemente do que se possa dizer, de Rafael Barbosa e Fernando Fortes (*) pela emancipação dos seus povos, o espectro do Pindjiguiti sempre a pairar, a luta pela unidade, a proliferação de partidos, uniões e grupos, e a projecção que o PAIGC alcançou internacionalmente, é o resumo do que hoje tratamos.

A Aristides Pereira e à Editorial Notícias, a vénia que é devida. E o agradecimento, que lhes é devido também (**), pela oportunidade que nos dão de melhor compreendermos as Histórias de três países.

V. Briote, co-editor
__________

A luta clandestina na Guiné

As primeiras denúncias internacionais sobre o colonialismo português, surgiram em 1959/60, e foram feitas em Londres por Basil Davidson (1) e Abel Djassi, pseudónimo de Amílcar Cabral.

Amílcar Cabral, logo após o regresso à Guiné em 1952, tentou criar um clube desportivo e cultural com a colaboração de alguns elementos da pequena burguesia (2), movimentação que despertou suspeitas nas autoridades coloniais e levou à sua interdição de permanecer no território, movimentação essa que, parece, ter estado na origem da instalação de um posto da PIDE em Bissau.

Após a fundação do PAI (Partido Africano para a Independência), em Setembro de 1956, as primeiras células foram criadas em Bissau, Bolama e Bafatá, recorrendo a alguns elementos da pequena burguesia aí instalados. Para apalpar o terreno, começaram por apresentar pequenas reivindicações de ordem social, e foram difundindo o sentimento nacionalista entre os assalariados e os trabalhadores dos transportes fluviais.

A independência do Gana em 1957 e as perspectivas da Guiné-Conacri e do Senegal se tornarem a breve prazo independentes, “adubou” o terreno e chegou a pensar-se que, à semelhança do que estava a acontecer com os vizinhos, também a Guiné-Bissau se iria tornar independente sem necessidade do recurso à luta armada.

Amílcar Cabral e Rafael Barbosa nos fins dos anos 50

A partir de 1958, numerosos jovens guineenses foram para o Senegal e para a Guiné-Conacri, em busca de melhores condições de vida.
Numa primeira fase, em Conacri, o médico são-tomense Hugo Azancot de Menezes acolheu-os e enquadrou-os.
Com o acordo das autoridades de Conacri, Azancot funda o Movimento de Libertação dos Territórios sob a Dominação Portuguesa em 1959. Mais tarde, essa autorização viria a ser-lhe retirada, com o argumento, pensa-se, de manter uma estratégia errática.

Logo nesse mesmo ano, a Rádio Nacional da Guiné-Conacri pôs ao dispor do Movimento uma hora semanal de emissão. O programa emitido em crioulo e em algumas línguas locais, para além do português, ganhou rápida audiência. Era um programa cujo conteúdo se baseava em informações que provinham do próprio território da Guiné, transmitidas principalmente por Rafael Barbosa a Domingos Pina Araújo, na altura residente em Koldá (Senegal), que as fazia chegar a Conacri.
Entretanto, em Bissau, movidos pela expectativa do acesso a uma rápida independência, Rafael Barbosa e Epifânio Amado transformaram o MLG em MLCG (Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde), a que aderiram Inácio Semedo, Fernando Fortes a outros elementos já pertencentes ao MLG.
Os incidentes do Pindjiguiti acabaram por reforçar o sentimento nacionalista. Aproveitando esse acontecimento, Amílcar Cabral passou uns dias em Bissau, entre 14 e 21 de Setembro, tendo acordado com Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Rafael Barbosa e João da Silva Rosa, que largaria tudo e seguiria para a República da Guiné, de onde enviaria directrizes.

A unidade foi difícil desde o início. Os primeiros sinais de desconfiança do hegemonismo dos cabo-verdianos na luta de emancipação, traduziram-se na ruptura entre o PAI e o MLGC protagonizada por José Francisco Gomes “Maneta”, na altura principal dirigente do MLGC, que interditou as actividades de Rafael Barbosa, acusando-o de vender a Guiné aos Cabo-Verdianos.

Nessa altura, o cruzamento de informações falsas é impressionante.
Aristides Pereira escreve: “Na altura, Maneta chegou a abdicar das funções de presidente em favor de Fernando Fortes, tendo novamente chamado a si a presidência quando se deu conta de que Rafael Barbosa e Fernando Fortes estavam sintonizados. (…) Maneta foi informado por carta da ida de Rafael Barbosa a Dacar e dos contactos que aí manteve com Amílcar. Nessa mesma carta, Vicente Có informa falsamente Maneta que o PAIGC já tinha formado um governo só de cabo-verdianos para mandarem numa Guiné independente…”

Entre 1958 e 1961, alguns dirigentes do MLG e do PAI partilharam o mesmo espaço político e alguns acreditavam mesmo que, a curto prazo, as negociações para a independência iriam ter lugar. No entanto vários acontecimentos levaram a uma onda de repressão por parte das autoridades coloniais: a mobilização crescente no interior da Guiné, as mensagens ao governo português exigindo o início das conversações, as primeiras acções armadas do MLG de François Mendy no norte da Guiné e o assalto às prisões de Luanda por nacionalistas angolanos.

As detenções efectuadas pela PIDE em 1961 e 1962 obrigaram o PAI à clandestinidade e ao desmantelamento do MLG em Bissau, levando à dispersão de alguns destacados dirigentes, que se fixaram no Senegal e na República da Guiné.

Entretanto, em Conacri, Amílcar estruturava o PAI e fazia-o crescer. Criou o Lar dos Combatentes (3) para receber os jovens enviados de Bissau por Rafael Barbosa, que depressa ficou sobrelotado.

Depois de alguns esforços de elementos do MLG, nomeadamente por parte do “Maneta”, tentando desacreditar Amílcar Cabral junto das autoridades da República da Guiné-Conacri, tarefa que se revelou infrutífera, o PAIGC acabou por convencer Sekou Touré da seriedade da sua luta.

“Maneta”, impedido de regressar a Bissau, acabou por se estabelecer em Dacar, juntando-se aos elementos do MLG aí residentes, continuando a combater mais o PAIGC que o colonialismo português.

Em Abril de 1961, deu-se a primeira grande onda de prisões feita pela PIDE. José Lacerda, João da Silva Rosa, Paulo Fernandes, Tomás Cabral de Almada, Alfredo d’Alva, Elisée Turpin, Paulo Gomes Fernandes, Nicandro Barreto, Epifânio Souto Amado, Ladislau Justado, Fernando Fortes, entre outros, foram detidos.

Rafael Barbosa entrou na clandestinidade, vindo a ser preso em Fevereiro de 1962, juntamente com outros, durante um assalto da PIDE à sede clandestina do PAIGC, para os lados de Bissalanca, ficando desmantelada a rede clandestina do partido, tendo ainda sido apreendidos numerosos documentos e algumas armas.

Uma segunda vaga de prisões atingiu Momo Turé, Jorge Monteiro, Constantino Lopes da Costa e outros. Alguns foram desterrados para o Tarrafal. Ao Rafael Barbosa, a troco de colaboração, ao que se diz, foi-lhe fixada residência em Bissau, com a obrigatoriedade de se apresentar diariamente à polícia.
Em 1964, Arnaldo Shultz, desaconselhou a restituição à liberdade dos arguidos, acabando por lhes serem fixadas residência em colónias penais durante quatro anos, uns na Ilha das Galinhas, outros em Mocâmedes, Angola, no campo de S. Nicolau.

Em 3 de Agosto, é criada a FLING, enquanto Amílcar Cabral prosseguia a tarefa de consolidação do PAIGC em Conacri, ganhando dia a dia a confiança das autoridades da República da Guiné.

Em 1962, sob a influência de César Alvarenga, é formada a UNPG (União dos Povos da Guiné). Enquanto o PAIGC se decide pela acção armada no sul da Guiné, interrompendo estradas e cortando os fios telefónicos, a UNPG dirigiu uma carta ao governo colonial, pedindo autonomia e soberania.
O Presidente do Conselho Português recebeu em Lisboa, em 1963, Benjamim Pinto Bull, como dirigente da UNPG.


Benjamim Pinto Bull

Salazar, de início disponível para o diálogo, acabou, posteriormente, por o inviabilizar. Assim, enquanto a UNPG perdia credibilidade, o PAIGC, interna e externamente via reafirmada a sua.

Lendo Aristides Pereira fica-se com uma ideia bem mais clara desse conturbado período, em busca da unidade da luta pela independência do território sob dominação portuguesa:
“ (…) é difícil, senão mesmo impossível, a reconstituição do ambiente em que se moviam, na década de 60, os movimentos de libertação tanto na República da Guiné como no Senegal, na medida em que, por ali pulularam inúmeros partidos e movimentos que a pretexto de tudo e de nada eram fundados e refundidos. Ainda mais difícil é a análise do verdadeiro alcance das acções desses movimentos, devido ao seu elevado número e à sua divisão em “raças” ou “religiões”. Acresce ainda o facto de que vários dirigentes desses agrupamentos aparecerem referenciados em várias formações políticas ao mesmo tempo e às vezes até em formações políticas rivais.

Esse ambiente de desorientação foi agravado quando, em face do avanço da luta, a 29 de Setembro de 1964, as autoridades de Senegal reconheceram o PAIGC como o único movimento representante do povo da Guiné, dando-lhe a facilidade de desenvolver actividades políticas no Senegal, proibindo, no entanto, terminantemente o trânsito e a permanência de material de guerra no seu território”.

Numerosos foram os elementos recrutados, que pela influência de Rafael Barbosa, em muito influenciaram o trabalho de mobilização do PAIGC, permitindo alargar a rede clandestina a outros pontos do território.
Grande parte desta gente acabou, no entanto, por ser presa, formando o primeiro grupo de nacionalistas a ser enviado para a Ilha das Galinhas.
Gerações posteriores de combatentes tiveram sempre por detrás a mão de Rafael Barbosa, afirma Aristides Pereira.

Assim aconteceu com o grupo de jovens do grupo musical “Cobiana Djazz” (4) (José Carlos Schwartz, Aliu Bari, Duco Castro Fernandes, Isaac Dias Ferreira, Firmino Cabral, Januário Sano e João Saul de Carvalho Neves), que, de forma subtil, foi consciencializando as populações através das suas criações musicais.

A afirmação internacional do PAIGC

Em Dezembro de 1960, realizou-se em Londres uma conferência na qual participaram pela primeira vez as organizações anti-colonialistas – MPLA, PAI e Goa League – representadas por Mário de Andrade, Viriato Cruz, Américo Boa Vida, João Cabral e Aristides Pereira.

Após a extinção do Movimento para a Independência dos Territórios sob Dominação Portuguesa, Amílcar Cabral com outros camaradas criou em Conacri o MLGCV (5).

No Lar dos Combatentes, em Conacri, finda a formação ideológica e política, os voluntários eram enviados para o interior da Guiné, com o objectivo de mobilizar os camponeses.

Foi sob a responsabilidade de Malan Sanhá que entraram no território a quase totalidade das armas que o PAIGC fez sair clandestinamente do porto de Conacri, as mesmas que serviram para o ataque ao quartel de Tite em 23 de Janeiro de 1963. Diz Aristides Pereira, que nesta transferência de armas, houve baixas de importantes responsáveis do PAIGC, como foi o caso de Vitorino Costa, que “encontrando-se cercado pelo exército colonial e na tentativa heróica de salvar os camaradas que com ele agiam na região de Quinara, sucumbiu perante as balas inimigas” (Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta,…pág. 148).
__________

Fotos e notas de rodapé extraídas ou resumidas do "Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países", de Aristides Pereira, Editorial Notícias

(*) Fernando Fortes, ao que se sabe, envolveu-se em tudo o que fosse partido ou movimento contra a presença portuguesa na Guiné.

(**) Destaque para o trabalho que Leopoldo Amado tem vindo a desenvolver como historiador da Guiné e de Cabo Verde, em especial sobre os anos recentes.

(1) Escritor e africanista inglês

(2) Martinho Ramos, Isidoro Ramos, João Vaz, Elisée Turpin, José M. Davyes, Godofredo de Sousa, Crates Nunes e Estêvão da Silva

(3) “Para a luta de libertação, eu enviei mais de 500 pessoas. Quase toda a malta que saiu daqui de Bissau eu é que mandei. Umaro Djaló, Constantino Teixeira, Buscardini, Chico Mendes, Malan Sanha, Rui Djassi, Vitorino Costa, Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Tiago Aleluia Lopes, Juvêncio Gomes, etc….”

(4) José Carlos Schwartz (1949/1977), considerado o pioneiro da música moderna guineense, esteve preso na ilha das Galinhas. Após a independência dirigiu o Departamento de Arte e Cultura do Comissariado da Juventude e Desportos e, mais tarde, foi encarregado de negócios da Guiné-Bissau em Cuba, onde morreu vítima de um acidente de aviação.

(5) “Movimento para a Libertação da Guiné e Cabo Verde”, 1960

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Nota de vb:

(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P2114: Bibliografia de uma guerra (17): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte I)

Guiné 63/74 - P2127: História de vida (5): Sérgio Neves, meu irmão, um homem bom (Tino Neves)

Moçambique > 1968 > Sargento Miliciano Sérgio Neves (esteve anteriormente na Guiné, na CCAÇ 674, como furriel miliciano (Zona Leste, Fajonquito, 1964). Trabalhou no Arsenal do Alfeite. Morreu em 1997.

Foto: © Tino Neves (2007). Direitos reservados.



1. Texto do Tino Neves, ex-1º Cabo Escriturário, CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego (Gabu), 1969/71). Enviado em 11 de Setembro de 2007:

Camaradas da Tabanca Grande:

Aqui vai mais umas pequenas histórias sobre o meu irmão Sérgio Faustino das Neves, Furriel Miliciano na Guiné (Fajonquito, 1964/66), e 2º. Sargento Miliciano em Moçambique (Lourenço Marques, Mueda, Vila Cabral, Nampula, 1968/70) (1).

Não diria que são histórias, mas sim uns pequenos apontamentos, sobre as suas qualidades como homem.


(A)Começo por pela mais recente, cá em Portugal nos anos 90.


Estava o meu irmão a viver no Algarve, em Luz de Tavira, com os meus pais, e tendo nessa altura muita dificuldade em arranjar trabalho, pois como eu já devo ter dado a entender numa história atrás contada, o meu irmão tinha um grande problema com o álcool, não podia beber sequer um dedal do mesmo, que ficava logo grogue mas quando trabalhava ou estava a fazer alguma coisa com responsabilidade, conseguia aguentar várias semanas ou até meses sem beber.

Em dada altura, surgiu a oportunidade de trabalhar numa conhecida empresa de construções de Abrantes, que estava na construção de estradas naquela zona, e como o meu irmão tinha a carta de condução profissional, para todos os veículos, conseguiu arranjar para andar com um camião de combustíveis para abastecer as máquinas a operar.

Estava a correr tudo bem, estava todo o mundo contente com ele, até que um dia o meu irmão assistiu a uma discussão entre o encarregado das obras, o responsável, (o Big Boss) ou lá quem era, com um preto da Guiné, pois ele tentava-se exprimir através do crioulo da Guiné, que o meu irmão sabia falar muito bem.

E o que ele ouviu, não gostou nada, por isso no final do dia foi procurar saber mais a fundo o que se teria passado, e procurou primeiro junto do Guineense, tendo constatado o seguinte: (i) que era um grupo de cerca de 12 guineenses, (ii) que estavam hospedados nuns contentores sem condições algumas, e (iii) que o Big Boss só lhes pagava aquilo que queria e quando queria, (iv) que era precisamente isso que o guineense estava a pedir, o seu dinheiro, porque estava sem patacão, assim como ele e todos os outros (que na maioria deles não falavam português nem sequer crioulo, e eram todos eles jovens).

O meu irmão, em face disso, resolveu ir pedir explicações ao Sr. Big Boss, e dizer-lhe que ele não podia tratar assim aqueles homens, e que devia pagar todo o dinheiro em falta a todos eles, se não… E como o Sr. Big Boss era o Big Boss, respondeu à letra, e a partir dali gerou-se uma forte discussão em que o meu irmão lhe chamou todos os nomes, menos de Santinho.

Não tenho presente quando, mas passados poucos dias o Sr. Big Boss arranjou um pretexto para despedir o meu irmão.

Conclusão: O meu irmão, mesmo sabendo que poria em risco o seu emprego, não hesitou em defender os pobre guineenses de serem explorados daquela maneira. Quando ele via uma injustiça, ele não pensava duas vezes, para ir em socorro do injustiçado.


(B) O segundo apontamento, foi em Lourenço Marques, no período em que ele deu instrução militar aos mancebos de lá.


Num determinado dia em que esteve de Sargento de Dia, ao passar junto das celas dos presos, ouviu o som de alguém que estava a soluçar (chorar), e foi ver o que se passava. Era um soldado recruta, que tinha recebido um recado a dizer que a mulher estava na Maternidade, para ter o filho, e que ele gostava muito de estar presente nesse momento inesquecível, e não podia por estar preso.

O meu irmão, resolveu o assunto, fazendo um trato com ele, de estar de volta às 00:00 horas (meia noite).

Promessa cumprida e agradecida, mas chegou aos ouvidos de um tenente, que não gostou do que o meu irmão fez, e resolveu fazer queixa do meu irmão.


(C)E por última, numa povoação chamada Meponda, perto de Mueda (julgo eu), onde ele esteve aquartelado.


Perto de Meponda há ou havia uma ponte, que tinha que ser protegida, e iam para lá destacados durante um mês, não sei se um Grupo de Combate ou Secção ou Pelotão, só sei que era a vez dos homens do meu irmão.

Pelo facto de a ponte ficar num sítio isolado, os homens andavam à vontade, de tronco nu, só de calções.

Um determinado dia aparece lá um Major que, ao ver os homens naquele estado, deu logo ordem de prisão ao meu irmão.

Nesse mesmo dia à noite, alguém bate à porta do Sr. Major, e este ao abrir a porta depara com um inesperado espectáculo, à sua frente:

Todo o pessoal fardado à maneira e armado até aos dentes, de tudo o que havia e mais potente, apontando para a porta do Sr. Major, e um dos elementos gritava:
- Solta já o nosso sargento da prisão ou arrasamos já isto tudo!

Escusado será dizer, qual foi a opção escolhida pelo Sr. Major.

Conclusão: Não tenho comentários.

Um Abraço

Tino Neves
Almada

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de:

6 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2032: Estórias de vida (4): Ainda sobre o meu irmão, o Srgt Mil Sérgio Neves, que foi amigo em Moçambique de Daniel Roxo (Tino Neves)

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1933: Questões politicamente (in)correctas (30): os cordeiros e os lobos de Mueda ou a adrenalina da guerra (Luís Graça)

6 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1928: Estórias de vida (3): Sérgio Neves, meu irmão: em Moçambique, o Mercenário, amigo do lendário Daniel Roxo (Tino Neves)

14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1367: Concurso O Melhor Bagabaga (3): Fajonquito (1964) (Tino Neves)

Guiné 63/74 - P2126: Documentos (4): PAIGC - Instrução, táctica e logística (2): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (II Parte): Instrução militar (A. Marques Lopes)

Uma das imagens mais conhecidas do pai da nacionalidade guineense e caboverdiana, Amílcar Cabral (1924-1973).

Amílcar Cabral mostrou um empeho muito pessoal e especial na organização de um exército popular que irá iniciar a luta em 1963, não contra os portugueses, mas sim contra o sistema colonialista português, como ele sempre frisou.

Amílcar Cabral conseguiu obter um vasto apoio internacional, político, militar e financeiro, à causa do PAIGC, tanto por parte dos países do bloco soviético e do Terceiro Mundo como de outros países, incluindo ocidentais e europeus (como a Suécia)...

Fotos do Arquivo Amílcar Cabral > Em 1999, a Fundação Mário Soares, com a colaboração da Dra. Iva Cabral, viúva do fundador e dirigente do PAIGC, procedeu à recolha de centenas de fotografias respeitantes a Amílcar Cabral e ao processo de luta de libertação nacional da Guiné-Bissau e Cabo-Verde que se encontravam em iminente perigo de destruição.

Tratava-se de um importante espólio fotográfico que teve de ser objecto de tratamento e reprodução fotográfica e digital, sendo, a partir de 20 de Janeiro de 2003, no 30º aniversário da morte de Amílcar Cabarl (1924-1973), gradualmente disponibilizado na Internet.

Fotos: © Fundação Mário Soares (2007) (com a devida vénia...)
Continuação da publicação de um conjunto de textos que o nosso amigo e camarada, o Coronel DFA, na reforma, A. Marques Lopes, nos começou a enviar, em 13 de Setembro de 2007.

Fonte: SUPINTREP nº 32, um documento distribuído em Junho de 1971 aos Comandos das Unidades do CTIG.


PAIGC > Instrução, táctica e logística > II parte


[Fixação do texto: A.M.L. e editor L.G]

INSTRUÇÃO NO ÂMBITO MILITAR

(1) Recrutamento com vista à frequência dos Campos de Instrução

A fim de suprir às necessidades de recompletamento e aumento das FARP impostas pelo avanço da luta, o PAIGC leva a efeito [ operações de recrutamentono] seio das populações que vivem nas zonas sob o seu controle, nomeadamente: (i) nas áreas de Biambe/Queré, Tiligi e Sara Enxalé Inter-Região Norte; (ii) nos sectores de Gã Formoso, Injassane, Como, Tombali, Cubucaré, Quitafine: (iii) a W da estrada Bambadinca / Xitole na Inter-Região Sul.
Esse recrutamento é extensivo também às populações refugiadas na República do Senegal e na República da Guiné, e incide, principalmente, sobre os elementos com idades compreendidas entre os 18 e os 25 anos.

Os recrutamentos são sempre feitos de modo a aproveitar as características de cada grupo étnico. Assim, verifica-se que os combatentes são na maioria balantas por ser esta etnia a mais destemida e aguerrida de quantas existem na Província, seguindo-se-lhe as etnias mandinga e beafada, também destemidas e resistentes. Os nalús, embora em número mais reduzido, pelo ódio que guardam ao fula, apoiam também o PAIGC.

É pois, e principalmente sobre estas etnias que o PAIGC faz incidir os seus recrutamentos com vista à obtenção de elementos combatentes.

(2) Instrução Militar Geral; Selecção de Quadros

Aos elementos recrutados é-lhes ministrada instrução político-militar e cultural intensiva durante trinta dias, com um total de 180 horas de preparação militar e 60 de preparação cultural.

A preparação militar inclui:

- Preparação táctica;

- Preparação política, ministrada pelo Comissário Político do Campo de Instrução, o qual tem também a seu cargo a administração, os serviços e a disciplina;

- Preparação de tiro;

- Ordem unida;

- Preparação engenheira, que abrange breves noções de organização de terreno e minas;

- Topografia militar, com rudimentos de orientação e levantamentos expeditos.

Além destes conhecimentos ministrados à generalidade dos combatentes, é dada ainda instrução de especialidades aos que a elas se destinam mercê de determinadas aptidões, como por exemplo acontece com os professores, muitos dos quais são escolhidos para ocupar lugares de chefia nas unidades de “artilharia”.

Os elementos que neste campos de instrução melhores provas prestarem, são enviados para campos de instrução no estrangeiro, dos quais estão detectados os seguintes:

- Na Argélia: Campo de Instrução de Colbert (a 19 km da povoação do mesmo nome).

- Na China: Campos de Instrução adstritos às Academias de Ciência Militares de Nanquim e Wuhan e o Campo de Instrução de Pequim.

- Em Cuba: Campo de Instrução de Sierra Maestra, em Mina del Rio.

- Na URSS: Campo de Instrução de Simperopol e Centro de Instrução de Marinha de Guerra em Herson.

A especialização e aperfeiçoamento dos elementos do Exército Popular é de um modo geral, realizada no Campo de Instrução e Preparação militar de Kambera (República da Guiné), sendo ministrada por elementos especializados, nomeadamente cubanos, caboverdeanos e ainda por elementos de comprovada competência e experiência.

Na generalidade, a instrução ministrada aos combatentes do PAIGC no estrangeiro inclui as seguintes matérias, em programas muito semelhantes, embora em países diferentes:

- Preparação física:

Marchas

Desportos

Ginástica de Aplicação Militar

Luta

- Armamento e Tiro

O estudo do armamento visa os seguintes aspectos:

- Modelo

- Características

- Manutenção e limpeza

- Armar e desarmar

- Funcionamento (sumário)

- Incidentes e tiro

De um modo geral é feito tiro de armamento ligeiro por todos os instruendos, e de armamento pesado apenas pelos especialistas destinados a essas armas.

- Granadas de mão

- Minas, explosivos e armadilhas

Estas matérias são ministradas em pormenor e profundidade, procurando dar-se aos instruendos conhecimentos de:

- Minas anticarro;

- Minas antipessoal;

- Armadilhas;

- Implantação e levantamento de engenhos explosivos;

- Dispositivo de lançamento de fogo;

- Tipos de explosivos;

- Destruições.

- Tática

- Instrução individual do combatente;

- Emboscadas

- Sabotagem (ataques a Povoações e Aquartelamentos)

- Defesa anti-aérea

- Organização do terreno

- Transmissões

- Reconhecimento e informação

- Doutrinação política

O que diz respeito à instrução ministrada nos campos de instrução referenciados no interior do TN [território nacional], há notícias de que a mesma apresenta um programa mais reduzido, destinado simplesmente a elementos da Milícia Popular, e que se resume praticamente:

- Preparação física

- Armamento e tiro

- Táctica

- Doutinação política

(3) Instrução táctica

(a) Generalidades


Pretende esta alínea do Supintrep N.º 32 dar a conhecer a importância de que se reveste para o IN a instrução táctica dos seus guerrilheiros, para o que se lançou mão de diversos regulamentos e documentação doutrinária utilizada pelo PAIGC nomeadamente o Manual do Guerrilheiro do PAIGC..., o ABC da Táctica... e um documento intitulado Para o Desenvolvimento da Nossa Luta contra os Helicópteros... Poder-se-á dizer contudo, que a doutrina contida nem sempre corresponderá aos procedimentos a apresentar na parte dedicada à Táctica, o que significa uma evolução nítida nos processos de actuação do IN e uma capacidade de adaptação às diferentes situações que se lhe opõem.

Nas transcrições feitas e esquemas apresentados, é respeitada a forma dos documentos.

[...] (6) Transmissões

Esta especialidade inclui duas espécies de técnicos: os operadores e os rádio-montadores, os primeiros instruídos na Rússia e em Cuba e os segundos na Rússia. Admite-se no entanto que já possa ser ministrada instrução aos operadores na Base de Kambera, não havendo no entanto elementos que o confirmem.

Sempre que o PAIGC recebe novos aparelhos de rádio todos os operadores são sujeitos a estágios de preparação.

Os elementos que se possuem acerca da instrução de transmissões são muito escassos, transcrevendo-se apenas um Plano de Instrução de Transmissões, extraído de documentos capturados.

Programa de Instrução

Planos de Instrução de Transmissões

1.º Plano de Instrução

- Defeitos de alimentação

- Uso das antenas

- Escolha do local para instalação do rádio

- Sintonização

- Chamada dum correspondente

- Trabalho sem indicativos

- Transmissão em cifra e letras

2.º Plano de Instrução

- Aprovado pelo Comandante do Grupo de Comunicações para instruir os soldados da secção telefónica.

Tempo – 2 horas

Lugar – no campo

Abastecimento de material – comutador P293, fio telefónico P215, 10 telefones TAN-43 – colecção de ferramentads para cada aluno.

3.º Plano de Instrução

- Aprovado pelo Capitão Chefe das Comunicações

Tema – Estudo do telefone TAN-43

Finalidade – Estudar comunicações por fios com grupos de sapadores e artilharia.

Tempo – 3 horas

Lugar – Classe

Material – Telefone TAN-43
[...]

(8) Tiro

Por se achar de interesse, incluem-se neste Supintrep as Normas de Segurança a respeitar nas carreiras de tiro do PAIGC, e que constituem o teor dum documento capturado ao IN.

MEDIDAS DE SEGURANÇA QUE DEVEMOS RESPEITAR NO CAMPO DE TIRO

- Antes de disparar no campo de tiro, cada atirador deve estudar a teoria das armas, deve conhecer as regras como disparar e as regras principais como as armas trabalham.

- No campo de tiro devemos respeitar todas as medidas de segurança e trabalhar segundo ordens do Comandante do Grupo.

- Quando há avarias durante o tiro, o atirador logo deve anunciá-las, não mudando a sua posição e não desviando a sua arma. Logo chega o comandante do grupo para ajudar o atirador a reparar a varia da sua arma.

- No campo de tiro é proibido: (i) Utilizar as armas que não são bem preparadas para o tiro; (ii) Permitir o tiro aos atiradores que não conhecem o trabalho das armas e as medidas de segurança durante o tiro; (iii) Carregar a arma sem ordem do Comandante; (iv) Desviar a arma para os lados ou para trás ou para as demais pessoas; (iv) Abandonar ou emprestar a arma carregada; (v) Continuar no tiro depois da ordem Alto.

- Na linha de tiro pode achar-se somente: (i) O grupo dos atiradores; (ii) O comandante do grupo (que dirige o tiro); (iii) O órgão de controle (se necessário um intérprete).

- Na linha de preparação pode estar somente: (i) O grupo seguinte; (ii) O distribuidor das munições; (iii) Um funcionário para registar o resultado do tiro.

- Os atiradores podem abrir fogo somente sob a ordem do comandante: Fogo.

(9) Marinha e Aeronáutica

Relacionando as referências acerca da vinda de elementos especializados em aeronáutica com as existentes sobre a obtenção de meios aéreos e construção de pistas, admite-se que o PAIGC se prepare para a formação de quadros de aeronáutica para, no futuro, os empregar em missões de evacuação e transporte de pessoal e material e, eventualmente, em acções de guerra que não impliquem utilização de meios que o PAIGC logicamente não poderá obter a curto prazo.

Admite-se pois, a hipótese de o PAIGC vir a dispor de meios aéreos (talvez à base de helicópteros), que numa primeira fase poderão ser utilizados em transporte de pessoal e evacuação entre as bases mais importantes do exterior, e numa fase mais avançada que venha a obter e utilizar outros meios aéreos que visem outras actividades nomeadamente acções ofensivas em TN.

A especialização de elementos In em marinhagem serve ao PAIGC para obter os tripulantes e técnicos para equipar os meios fluviais e navais de que já dispõe e virá a obter.

Refere-se também a instrução de unidades de fuzileiros, tropa de assalto ligada à marinha do PAIGC, a qual será também especializada na colocação de engenhos aquáticos e transposição de cursos de água.

[...]
d. Ensino no estrangeiro

Como se referiu já [, anteriormente], a necessidade da obtenção de Quadros para a direcção dos vários sectores da vida do Partido, leva o PAIGC a aceitar as muitas bolsas de estudo oferecidas pelos países que o apoiam, para a frequência dos cursos a que no mesmo capítulo se fez referência.

A actividade da angariação e distribuição destas bolsas de estudo é feita pela Secção de Estudantes no Exterior, órgão que se supõe existir directamente dependente da Direcção dos Serviços de Cultura.

A este órgão compete ainda a ligação do Partido com os estudantes que frequentam os estabelecimentos de ensino no estrangeiro, distribuindo-lhe para o efeito, material informativo.

Os cursos supõe-se que funcionam em regime acelerado de que resulta os futuros técnicos e licenciados, a maior parte das vezes, não atingirem o nível desejado. A este assunto se referiu A. Cabral durante a realização do Seminário de Quadros em Novembro de 1969, estabelecendo um termo de comparação com os cursos tirados em Portugal, em relação aos quais aqueles estariam em nítida desvantagem.

Durante a realização do mesmo Seminário e uma intervenção do próprio Secretário Geral, intitulada “Elevar a consciência Política e a Militância dos Estudantes do Partido”..., Cabral refere-se aos estudantes que frequentam cursos no estrangeiro em termos de notória preocupação acerca das atitudes por eles tomadas no estrangeiro como sejam as ligações com estrangeiras e as fugas para “países aliados de Portugal” ou mesmo Portugal, empreendidas logo após a conclusão dos referidos cursos, fugindo assim às responsabilidades criadas perante o Partido.

Em função disto e diligenciando para que o Partido seja informado das verdadeiras intenções desses estudantes, são preconizadas medidas de controle dos estudantes pelos próprios estudantes, recorrendo à denúncia como meio de eliminar todos aqueles que não mereçam confiança.

(Continua)
__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 22 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2124: PAIGC - Instrução, táctica e logística (1): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (I Parte) (A. Marques Lopes)

domingo, 23 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2125: Blogpoesia (4) : A morte do pássaro de areia (Luís Graça)




Lourinhã > Praia de Vale de Frades > 8 de Junho de 2007 > É um pássaro, diz ela. De areia. Ferido de morte.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

Para o Idálio Reis e os bravos da CCAÇ 2317 (Gandembel/Ponte Balana, 1968/69), com um Alfa Bravo (abraço) (1) (*):

É um pássaro.
De areia.
Diz ela.
Ferido de morte.
Uma jurássica ave de arribação
que te veio anunciar a peste.

Peste branca. Preta. Vermelha.
Vírus do Nilo.
Dengue.
Al Qaeda.
Febre hemorrágica.
Sida.
Terror nuclear.
Pandemia. Amarela.
Bílis negra.
Os neutrões.
O vírus influenza
dos gansos selvagens.
A implosão dos neurónios.
O buraco do ozono.
As metástases pancreátricas.
O pão transgénico.
As setas pragas do Egipto.

A estátua jazente de um deus alado
que morreu nas dunas.
Diz ele.
Por fadiga. Burn-out. Desidratação.
O irã que largou o poilão
e morreu de infinita tristeza.
Vidrado.
Varado por um tiro de Kalash.
Ou um náufrago da costa de ouro, marfim e prata.
A escassos metros da meta.
À entrada do paraíso.
Da reserva ecológica.
Dos abrigos à prova de canhão sem recuo
da Europa imaginada.
Blindada.

Terá atravessado os campos de golfe magnéticos
que eram verdes,
diz ela.
Na rota das Canárias e do Saará,
segue sempre em frente
e encontrarás o paraíso.
Já.
Ou encontravas.
Diz ele.
Aqui jaz.
Agora.
Na areia da praia.
O soldado.
Desconhecido.
Número tal.
Que terá vindo de Gandembel,
sobrevoando Ponte Balana.
Sem senha
nem contra-senha
nem ração de combate.
Nem requisição de transporte.
Nem visto
ou simples carta de chamada
da Pátria.
Nem sequer muda de roupa
para o além.
Simplesmente morto por uma roquetada.

O puro terror dos fornilhos,
diz ele.
A cilada.
A emboscada.
As pirogas à deriva.
A guerra elevada à categoria de arte
do predador.
Generalíssimo.
As tripas de fora
de um deus-menino.
O pássaro.
De fogo.
Desintegrado.

Oh! Gandembel das morteiradas,
dos abrigos de madeira
onde nós, pobres soldados,
imitamos a toupeira.
-diz ele.
In memoriam.
A morte, sem legenda,
a asfixia, sem escape,
a exaustão, sem honra,
os nervos de aço esfrangalhados
do soldado-toupeira,
o envenenamento das fontes de água
que corria doce e triste,
o triste rio Balana,
triste como todos os rios da Guiné,
o céu trespassado por setas envenenadas,
o napalm,
o RPG-Sete.

O pássaro de areia, diz ela.
- Quem vem lá ?
Cala-se o dari (2) no Cantanhez.
E as gazelas na orla das bolanhas da zona leste.
Para se poder ouvir o tiro tenso do voo
da ave mortal da madrugada.

*Publicado originalmente em Luís Graça > Blogue-Fora-Nada... e Vão Dois > 16 de Setembro de 2007 > Blogantologia(s) II - (51): A morte do pássaro de areia

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)

(2) Chimpanzé