terça-feira, 17 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2955: PAIGC: Instrução, táctica e logística (12): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (XII Parte): Saúde (A. Marques Lopes)


Reprodução da primeira página da 1ª página do Blufo, Orgão dos Pioneiros do PAIGC, nº 3, Março de 1966, além de parte das páginas 2 e 4 (continuação dos artigos da 1ª página). Era feito a stencil. "Em Janeiro de 1966, a Escola-Piloto começou a publicar o Blufo, órgão dos pioneiros do PAIGC, assumindo-se como a voz da Juventude que se lançou corajosamente na luta de libertação nacional do nosso povo, na Guiné e em Cabo Verde. A colecção que agora disponibilizamos, digitalizada a partir dos originais cedidos por Luís Cabral, vai do n.º 1 (Janeiro de 1966) ao n.º 22 (Dezembro de 1970)" (FMS).

Neste número dá-se um destaque às mulheres que tiveram um papel importante, em sectores como saúde e a educação, bem como no apoio de rectaguarda à guerrilha. Um dos artigos é sobre "As mulheres do Komo" que "se recusaram a abandonar a ilha quando, num momento de grande perigo, foi dada ordem, para se retirarem os velhos, as crianças e as mulheres. Pegando em armas, ao lado dos homens, elas lutaram com bravura pela defesa da ilha. Tudo isto se passou em Março de 1964. Desde então os colonialistas portugueses nunca mais tentaram pôr os pés na ilha do Komo" (...). É óbvia aqui a função ideológica da narrativa sobre a Batalha do Como que se tornou num dos mitos ou lendas do PAIGC. As mensagens eram simples mas eficazes, do ponto de vista comunicacional.

O outro artigo, um editorial, tem como título "Glória às mulheres das nossas terras"... Comemorava-se então o dis 8 de Março de 1966, dia das mulheres. "Também na nossa terra, na vida nova que vamos construir depois da saída dos portugueses, vamos festejar o dia das mulheres com muita alegria (...). As mulheres conquistaram também um lugar ao lado dos homens nba luta pela nossa liberdade e independência. Elas fazem a comida para os guerrilheiros, tratam dos combatentes feridos e doentes. As raparigas estudam nas Escolas do Partido ou nos países estrangeiros para participarem amanhã na construção da nossa Pátria livre dos colonialistas portugueses" (...).

Fonte: © Fundação Mário Soares > Dossier Amílcar Cabral (2008) (com a devida vénia...)







1. Continuação da publicação do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971, documento classificado na época como reservado, de que nos foi enviada uma cópia, em 19 de Setembro de 2007, pelo nosso amigo e camarada A. Marques Lopes, Cor DFA, na situação de reforma, e a quem mais uma vez agradecemos publicamente :

PAIGC - Instrução, táctica e logística (12): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (Parte XI) >


Logística: (e) SAÚDE

(1) O Desenvolvimento do Serviço de Saúde no PAIGC

Vencendo inúmeras dificuldades, resultantes muito especialmente da falta de quadros logo após a eclosão da luta armada, o PAIGC começou a instalar pouco a pouco em diversos pontos das Regiões Libertadas alguns postos de saúde, onde colocou os poucos enfermeiros que o Partido à data dispunha. Sendo este número, porém, insuficiente, e segundo directivas da Direcção do Partido, estes enfermeiros procuravam dar a outros elementos recrutados nas escolas na Milícia Popular uma preparação mínima que lhes permitisse auxiliá-los no seu trabalho.

Foram assim iniciados no serviço de enfermagem muitos elementos que, muito embora carecendo de preparação teórica, foram solucionando o problema até à formação e Escolas de Enfermagem no interior, entre as quais se destaca a Escola de Ajudantes de Enfermagem do Morés.

Entretanto, e dada a insuficiência a que estas escolas ainda conduzem, o Partido, no sentido da formação do pessoal qualificado necessário a uma funcionamento mais eficaz dos centros de saúde, tem enviado para o estrangeiro muitos jovens que aí seguem estudos práticos de enfermagem e medicina, de modo a poder dispor, a curto prazo, de um número sempre crescente de pessoal capaz, o que irá permitir uma progressiva melhoria da actividade do Partido no domínio da saúde.

(2) O auxílio estrangeiro

Como já se referiu, o auxílio estrangeiro ao PAIGC no domínio da saúde reveste-se de uma importância muito grande, dado que é através do fornecimento de bolsas de estudo para a frequência de cursos médicos e de enfermagem que o PAIGC obtém elementos qualificados de cuja carência tanto se ressente. Assim, numerosos bolseiros do PAIGC cursam Medicina na Rússia e na Bulgária, enfermagem na Bulgária e Cuba e Profilaxia e Higiene Social na Checoslováquia.

Não termina, porém, aqui o auxílio estrangeiro ao Partido, pelo que se caracteriza também na cedência de pessoal médico, pelo que vamos encontrar médicos cubanos, jugoslavos, russos e holandeses nos principais estabelecimentos hospitalares. Este auxílio é completado com o fornecimento gratuito de medicamentos e material sanitário por parte de Cuba e dos países do Leste da Europa, revestindo-se também de particular importância a contribuição dada por particulares da Europa Ocidental, nomeadamente a Fundação Mondlane, com sede em Haia, e a Suécia.


(3) Como é prestada a assistência sanitária


A assistência sanitária aos combatentes e populações sob o controle IN é realizada através de "enfermarias" e "hospitais" existentes no interior do TO, formações sanitárias muito rudimentares, quase nunca dispondo de médico.

Os indisponíveis que denunciam casos graves, são transportados em macas improvisadas desde essas "enfermarias" ou "hospitais" para as bases fronteiriças, onde normalmente o PAIGC dispõe de instalações mais apetrechadas, e daqui, em automacas ou viaturas de transporte, senão mesmo em meios aéreos, para os hospitais de Conakry, Ziguinchor, Koundara ou Boké.

No capítulo da assistência sanitária, mormente nos "hospitais" e "enfermarias" do interior, além da falta de pessoal qualificado surge ainda toda uma série de condicionamentos, nomeadamente o reabastecimento irrregular dos medicamentos, a conservação do sangue para transfusões e o transporte e feridos graves para o exterior, que muito afectam o funcionamento normal do serviço.


(4) Orgnização dos serviços de saúde (civil militar) do PAIGC

Tanto quanto os elementos disponíveis o permitem, julga-se que estes centros sanitários ("hospitais" e "enfermarias") se dividem em dois ramos, o civil e o militar, dependentes de entidades distintas.

No meio civil, ainda em estado incipiente de organização, compreenderá "enfermarias" ou mesmo "hospitais" existentes nas "áreas libertadas", os quais se destinam a prestar assistência às populações controladas pelo IN. Estas "enfermarias" são accionadas nos escalões administrativos a que correspondem pelos responsáveis da Saúde dos respectivos Comités e destacam, com o fim de efectuarem uma cobertura eficaz das respectivas zonas, brigadas sanitárias que percorrem as tabancas que não dispõem de serviço de saúde próprio.

Julga-se que a saúde civil esteja dependente, a nível superior, da Direcção para os Assuntos Sociais do Departamento para os Assuntos Sociais e Cultura.

No ramo militar, o serviço de saúde encontra-se já num grau de desenvolvimento diferente, dispondo de estabelecimentos hospitalares, no exterior [Guiné-Conacri e Sewnegal], de apreciáveis recursos.

Julga-se que no topo de toda a organização sanitária militar se encontra o Serviço de Saúde do Departamento da Defesa, o qual acciona três Secções Sanitárias (Ziguinchor, Koundara e Boké) que abrangem todo o TO e zonas fronteiriças dos países limítrofes. Estas Secções Sanitárias corresponderam às três Frentes (norte, Leste e Sul) em que o IN dividia o TO até à reorganização levada a efeito durante o ano de 1970, mas mantendo actualidade mesmo depois desta reorganização.

Cada Secção dispõe de um Hospital Central, dela dependendo os “"hospitais" e "enfermarias" correspondentes aos Sectores e Frentes. As unidades, por sua vez, dispõem também de enfermeiros responsáveis pela assistência sanitária imediata aos guerrilheiros.


(5) Referências a alguns estabelecimentos hospitalares:

HOSPITAL DE BOKÉ

Inaugurado em Dezembro de 1965 como Dispensário Sanitário do Partido, logo no princípio do ano seguinte passou a ser designado por Hospital Militar de Boké, sendo destinado ao tratamento dos feridos de guerra, especialmente dos combatentes da Inter-Região Sul cujo estado justificasse evacuação dos “hospitais” do interior.

Compõe-se de uma grande enfermaria dividida em duas secções (homens e mulheres), uma sala de operações com quarto anexo para tratamento pré e poó-operatório, uma sala de consultas e tratamentos, uma secção de radiologia e uma farmácia. O hospital, que dispõe de todo o equipamento necessário, está apetrechado com moderno material cirúrgico e de Raio X.

A capacidade actual [1971] será de 100 camas, tendo sido equipado também, em local afastado do corpo principal do hospital, com um centro de reabilitação para diminuídos físicos e uma maternidade. Do corpo médico em serviço neste hospital farão parte, além de médicos caboverdeanos, outros de nacionalidade jugoslava, russa e cubana.

HOSPITAL DE KOUNDARA

Este hospital que dispunha de uma capacidade para 60 camas, terá sofrido, partir de Abril de 1970, significativos melhoramentos, nomeadamente alargamento das instalações, aparelho de Raio X, motor gerador de energia eléctrica e cisterna de capacidade para 5.000 litros.

Os melhoramentos introduzidos destinam-se a um melhor apoio a toda a Inter-Região Norte, evitando evacuações para Boké que, por demoradas, dada a distância e as possibilidades dos meios de transporte, poderiam fazer perigar a vida dos doentes.

As possibilidades deste hospital são já vastas, realizando intervenções cirúrgicas de certo melindre.

Para este hospital são evacuados os feridos e doentes de toda a Inter-Região Norte, mesmo os das regiões mais afastadas, desde que os seus casos não sejam resolúveis localmente.

No corpo clínico deste hospital estão referenciados médicos cubanos, um caboverdeano e, até há pouco tempo, um médico norte-vietnamita.


HOSPITAL DE ZIGUINCHOR

Foi, até à altura em que foi beneficiado o Hospital de Koundara, o hospital mais importante para apoio das antigas Frente Norte e Frente Leste.

Dispõe de 60 camas, sendo no entanto as suas possibilidades muito limitadas, supondo-se até que se servirá do hospital senegalês, para casos graves de extrema urgência. Ultimamente, parece que teria sido transformado em hospital crúrgico, mas não se possuem elementos que o confirmem.

Do corpo médico deste hospital faz parte uma médica holandesa (**).

_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 15 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2762: PAIGC: Instrução, táctica e logística (11): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (XI Parte): A máquina logística (A. Marques Lopes)

(**) Curiosamente a nossa inteligência militar não devia andar bem articulada com a PIDE/DGS, porque neste Subintrep não se faz menção do português, natural de Angola, o Dr. Mário Pádua, médico, que desertou das fileiras do nosso exército, Angola, e dedicou parte da sua vida, como médico e como militante, ao PAIGC, no Hospital de Ziguinchor, Senegal. Seguramente que o Mario Pádua tinha ficha na PIDE/DGS. Chegou a ser o único médico do PAIGC (até 1966, ano da chegada dos primeiros voluntários cubanos), e inclusive tratou prisioneiros portugueses, nomeadamente o Soldado Fragata,
CART 1690 (Geba, 1967/69), a que pertenceu o nosso A. Marques Lopes. Vd. o seu depoimento no filme-documentário de Diana Andringa e Flora Gomes, As Duas Faces da Guerra, 2007.

Vd. também poste de 28 de Janeiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1468: Mortos que o Império teceu e não contabilizou (A. Marques Lopes)


(...) Mas morreu também nesta operação o soldado Vito da Silva Gonçalves, que foi dado como "morto em combate", porque o corpo foi recuperado. Mas também não vem nessa lista! E porque é que não foi dado como "desaparecido em campanha" o soldado Metropolitano Fragata, o Manuel Fragata Francisco, que também ficou nesta operação?

É uma história das teias que o império tecia. Eu conto: ele foi crivado com uma roquetada nessa operação, mas vivo, e os guerrilheiros do PAIGC levaram-no numa maca, atravessando a mata do Oio, o rio Mansoa e o rio Cacheu, até ao hospital que servia o PAIGC em Ziguinchor, no Senegal, onde, coincidência, foi tratado pelo doutor Pádua (actualmente no Hospital Pulido Valente, em Lisboa), que se tinha passado para o outro lado. A PIDE sabia disso, claro. Parece lógico que se pense que teriam feito o mesmo com o alferes Fernandes se ele tivesse ficado vivo. Mas foi muito claro que estava morto (...).

Guiné 63/74 - P2954: A guerra estava militarmente perdida? (18): José Belo.

A Guerra estava militarmente perdida?

José Belo
ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70

Liberdade, Democracia...e guerras coloniais militarmente ganhas!

Das potências militares europeias quantas terão militarmente perdido as suas guerras coloniais? A Inglaterra na Índia ou em África? A França na Argélia? A Holanda na Indonésia? Apesar de disporem de recursos humanos e económicos avultados, todas se decidiram pelo abandono. Quer se creia ou não em "ventos da História", essas colónias não foram militarmente perdidas.

Dirão os idealistas que a força de emancipação dos povos é impossível de ser militarmente parada. Dirão economistas serem outras as regras "do Jogo", apesar de convenientemente vestidas com uniformes militares e bandeiras desfraldadas.

Liberdade – Democracia - Guerras Coloniais, é equação de provado não funcionamento histórico. Daí, uma guerra colonial a ser ganha"num Portugal livre, democrático, europeu?

Como participantes activos, como combatentes, numa tragédia histórica que nos ultrapassava, tanto no "tempo" como nas responsabilidades políticas deveremos sentir vergonha? Cito o Coronel de Infantaria David Martelo no seu livro "As Mágoas do Império": apesar de ser norma das guerras exprimirem-se pela destruição, a derradeira campanha em África, terá sido, com toda a certeza, o empreendimento militar português que mais construíu! A própria táctica de captação das populações não consentia outros procedimentos. Por esse motivo, os militares e ex-militares portugueses podem recordar, com justo orgulho, o bem-estar que ajudaram a levar até grande parte das populações autóctones.

Tenho que concordar com o "desabafo" de J. Mexia Alves meses atrás enviado á Tabanca Grande, na sua incompreensão quanto á necessidade de alguns se colocarem literalmente "de cócoras" perante os feitos da guerrilha, na busca de um, muitas vezes demasiadamente forçado pseudo politicamente correcto.

Os nossos antigos adversários são merecedores do nosso respeito, mas não de subserviências. Em verdade, em função dos resultados por eles obtidos não as necessitam! Na guerra que nos obrigaram a travar, e no campo estritamente militar, muito pouco haverá que nos pode envergonhar como Soldados de Portugal.

Mas um debate quanto a guerras passadas não militarmente perdidas? Não é sequer original! O Nacional-Socialismo de Hitler tomou o poder sob a bandeira da traição aos combatentes Alemães da 1ª Guerra Mundial, não militarmente derrotados. Os nostálgicos que na Rússia de hoje lamentam a perda do Império Soviético na Europa de Leste, depois de uma guerra fria não militarmente perdida. A direita civil e militar Norte-Americana afirmando continuamente que a guerra do Vietname estava longe de militarmente perdida!

Humor á parte, tem que se concordar serem interessantes companheiros de caminho nisto de debates quanto a guerras...militarmente perdidas ou não! A não se pretenderem tirar as conclusões políticas inerentes, resta, para este nosso debate estritamente militar soluções de contabilidade aparentemente simples.

Mas não será uma simplicidade enganadora? Um teatro de guerra, por definição é constituído por infindáveis e multi-facetados factores. Esses factores acabam por multiplicar-se "ad infinitum" quando a um Exército Regular se opõe uma força de Guerrilha.

Contam-se as armas de cada campo? Quantas metralhadoras? Quantos canhões? Mas chegará contar os canhões? Quantos estavam em condições verdadeiramente operacionais? (Recordo os imponentes obuses 14 de algumas guarnições, aos quais faltavam os aparelhos de pontaria e tabelas de tiro). Funcionariam todos os inventariados à guerrilha? Quantos especialistas de armas pesadas manuseavam o nosso tão distribuído morteiro 81? Será o rendimento operacional obtido por tais armas contabilizado do mesmo modo, independentemente do voluntarismo dos militares que as utilizavam? Qual a norma para uma contabilização comparativa quando as nossas armas pesadas respondiam a ataque nocturno ás nossas guarnições sem disporem de equipamentos de aquisição de objectivos? Os efeitos "estritamente militares" eram relativos, apesar de por vezes, lá íamos acertando. Por certo, como no caso da guerrilha.

Quatro, sete, vinte navios de guerra que garantem as deslocações nos rios e braços de mar serão contabilizados do mesmo modo que, duas, vinte, trinta primitivas canoas que, na escuridão da noite, permitem á guerrilha transportar os homens e materiais necessários? Como comparar os resultados práticos e estratégicos obtidos por estas armas assimétricas?

O inimigo, por contínua pressão militar, obrigou-nos a abandonar os aquartelamentos, por ex., de Gandembel e Madina do Boé. Na exploração do resultado, a guerrilha decide não ocupar os aquartelamentos, pois o seu interesse estratégico era desimpedir os eixos de infiltração de material, e não o de ocupar terreno, e esperar sentada pelos inevitáveis bombardeamentos.

Como contabilizar os resultados? Vitória na planeada retirada estratégica das força convencionais? Vitória da guerrilha por ter obtido os seus objectivos? Ao objectivo "estritamente militar" em que um exército regular quantifica "a vitória", opõe a guerrilha uma ideia de vitória sustentada pela arma fundamental ao seu dispor que é a propaganda.

Como contabilizar os resultados das diversas operações á ilha do Como? Ao Cantanhez? Vitórias? Derrotas? Quais os resultados estritamente militares perante os objectivos planeados? Ocupação de terreno? Interdição de terreno? Conquista das populações? Destruição de meios humanos e militares inimigos? Em operações das nossas tropas especiais, heli-transportadas, com avultados sucessos em acampamentos destruídos, inimigos mortos e material apreendido, a contabilização é mais uma vez de aparente facilidade, na perspectiva de um exército convencional. Mas as tropas especiais não são nem formadas, nem vocacionadas, para simplesmente ocuparem o terreno. Daí, o passadas horas, dias, ou mesmo semanas, acabarem por ser retiradas dos objectivos destruídos. A guerrilha volta. Apaga as cinzas. E grita vitória por ter obrigado o inimigo a retirar. Mesmo que as forças de guerrilha tenham que acabar por "apagar as cinzas" de uma centena de acampamentos no mato, se gritarem sempre "vitória" de um modo que as populações "vejam" essas vitórias, a nossa contabilidade assimétrica complica-se ainda mais.

Neste tipo de guerra, terá significado militar o quantificar a "vitória" em áreas ocupadas pelas força regulares? Como relacionar estas numa proporção relativa aos quilómetros quadrados em que a guerrilha se movimenta. Ocupação/Movimentação, mais uma das facetas de contabilização menos fácil. Como quantificar em termos estritamente militares, os efeitos psicológicos dos rebentamentos de minas anti-carro sob viaturas pejadas de soldados? Opondo-se-lhes o número de quilómetros de estradas alcatroadas, em que algumas das nossa colunas se deslocavam sem problemas de maior sob a segura protecção das vetustas Fox e Daimler?

A evolução do material de guerra fornecido á guerrilha pelos seus apoiantes, com a crescente aceleração em quantidade e qualidade, nos últimos anos da guerra, foi considerável. Seria suficiente, nos tais termos estritamente militares, para uma vitória frente ao exército convencional com evidentes carências na sua capacidade de renovação, adaptação e aquisição de material de guerra que lhe permitisse acompanhar a par e passo o evoluir da guerra de guerrilha para uma confrontação mais convencional?

Qual o significado real, neste debate, quanto ao facto de o inimigo possuir este, ou aquele tipo de foguetões anti-aéreos, ou anti-campos fortificados? Não se poderá negar que os nossos aviões ainda voavam dentro de certas limitações. Mas facto é que essas limitações não existiram durante um grande período da guerra, com todas as inerentes vantagens para as nossas tropas. Como contabilizar nos tais termos militares esta forçada diminuição de uma situação anterior....óptima? Quantos os aviões abatidos? Quais as nossas capacidades de substituicao? Quais os efeitos psicológicos para os pilotos que sabiam não dispor de contra medidas eficazes contra as armas contra eles utilizadas? Não haverá muito de subjectivo e portanto um pouco fora do campo de uma análise "estritamente militar", ao ser usado como exemplo o facto de utilizarmos os aviões de transporte Norte-Atlas, como plataformas de bombardeamento, lançando as bombas através da porta de carregamentos?

São muitas as dúvidas, as perguntas levantadas, as interpretações, os raciocínios subjectivos. Neste tipo de debate é fácil esquecer que o Mundo não parou no mês de Marco do ano de 74. Quais seriam as condições reais em Portugal sem a revolta militar de Abril? A tal guerra colonial..."a ser ganha"...ou não perdida, ....quantos anos mais?

Estocolmo, 3 Junho 2008

J.Belo
__________

Notas de vb:

1. A Guerra estava militarmente perdida. Era apenas uma questão de tempo. A artilharia do PAIGC ia até Mansoa, Farim, Bolama, Bissau...Os Strella, os pilotos do PAIGC, em formação, preparavam-se para levar os MIGs até Bissau.

A Guerra não estava perdida em termos estritamente militares. À medida que o PAIGC melhorava as máquinas da morte, o Governo Português avançava com os Red Eye e não estava afastada a ideia de novas investidas a Conakry.

A opinião internacional, as Nações Unidas, os aliados de Portugal cada vez menos aliados, a pressionarem o governo Português a aceitar uma negociação para o conflito.
A imperiosa necessidade de salvaguardar a jóia da República, Angola (onde a guerra estava limitada a acções de polícia).

A Família Portuguesa cada vez menos disposta a enviar os seus filhos, maridos e netos para uma guerra que achavam sem sentido. E o brio das Forças Armadas Portuguesas com os melhores soldados do mundo a garantirem que não seria nas bolanhas e nas matas que Portugal iria perder a guerra. ~

O número de refractários e desertores não parava de aumentar. Muitos deles na Suécia, França, Holanda, Bélgica... participavam em acções contra o colonialismo Português. E Tavira, Caldas, Mafra a abarrotarem de milicianos cada vez com menos vontade em lutar por um Império que lhes parecia dizer muito pouco...
Uma questão polémica, infindável.

2. vd. artigos relacionados em:

14 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2941: A guerra estava militarmente perdida? (17): E. Magalhães Ribeiro.

13 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2937: A guerra estava militarmente perdida? (16): António Santos,Torcato Mendonça,Mexia Alves,Paulo Santiago.

12 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2932: A guerra estava militarmente perdida? (15): Uma polémica que, por mim, se aproxima do fim (Beja Santos)

12 de Junho de 2008>
Guiné 63/74 - P2929: A guerra estava militarmente perdida? (14): Estávamos fartos da guerra e a moral nã era muito elevada. A. Graça de Abreu.

3 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2913: A guerra estava militarmente perdida? (13): Henrique Cerqueira.

31 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2907: A guerra estava militarmente perdida? (12): Vítor Junqueira.

29 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2899: A guerra estava militarmente perdida? (11): Correspondência entre Mexia Alves e Beja Santos.

28 de Maio de 2008 >Guiné 63/74 - P2893: A guerra estava militarmente perdida? (10): Que arma era aquela? Órgãos de Estaline? (Paulo Santiago)

27 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2890: A guerra estava militarmente perdida? (9): Esclarecimentos sobre estradas e pistas asfaltadas (Antero Santos, 1972/74)

25 de Maio > Guiné 63/74 - P2883: A guerra estava militarmente perdida ? (8): Polémica: Colapso militar ou colapso político? (Beja Santos)

[Por lapso, houve um salto na numeração, não existindo os postes nº 7 e 6 desta série ]

22 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2872: A guerra estava militarmente perdida ? (5): Uma boa polémica: Beja Santos e Graça de Abreu

15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2845: A guerra estava militarmente perdida ? (4): Faço jus ao esforço extraordinário dos combatentes portugueses (Joaquim Mexia Alves)

13 de Maio de 2008 > Guiné 73/74 - P2838: A guerra estava militarmente perdida ? (3): Sabia-se em Lisboa o que representaria a entrada em cena dos MiG (Beja Santos)

30 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2803: A guerra estava militarmente perdida ? (2): Não, não estava, nós é que estávamos fartos da guerra (António Graça de Abreu)

17 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2767: A guerra estava militarmente perdida ? (1): Sobre este tema o António Graça de Abreu pode falar de cátedra (Vitor Junqueira)

Guiné 63/74 - P2953: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (5): Fomos capazes do melhor e do pior (Virgínio Briote)

1. Mensagem do Virgínio Briote, com data de 24 de Maio último:


Caro Luís,

Estive a ler hoje o texto, recolhido do livro do Vicente do Carmo (1), que o Lepoldo te enviou [e que te pediste para comentar] (2).

Tem, de facto, algumas passagens que podem pôr em causa o comportamento militar e moral de, entre outros, o Cmdt Batalhão e do então Cap Terras Marques, que eu conheci quando ambos ainda não tínhamos vinte anos.

Trata, contudo, de uma página importante da nossa passagem pela Guiné. Gadamael deixou sequelas que estão bem visíveis no livro, para além de uma questão que me parece estar sempre na sombra - o oficialato e as medalhas.

É um texto cruel, contra a guerra, contra os poderes, contra Camaradas, contra a Natureza, contra a carreira que o próprio Carmo Vicente escolheu, de livre vontade, e que prosseguiu durante 6 anos. Até lhe aparecer um IN pela frente, digno, combativo e que o obrigou a reflectir. Por isso também, é um texto contra ele próprio.

É um retrato da odisseia de Gadamael, que serve de espelho a outros escritos sobre o mesmo tema. E, apesar do tom recriminatório que se sente em cada linha, também nelas se lêem o espírito de abnegação (o transporte dos mortos, as lanchas a virarem...) e o heroísmo daquela gente.

Foi a Guerra que vivemos (é sempre assim em todas), em poucos minutos, horas ou dias, somos capazes do melhor e do pior.

Um abraço,
vb
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Nota de L.G.:

(1) Vd. postes de:

4 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname

5 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

12 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2933: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (3): Manuel Peredo, ex-Fur Mil Pára, hoje emigrante

16 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2950: Com os páras da CCP 122 / BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (4): Opiniões (Carlos Silva / Nuno Almeida)

(2) Mensagem de 13 de Maio enviado pelo editor L.G.:

Amigos e camaradas Victor Tavares, Manuel Rebocho, Casimiro Carvalho, Coutinho e Lima, Jorge Canhão e Pedro Lauret (c/c ao Virgínio Briote e ao Carlos Vinhal, ao Leopoldo Amado, ao Nuno Rubim e ao A. Marques Lopes):

Junto vos envio um excerto do livro do Vicente Carmo sobre Gadamael. É já antigo, esse livro. Chegou-me às mãos, ou melhor, foi-me enviado por e-mail pelo Leopoldo Amado, com a sugestão de ser publicado, no todo ou em parte, no nosso blogue...

Acontece que tenho reservas, devido à críticas, muito pessoais, que o autor faz ao comandante do seu batalhão (BCP 12) e a alguns dos seus camaradas... Não sei se são justas ou não... Mas vão contra o espírito do nosso blogue. Não conheço o livro nem o autor (de quem já publicámos em 11 de Fevereiro de 2007 uma versão sobre os distúrbios ocorridos em Bissau, em Janeiro de 1968). Gostava de ouvir a opinião dos nossos páras, o Victor e o Rebocho, nossos camaradas do BCP 12 (o Vicente era sargento da CCP 122), mas também daqueles que conheceram, de perto, Gadamael, na época em causa (Maio/Junho de 1973): caso do Casimiro Carvalho, do Jorge Canhão, do Coutinho e Lima... Mas também do Pedro Lauret...

Enfim, também solicito o parecer do A. Marques Lopes e do Nuno Rubim, nossos "assessores", bem como do Leopoldo, e dos meus queridos co-editores. Interessa-me sobretudo o relato (objectivo, isento ?...) sobre os acontecimentos de Gadamael, e não propriamente os juízos de valor sobre os homens...

Podem-me dar-me uma ajuda ?

Um abraço do Luís Graça

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2952: In memoriam (4): O meu amigo Alferes Farinha dos Santos (Luís Dias)




CCAÇ 3491
Dulombi e Galomaro
1971/74




1. Em 16 de Junho de 2008 recebemos uma mensagem do nosso camarada Luís Dias com um texto alusivo ao seu grande amigo Alf Mil Farinha.
Agradecemos a sua deferência, pois este trabalho foi publicado no seu Blogue Histórias da Guiné 71/74 A CCAÇ 3491 - Dulombi no dia 13 deste mesmo mês.

Caro Carlos Vinhal
Aqui estou eu com mais uma estória: a do meu amigo Alferes Farinha, infelizmente já falecido, mas que pela sua maneira de estar, pela forma como lidava com os outros tornou-o, uma figura muito popular na CCAÇ 3491.

Gostaria de a partilhar com os elementos da vossa/nossa imensa Tabanca Grande, caso entendam publicá-la.

Aceite um abraço para si e para todos os tertulianos
Luís Dias
Ex-Alf Mil Inf


Foto de mais uma petiscada de graduados no Dulombi (1972) Da esq para a dir (sentados), Furs: Jara (recentemente falecido), Lourenço, Gonçalves, Machado, Nevado, o Capelão Oliveira, Sarg Gama e Fur Fonseca. Da esq. para a dir. (em pé): Alf Dias, Cap Pires, Fur Carvalho, Alf Farinha e Fur E. Santo.

Foto (e legenda): © Luís Dias (2008). Direitos reservados.

2. O meu amigo Alferes Farinha dos Santos
Por Luís Dias

O meu amigo Alferes Farinha dos Santos, infelizmente falecido em 1999, em Lisboa, devido a doença prolongada, era uma pessoa bastante estimada na CCAÇ 3491. Ainda no Regimento de Infantaria n.º 2, em Abrantes, onde formávamos Batalhão e depois de eu saber, através do meu pai, que o nosso destino era o CTIG (Guiné), o que ninguém desconfiava – todos pensavam que seria para Angola ou quanto muito para Moçambique – o Farinha confidenciou-me que, após ter sabido para onde estávamos mobilizados, pensava em dar o salto para a Dinamarca, por via marítima, e que se eu quisesse podia também ir, que o pai dele organizaria tudo e que nos arranjaria trabalho naquele país.

Confesso que o convite era tentador e depois de sabermos que íamos para as terras da Guiné, para aquele inferno, havia um forte impulso da minha parte em seguir para a frente com a ideia. Contudo, os meus pais referiram-me sempre que se eu fugisse, dificilmente me voltariam a ver… pois não teriam dinheiro para ir ao estrangeiro. A própria namorada daquela altura apoiava a minha ida… mas…este sentimento muito português da saudade, do que iria sentir… fizeram-me recuar e disse ao meu amigo que agradecia a confiança que em mim depositava mas não iria, contudo, apoiava-o se ele decidisse partir.
Ninguém foi… e fomos parar à Guiné.

O Farinha era um daqueles indivíduos super organizados, efectuando listas para tudo, tendo alguma dificuldade em improvisar – uma atitude mais europeísta do que portuguesa. Todos sabemos da nossa larga capacidade para o improviso, o que nos deu muito jeito naquelas quentes terras.

Assim, antes de ir de férias, o Farinha só falava do que teríamos de levar – roupa, medicamentos, etc. e lá estava a lista a ser elaborada, para ser seguida a preceito. Quando regressámos de férias, já com trouxa pronta para embarcar, na revisão à sua lista e na confirmação das coisas a levar… o Farinha, mesmo com tanta organização, tanta lista tinha-se esquecido, vejam lá do quê – das fardas nº3 – um fartote de riso – e lá teve de alguém da família ir de Lisboa a Abrantes, com urgência, para levar o que estava em falta.

Já na Guiné e aquando do IAO no Cumeré, o Farinha surpreendeu tudo e todos quando uma viatura do cmd-chefe do território veio buscá-lo, para o levar, pessoalmente, à presença do General Spínola. Ganda cunha comentávamos nós, mas ele replicava que era apenas um favor que deviam ao seu pai, e que, apesar da possibilidade de ficar ou vir para Bissau, decidira estar com os seus homens, e com a Companhia, obtendo do Cmdt-chefe palavras de encorajamento e de apreço (e estamos certos de que foi mesmo assim. O Farinha poderia ter arranjado um qualquer lugar em Bissau, mas a amizade e responsabilidade pelo seu grupo, pela companhia, prevaleceram).

Uma outra estória do Farinha era a dos seus famosos óculos, que ele comprara com uns aros, que ele pretendia ou imaginava - dizíamos nós - serem praticamente invisíveis, pois como afirmava; se o In visse alguém no mato de óculos, pensava logo tratar-se de pessoa que lia muito, com estudos e portanto era um graduado e, obviamente, um alvo preferencial.
Obrigava-nos, pondo-se a certa distância, a dizer se víamos os óculos ou não, se eram notados… e a malta lá lhe fazia o favor de dizer que não, que não se viam… e ele ficava todo contente.

O mesmo se passava com o seu famoso relógio que, para não brilhar à noite no mato, ele colocara uma tampa no mostrador (por acaso uns anos depois, já na metrópole, passou-se a usar uns relógios parecidos) para não ser detectado pelo brilho… pelo In e nós lá estávamos para apoiar as suas ideias… !!!!

O Farinha era um indivíduo calmo, mas era só aparência, porque pela forma como fumava, sabíamos que fervilhava no seu interior, mas era amigo do seu amigo e foi graças a ele que eu vim ter ao quartel, quando, logo na primeira operação, me deixaram perdido no mato (ver estória do Alf Dias, neste blogue e também no blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné).

A sua perdição eram as bajudas, mas quando fomos para a sede do Batalhão, aí eram as professoras (cabo-verdianas) de Galomaro, pelas quais arriscava uma porrada do comandante… indo pernoitar fora, de quando em vez, e avisando-me de que, em caso de ataque ao quartel, comandasse também o seu GC, porque ele dificilmente conseguiria reentrar nessa altura, mas logo que terminasse a flagelação informasse as sentinelas que ele viria, para não levar um tiro, pois normalmente a seguir a um ataque havia sempre um grupo a sair em perseguição e podia tocar-lhe a ele… e senão estivesse haveria barraca - "Oh Dias! É pá não te esqueças! Eu não quero ser apanhado em falta, ou dado como desertor!".

Felizmente, enquanto ali estivemos, ele pode efectuar as suas escapadelas sem que houvesse crise.

Alinhámos juntos em dezenas de operações (normalmente estávamos agrupados o 1.º GCOMB (Alf Ribeiro, mais tarde o Alf Leite e depois o Fur Batista) com o 4.º GCOMB (Alf Patente) e o 2.º GCOMB (o que eu comandava) com o 3.º GCOMB (comandado pelo Farinha)), e estivemos no primeiro contacto com o In que a Companhia teve (11 de Março de 1972– Paiai Lemenei – Operação Alma Forte).

Na Operação Trampolim Mágico, em Fevereiro de 1972, em que os nossos dois grupos de combate foram reforçar o BART 3873, de Bambadinca, depois de avançarmos pelas matas do Fiofioli, levando connosco as mulheres, crianças e velhos das tabancas controladas pelo In, que fugia à nossa frente, face ao nosso número, tive a única chatisse com o meu amigo.

Durante a noite o In ia lançando granadas de morteiro, para tentar obter uma resposta nossa, a fim de localizar as nossas posições. Ora o Farinha ordenara que tapassem a boca dos bebés com fita adesiva da bolsa de enfermagem. Talvez tivesse razão… porque o barulho repercutia-se na mata e eles podiam dar connosco, mas tive compaixão pelas crianças e pela aflição das mães e tirei a fita da boca dos miúdos – pensei que podiam morrer por dificuldades em respirar e anulei a ordem dada (eu era o oficial mais antigo, embora ele fosse mais velho de idade).

Em Novembro de 1972 fui nomeado para ir frequentar o Curso das Unidades Africanas, em Bolama e S.João. Isto queria normalmente dizer que iria parar a uma unidade africana e portanto deixaria a Companhia, o que me pôs naturalmente triste. A CCAÇ, naquela altura e desde há vários meses só tinha 3 alferes, porque o do primeiro pelotão quando estava de férias na metrópole, em Julho de 1972, deu baixa no Hospital Militar do Porto e não mais voltou.

Então o Farinha engendrou o seguinte; disparava um tiro na perna, por acidente, e teria de ser evacuado e eu, deste modo, já não ia porque só ficava um alferes e ainda como tinha sido estudante de medicina, já sabia, inclusive, o sítio exacto onde dava o tiro de pistola, em que não ficasse ferido com muita gravidade. E dizia isto com grande convicção, até porque sempre passava umas férias em Bissau. Claro que não aceitei… bolas! Era cá uma pinta… este Farinha.

Após a nossa chegada do Ultramar ainda convivi algum tempo com ele e com a sua família, aliás tinha estado com ele numa discoteca junto da Avenida de Roma, na noite de 24 para 25 de Abril de 1974 e foi ele também quem me acordou, por volta das 08h30, para vir para rua porque os militares tinham-se revoltado. Fui ao seu casamento, soube do nascimento da filha e fomos falando de quando em vez, depois, com o passar dos anos, fomos perdendo o contacto, especialmente após o seu divórcio.

Quando em 1999, foi decidido efectuar o 1.º Grande Encontro da nossa companhia que iria ter lugar em Abrantes, 25 anos depois de termos regressado, tentei apurar o seu paradeiro, telefonando para casa dos pais, tendo sido surpreendido pela notícia do seu falecimento dois meses antes, no Hospital de Santa Maria, devido ao seu grande vício – o tabaco (o que aquele malandro fumava…).

Nesse mesmo dia, à noite, falei com a mãe e chorámos juntos a lembrar algumas peripécias dele e da amizade que nos unira.

Cerca de um ano depois, soube através da ex-mulher, que os pais tinham falecido, com a diferença de um mês um do outro. Tinham muito orgulho no filho e sentiram muito a sua perda.

Amigo Farinha, temo-nos lembrado de ti nos nossos encontros, da tua simplicidade, da tua às vezes genuína ingenuidade, da tua amizade, da tua natureza, da tua franqueza, do muito que nos fazias rir, com as tuas estórias…!

Que Deus tenha a tua alma em eterno descanso.
Luís Dias
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Notas de CV

(1) Vd poste de 30 de Maio> Guiné 63/74 - P2901: O Nosso Livro de Visitas (15): Luís Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3491 (Dulombi e Galomaro, 1971/74)

Guiné 63/74 - P2951: (Ex)citações (3): A guerra de África acrescentou 15 anos ao regime de Salazar (André Gonçalves Pereira)

Lisboa > Um dos derradeiros símbolos do Estado Novo: a Ponte Salazar, inaugurada em 1966, rebaptizada Ponte 25 de Abril, em 1974 > Vista sobre o porto de Lisboa > 16 de Março de 2008 > Foto tirada por Luís Graça, no decurso da travessia da ponte, por ocasião da 18ª Meia/Mini-Maratona de Lisboa. Sob esta ponte e partindo do Porto de Lisboa, passaram várias centenas de milhares de homens em armas a caminho de África.

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


Excerto da entrevista a André Gonçalves Pereira (*), por Christina Martins e Isabel Vicente. Expresso nº 1859, de 13 de Junho de 2008. Revista Única, pp. 62-74.


Pergunta - Fez tropa ?

Resposta - Sim, felizmente, logo após na licenciatura [em Direito]. Se tivesse demorado mais um ano, teria sido chamado para a guerra.

Pergunta – Que marcas deixou a guerra [do Ultramar] na sociedade portuguesa ?


Resposta – Muitas. Salazar tinha momentos de grande perspicácia, e a guerra de África acrescentou 15 anos ao regime. Admito que ele tenha compreendido que, depois da campanha do general Humberto Delgado, em 1958, era a maneira de reencontrar alguma unidade. Nos primeiros anos, pode dizer-se que a guerra era encarada de forma patriótica. Mas, à medida que se foi percebendo que não tinha solução, a opinião foi mudando.

Pergunta – E isso aconteceu quando ?

Resposta – Num dia de Abril de 1962, quando 18 estudantes da Universidade de Lisboa – entre os quais o Presidente Joaquim Chissano, de Moçambique, que cursava Medicina – desapareceram. Assim como vários alunos meus da Faculdade de Direito, que também fugiram. Tornou-se-me evidente que Portugal não tinha conseguido conquistar as elites (…).

Como visitava muito as colónias, verificava que a vida lá não era nem de longe o sonho que pintavam em Portugal. A discriminação racial era um facto evidente… Sobretudo quando estive nas Nações Unidas em 1960, em que a África se tornou independente. A partir daí, comecei a compreender que era inevitável a descolonização (…)
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Nota de L.G.:

(*) André Gonçalves Pereira, nascido em 1936, filho de mãe francesa e de pai de origem goesa, advogado desde 1959, professor de direito, assistente de Marcelo Caetano, doutorado aos 25 anos, professor catedrático aos 32, sócio sénior do mais antigo escritório de negócios em Portugal, constituído em 1928 (Gonçalves Pereira, Castelo Branco & Associados, Sociedade de Advogados, RL), amigo de Pinto Balsemão e de Sá Carmeiro, antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros nos VII (1981) e VIII Governos Constitucionais (1981/83), como independente …

Durante o Estado Novo, foi representante de Portugal na Comissão Jurídica da Assembleia Geral das Nações Unidas (1959/66). Ficou célebre a sua boutade sobre o miserável vencimento dos ministros portugueses que, no caso dele, nem dava para os charutos...


Vd. postes anteriores desta série, (Ex)citações:


Guiné 63/74 - P2950: Com os páras da CCP 122 / BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (4): Opiniões (Carlos Silva / Nuno Almeida)

1. Mensagem, com data de 4 de Junho, do Carlos Silva, ex-Fur Mil At Armas Pesada, CCAÇ 2548 (Jumbembem, 1969/71):

Luís:

Aqui vão as Capas e badanas dos 2 livros que tenho do Carmo Vicente (1).

 Li o Poste sobre o livro Gadamael. Dizes que o Carmo faz críticas aos seus superiores e que desconheces o seu paradeiro.

(i) Ele é DFA, talvez consigas saber alguma coisa dele através da Associação [AFDA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas]

(ii) Quanto ao livro, é acutilante e não tem floreados, ele escreve o que lhe vai na alma, as críticas que ele faz, não sei se são ou não justas e não é a mim que compete julgá-las, são da responsabilidade dele e são públicas através do livro.

No entanto, estou de acordo com elas, porque, aliás, estou a lembrar-me de uma situação que ele descreve e por que passou em determinada operação, tendo eu e milhares de camaradas passado por situações semelhantes.

Estou a lembrar-me no caso de operações em que participei, com a avioneta PCV, com um indíviduo OPER DO AR, lá dentro, a fazer círculos por cima de nós, a denunciar ao IN a nossa posição. Por tal motivo, eu pensei, tal como o próprio Carmo refere, Aquele FP Operacional do ar condicionado merecia que se mandasse aquela merda abaixo. Aliás, também tenho este desabafo e corroboro os desabafos do Carmo.

Gostaste das fotos [da viagem à Guiné-Bissau, finais de Fevereiro e princípios de Março de 2008]? Na sua maioria estão espectaculares. O meu site está de vento em popa.

Recebe um abraço, Carlos Silva.
















Imagens digitalizadas: Cortesia de Carlos Silva (2008).



Lourenço: Outro livro de Carmo Vicente (Ed. A Chave, 1989), onde se conta o drama de um cabo pára-quedista desaparecido em combate.


2. Mensagem do Nuno Almeida, de 5 de Junho de 2008


Boa tarde, amigo Graça:

Ao consultar o nosso espaço guineense verifiquei que o camarada Leopoldo Amado (1) diz lamentar não conhecer o Carmo Vicente.

Caso possa ser útil, informo que o mesmo é sócio da ADFA e que quase diariamente aí almoça.

Poderá tentar contactá-lo através do nº telemovel da ADFA (917365219) ou pelo fixo (217512600).

A ADFA fica na Av Padre Cruz em Lisboa (quem vai do estádio de Alvalade para a Calçada de Carriche) logo a seguir ao Instituto [ Nacional de Saúde Ricardo Jorge vira à direita na Av. Rainha D. Amélia e entra e contorna 3/4 da 1ª praceta à esquerda, passa por baixo do prédio, segue em frente e à sua direita fica a ADFA.

Espero ter contribuído para o encontro de mais uma tertúlia guineense.

um abraço do Nuno Almeida (também sócio da ADFA)
Nuno
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Nota de L.G.:

(1) Vd. postes anteriores desta série:

4 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname

5 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

12 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2933: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (3): Manuel Peredo, ex-Fur Mil Pára, hoje emigrante

Guiné 63/74 - P2949: Convívios (67): Pessoal da CCAV 8350, no dia 7 de Junho de 2008, na Trofa (J.Casimiro Carvalho/E.Magalhães Ribeiro)



O emblema da CCAV 8350 (Piratas de Guileje)
com o signo da morte por mote,
concebido pelo Casimiro(1) em 1972





XIV ALMOÇO/CONVÍVIO DOS PIRATAS DE GUILEJE
7 de Junho de 2008, na cidade da Trofa




Foto 1> Este convívio teve mais um momento alto quando o Casimiro em conversa meramente casual com o Borges (O Chaves), descobriu 36 anos depois que, numa mortífera emboscada, se protegeram mutuamente debaixo de fogo, já com 4 mortos 1 ferido (O Pica), prostrados no terreno à sua frente.


Foto 2> Casimiro, Gonzaga, Ramos, Reis, Brás, Primo e Coronel Art Ref Coutinho de Lima


Foto 3> Os cerca de 40 Piratas de Guileje que este ano confraternizaram na Trofa, vendo-se em em baixo, à direita, de cócoras o Casimiro Carvalho.


Foto 4> O capitão Abel Quintas

Foto 5> O Coronel Santos Vieira.


Foto 6> Aspecto geral do repasto.

Almoço/Convívio

Dia 7 de Junho, 11h00 da manhã, eu e o Casimiro Carvalho acompanhados das nossas esposas Fernanda e Ana, acabamos de chegar ao centro da Trofa, junto à Capela da Nossa Senhora das Dores, onde decorria uma das partes do programa do convívio do corrente ano dos PIRATAS DE GUILEJE 72/74, uma missa pelos companheiros já falecidos.

Finda a missa, os piratas e familiares que saíam da capela, foram-se juntando outros tantos, provindos das mais diversas direcções e sentidos deste nosso Portugal.
É sempre comovente e tocante presenciar os abraços e as palavras trocadas entre estes velhos camaradas, fundindo-se em grande cumplicidade efusiva e amistosa, diria mesmo irmã.
Estes Homens duros e marcados pela guerra e pela vida, ora riem, ora choram, conforme recordam momentos hilariantes ou dramáticos, em que as suas memórias se orientam para as patuscadas e partidas próprias de jovens então com os seus 21, 22 ou 23 anos de idade, ou para os seus mortos e feridos nos ferozes e mortíferos combates que travaram, naquela longínqua e estranha Guiné com o IN.
É impossível ficar-se indiferente, especialmente quando se trata destes soldados que, para quem conhece minimamente, a sua história de sangue, suor e lágrimas, sabe que tão sacrificados e traumatizados foram

À missa seguiu-se um farto, delicioso e longo almoço no Restaurante local, de nome, Os Braguinhas, onde o pessoal entre garfadas de boa comida e uns copos de bom vinho, lá voltou a pôr as recordações em dia e tentou, mais uma vez, que os familiares e amigos presentes, entendessem mais um pouco daquilo que foi o suplício da sua terrível comissão na Guiné.

Como um simples periquito convidado que não foi além de Mansoa, e de RANGER para RANGER, não posso deixar de dizer que foi com enorme satisfação, honra e orgulho pessoal que aceitei este duplo convite do RANGER Casimiro Carvalho, quer para participar no convívio destes maravilhosos seres humanos, que tão bem me trataram e acolheram, quer para escrever estas palavras para o blogue.

Acabo esta minha narração desejando que para o ano, o 15.º Encontro, se possível, se volte a repetir ainda com maior sucesso.












Os mesmos 3 “piratas” passados 36 anos, o Casimiro (sem a tenda), o Silva (Pedra) e o Bilhau.





Texto, Fotos e respectivas legendas, enviados por E. Magalhães Ribeiro © (2008). Direitos reservados.
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Nota de CV:

(1) - Vd. Postes de José Casimiro Carvalho de:

18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

14 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G91

25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

domingo, 15 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2948: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Manuel dos Santos, 'Manecas', um dos últimos históricos do PAIGC


Vídeo (4' 18''): © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Vídeo alojados em: You Tube >Nhabijoes

Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Palace > Simpósio Internacional de Guileje (1 a 7 de Março de 2008) > Painel 1 > Guiledje e a Guerra Colonial/Guerra de Libertação > Dia 4 de Março > Moderador: João José Monteiro (Universidade Colinas de Boé) > Excerto da comunicação de Manuel Santos (guineense, ex-comandante militar do PAIGC) (*): "Amílcar Cabral e a componente militar do PAIGC: achegas para a compreensão dos meandros estratégicos e tácticos da guerra de libertação nacional".

Sinopse: Neste microfilme, Manuel dos Santos começa por referir a difíceis condições em que arrancou a luta pela independência, liderada por Amílcar Cabral e o PAIGC: um país de 600 mil habitantes, com um território plano, sem montanhas, recortadado por inúmeros cursos de água, sem vias de comunicação terrestre, com uma multiplicidade de etnias, com uma população 99% analfabeta, sem consciência nacionalista, não permitia predizer o sucesso que a luta de guerrilha rapidamente alcançou a partir de 1963... Mais, diz taxativamente que "nenhuma guerra revolucionária foi iniciada em condições tão difíceis"...

Evoca a seguir o início da preparação da luta, com a instalação em Conacri do secretariado do PAIGC, em 1960, e o envio para a China, para formação política e militar, de uma primeira leva de jovens quadros dirigentes (entre eles, o 'Nino' Vieira). A luta armada começa no início de 1963, conduzind0 rapidamente à libertação de 15% do território (segundo a própria imprensa portuguesa, de 1964 - creio que o autor cita o jornal República, que não era propriamente um orgão de comunicaçãop social afecto ao regime de Salazar, pelo contrário estava ligado a alguns fracções da oposição).

Depois da mobilização dos indispensáveis recursos humanos, técnicos e fianceiros (o dinheiro, as armas e as munições vieram de fora; os homens foram recrutados, em condições difíceis, no interior...), o PAIGC é confrontado com os primeiros sucessos no campo militar, no sul e a na zona leste, ultrapassando as expectativas e as próprias estruturas organizativas do PAIGC, cujos dirigentes se viram desautorizados, nalguns casos e em certas zopnas, por pequenos senhores da guerra, transformados em déspotas, actuando por sua conta e risco, e que foram autores de abusos e até de "crimes abomináveis" contra a população sob o seu controlo...

O PAIGC vê-se assim obrigado a organizar o seu primeiro Congresso, em Fevereiro de 1964, em Cassacá, no sul, na região de Tombali. É aqui se definem as estruturas político-militares e a administração civil, subordinando-se os militares aos políticos. É também nesta altura que se criam as FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo). Os abusos e crimes são severamente julgados e punidos. Manuel dos Santos não o diz, mas terá havido julgamentos revolucionários e fuzilamentos em Cassacá...

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Nota de L.G.:

(*) Nota biográfica: Manuel dos Santos (Manecas), nasceu em 1942 em Cabo Verde. Recebeu formação militar em Cuba e na URSS. Foi o primeiro a aprender a manobrar os poderosos mísseis Strella, a arma que tantos problemas trouxe às NT. Um dos primeiros disparos ocorreu em 25 de Março de 1973 e resultou no abate do Fiat G91. A partir dessa data, a guerra nunca mais foi a mesma. A aviação deixou de bombardear a guerrilha com tanta regularidade e as evacuações passaram a ser mais difíceis. Depois da Independência foi ministro da Informação, dos Transportes e do Equipamento Social.

Fonte: Guiné, Ir e voltar - Tantas vidas, blogue de Virgínio Briote > 03/02/08 > PAIGC: Alguns dos protagonistas conhecidos > Manuel dos Santos

Vd. também poste de 14 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2939: No 25 de Abril eu estava em... (1): Guidage (João Dias da Silva, CCAÇ 4150, 1973/74)

(...) "1 de Julho de 1974 – Encontro na zona da bolanha de Nenecó (junto da fronteira com o Senegal, a norte de Bigene) entre PAIGC e COP3.
"EM 011000JUL74, CMDT CE 199/E/70 QUECUTA MANÉ E SEUS COMISSÁRIOS POLÍTICOS DUKE DJASSY E MANUEL DOS SANTOS (MANECAS) ACOMPANHADOS DE ELEMENTOS ARMADOS DO PAIGC ENCONTRARAM-SE COM O CMDT, OFICIAIS E SARGENTOS DO COP3, NA REG. DA BOLANHA DE NENECÓ, ONDE FORAM DEFINIDOS NOS SEGUINTES TERMOS A SUA LINHA DE CONDUTA": (...)

Guiné 63/74 - P2947: O Nosso Livro de Visitas (17): Henrique Martins de Castro, CART 3521 (Piche, Bafatá e Safim, 1971/74)

1. No dia 14 de Junho de 2008, recebemos uma mensagem do nosso novo camarada Henrique Martins de Castro:

Caro amigo,

Estive na luta da Guiné de 1971 a 1974, sou da CART 3521 e amigo e companheiro de luta do Sá Fernandes que já pertence à tertúlia. Estive em Piche (11 meses), Bafatá e Safim. Sou o principal organizador dos convívios da Companhia. Vivo em Vila Nova de Famalião (telefone 252 932 774).

Sou o organizador de todos os convívios da CART 3521. Tenho um filme que fiz na Guiné em 1995, pois fui lá passar 28 dias de férias. Sou um periquito a trabalhar com um computador, mas gostaria de entrar para os tertulianos e nao sei como o hei-de fazer... por favor (...) manda um email a explicar-me, eu mais tarde te agradecerei.

Não deixo desde já de te dar os meus sinceros parabéns por teres criado este blogue pois sinto bastantes saudades daquelas terras e daqueles povos, por quem tenho muita amizade.

Através do teu blogue tenho descoberto muitas coisas que me emocionam a pontos de me arrepiar. Já fiz alguns comentários. Tenho o livro com a história da CART 3521 que retrata tudo que a Companhia passou na Guiné.

Um forte abraço


2. Em 15 de Junho foi enviado este mail ao Henrique Martins de Castro:

Caro Henrique

Obrigado por teres comunicado connosco.

Será um prazer receber-te na nossa, também tua, Tabanca Grande. Para seres admitido formalmente na nossa Tertúlia, envia uma foto do teu tempo de tropa e outra actual, em tipo passe de preferência (se não vier assim, cá nos arranjaremos) e conta-nos mais umas coisas sobre ti.

O teu posto militar, a tua especialidade, por onde andaste, onde vives actualmente, etc.

Se quiseres podes adiantar algo sobre a tua experiência na guerra da Guiné e porque não, as tuas impressões do que viste quando regressaste à Guiné-Bissau, depois da sua independência.

Aconselho-te a que leias as Nossas normas de conduta e O que nós (não) somos, no lado esquerdo da nossa página do Blogue, para assim te familiarizares com os nossos conceitos.

Se tiveres estórias que nos queiras enviar, fá-las acompanhar das fotos que tenhas guardadas e que julgavas que nunca mais veriam a luz do dia.

O endereço a usares é: luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com só para assuntos do blogue.
Poderás usar também os endereços pessoais dos editores Luís Graça, Carlos Vinhal e Virgínio Briote.

Recebe um abraço de boas vindas da tertúlia.
Em nome dos editores
Carlos Vinhal

Guiné 63/74 - P2946: Poemário do José Manuel (17): A Companhia dos Unidos

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) >

"Foi uma Companhia Unida, esta dos Unidos... Os tempos eram preenchidos, além do futebol, com as mais diversas iniciativas. O Capitão, o Alferes Farinha, o Alferes Esteves e outros ocupavam-se a realizar as mais diferentes acções para preencherem o vazio e ocuparem a mente.

"Foto acima: Um grande jogo, a foto não é minha pois estava a jogar. Sei que esmágamos uma das Companhias do batalhão que estava em Aldeia Formosa, uma goleada das antigas apesar do árbitro ter sido um nativo do Quebo" (JML)



Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "O Teatro era outra das ocupações, e digam lá se o Furriel Martins, o vagomestre, não era uma brasa? Que por momentos deslumbrou o Pinheiro, soldado de transmissões do 1º. grupo de combate" (JML).

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "Exposição de trabalhos em fósforos , feitos pelos soldados" (JML).


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "Cartas... todo o tipo de jogos, sueca, etc. em que eu quase sempre perdia, torneios de King, nos quais me saía melhor, mas raramente era o rei. Os furriéis José Manuel, Jose Manuel Miranda Lopes de frente, o escondido é o Polónia e de costas o alferes Farinha, comandante do 1º Grupo de combate e quem comandava a Companhia na ausência do Capitão Luis Marcelino" (JML).

Fotos, poema e legendas: ©
José Manuel (2008). Direitos reservados.




Tudo é tão diferentenão se ouvem os sinos
nas manhãs de domingo
nem nessas tardes
há futebol para ver
me ensinaram que
a Pátria era a mesma
não parece...
a história a religião
os costumes os heróis
que lhes diz Aljubarrota?
a batalha de S. Mamede?
D. Nuno ou D. Afonso?
estes são os meus heróis
os deles andam na mata
a lutar pela liberdade.

Mampatá 1974
josema


__________
Nota de L.G.:
(1) Vd. último poste da série > 2 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2911: Poemário do José Manuel (16): Saudades do Douro e do Marão...

Guiné 63/74 - P2945: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (34): Presentes de casamento

"A Cristina em Bissau... A Cristina chegou a 15 de Abril [de 1970],vivemos em Bissau cerca de três semanas, incluindo a minha baixa à neuropsiquiatria, no HM241.Passeámos, fomos muito bem acolhidos, jantámos em todos os tasquinhos da Península. Bissau,confirmo por estas fotografias,tinha um cosmopolitismo de guerra,era um crescimento articial de bem-estar em torno da presença das tropas" (BS).


"Abdul Injai é uma das figuras lendárias da pacificação do Oio, na 1ª campanha de Teixeira Pinto. Valente cabo de guerra de origem senegalesa, comandou fulas, futa-fulas e mandingas. Como prémio, foi nomeado régulo do Oio e do Cuor. Terá cometido excessos e confrontado a administração portuguesa. Em 1918 foi demitido de régulo do Cuor, terá pilhado armas da população, recusou-se a prestar contas a Bolama[, capital da colónia], segue-se uma campanha a partir de Farim, em 1919 que levou a sua prisão e partida para o exílio. O capitão-tenente João Quadros chamou-lhe «rebelde ardiloso que não merece quartel».




Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 5 e 10 de Março de 2008:


Luís, junto mais um episódio, se tudo correr bem ainda haverá mais quatro em Março. Seguirão ilustrações referentes a Abdul Indjai e o livro do Ellery Queen. Recordo-te que tens aí muitas imagens de Bissau, tais como a Catedral e a Praça do Império. Uma outra possibilidade era a imagem do reordenamento dos Nhabijões. Estou ansioso que voltes da Guiné e nos contes o que viveste. Um abraço do Mário.



Operação Macaréu à vista > Episódio XXXIV > TOCCATA E FUGA BWV 565, em ré menor, de Johann Sebastian Bach

por Beja Santos
´


(i) Os presentes de Bambadinca

Num ápice, vou a Bafatá buscar os presentes destinados à Cristina: uma pulseira e um anel em filigrana de prata que encomendara ao ourives, passei pela casa Teixeira e trouxe La Traviata, cantada por Joan Sutherland, Miti Truccato Pace, Carlo Bergonzi e Robert Merrill, orquestra e coro do Maggio Musicale Fiorentino, conduzida por Sir John Pritchard, e o 5º Concerto de Beethoven, executado por Wilhelm Backhaus, Hans Schmidt-Isserstedt dirige a Filarmónica de Viena.

No regresso a Bambadinca, acompanho aos Nhabijões uma delegação que vem de Bissau com um jornalista que me é apresentado como o príncipe Xisto Bourbon-Parma. Príncipe ou não, é um jovem gentil, traja uma fatiota de caqui, de vez em quando estaca, surpreso, perante uma situação dispara umas fotografias, faz perguntas, toma notas. O visitante, ao que consta, pretende visitar a Guiné, conhecer todos os recantos possíveis e avaliar a fundo o projecto da Guiné Melhor. Terá sido ele quem escolheu o reordenamento dos Nhabijões, nessa altura em franco desenvolvimento, erguem-se dezenas e dezenas de moranças alinhadas substituindo a espontaneidade dos aldeamentos Cau, Bedinca, Imbume, Bulobate, Mancanha e Mandinga.

É um reordenamento ousado, e dispendioso, envolve o batalhão de engenharia com muitos meios, muita negociação com os homens grandes dos Nhabijões, os patrulhamentos ficam a cargo da CCaç 12, da CCS e do Pel Caç Nat 52. A experiência dirá que as gentes de Madina-Belel, bem como as do Baio-Buruntoni não foram dissuadidas, continuaram a vir abastecer-se e a obter informações junto da sede do batalhão. Aliás, quem vinha do mato não precisava de grandes exercícios de estilo: perto do reordenamento, tivessem cambado o Geba, vindo a pé por Samba Silate ou cambado o Udunduma, escondiam as armas, punham um pano a tapar o tronco, a partir daí deixava de haver qualquer interpelação militar, a denúncia civil estava praticamente interdita.

A 14 de Abril [de 1970], reuno pela última vez com o Pires (em breve vai trabalhar na CCS / BCAÇ 2852), com o Cascalheira e com o Ocante, as folhas dos pagamentos estão prontas, já se efectuou a troca do fardamento, para a semana chegarão botas novas, mosquiteiros, bem como cantis e cartucheiras, todo o equipamento estava por um fio.

Fomos ainda ao paiol ver o estado as munições, o Pel Caç Nat 52, foi-me garantido pelo major de operações, durante as duas próximas semanas ficará no posto avançado de Udunduma, fará patrulhamentos no Cossé e Badora, apoiará uma coluna ao Xitole, e haverá outras actividades congéneres, mas operações de grande porte não. O sargento Cascalheira dá-me a sua palavra que não haverá desmandos nem se envolverá em desacatos. Despeço-me de todos, há uma enorme risada para aquele alferes que vai comprar a bajuda a Bissau... Benjamim Lopes da Costa, Domingos Silva, Barbosa e Teixeira irão representar o pelotão no meu casamento. Pedi ao Queirós, com a maior discrição, que ficasse, o diabo tece-as, um apontador de morteiro 81, um de 60 e dos bazuqueiros são especialistas indispensáveis. Cherno marcou férias, vai para Bissau, pois claro, mas Seco e Tunca garantirão o apoio aos morteiros 60.

É quando me vou fardar e acabar de arrumar as minhas coisas que a professora Violete me acena à porta de casa. Convida-me a entrar na sala e na presença de D. Ema, silenciosa mas com um sorriso beatifico, entrega-me um embrulho: ´
- É um presente insignificante. É uma peça de biscuit, apercebi-me que o Sr. alferes gosta destes objectos. Não tenho herdeiros directos, é uma arte europeia que não é aqui muito apreciada. A nossa casa, nos bons tempos, estava aberta aos convidados do administrador Aires. Agora somos duas mulheres sós, ninguém olha para estes objectos. Com sinceridade, faço votos para que tenha uma longa e feliz vida matrimonial.

E entregou-me, pedindo todas as cautelas, um embrulho em papel lustroso com um lindo laçarote, sem deixar de me anunciar:
- Quando vier, vamos continuar com as nossas leituras. Se tiver tempo, não se esqueça de passar pelo Centro de Estudos da Guiné e trazer aqueles boletins de que lhe falei.

Subo para o Unimog, os camaradas do batalhão acenam, é um contentamento sincero que me comove. Mas a emoção maior é o Pel Caç Nat 52 me rodear em circulo fechado, pela primeira vez toda a gente me vem abraçar, a minha mão direita é segura com firmeza por uma outra mão direita, vai apoiar-se no corações de todos os meus soldados. É a maior prova de consideração que um guineense presta a um amigo. Parto contrito, esmagado pela grandeza da hospitalidade destes fulas e mandingas.


(ii) Em Bissau, recebo ordens dos meus padrinhos

De Bissalanca a Brá é um pulo, quem me dá boleia larga-me no interior do BENG 447, atravesso as barracas mague, vejo por toda a parte longos corredores de cimento ensacado, nunca se construiu tanto como agora, entro numa estrutura metálica com tecto de lusalite e vou cumprimentar o meu padrinho. O Emílio Rosa está investido da sua responsabilidade de monitor espiritual e mestre de cerimónias, dá-me as informações mais frescas: hoje durmo lá em casa, amanhã também, a noiva fica amanhã em casa dos Payne, o melhor é aproveitar a tarde de hoje e ir tratar das coisas da alma, o padre Afonso pretende falar comigo, se possível amanhã com os nubentes. Alargo o meu sorriso face à seriedade da declaração e ao anúncio das medidas protocolares.

Entretanto, chega o Rui Gamito, não vem por acaso, quer saber qual o tipo de prenda que nos faz falta, eu não tinha resposta a dar, muito superficialmente a Cristina e eu tínhamos abordado o aluguer da casa a partir do seu regresso, em Maio, estando os electrodomésticos, postos de parte, por razões de transporte, e sendo eu um noivo sui generis, que oferecia à noiva discos como prenda de casamento, era impossível dar uma resposta sobre as nossas necessidades quanto ao recheio da casa. Deixei a minha mala e sacos entregues ao Emílio Rosa e parti de jeep para o centro de Bissau. Apanhei o padre Afonso, ele ia dar catequese, acordámos que conversaria comigo depois da missa das 18h30.



"Capa do romance policial Dez Dias de Mistério, de Ellery Queen. Nº 73 da Colecção Vampiro,tradução de Elisa Lopes Ribeiro, capa de Cândido da Costa Pinto. Indiscutivelmente uma obra-prima do romance policial dos anos 40,inscreve-se no ciclo de Wrightsville,uma imaginária povoação não muito longe de Nova Iorque que será o palco de outros romances imaginosos de Queen. Desta feita, uma mente cruel urde uma vingança que leva à destruição um jovem casal amoroso. Queen trabalha com anagramas e os 10 Mandamentos para chegar à verdade. O desfecho clarificador, no final, é esmagador, os Van Horn desaparecem, depois de 10 dias de mistério" (BS)...


Entrei na 5ª Rep, um dos cafés mais buliçosos de Bissau, àquela hora todos bramavam aos gritos sobre histórias havidas com minas e emboscadas, a um cantinho andei a vasculhar por livros e tirei dois, um policial de Ellery Queen e chamou-me a atenção um livro de Doris Lessing, com um título assombroso, A Erva Canta. O primeiro, intitulado Dez dias de mistério, li-o sofregamente nas minhas duas últimas noites de solteiro. Ellery Queen volta a Wrightsville, desta vez para ajudar Howard Van Horn, que conheceu há dez anos em Paris. Howard é escultor, parece que sofre de amnésia, está num grande sofrimento, Ellery aceita acompanhá-lo até Wrightsville. Começa aqui um policial gigantesco, cheio de anagramas num enredo onde a tragédia grega se insinua. Existe Diedrich Van Horn, o pai de Howard, e Sally, a jovem madrasta de Howard, bem como Wolfert, o tio de Howard e irmão de Diedrich. É à volta deste quarteto que se desenvolve uma tragédia genialmente urdida por uma mente vingativa, em dez dias desenvolve-se um projecto de ódio que gira à volta dos Dez Mandamentos. Ellery Queen em poucos momentos terá alcançado no romance policial uma construção tão poderosa com um desfecho que se vai descodificando como uma espiral de angústia, de modo a que o criminoso vai deixando cair as suas guardas, ficando nu perante a ruína e destruição que provocara de premeio, num projecto diabólico que conduzira dois jovens apaixonados à morte.

Nunca resisto ao fascínio do cais do Pidjiguiti, as fainas do embarque e do desembarque, a estiva, a gritaria dos pescadores, o ilhéu do Rei como pano de fundo. Olho à direita, para o edifício do Comando Naval, sou assaltado pela saudade do comandante Teixeira da Mota.

Regresso à catedral, e depois da missa procuro o padre Afonso. Imprevistamente, sem nenhuma preparação aparente, ajoelho-me e confesso-me. Levanto-me depois da absolvição, chegou a minha vez de reclamar o que venho pedir à Igreja para a minha festa. Existe órgão mas não sei se existe organista. O padre Afonso diz que sim, posso contar com música de órgão. Pergunto se é possível casar ao som da Toccata e Fuga BWV 565, de Johann Sebastian Bach. É uma peça magnificente, é um céu que se rasga, na minha imaginação Deus Todo Poderoso tem os braços abertos para receber os seus filhos, é um triunfo do Juízo Final. Isto na Toccata, e na minha imaginação. A fuga é um passeio por este mundo, um calcorrear até chegar a Deus, obter a Sua misericórdia, ao som das trombetas. Claro, tudo na minha imaginação, depois do piano e do violino nada me sacia mais na música que o órgão, ali encontro sempre imagens, ali alcanço alguma serenidade. Está prometido, casarei ao som da Toccata e Fuga BWV 565.

Prevê-se que a Cristina chegue ao princípio da tarde de amanhã, há algumas compras a fazer, prometo que voltaremos a seguir à missa das 18h30. E vou para casa dos meus padrinhos. Ao jantar, volto a receber directivas: o Emílio e o David acompanhar-me-ão a Bissalanca; a noiva desloca-se para casa dos Payne, a Isabel sairá connosco, nesse dia jantaremos no Solmar, iremos a seguir ao Quartel General tomar uma bebida, depois deitar cedo e cedo erguer, os padrinhos trabalham, os nubentes que passeiem, desfiando as suas promessas e juras de amor.


(iii) Recordações do último passeio de um oficial só


Tenho a manhã do dia 15 por minha conta, a leitura do Ellery Queen está a encher-me as medidas, sinto necessidade de me passear no meio da sublime arte africana e vasculhar papéis. Despeço-me da Elzira e do Emílio, estou de regresso antes da uma da tarde, para seguirmos para Bissalanca. Desço o bairro, em minutos estou na Praça do Império, olho sempre intrigado para aquele monumento que comemora a pacificação da Guiné, em 1936, uma viga colossal de pedra que parece vigiar o Geba ao fundo; e entro no Centro de Estudos, uma casa onde já me sinto bem. Compro os boletins que D. Violete me pediu e começo a cirandar, ocioso, à volta das estantes. Por puro acaso, encontro uma fotografia de Abdul Indjai, em pose de estado, magnífico, quase luxurioso.
A obra intitula-se Memória da Província da Guiné destinada à Exposição Inter-Alliada, de Paris, por Armando Augusto Gonçalves de Moraes e Castro, Bolama, Imprensa Nacional,1925.Encontrei aqui um parágrafo assombroso:«A Guiné é, de facto, a mais rica das nossas Províncias africanas nas possibilidades de produção agrícola.Quem for activo e inteligente,quem tiver na vida o grande sonho de vir a ser rico pelo esforço próprio-aqui encontrará o El-Dorado das suas legítimas ambições.»Esta fotografia mostra-nos o Bissau Velho, confirmo o que anotei nos meus cadernos e escrevi nos aerogramos: é a arquitectura que se encontrava em Mortágua, Mangualde ou Penalva do Castelo. Tenho saudades de me passear no Bissau Velho,onde comprei livros, música e alguma roupa (BS).


Depois sento-me a ler um relatório de 1890, escrito pelo então governador interino Joaquim da Graça Correia e Lança. Passo para o meu caderninho viajante o seguinte: “Ainda recentemente em Geba terminou uma luta que nos convence que não podemos contar com a afeição dos fulas pretos. Mussá Muló praticou tais violências que Ambucu, régulo de Ganadu, os expulsou dos seus territórios. Corrae, irmão de Ambucu, que via em Mussá Muló o verdadeiro senhor do território fula de Geba, sonhava com a independência deste presídio, sob a autoridade daquele régulo. Corrae pretendia declarar guerra ao presídio de Geba e o pretexto que encontrou foi a protecção dada pelo Governo aos mandingas e beafadas, que recentemente tinham fundado duas tabancas em São Belchior e Sambel Nhantá. Na sequência, o chefe de Geba convocou os régulos aliados a pegar em armas contra o rebelde Corrae. Este foi derrotado e deportado para Moçambique”.

Arrumo este relatório e logo me desperta a atenção dois artigos, um sobre a Guiné em 1893 e outro referente ao período 1907-1908, ambos publicados na Revista Militar, em 1946. O tenente-coronel José Augusto Velez. Falando de 1893 escreve que a guarnição militar era constituída por três companhias de polícia, sediadas em Bolama, Bissau e Geba e que havia três postos militares, um no chão dos mandingas, nas margens do Geba, Sambel Nhantá; outro no chão dos beafadas, em Sambel Chior; e mais um outro no chão dos fulas, o de Bula.

É bem curioso o artigo do brigadeiro Nunes da Ponte sobre a Guiné de 1907-1908. Escreve ele, e eu registo metodicamente: “A ilha de Bissau, com 35 km de comprido e 10 de largura não era suficientemente conhecida porque nunca tinha sido explorada. Nem mesmo se sabia ao certo qual a sua população, então avaliada em oito mil homens, distribuídos por grande número de tabancas, das quais as principais eram Intim, Bandim, Safim, Contume e Antula, todas impenetráveis ao branco”. E, mais adiante: “Não havia uma carta regular da ilha. A Praça de São José de Bissau era insignificante como povoação. Era triste, lúgubre, soturno o aspecto daquele pequeno aglomerado populacional. A vista esbarrava-se contra a muralha escura, de traçado rectangular, com um baluarte em cada ângulo, que cercava a Praça em toda a extensão, contornada por fosso largo e profundo”. Olho para o relógio, está na hora de regressar.



Despedi-me da Cristina no cais da Rocha do Conde de Óbidos em 24 de Julho de 1968. Espero vê-la dentro de uma hora. Neste momento nem me ocorre pensar que a lua de mel vai desaguar no internamento da neuropsiquiatria. O importante é que tudo vai mudar, espero em Agosto regressar a Lisboa e aos estudos. Caminho pensativo com a sorte que está reservada aos meus soldados, de quem me irei separar e muito provavelmente perder-lhes o rasto. Vou pensativo, é injusto viver-se, partilhar-se tanto sofrimento em conjunto e depois afastarmo-nos.

E lá vamos os três a conversar em voz alta, a caminho de Bissalanca. O padrinho Emílio não deixa de observar:
- Sê gentil, já não estás na guerra. Que a Cristina não se aperceba da guerra durante este tempo.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 30 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2902: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (33): A correspondência epistolar na véspera do meu casamento

Por razões de viagem ao estrangeiro do editor L.G., que tem esta série a seu cargo, não se publicou, na semana passada, o episódio nº 34. As nossas desculpas ao Mário e aos seus fãs.