terça-feira, 1 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3011: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (3): Fornilhos e despojos humanos


1. Texto enviado, em 1 de Julho, pelo Alberto Branquinho, advogado, ex-alferes miliciano na CART 1689 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69):

Camarada Luis Graça

Com os meus cumprimentos pelo Post 3000, estou a enviar mais um texto para o UMBIGO (*), o nº3.

Um abraço
Alberto Branquinho


2. NÃO VENHO FALAR DE MIM… NEM DO MEU UMBIGO (3) > DESPOJOS
por Alberto Branquinho

Fotos: © Carlos Américo Rosa Cardoso (2007)(**)

Mais ou menos nove horas da manhã. O pessoal da Companhia estava pronto e equipado, com os seus pertences arrumados nos sacos de lona e espalhado pela proximidade dos abrigos (não fosse necessário recorrer a eles). Aguardava a coluna auto que chegaria de norte, para sair dali nessa mesma coluna, no movimento de retorno. A impaciência era grande para abandonar aquele inferno de guerra, sofrimento e privações de há longos, longos dias.

Exactamente a norte – três, quatro (cinco?) rebentamentos de grande potência. A primeira reacção foi correr para os abrigos. Muitos estacaram imediatamente, porque estouros com aquela força nada tinham a ver com saídas de canhão ou de morteiro. Todos os olhos dos corpos agachados se viraram para o lado dos estouros, com expressão ansiosa. Uma nuvem de pó (e fumo?) começou a surgir e a avantajar-se muito acima das copas das árvores, lá ao longe.
- Que merda foi aquela?

A resposta chegou pouco tempo depois, via rádio e retransmitida:
- Fornilhos.

Chamam-se enfermeiros e saem viaturas com pessoal, em socorro. A coluna tarda e não há mais notícias.

Chegam as viaturas que tinham saído. Os homens vêm com um ar soturno. Duas viaturas tinham sido afectadas e havia muitos corpos despedaçados.
– Quantos? - Ninguém sabe.
- Quando se fizer a chamada é que se pode ver. Sabe-se que falta um alferes.

Entra no recinto do aquartelamento a viatura de caixa aberta, com os pedaços dos corpos. Curiosos agarram-se às cancelas e espreitam.
– Foda-se! Parecem todos pretos!

A viatura é coberta com panos de tenda amarrados e enxotam as moscas que teimam em ficar por baixo dos panos. Uma raiva enorme, surda e irracional enche as cabeças e os peitos. Muitos cospem para o chão de forma maquinal, continuada e inconsciente.

As viaturas são abastecidas de combustível para o regresso, ao mesmo tempo que é retirada a carga que se destinava ao aquartelamento. Tenta-se reorganizar a coluna para o regresso, com a indicação de que a viatura com os restos dos corpos seguirá na retaguarda. O pessoal da Companhia que aguardava a chegada da coluna, seguirá a pé, espaçado, pelotão a pelotão, entre as viaturas.

Começa o andamento, desenrolando o novelo de viaturas e homens. A raiva sobe-lhes, os peitos arfam, os dentes cerrados. Há ordem para, além de olhar à direita e à esquerda, estarem atentos, também, às grandes árvores que ladeiam o itinerário. Não demoraram muito a chegar ao local do rebentamento dos fornilhos. Cabe um homem agachado dentro de cada buraco.

Um furriel viu, pendurado de um ramo alto, um braço ou, talvez, fosse uma perna.
- Eh, pá! Deixa aqui a G-3 e vai lá buscar aquilo, que a gente dá-te cobertura.
- Foda-se! Ir lá em cimba ?! Bá lá bocê!

Frente à recusa, desistiu e ficou parado, a olhar fixamente aquilo. Depois olhou para o chão, na beira do itinerário, ao lado da árvore. Três ou quatro formigas grandes e pretas, com as pinças cravadas, tentavam arrastar um pedaço de carne, que tinha colado um farrapo de farda camuflada. Com raiva, elevou o tacão da bota de lona para esmagar as formigas, mas susteve o pé no ar, com a perna flectida, para não esmagar, também, a carne. Acabou por dar um passo mais largo. Voltou-se para observar melhor e verificou que havia mais pedaços de carne espalhados em volta.

Ficou a olhá-los sem dar conta que as viaturas e os homens continuavam a passar.
Retomou a marcha devagar, muito devagar, titubeante e, entre dentes, ia repetindo Lavoisier:
-“Na Natureza nada se cria, nada se perde…nada se perde…nada se perde…nada se perde…nada se perde"...

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série:

30 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2903: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (1): Palavras e expressões do crioulo

12 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2931: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (2): Da solidão de pides, padres, administradores, mascotes...

(**) 1º Cabo Radiologista Carlos Cardoso, dos Serviços de Saúde Militar (1972/74). Vd.postes de:

1 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1481: Hospital Militar de Bissau (1): Apresenta-se o ex-1º Cabo Radiologista Cardoso

7 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1738: Hospital Militar de Bissau (2): O terminal da guerra, da morte e do horror (Carlos Américo Cardoso, 1º cabo radiologista)

Guiné 63/74 - P3010: Poemário do José Manuel (19): Aqueles assobios por cima das nossas cabeças...

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "O Furriel Gomes do Pelotão de Caçadores Nativos, o Amadú, um guia e amigo do mesmo pelotão, e eu, carregado de cadernos e livros apreendidos no corredor da morte [ou corredor de Guileje]. De salientar a quantidade de livros escolares em português que o PAIGC tentava fazer chegar às zonas por eles controladas".


Foto, poema e legendas: © José Manuel (2008). Direitos reservados (1)


Aqueles assobiossobrevoando cabeças
os rostos no chão
beijando a terra vermelha
os dentes rangendo
mordendo em vão
os ouvidos prenhes
de sons brutais
os olhos abertos
que nada vêem
os gritos loucos
saídos do inferno
o silêncio surdo
que cai bruscamente
os olhares vazios
procurando rostos.


Nhacobá 1973
josema (2)

______

Notas de L.G.:


(1) Vd. último poste da série > 22 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2973: Poemário do José Manuel (18): Não se morre só uma vez...

(2) Poema e foto enviados em 16 de Abril de 2008. Sobre o autor, vd. poste de 27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

Guiné 63/74 - P3009: Com sangue na guelra: Nós e a mística dos comandos da 38.ª, em Mansoa (Belarmino Sardinha)

1. Texto de Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM (Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, 1972/74).

Com o Sangue na Guelra
por B. Sardinha

Tomei conhecimento deste Blog após algum tempo, muito, depois de criado.

Embora procure actualizar-me rapidamente, tenho consciência que muito me falta ainda ler do que já está escrito, mas não podia nem queria deixar de participar, não com factos de guerra propriamente ditos, que felizmente não vivi fora dos quartéis por onde passei, mas com outros que poderão ser interessantes para quem se queira dedicar a estudar, investigar, e pretenda um dia, daqui a mais alguns anos - não faltam muitos para se extinguirem os últimos de nós pela lei natural da vida -, analisarem, com a devida distância, as implicações que tiveram estas guerras de guerrilhas da altura, no comportamento social, individual e colectivo e no pós- independência das colónias ou províncias, hoje Países, onde nos batemos como se dizia, pela Pátria.

Tudo isto a propósito do que li escrito pelo Amílcar Mendes, da 38.ª de Comandos, a quem antes de mais envio o meu abraço, onde além de nos dar a conhecer na 1ª pessoa as tragédias sofridas por estes camaradas, se sentiu, certamente que não neste blog mas na sociedade em geral ou por pessoas pouco identificadas ou mal esclarecidas, apelidado de assassino.

No contexto da guerra, se assim o quiserem entender, todos que lá estivemos o fomos. Até mesmo eu, sem nunca ter saído da frente de um rádio o posso ter sido. Não acredito que qualquer camarada, no seu perfeito juízo, assim o considere. Só pode ser dito por alguém que nunca lá esteve ou por razões políticas que o motivem e me escuso de referir.




Guiné >Região do Oio > Mansoa > 2005 > Panorâmicas de Mansoa na actualidade > Fotos enviadas pelo nosso amigo e camaarada Constantino Neves e a ele cedidas pelo ex-Furriel Miliciano de Transmissões de Infantaria José Couto, da sua Companhia, a CCS/BCAÇ 2893. Voltou à Guiné em 2005. Já aqui publicámos fotos dele, do Cacheu, de Quinhamel e de Bafatá.

Fotos: © José Couto / Tino Neves (2006). Direitos reservados.


Tenho amigos que, continuando a sê-lo, embora pensem dessa forma, não consigo demovê-los, acham que por se terem ausentado na altura certa todos os outros o deveriam e poderiam ter feito e assim são co-responsáveis, mas cada um sabe das condições de vida que tinha, da sua formação e esclarecimento político e contactos na altura.

Mas voltando aos operacionais comandos, é certo que eram vistos de forma diferente da outra tropa, começavam logo por ser voluntários recrutados na instrução, mas quem é que aos 20 anos, sabendo ou calculando que ia parar à Guiné, Angola ou Moçambique não queria ir melhor preparado, não queria ser herói, chamar a atenção das miúdas e mostrar-se forte e valente sem medos nem receios?

Só quem nunca teve 20 anos e nunca cometeu excessos pode dizer uma tal barbaridade, ainda por cima não assumida ao que parece.

É verdade que estes militares tinham uma postura que lhes era transmitida e eles assumiam-se como diferentes, melhores e superiores, era uma outra forma de se afirmarem quando nada tinham tido antes onde pudessem fazê-lo, era normal naquela idade, a libertação dos pais e das dependências, a passagem a homem. Veja-se como mo Amílcar Mendes retrata e se distancia hoje dessa postura, mas assume-a.

Recordo um episódio da chegada desta companhia de comandos periquitos, a 38.ª a Mansoa, e o alvoroço que criaram quando substituíram à Porta D’armas os velhinhos do BCaç 3832, desejosos de regressarem a casa.

Habituados que estávamos a sair uniformizados mas sem obrigatoriedade de jogar com as peças certas de cada uniforme, quer dizer sairmos à vontade já que os passeios se limitavam a três ruas, irmos até à sede dos Balantas ou ao cinema, beber umas cervejas no Simões ou simplesmente dar uma volta, com estes à porta d’armas não podíamos sair do quartel se não estivéssemos fardados a rigor, quer dizer, sapatos e meias altas já que de botas de lona ninguém passava. Também não se lhes podia chamar periquitos.

Claro que rapidamente se espalhou isto no quartel e, passado pouco tempo, estava uma quantidade significativa de militares fardados a rigor, alguns até com a farda n.º 1, a formar à entrada do quartel e a pedir revista pelo oficial de dia.

Esta atitude tomada pela velhice e outros menos velhos como eu, com apenas 5 meses de Guiné, foi ultrapassada de imediato e voltou tudo à normalidade. Mas ficava sempre um mal estar que só o tempo esbatia, o conhecimento e a porrada que uns e outros íamos levando, cada uns nas suas situações.

Outras coisas eram feitas de propósito para obrigar a essa divisão, mas era normal no regime da altura e em qualquer outro que arranje formas de distrair para impedir aquilo que é importante, e era importante impedir que a generalidade dos militares, mais ainda os operacionais considerados de elite, não se misturassem e apercebessem da realidade, mas é esse estudo e as suas implicações que pode e deve ser feito por especialistas da matéria. Mas dizia eu que havia coisas que eram mal interpretadas e aceites, tais como terem construído um refeitório e um bar só para eles, onde acabou por não ser, já que eu, como individual, acabei por almoçar com eles uma vez e no bar passei muitas horas, mas tenho consciência de que terei sido mesmo uma excepção.

Ninguém pode hoje criticar um antigo militar que aos 20 anos esteve envolvido em actos que fizeram parte de um passado da história de Portugal, quando se tenham cingido ao andamento normal da situação vivida no local.

Não creio que alguém seja hoje capaz de chamar isso a Salgueiro Maia, também ele tendo chefiado um grupo operacional de comandos e um oficial que tinha orgulho na sua farda e no seu porte, mas que o tempo ajudou igualmente a amadurecer e a quem todos devemos o contributo e a bravura em 25 de Abril de 1974.

Um abraço para todos
B. Sardinha

Guiné 63/74 - P3008: O caso do embaixador de Portugal em Bissau (4): Não ao linchamento popular... (João Tunes / J. Mexia Alves)

1. Mensagem do João Tunes, cujo reaparecimento no nosso blogue eu só posso saudar, com amizade e apreço [O João está habitualmente no seu blogue Água Lisa (6)]:

Caro Luís,

Tenho assistido perplexo a esta guerra contra o embaixador português na Guiné. Decerto uma guerra fundamentada e justa, do ponto de vista dos seus promotores e dos indignados seguidores. Mas com uma componente emocional desbragada e uma tremenda carga agressiva nas palavras como se meio mundo desatasse, por um incidente que não testemunhou, à morteirada contra os muros da nossa embaixada em Bissau.

Claro que não ponho em causa o testemunho do Pepito nem da filha. Muito menos a gravidade da invocada falta de educação. Mas custa-me que se fuzile um embaixador português sem direito a legítima defesa, como me custaria para qualquer comum cidadão, delinquente que fosse. O MNE tem um orgão de fiscalização da actividade diplomática (não sei como se chama mas sei que o tem). Não seria mais correcto dirigir para aí a exigência da abertura de um inquérito à ocorrência e depois o apuramento das responsabilidades? Porque, como está a ser, não passa de um linchamento por justiça popular. Façam-no se o blogue para aí se voltar, mas fica aqui dito que não alinho em condenações sumárias. A mim basta-me fazer-te chegar esta declaração pois já não tenho idade para andar a dar tiros em embaixadores em incidentes que implicam no relacionamento do nosso país com países estrangeiros, o que pressupõe uma gravidade de intervenção que não se compadece com a leviandade de seguir-se a reboque da versão de uma das partes.

Abraço do
João Tunes

2. Também o Joaquim Mexias Alves nos acaba de mandar a seguinte mensagem sobre o caso do Embaixador de Portugal em Bissau:

Caro Luís e Camaradas;

Este caso do Embaixador tem andado a incomodar-me e tenho procurado palavras para exprimir o que queria dizer.

Já não preciso, pois o João Tunes encarregou-se disso, por isso, pedindo-lhas emprestadas, faço minhas as suas palavras.

É preciso saber tudo, o que aconteceu, o que pode ter acontecido, e o que já podia ter acontecido antes.

Os serviços respectivos que investiguem e decidam em conformidade, informando os interessados.

Abraço camarigo do
Joaquim Mexia Alves

3. De igual modo o J. L. Vacas de Carvalho, nos manda dizer: "Por mim aguardo até saber mais detalhes. Zé Luis"...


O Zé Luís, que é amigo da mulher do senhor embaixador, já nos tinha dito que ele, o senhor embaixador, era a educação em pessoa.. E eu respondi-lhe que, no mínimo, ele não fora feliz connosco, em Bissau, durante o Simpósio Internacional de Guileje (29/2 a 1/7/2008) e não parece ter sido educado para com uma lusoguineense e para com dois outros nossos amigos guineenses...

4. Comentário de L.G.:

Sou particularmente sensível às palavras do João Tunes: temos que saber gerir as nossas emoções, e nomeadamente em público, no blogue... Falei originalmente em "assobios e pateadas". Claro que estava a falar em termos metafóricos... Não quis inflamar a caserna e, muito menos, incentivá-la a pegar na G3 e no morteiro 60... Manifestei a minha solidariedade à Cristina, ao Pepito e à Isabel Miranda... Manifestei também a minha indignação (e é difícil fazê-lo sem alguma emoção, já que nenhum de nós é propriamente um animal de sangue frio...). Mas também estabeleci os meus próprios limites e as minhas regras. Retomo o que então escrevi (1):

(...) Pepito: Não conheço senão a tua versão dos acontecimentos. Todos os conflitos têm o verso e o reverso. Não creio, todavia, que tenham sido dadas quaisquer explicações (muito menos apresentadas desculpas) pelo senhor embaixador ou pela embaixada, relativamente a este incidente... Mas, conhecendo-te como te conheço, acredito na tua palavra e na tua versão dos factos. Herdaste do teu pai a verticalidade, a coragem e a honestidade intelectual. Não irias seguramente fazer deste incidente um caso público, a não ser por razões de dignidade (...).

Estou (ou estava na altura) seguramente mais preocupado com os nossos amigos guineenses e com as pequenas mazelas e sequelas que, eventualmente, este caso (algo insólito) possa (ou pudesse) ter nas relações de amizade e de cooperação entre nós todos... É fundamental que a Embaixada de Portugal em Bissau seja uma referência e um motivo de orgulho para todos nós, portugueses e guineenses. Quanto à falta de consideração e de respeito pelos antigos combatentes, a começar pelo Terreiro do Paço... bom, a isso infelizmente já estamos de há muito habituados. Não devíamos estar, mas estamos...

Resta-me dar, aqui, por encerrado este caso, a menos que os próprios serviços de relações públicas da Embaixada de Portugal em Bissau queiram - o que me parece de todo improvável - appresentar e divulgar, através do nosso blogue, a sua versão dos acontecimentos.

Não sei como funcionam os nossos representantes diplomáticos, quais são as suas regras de ser e de estar, a sua cultura profissional e institucional. Julgo que tradicionalmente cultivam o low-profile, uma vez que têm de ser discretos... A própria palavra diplomacia, pelas conotações que foi ganhando ao longo dos tempos, não parece ser compatível com a ideia de simplicidade, transparência, fairness, que esperamos hoje de uma administração pública pós-moderna... Pela nossa parte, queremos continuar a ser um blogue, aberto, emocional e socialmente inteligente, tolerante, plural, ético e friendly... Não somos seguramente um blogue caceteiro...

_________

Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P3007: Os nossos regressos (2): Finalmente, cheguei, estou vivo, não se assustem, sou eu, o Joaquim (J. Mexia Alves)

1. Para a nova série Os Nossos Regressos (1)... 

Regressos, no plural, por que cada história é uma história... O regresso a casa não foi vivida da mesma maneira, por todos nós: houve seguramente um cocktail explosivo de sentimentos contraditórios... E depois a mais ou menos difícil (re)adaptação à vida civil, após um ano de tropa e dois de guerra... 

O meu regresso e o que se seguiu depois 

por Joaquim Mexia Alves (2)

Sei lá quando, já não me lembro, mas deve ter sido nos meados de Dezembro de 1973, que me disseram em Mansoa: 
- Prepara-te, vais para Bissau para embarcares para a Metrópole. 

Parecia assim uma coisa irreal! Agora que o cacimbo tomava conta de mim totalmente, agora que tanto me fazia ser de noite ou de dia, estar no quartel ou no mato, é que me diziam para eu me ir embora. 

Fiquei a pensar no assunto e tive uma certeza: tinha de estar muito apanhado do clima para a coisa não se transformar em euforia! 

Lá pelos vinte dias de Dezembro, julgo eu, vim então com uma mala pequena, para Bissau. Tanto tempo, dois anos e nada para trazer! 
O whisky tinha-o bebido, (que assim não se estragava de certeza), as fotografias, as que tinham sobrado de uma fúria que me tinha dado e me levou a rasgar não sei quantas, também vinham no saco, o camuflado, uma roupita civil e sei lá eu bem mais o quê. Bissau, as burocracias, os últimos copos, as últimas doideiras, (tenham pena de mim que me vou embora e desculpem lá qualquer coisinha), e duas ou três tentativas falhadas de ligar para a família a dizer: 
- Parto hoje, chego amanhã, não se incomodem, que eu também não.

Um último olhar a Bissau, à terra quente e vermelha, um último suspiro de calor, uma última experiência dos braços, pescoço e todo o corpo sentir-se todo molhado de suor, pegajoso e embarcar. Ao menos aqui não há aquelas mosquinhas pequeninas do mato que se metem nos olhos, nos ouvidos, poisam nos braços e não levantam quando passamos a mão e ali ficam esmagadas, coladas com o suor do calor e do medo. 

 Avião, ar condicionado, "hospedeiras" fardadas, de barba feita, que debaixo das cuecas eram “inguais” a mim, que naquele tempo ainda a mulher não ia à tropa! Lá em baixo vai ficando para trás a estrada de Bambadinca/Xitole, tantas vezes palmilhada, o Geba, e a travessia mil vezes repetida de sintex a remos de Mato Cão para Bambadinca, a estrada Jugudul/Portogole, causa de tantas noites em branco, vai ficando para trás o suor, as lágrimas, a revolta, o sangue e vai nascendo já, muito timidamente, uma saudade inexplicável. 

E ficam também para trás os camaradas e amigos que comigo embarcaram e agora ainda têm de penar mais um pouco. 
E ficam para trás os meus camaradas “toupeiras” de Mato Cão, e o bife de javali frito em banha da cobra, e as perninhas de rato cozinhadas à José Orabé. 
E ficam para trás os Balantas garbosos, guerreiros do "Taque Tchife", "Agarra à mão", dos quais me vai no coração o "gigante" In Oina Nor, que supostamente me protegia as costas e lá de baixo, na bolanha, deve olhar para o avião com os óculos de lentes amarelas, de andar no mato, que lhe deixei. 

Na ida deram-me seis dias de Niassa para me ir habituando à ideia da Guiné. Agora só me dão duas ou três horas para me ir readaptando à sociedade dita civilizada. A coisa não vai dar certa!
 
Finalmente o “pássaro” aterra em Lisboa. 

Que tristeza, toda a gente dá abraços, beijos, palmadas nas costas, lágrimas, e eu para ali sozinho, perdido, irrealmente regressado da guerra. Um camarada da guerra, que não me lembro se já conhecia, ou se foi conhecimento a bordo, percebe a minha desorientação, ou por já lhe ter dito que não tinha lá ninguém à espera, ou porque percebeu a coisa, e diz-me: 
- É pá, se não tens ninguém, eu peço aos meus pais e levamos-te a casa. 

Eu nessa altura, ou seja antes de partir, vivia em Lisboa. Nunca percebi porquê, mas a verdade é que tinha levado comigo a chave da casa para a Guiné e ainda estava comigo. Aceitei de muito bom grado a oferta e fizemo-nos ao caminho. Lembro-me vagamente de termos parado na Estalagem Terminal, logo ali na Avenida Gago Coutinho, pois era lá que os pais deste camarada tinham ficado hospedados e de eu tentar telefonar para casa sem ninguém me atender. 
E chegámos finalmente à Rodrigo da Fonseca, rua da minha infância e adolescência, despedimo-nos com agradecimentos e juras de nos reencontrarmos, e toquei à porta na esperança que abrissem e eu fosse preparando caminho para evitar "cheliques", desmaios, etc, etc. 

Tal não aconteceu, e assim fui subindo de elevador até ao quarto andar e, com algum receio, meti a chave à porta e abrindo-a gritei: 
- Sou eu, o Joaquim, já cheguei da Guiné, não se assustem! 

Respondeu-me o silêncio, um insuportável e profundo silêncio! A casa não tinha aspecto de ter vida naquele momento e então fez-se luz no meu espírito! Era dia 21 de Dezembro e por isso a família já estava em Monte Real para passar o Natal. Fiquei mais aliviado. Pousei a mala e fui direito ao telefone, para ligar para casa dos meus pais em Monte Real. Atendeu um irmão meu: 
- Está lá. Quem fala? 
Respondi: - É o Joaquim! 
Resposta pronta: - Ó meu filho da p…, vai pró c…, o meu irmão está na guerra da Guiné e tu a gozares! Vai pró c… E “tunga”, desligou-me o telefone nas trombas! 

Liguei outra vez, e muito rápido disse logo para não desligar, que era eu mesmo e que dava provas disso, etc e tal. Depois de convencido lá falámos um pouco, porque é eu não tinha avisado e enfim e "assim e andando". Disse-lhe para me virem buscar a Lisboa e ele disse que já me ligava. Isto ao que me lembro era assim já lá para as nove horas da noite, ou coisa parecida. Pouco tempo depois disse-me que me vinham buscar, mas não era já, para eu descansar um pouco, que lá para a meia-noite, uma hora estariam em Lisboa. Não percebi muito bem porquê, porque é que não vinham logo, mas borrifei no assunto. 

Mas qual descansar, qual quê!... Vou já é p'ró Gambrinus! 

A excitação de estar em Lisboa, mais a fome e sobretudo a sede de uma imperial como deve ser, chamavam por mim. Lembrei-me então que estava todo vestido de verde e que não ia para a rua fardado, era o que mais faltava! Fui ao guarda-fatos do meu quarto procurar roupa para vestir e deparei com o dito cujo vazio! Tinham-me levado a minha roupa toda para Monte Real, julgava eu.
Assim tive de me socorrer das jeans que trazia na mala vinda comigo da Guiné, um pólo azul claro e os respectivos sapatos. Tinha, julgo eu, cerca de 20$00 no bolso, guardados religiosamente desde a última vinda à Metrópole, nas férias. 

Saí de casa e percebi então verdadeiramente que era dia 21 de Dezembro, Inverno em Portugal e que eu estava de manga curta e com o "bronzeado" típico da tropa em África. Não me preocupei com a coisa, mas vi nalguns rostos que se cruzavam comigo na Avenida da Liberdade, o espanto e a pergunta íntima se eu não estaria doido. Fui direito ao Gambrinus, na Rua das Portas de Santo Antão, onde os meus amigos e o pessoal dos toiros se costumava juntar ao fim da noite, na certeza que havia de encontrar pessoal conhecido e que alguém havia de ter pena de mim e me havia dar de comer e beber. O Zé Luís Vacas de Carvalho, sabe bem onde é!!! 

Assim que entrei e me dirigi ao balcão, o Domingos, Chefe do Bar e que me aturava desde as minhas primeiras saídas nocturnas em Lisboa, logo percebeu o que se passava e disse-me: 
- Acabou de chegar da Guiné, não é? E se calhar nem tem um tostão no bolso? 

Para além de me servir de imediato uma reluzente, fresquíssima e saborosa cerveja, deitou as mãos ao bolso e entregou-me dois contos de réis, dizendo-me que depois faríamos contas. Senti-me um pouco em casa e entretanto foram chegando os amigos, foi-se fazendo a festa, bebendo umas cervejas e matando saudades. 
Depois lá fomos para um bar qualquer de Lisboa, continuar a noitada, de tal modo que me esqueci que já devia ter os meus irmãos em casa à espera. Despedi-me, meti-me num táxi e fui para casa onde os meus irmãos já dormiam nos sofás da sala. Abraços, algumas lágrimas, recriminações por não ter avisado e metemo-nos no carro para, julgava eu, irmos direitos a Monte Real. Claro que passado um pouco, com trepidar do carro e as últimas emoções vividas, adormeci como um "anjo" e dormi por tempo largo. 

Em Castelo de Vide, Alentejo, para uma batida aos coelhos 

Quando acordei e olhei pela janela do carro não percebi se ainda estava a dormir e a sonhar, porque a paisagem que via na luz da aurora nada tinha a ver com Leiria, Monte Real, ou arredores. Logo de imediato parámos numa bomba de gasolina e os meus irmãos disseram-me que o meu pai e os outros estavam à minha espera no café, ligado às bombas. Mais abraços, mais lágrimas e a pergunta inevitável: 
- Mas onde é que raio nós estamos? 
Desvendou-se o mistério: Estávamos no Alto Alentejo a caminho da Castelo de Vide, onde íamos a uma batida aos coelhos! Fiquei ali sem pensar no que dizer. Certo é que passado pouco tempo lá estávamos preparados para a caça, (não me lembro se vesti o camuflado, ou a farda verde), e eu ainda nem passadas 24 horas de ter saído da Guiné, com uma arma na mão a olhar para a mata à minha frente. 
O meu irmão João dizia-me: 
- Ó pá, toma cuidado que andam aí uns gajos a bater os coelhos. Não são “turras”, (que me perdoem os camaradas de armas do PAIGC), são batedores. Não dês um tiro em nenhum! 
Aviso importante que retive na cabeça, pois a coisa podia dar para o torto. 

Bem, durante a manhã acertei sobretudo no chão, nas árvores e em muita coisa que não coelhos, mas para a tarde já matei um ou dois, sei lá, já não me lembro. 
Regressámos então a Monte Real, onde fui apaparicado pelas senhoras da família, com a minha mãe à frente, claro. Nem sempre o último filho de nove irmãos tem a possibilidade de ser mimado, porque é coisa já muito vista, por isso foi um momento muito especial do meu regresso. 

No outro dia de manhã, (ainda estou para saber se foi real ou sonhado), ainda a dormir ouvi umas explosões e só quando dei com as trombas na porta da cozinha percebi que não havia valas para me meter e que já não estava na Guiné mas sim em Monte Real. Parece que teria havido uns foguetes nessa manhã, mas não se falou mais no assunto. 

Regressado a Lisboa, lá me fardei pela última vez para ir ao Depósito de Adidos, acabar com a minha ligação à tropa. À entrada, e perante a indiferença do sentinela, (que achei uma falta grave de consideração por um combatente…), dei-lhe uma "pissada" e obriguei-o a fazer um "ombro arma" como devia ser. 
Entrado na Repartição que me tinham indicado, dou com um Sargento sentado, mal-humorado e que me atendeu como se eu fosse uma "merda" qualquer. Depois de algumas insistências minhas para ser atendido e uns grunhidos do dito cujo como resposta, veio ao de cima o meu lado irascível e colocando uma mão no balcão, saltei para o outro lado. Está bom de ver que o homem deu um salto e correu para trás fazendo imensas promessas que eu iria ser despachado num ápice e que pedia muita desculpa, mas não se tinha apercebido, etc, etc. 
Lá me entregaram o papelito a dizer que eu passava à disponibilidade e curiosamente não estava lá nenhum General ou politico para me agradecer os três anos dados à Nação, etc, etc, o que eu também não estava à espera, obviamente. 

À saída, ainda fardado claro, o sentinela ao ver-me, fez o mais perfeito "ombro arma" da sua breve carreira militar. Ai não!!! 

Bem, depois foi a inadaptação à sociedade de Lisboa 

Aquela gente vivia como se não houvesse gente a morrer na guerra, como se nada se passasse e quando eu dizia qualquer coisa acerca disso, olhavam para mim como se eu fosse um qualquer "alien" completamente desfasado da realidade. Claro que isto não podia dar bom resultado, e as noitadas, os copos sempre em exagero, os problemas e "desaguisados" constantes, não prenunciavam nada de bom para a minha vida futura. 
Os meus pais preocupados, bem como o resto da família, arranjaram uma solução que me propuseram. Um dos meus irmãos mais velhos tinha empresas em Angola e Moçambique, e assim, se eu concordasse iria uns tempos para Angola, adaptar-me a trabalhar, a fazer algo de útil pela vida e depois logo se veria o que se seguiria, pois em Lisboa a coisa ia-se complicar e o reentrar no curso de Medicina era coisa que nem os maiores sonhadores acreditavam que eu fizesse. 

Assim, passados pouco mais de dois meses de ter saído da Guiné, no dia 8 de Março de 1974, esta “praça” desembarca no aeroporto de Luanda. (É curioso que o país e a tropa complicaram como o caraças a minha ida para Angola, o que não tinha acontecido quando foi para eu ir para a Guiné. Porque é que seria????) 

Aberta a porta do avião, levei com aquele calor e aquela humidade que aproximam o clima de Luanda do da Guiné, e foi quase como um regressar a "casa". 
Daqui para a frente, o clima, a sociedade, os amigos, e até, curiosamente a situação politica, ajudaram-me a encontrar um equilíbrio para poder continuar com a minha vida. 

Regressei pouco antes da independência, mas já com outra vontade de viver. A guerra passou, os tempos duros e feios também e agora dou comigo muitas vezes, como dizia no nosso encontro em Monte Real, a ter saudades da Guiné e dos tempos de camaradagem, em que os homens por força das circunstâncias, mas não só, confiavam uns nos outros e encontraram amizades para toda a vida. Somos especiais, não tenhamos dúvidas, pois o que passámos determinou em nós um código de conduta, um "linguajar" muitas vezes apenas para nós compreensível, e uma generosidade de entrega que se revela de cada vez que é necessária. 
Fazemos e faremos quer queiram quer não, os políticos e outros, parte inegável da história de Portugal. Apenas me morde a consciência, o coração, aqueles que, ou deixando-se levar por promessas ou de livre e expontânea vontade, sendo da Guiné, decidiram combater connosco, servindo a nossa pátria, e acabaram abandonados pela nossa bandeira tendo sido alvo da fúria de alguns dos seus irmãos de nacionalidade. 
Estes factos são uma vergonha que há-de perseguir os portugueses e um dia terão de estar inscritos na história como uma das páginas mais tristes e vergonhosas de Portugal. A ti, In Oina Nor e a tantos e todos que como tu protegeram as “nossas costas”, as “costas” de Portugal, a minha homenagem, o meu respeito, as minhas lágrimas sentidas. 
Mas estou em paz, pela graça de Deus. 

Joaquim Mexia Alves 
Monte Real, 28 de Junho de 2008
 __________ 


(2) O nosso amigo e camarada Joaquim Mexia Alves foi alferes miliciano de operações especiais, tendo passado, de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973, por três unidades no TO da Guiné: 
(i) pertenceu originalmente à CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas); 
(ii) ingressou depois no Pel Caç Nat 52 (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão); 
(iii) terminou a sua comissão na CCAÇ 15 (Mansoa ). 

A CART 3492 pertencia ao BART 3873 (Bambadinca, 1971/74). 
O Pel Caç Nat 52 estava na altura afecto ao mesmo batalhão. No Sector L1 (Bambadinca) privou com a malta da CCAÇ 12. Em todo o lado fez amigos. A CCAÇ 15 era uma das novas companhias africanas, neste caso composta por balantas.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P3006: Ser solidário (12): Método cubano de alfabetização... em português

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Iemberém > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da Semana > 22 de Junho de 2008 > Uma ternura de imagem !... E ao mesmo tempo uma imagem que me deixa cheio de raiva e de furor. Não tanto por serem os cubanos a fazer a alfabetização, em português, do povo gentil de Iemberém, nalu, que eu tive o pirvilégio de conhecer, em 1, 2 e 3 de Março de 2008, mas por em 2008, em pleno Séc XXI, a Mariama Galissa e tantas outras Marianas da Guiné-Bissau, e de toda a África, não dominarem ainda uma tecnologia que é tão importante para o desenvolvimento pessoal, intelectual, cultural e sócio-económico e para o exercício da cidadania como é a língua oficial, escrita e falada, do seu país...

Não me interessa se é o português, o espanhol, o francês ou o inglês, não me interesssam os méritos e os desméritos do método ALFA-TV: o que importa é que as mulheres africanas (mas também os homens...) possam dominar um dos principais idiomas do mundo globalizado, e com isso marcar pontos no seu duro processo de emancipação, de conquista da autonomia, de afirmação da sua singularidade e da sua dignidade como pessoas, como cidadãs, como mulheres, como africanas... ... Eu sei que não basta apenas saber ler, escrever e contar...Eu sei que é apenas um passo, mas é decididamente um passo de gigante. Uma mulher alfabetizada, em África, tenderá a ser mais saudável, mais activa, mais produtiva, mais empreendedora, mais participativa, mais empenhada, mais reivindicativa, mais consciente dos seus direitos e deveres, mais promotora da paz, mais apta para agarrar novas oportunidades de aprendizagem e de desenvolvimento, mais competente para ajudar a família, a comunidade e o país a sair do círculo vicioso da pobreza... (LG)


Lgenda da foto: "Concluiu-se agora em Iemberém, no sul do país, o primeiro módulo de alfabetização pelo método cubano conhecido por ALFA-TV e que tão bons resultados tem obtido.

Usando um sistema de 36 aulas através de vídeo-cassetes emitidas por televisão, consegue-se que os alfabetizandos aprendam em 5 meses a escrever e a falar rudimentarmente o português.

Mariama Galissa é uma das 72 mulheres que aprenderam a escrever e que manifesta o seu entusiasmo às suas amigas e companheiras que mantêm algumas reservas em iniciarem-se nesta aprendizagem".



Foto: © AD- Acção para o Desemvolvimento > Foto da semana > 22 de Junho de 2008

Guiné 63/74 - P3005: Minitertúlia de Lisboa, sábado, 5 de Julho, às 23h, no Cabaret Maxime (1) (L. Graça / H. Reis / Pepito /T. Mendonça / J. Machado)

Fonte: Cortesia de Melech Mechaya (2008)


1.Mensagem enviado, ontem, por Luís Graça a todo o pessoal da Tabanca Grande, de A a Z:


Amigos e camaradas:

Devemos atingir esta semana a cifra das 700 mil páginas visionadas. Estávamos em 400 mil em finais de Outubro de 2007. Antingimos as 600 mil em 12 de Abril. Estamos portanto com um média de visitas diárias de 1250/1300, em números redondos... E mais de 250 camaradas e amigos da Guiné inscritos na nossa Tabanca Grande.

Uma maneira de comemorar este pequeno feito, é: (i) continuarmos a alimentar o nosso blogue, com textos e fotografias inéditas; (ii) começarmos a defender, contra a pirataria na Net, os nossos direitos de autor, através do registo do nosso blogue e dos nossos produtos na Sociedade Portuguesa de Autores (mas isso custa dinheiro...); (iii) reunirmo-nos um dia destes, para conviver, beber um copo, ouvir boa música...

Permitam-me que faça duas sugestões:

(a) Vamos pegar na série inaugurada pelo Virgínio Briote, "Os Nossos Regressos", e toca a escrever sobre as nossas memórias desses dias: a despedida de Bissau, a viagem de retorno nos "navios negreiros" (Niassa, Uíge, Alfredo da Silva...) ou nos TAM (Transportes Aéreos Militares); a chegada a Lisboa, a recepção em casa, os primeiros tempos (duros) da vida de paisano...

(b) Vamos encontrar-nos (a malta de Lisboa e arredores...) no velho "cabaret das putas", o Maxime, o Cabaret Maxime, ali na Praça da Alegria, no 58 (Lembram-se ? Ainda lá tive uma garrafa de uísque marado,supremo luxo de um "apanhado do clima", nos primeiros tempos após o meu regresso, em Março de 1971)...

Pois, no próximo sábado, dia 5, as 23 h / 11h da noite, vai lá tocar o meu puto, o João Graça, com a banda dele... Eles chamam-se os Melech Mechaya... Já editaram um CD (ou melhor, um EP, que de resto vão lançar oficialmente nessa noite) e têm actuado um pouco por todo o lado, de Norte a Sul, incluindo o Porto, a Galiza...O preço de ingresso é razoável: € 8 euros... A música é gira, festiva, divertida... Cinco instrumentos: violino, contra-baixo, clarinete, viola, percussão...

Consultem o site dos putos (que têm todos formação musical, a nível do Conservatório): http://www.myspace.com/melechmechaya

A sala tem espaço para 400 pessoas... Eu estarei lá, e pago um copo ao primeiro que aparecer... Quem está disposto a sair das suas tamanquinhas, do velho sofá em frente ao televisor ?

Um (e)terno abraço do Luís

PS - Entendam esta dica ou sugestão apenas como tal... Não é publicidade comercial, muito menos enganosa. Eu vou lá estar. Quem lá aparecer, será benvindo/a, sozinho/a ou acompanhado/a!

2. Resposta imediata do Humberto Reis (Alfragide, Amadora), de ontem:

Luís: Tinha que ser nesse dia. A essa hora estarei “a banhos” no Algarve. De qualquer maneira bebe um copo por mim. A última vez que entrei no Maxime foi com a Teresa em 1972, com o empresário Sérgio de Azevedo e esposa. Tínhamos jantado em nossa casa os 4 e ele começou a desafiar para ir beber um copo e foi toda a noite (Maxime, Convés e acabámos nos fados na Cesária). Agora não posso repetir a façanha. De qualquer maneira uma “BOA NOITE”.

Aquele abraço

Humberto

PS (não é partido p0lítico): para quando a inserção no blogue das restantes cartas topográficas? Para quando eu saber alguma coisa do ex-cap mil Augusto Penteado de Mansambo?

3. Mensagem do Pepito (AD, Bissau):Luís

Parabéns. É a cara do pai. Quando aí chegar, faço questão de lhes comprar um disco, mas com assinaturas!!!!

abraço
pepito


4. Comentário do Torcato Mendonça (Fundão):

Que maldade… que maldade… Eu morei ali pertinho, era o “sítio” mais lindo de Lisboa -by night- e no Maxime cantava o Verde Gaio… As meninas, bem as meninas!...

Parabéns, meu caro Luís, pelos 700 mil e 3 mil… mais ainda pelo teor e o que este blog representa. Sem vaidades.

Abraços do TM

5. Mensagem do Jaime Machado (Matosinhos):

Caro Luís

Estás de parabéns pelo sucesso do teu blogue! Estamos todos de parabéns porque ele também é um pouco nosso! É, como dizes, de todos quantos gostam e são amigos da “nossa” Guiné.

Tenho pena de não poder compartilhar, pessoalmente, convosco no próximo sábado, dia 5.A distância é um pouco grande e não me dá muito jeito. Mas para todos os que possam estar contigo nessa noite e naturalmente para ti vai o meu forte e sincero abraço de boa amizade.

Para o teu filho e “sus muchachos” o voto do maior sucesso.

Um abraço

Jaime

Guiné 63/74 - P3004: PAIGC: Op Amílcar Cabral: A batalha de Guileje, 18-25 de Maio de 1973 (Osvaldo Lopes da Silva / Nelson Herbert)

Guiné > PAIGC > Manual escolar, O Nosso Livro - 2ª Classe, editado em 1970 (Upsala, Suécia). Exemplar cedido pelo Paulo Santiago, Águeda (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho , 1970/72) > Fotografia do "Camarada Amílcar Cabral, Secretário Geral do Partido", pág. 107.



Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.



Guiledje 35 Anos Depois
Por Nelson Herbert

16/03/2008

Voz da América / Voice of America

Entrevista a Osvaldo Lopes da Silva (Ficheiro áudio: 13' 11''. É preciso instalares no teu PC o programa RealPlayer)


Osvaldo Lopes da Silva, um antigo comandante de artilharia da guerrilha do PAIGC, na Guiné-Bissau aborda, 35 anos depois e em exclusivo à VOA [Voice of America / Voz da América], aspectos operacionais da pressão militar montada por aquela guerrilha independentista contra o destacamento militar de Guiledje, que culminaria, em 1973, no seu abandono pela então tropa portuguesa (2).


2. Comentário de L.G.:


O Nelson Herbert é jornalista, membro da nossa Tabanca Grande desde Março de 2008. Nasceu em Bissau, a 16 de Setembro de 1962, sendo filho de mãe guineense e pai cabo-verdiano. Como ele nos disse, no mail de apresentação, pertence à " mesma geração do historiador Leopoldo Amado, um amigo e colega de infância e das lides académicas em Bissau e universitárias em Portugal".

A sua infância foi passada em Bissau: "Vivi e cresci defronte à messe dos sargentos da Força Aérea" em Bissau. Aí assitiu, nos anos 70, a um atentado bombista (falhado, que não felizmente não provocou vítimas), contra um autocarro da Força Aérea . "Um ataque atribuído às células clandestinas do PAIGC em Bissau, que conhecia a rotina da concentração de oficiais e militares defronte do edifício da messe, para as habituais sessões de cinema na base em Bissalanca".

Depois da infância e adolescência em Bissau, veio para Lisboa onde se licenciou em Comunicação Social, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Partiu, nos anos 90, para os Estados Unidos, para fazer continuar a sua formação académica e profissional. Acabou por lá ficar e adoptar a nacionalidade norte-amerciana.

Como editor e jornalista da VOA - Voice of America, cobriu a guerra civil em Angola, país que conhece bem. Foi também enviado especial da Voz da América ao conflito civil na Guiné-Bissau em 1998/99 e na região senegalesa de Casamance.

Confessa-se "um apaixonado pelo capítulo da guerra colonial ou de libertação, capítulo esse a que me tenho debruçado como jornalista, com vários artigos e reportagens. Anos antes, a convite do Governo de Cabo Verde saído das primeiras eleições democráticas no arquipélago, assumi num período em que tive que fixar residência em Cabo Verde, a direcção geral da Televisão Nacional de Cabo Verde".

É actualmente editor sénior da divisão para a África da Voz da América, Serviço em Português, com incidência para a África Ocidental, em particular para nossa Guiné (1).

Voltamos a inserir o link com a entrevista que o Nelson fez ao comandante Osvaldo Lopes da Silva, de nacionalidade cabo-verdiana, e residente em Cabo Verde. O Osvaldo Lopes da Silva também foi entrevistado para o filme de Diana Andringa e Flora Gomes, As Duas Faces da Guerra (Portugal, 2007). A sua presença também esteve originalmente prevista para o Simpósio Interncional de Guileje, Bissau, 1-7 de Março de 2008, o que não veio a acontecer por razões que desconheço. Sei que o seu depoimento sobre a batalha de Guileje também foi recolhido - creio que, pessoalmente, pelo Pepito ou por alguém da sua equipa - no âmbito da preparação d0 Simpósio.

É um importante depoimento sobre a batalha de Guileje, vista pelo lado dos guerrilheiros do PAIGC. É fundamental que se recolha, trate e divulgue este tipo de depoimentos. A grande maioria dos guerrilheiros do PAIGC nunca teve nem terá acesso à palavra (escrita, gravada)... Muitas das suas histórias de guerra e de vida morreram ou vão morrer com eles.

De destacar algumas afirmações no decorrer da entrevista:

"[A] Operação Amílcar Cabral, cuja preparação levou cerca de 3 meses e culminou com a queda, em Maio de 1973, do quartel de Guiledje" (NH)

"(...) Uma das mais importantes e emblemáticas fortificações militares do exército colonial de Portugal na Guiné" (NH)

" (...) Osvaldo Lopes da Silva, um antigo comandante da guerrilha, por sinal o homem a quem Amílcar Cabral confiou a atrefa de preparar as condiçõesa para um eventual ataque àquela fortificação militar colonial na expectativa de que a sua queda ditaria um novo rumo à luta de independência (...) (NH)

"Nós tivemos que fazer um levantamento topográfico de toda a zona. Foi um trabalho muito difícil (...). Era uma zona de floresta um bocado densa (...). Era uma zona muito minada (...). Tivemos algumas baixas (...),sempre por causa de minas (...)" (OLS).

" (...) O inimigo habituou-se a não contar com tiro de precisão. No momento exacto fizemos tiro sem corecção. Foi directamente. Concentração de fogo lá onde nós queríamos" (OLS).

"(...) Durante muito tempo seguimos o trajecto que a tropa fazia para ir buscar água. Deixámos fazer. Eles nunca se aperceberam que estavam a ser seguidos. Então, no momento exacto, quando íamos [,a infantaria,] para o ataque, ocupámos a água. E eles ficaram sem água" (OLS).

"(...) o exército colonial tinha perdido completamente o domínio aéreo. [Com os mísseis], perderam em pouco tempo vinte e tal aviões. Era muito para eles" (OLS).
[Esta informação não é factual, a FAP nunca perdeu esse número de aviões no CTIG].

" Outros quartéis caíram, mas o que foi mais espectacular foi justamente Guiledje. Contavámos que resistisse muito mais (...)" (OSL) [Não é claro a que quartéis o comandante OLS se está a referir: Kopá ou Copá ? Oficialmente o exército português nunca reconheceu a perda de mais nenhum aquartelamento, para além do de Guileje, ocupado em 25 de Maio de 1973 pelas tropas do PAIGC e depois por estas destruído ]

" (...) eu pessoalmente digo que fiquei aliviado que eles tivessem saído, foi melhor assim (...) (OSL)

" (...) deixaram a central eléctrica a funcionar... Pensávamos que tivessem ainda lá (...) nos abrigos (...)" (OLS)

" ... Com Cabral tudo estava previsto. Uma das medidas que adoptou, perante a instabiliddae que havia na Guiné-Conacri, foi enviar todas as munições para a Guiné-Bissau, ao longo da fronteira. (...) Dá-se a morte de Cabral, a ideia de Spínola seria uma grande ofensiva, mas não podia ser imediatamente, porque se podia (...) responsabilizá[-lo] pela morte de Cabral" (OSL)

"... Ele [,Spínola,] não contava com a reacção que de facto houve (...) Uma reacção de raiva em todos os diferentes quartéis, do sul da Guiné, mas também do Leste (...). Isso bloqueou toda a iniciativa do Spínola (...) (OSL).

" (...) Rendo homenagem a esse guerrilheiro anónimo [morto por uma mina, e que ia sempre à frente do seu comandante, OLS, tendo ficado enterrado junto ao arame farpado de Guileje]... Citaria [também] o nome de Seabra, Veríssimo Seabra (...). Foi um dos meus companheiros. E há muitos mais guineenses que foram combatentes exemplares, de grande coragem e espírito de sacrifício" (OSL).


_______

Nota de L.G.:

(1) Vd. postes de: 14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2639: O Simpósio de Guiledge na Voz da América (Virgínio Briote)

16 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2652: Guineenses da diáspora (3): Nelson Herbert, o nosso Correspondente nos EUA (Virgínio Briote)

21 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2670: Fez-se História em Guileje (Nelson Herbert)

(2) Vd. também a versão do lado português:

27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2137: Antologia (62): Guileje, 22 de Maio de 1973: Coutinho e Lima, herói ou traidor ? (Eduardo Dâmaso / Luís Graça)

3 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2502: Guiledje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (14): Enquadramento histórico (II): o significado da queda de Guileje

23 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2673: Uma semana memorável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (10): Guiledje: Homenagem ao Coronel Coutinho e Lima

23 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2677: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Coutinho e Lima (1): Comandante do COP 5, com 3 comissões no CTIG

23 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2678: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Coutinho e Lima (2): A dolorosa decisão da retirada de Guileje

Guiné 63/74 - P3003: Blogoterapia (58): Que o País os beije antes de os deitar fora, e lhes peça desculpa (António Lobo Antunes / A. Graça de Abreu)


Reprodução da capa da edição do semanário Visão, de 27 de Setembro de 2007, em que o escritor António Lobo Antunes deu uma notável entrevista a Sara Bela Luís sobre "A Vida Depois do Cancro".

Fonte: Cortesia de Site Não Oficial sobre António Lobo Antunes (2008)

1. Mensagem do António Graça de Abreu, também escritor, tradutor e investigador, e nosso prezado amigo e camarada, com data de 20 de Junho:


Que o País os beije antes de os deitar fora, e lhes peça desculpa
por António Lobo Antunes/ António Graça de Abreu

Caríssimos tertulianos, camaradas e amigos:

António Lobo Antunes, enorme escritor, foi alferes médico no leste e centro de Angola, de 1971 a 1973 (1). Na sua crónica na revista Visão, ontem, quinta feira, a 19 de Junho de 2008, escreve:

(…) Todos os anos a minha companhia lá da guerra faz um almoço com os que sobejam da miséria em que andámos. Não neste último almoço, no penúltimo, o furriel Firmino Alves começou a anotar os telemóveis dos nossos camaradas para os contactos da refeição seguinte, até que chegou ao Pontinha. Pontinha é a alcunha do ordenança da messe de oficiais, que morava na Pontinha. Como a cabeça dele era grande (continua a ser grande), chamavam-lhe também Porta-aviões, porque dava para os aviões aterrarem.

O Pontinha, como muitos dos soldados, vive com dificuldades. Ao fim de semana engraxa sapatos para equilibrar o orçamento.
(…) Falar dos meus camaradas comove-me: a expressão irmãos de armas é tão verdade. Enquanto nos aguentamos por cá. Mesmo depois. Zé Jorge, continuamos irmãos de armas. Cabo Sota: admiro a tua coragem até ao fundo da alma. Sozinho com a Breda, uma metralhadorzeca, aguentou um ataque. E vive mal, percebem? Como se deixa viver mal um herói? Ao acompanhá-lo ao táxi em que voltava, doente, ao Alentejo, avisei o condutor:
- Você leva aí um grande homem, sabia, um dos maiores homens que conheço

e, como todos os grandes homens da guerra, de uma infinita modéstia, bondoso, sereno. Não lhe chego aos calcanhares. Cabo Sota, tu mereces a continência de um general. O Zé Luís, oficial de operações especiais que em matéria de coragem não necessitava de aprender com ninguém:
- Eram duros

expressão que constitui para nós o supremo elogio. Adiante. Contava eu que o furriel Firmino Alves anotava os telemóveis até que chegou ao Pontinha e como fizera com os outros perguntou:
- Tens um telemóvel, Pontinha?

E o Pontinha logo a mostrar serviço:
-Não, mas a minha mulher tem um microondas.


(…) Boaventura, Nini, Licínio, vocês todos, caramba, como a gente somos irmãos. Unamuno, que muito respeito, tem páginas admiráveis sobre a valentia dos portugueses. Tens razão, Zé Luís, eram duros. Ganas de explicar às mulheres deles, aos filhos deles, o orgulho que tenho em ser amigo dos pais, em que os pais sejam meus amigos. Não: irmãos de armas. Não: irmãos. E bons como o pão. Ao lado disto que maior elogio se pode fazer? Ao menos que o País o beije antes de os deitar fora e lhes peça desculpa. E há mais anjos para além dos padeiros, de arma nas unhas mata fora. Nenhum deles é banqueiro, claro. Nem administrador. Nenhum deles joga golfe. Jogaram golfe num campo de um só buraco onde não é a bola que cai. É um rapaz de vinte anos.

E acabo aqui, antes que seja tarde para marcar o número de um microondas.


Camaradas de Portugal e da Guiné, depois de ler este texto, duas grossas lágrimas correram-me pelo rosto. Que o nosso País nos “beije antes de nos deitar fora e nos peça desculpa”. Que a vossa Guiné-Bissau vos beije também, “antes de vos deitar fora e vos peça desculpa.”

Sem complexos nem traumas de colonialista, sem complexos, sem traumas de colonizado, vamos ler outra vez o texto do António Lobo Antunes.

Depois, vamos adormecer em paz.

Um abraço,
António Graça de Abreu
S. Miguel de Alcainça,

20 de Junho de 2008
Ano do Rato
______

Nota de L.G.:

(1) Vd. postes de:

6 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2161: Pensamento do dia (12): Camarada, uma palavra que só quem esteve na guerra entende por inteiro (António Lobo Antunes)

9 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2169: Antologia (63): Zé, meu camarada, eras um dos nossos e cada um de nós um dos teus (António Lobo Antunes, Visão, 4 Out 2007)

23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2205: Humor de caserna (1): A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (Luís Graça / António Lobo Antunes)

Guiné 63/74 - P3002: A Guerra estava militarmente perdida? (23). Comentário do Cor Amaro Bernardo.

Guiné - Guerra e Descolonização…

Por Manuel Amaro Bernardo

(…) É sabido que estes três G (Guidage, Gadamael e Guilege) estão associados à escalada da guerra, que se seguiu ao assassinato de Amílcar Cabral (20-1-1973) e precedeu a declaração (unilateral) de independência da Guiné-Bissau em 24-9-1973. Maio, Junho e Julho de 1973 foram três meses terríveis para as NT, cercadas em Guidage, Guilege e Gadamael. (…)
Luís Graça, no seu site, em 4-6-2008

Este destaque faz um resumo interessante em relação ao sucedido na Guiné no último ano de guerra (1973-74) decorrente no território. Até pela analogia feita com os três D do publicitado objectivo do MFA, no pós-25 de Abril: Democratizar, Descolonizar e Desenvolver.
Curiosamente, em Portugal, a "democratização" apenas seria conseguida em Novembro de 1975, contra as forças comunistas e totalitárias.
A "descolonização" seria desencadeada sem ter em conta os interesses dos portugueses residentes naquelas paragens e o "desenvolvimento" terá ficado muito aquém do desejável; decorreu de tal modo que forças de direita ainda hoje culpam o 25 de Abril, apesar de "tanta água ter passado por debaixo das pontes".

Vou repescar o tema tratado no site de Luís Graça, com uma polémica entre dois combatentes: Beja Santos e Graça de Abreu, de modo a poder adiantar mais uma opinião sobre este controverso assunto. Claro que a minha posição em relação ao primeiro poderá ter sempre algum reflexo menos isento, face à desajustada crítica que ele fez publicar sobre o meu último livro "Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros; Guiné 1970-1980" e que motivou uma resposta minha, dois dias depois, no mesmo site.

Antes disso, e dado o seu grande período de permanência na Guiné, recordo as posições tomadas pelo Major General Hélio Felgas, falecido há dias em Lisboa (e com textos também bastante divulgados no site de Luís Graça, numa conferência feita aos cadetes da Academia Militar, em 10-4-1970, após o seu regresso ao continente português. Transcrevo alguns destaques do extenso texto publicado nesse ano, na Revista Militar:

(…) O PAIGC é um movimento revolucionário de tendências sócio-comunistas. A sua estrutura, imitada da do regime guineense de Sékou Touré, baseia-se no sistema soviético da preponderância do partido sobre o governo.
No capítulo sobre as Nossas Tropas, a certa altura refere:
(…) Convém salientar que as unidades metropolitanas de reforço não se limitam a combater. Elas contribuíram para a melhoria que, em todos os campos, se nota hoje na Guiné.
Após quatro anos de permanência na Guiné, sempre no mato, que é onde se conhecem melhor os nativos, sou levado a chegar à conclusão que a Guiné progrediu mais nestes últimos 8 ou 9 anos que nos anteriores cinco séculos. E empenho nesta afirmação um pouco do meu orgulho de militar, pois é exactamente à presença dos militares que a nossa Guiné deve o seu actual impulso. (…)
E mais à frente, com maior ou menor optimismo, apresenta o ponto da situação naquele ano de 1970:
(…) Por motivos vários, entre os quais avulta a deficiência de informação pública, a situação na Guiné é em geral mal avaliada na Metrópole, havendo tendência para a considerar muito pior do que na realidade está.
De facto, na maior parte da Guiné, as populações fazem a sua vida normal, não havendo sinais visíveis da guerra. É o que acontece em todas as ilhas atlânticas (incluindo a de Bissau), em grande parte do “chão” dos Manjacos e na quase totalidade e na quase totalidade da massa continental do Leste.
No resto do território, o inimigo faz as suas incursões de surpresa, mas regressa logo ou às bases que tem no Senegal e na República da Guiné, ou aos refúgios das matas mais espessas.(…)

Curiosamente, cerca de dez dias depois desta conferência, dar-se-ia um agravamento na situação em relação às NT, devido à morte dos três majores (20-4-1970) e à não integração de todo o "chão" manjaco, como estava previsto acontecer.

Perspectivas sobre a guerra da Guiné

E a terminar Hélio Felgas afirmaria, com alguns aspectos promenitórios:

(…) Em nossa opinião, o PAIGC já deve ter compreendido que, a não ser que empregue meios, forças e tácticas diferentes, jamais poderá ganhar militarmente esta guerra.
(…) Admitimos que o PAIGC esteja realizando ou vá realizar novos e mais profundos esforços no sentido de tornar insustentável a nossa posição na Província.
Estes novos esforços serão desenvolvidos em todos os campos desde o diplomático ao militar. O colapso repentino do Biafra não pode deixar de favorecer o PAIGC, em especial quanto ao armamento. Outro tanto sucederá se a guerra do Vietname acabar, pois os contactos entre o PAIGC e o Vietcong já se encontram estabelecidos, como dissemos.
No entanto, se por um lado temos obrigação de admitir o reforço da actividade geral do inimigo – tanto mais que sabemos ele estar apoiado pela OUA e por grande parte dos países membros da ONU -, por outro lado não podemos deixar de reconhecer as tremendas dificuldades com que o PAIGC vai continuar a deparar se insistir em cumprir o programa que se propôs.
De facto, em primeiro lugar, há que contar com a nossa determinação em defendermos o solo cinco vezes centenário da Guiné Portuguesa. Em segundo lugar, é natural que, a um esforço maior do inimigo, respondamos com outro esforço também maior. E em terceiro lugar, não vemos como, nos anos mais próximos, o PAIGC terá possibilidade de levar a Cabo Verde a guerra que nos move na Guiné, dadas as características para nós favoráveis que o arquipélago apresenta.

Tal como salienta Luís Graça, a situação apenas viria a agudizar-se seriamente com o assassinato de Amílcar Cabral. Até essa altura os soviéticos não tinham querido arriscar entregar os sofisticados mísseis terra-ar Strella aos guerrilheiros do PAIGC, apesar de já terem sido anteriormente requisitados por este movimento. Aquando das cerimónias fúnebres daquele líder é que tal terá sido decidido e comunicado pela delegação soviética presente, como, de facto, aconteceu.
De qualquer modo, essas armas apenas serviram para desestabilizar a Força Aérea da Guiné durante algumas semanas (com as consequências graves nas evacuações e no restante apoio aéreo), pois, como refere Graça de Abreu, em 29-5-2008, desde Junho de 1973 até Abril de 1974 não foi atingida qualquer aeronave dentro do território. Ou os homens de Manecas dos Santos (PAIGC) não foram bons alunos na instrução ministrada na União Soviética ou os pilotos portugueses souberam actuar com eficiência e de acordo com novas exigências anti-aéreas.

No entanto, em 1972 tinha surgido um factor muito importante, que poderia ter conduzido ao fim da guerra, ainda em posição de alguma vantagem das NT em relação ao PAIGC. Tal seria completamente desprezado por Marcello Caetano, com a oposição do Governador da Guiné, António de Spínola. Amílcar Cabral, acedendo aos bons ofícios do Presidente do Senegal, Leopold Senghor, estaria, de facto, disposto a negociar directamente o cessar-fogo com a promessa de independência futura, num prazo a definir. Percebe-se que os defensores da continuação da guerra (dum lado e do outro) tenham apostado na eliminação física de Amílcar Cabral…

Considero que Beja Santos, durante a polémica sobre se a guerra estava ou não perdida militarmente, divagou bastante através de citações de entidades em vários livros, mas mais no âmbito das intenções e possibilidades do que da realidade vivida no terreno.
A notícia sobre o possível fornecimento dos aviões Migs ao PAIGC é bastante elucidativa… Poder-se-á afirmar que após a saída do General António de Spínola da Guiné (meados de 1973), voltou a ser conseguido um equilíbrio no potencial militar das duas partes, após as operações agressivas do PAIGC em Guidage, Guilege e Gadamael, em Maio/Junho.
Guilege fora abandonada, mas em Guidage e Gadamael, a partir dos finais de Junho, a situação melhorara consideravelmente. (Declarações dos Coronéis “Comando” Raúl Folques, Manuel Ferreira da Silva e Marcelino da Mata, no meu livro acima citado).

Aquele equilíbrio, existente por altura do 25 de Abril de 1974, seria confirmado por Aristides Pereira numa entrevista a Leopoldo Amado, em "O Meu Testemunho; uma Luta; um Partido; dois Países". Lisboa, Ed Notícias, 2003, como igualmente destacou Graça de Abreu.

Também, como refiro nesse trabalho, acompanho a tese explanada pelo General Almeida Bruno e realçada por Graça de Abreu:
"(…) a Guiné não estava perdida militarmente. A Guiné estava perdida porque a solução não era militar mas política e nós já tínhamos perdido (a oportunidade) da solução política (em 1972)".

Solução política negociada, como julgo ter acontecido com a generalidade deste tipo de guerras subversivas e de guerrilhas, na segunda metade do século XX, acrescentaria eu.

Uma Descolonização “inevitável” e apressada…

Para complementar o que atrás foi referido, passo a comparar descolonização ocorrida no caso português com a realizada pelos franceses na Argélia. Nesse sentido, recordo as declarações (numa entrevista que me concedeu), do homem culto e com grande estatura militar, que foi o General Passos Esmeriz e que prestou serviços relevantes na GNR no pós-25 de Abril. Afirmava ele (“Memórias da Revolução, Portugal 1974-1975”, Lisboa Ed. Prefácio, 2004):
(…) O soldado, desde que soube ter sido feita uma revolução em Lisboa e se ia para a descolonização, não mais combateu, enquanto que, com De Gaulle, na Argélia, se combateu até ao fim. Ele mandou quantificar as acções de um lado e do outro e dizia: "Só inicio os acordos quando houver equilíbrio de iniciativas".
Os acordos de Evian apenas se iniciaram quando esse equilíbrio se verificou. Numa situação que nenhuma parte tinha mais força do que a outra. Mas o soldado, lá, combateu até ao final. Eles ainda estavam agarrados à ideia de que a Argélia não podia deixar de ser francesa…

No caso português, os nossos militares não tinham qualquer ligação com os locais onde se encontravam. Conto-lhe um episódio que considero lapidar. Eu era Comandante de um Batalhão na Guiné, em 1963/65 e tinha chegado uma companhia da Metrópole. Lá estive a fazer aquele papel de circunstância, de dizer umas palavras de boas vindas e de apelo a cumprirem a sua obrigação militar. Encontrava-se presente um rapaz baixo, a quem perguntei de onde era oriundo. Resposta dele: "Sou de Alcafache. E estou satisfeito por vir conhecer terras estrangeiras".

A descolonização pode ser muito condenada, mas naquela situação tão complexa, com os factores que a condicionaram, talvez não pudesse ser feita de outra maneira.
Pode dizer-se que foi uma entrega… Mas, se quiséssemos impor outro modelo de descolonização, acabaria numa derrota militar, o que seria muito pior.
Houve outros factores exógenos para que a desmotivação das tropas fosse incentivada, alargada e aumentada. Desde o Rosa Coutinho à actuação, em Portugal, do PCP; mas o factor principal foi a desmotivação nacional… (…).

Agradeço a publicação deste texto no vosso site. Também endereço os meus sentidos pesâmes aos familiares do General Hélio Felgas, assim como aos de outros combatentes cujos falecimentos vêm ocorrendo e têm sido ignorados, pelas mais variadas razões…

E quando algum combatente, como já aconteceu neste site, em relação aos negros fuzilados pelo PAIGC, pergunta sobre essa vingança feita contra os outros, que também combateram do nosso lado - fuzileiros especiais, militares na generalidade e milícias -, além dos "Comandos" (20 oficiais, 29 sargentos e 4 soldados), apenas tenho a referir que as outras associações de combatentes, incluindo a recém-constituída em Bissau, Associação de ex-Combatentes das Forças Especiais da Guiné (patrocinada pelo Comandante Alpoim Calvão) devem fazer as necessárias investigações e listagens do pessoal vítima dessas atrocidades, tal como foi feito pela Associação de Comandos. Julgo que todos têm o direito de ter o seu nome no Monumentos aos Combatentes do Ultramar, no Restelo (Lisboa), já que foram fuzilados "apenas" por terem combatido por Portugal. E já têm duas bases de partida para essas investigações: as listagens de fuzilados, feitas por João Parreira, em 2006, e constantes do site de Luís Graça, e as várias relações por mim publicadas no livro atrás referido - "Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, (…)", 2007.


Cor. Manuel Amaro Bernardo
Junho de 2008
__________

Nota:

1.Os nossos agradecimentos ao Cor Manuel Amaro Bernardo pelo envio do texto.
2. Fixação e adaptação da responsabilidade de vb.
3. Artigos relacionados em

21 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2971: o 10 de Junho visto pelo Cor Manuel Amaro Bernardo.

14 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2760: Notas de leitura (8): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros... ou a guerra que não estava perdida (A.Graça de Abreu)

2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2713: Notas de leitura (7): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros: Resposta a um Combatente (M. Amaro Bernardo)

2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2711: Notas de leitura (6): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de M. Amaro Bernardo (Mário Fitas)

31 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2706: Notas de leitura (5): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de Manuel Amaro Bernardo (Mário Beja Santos)

30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2318: Notas de leitura (4): Na apresentação de Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné 1970/80 (Virgínio Briote)

28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2308: Notas de leitura (3): Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné, de Manuel Amaro Bernardo (Jorge Santos)

Guiné 63/74 - P3001: História da Cavalaria em Bambadinca (3): Pel Rec Daimler 2206 (1970/71) adido ao BART 2917 (Jaime Machado)


Jaime Machado,
ex-Alf Mil Cav,
Pel Rec Daimler 2046,
Bambadinca,
1968/70






RESUMO DOS FACTOS E FEITOS DO PELOTÃO DE RECONHECIMENTO DAIMLER N.º 2206


CAVALEIROS DE BAMBADINCA, como se intitulavam os militares do Pel Rec Daimler 2206


I - GENERALIDADES

O Pelotão Daimler 2206 tem como Unidade Mobilizadora o RC6 no Porto, e foi organizado em 17 de Novembro de 1969, destinado e reforçar a Guarnição Normal da Província da Guiné.

Após os exercícios de IAO, esta Subunidade embarcou no N/T UIGE no Cais da Rocha de Conde de Óbidos em 31 de Janeiro de 1970. Tendo a viagem decorrido normalmente, no dia 6 de Fevereiro de 1970 foi atingido o Porto de Bissau.
Depois de curta permanência nesta localidade, partiu por via Fluvial até ao Xime, e em coluna até Bambadinca.

II - CONSTITUIÇÃO DO PELOTÃO:



José Luís Vacas de Carvalho, Comandante do Pel Rec Daimler 2206, Bambadinca, 1970/71


Alteração:

Desde o dia 12 de Julho de 1970, ficou a fazer parte deste Pelotão por ter sido transferido do PEL DAIMLER 2144, por motivos disciplinares, o Soldado Condutor NM 06769468, Anastácio Ribeiro Gomes da Silva, tendo ficado além Q.O. Foi abatido ao efectivo em 19 de Agosto de 1971 por ter terminado a sua comissão de serviço nesta Província Ultramarina.


III - ACTIVIDADE OPERACIONAL

Da actividade operacional do PEL DAIMLER 2206, destaca-se:

- Participou, na construção dos Reordenamentos de NHABIJÔES.
- Tomou parte na escolta de inúmeras colunas de Reabastecimentos e outras de,
BAMBADINCA para XIME – MANSAMBO – XITOLE e BAFATÁ.
- Colaborou intensamente na segurança aos trabalhos de construção da estrada
BAMBADINCA-XIME.
- Após a conclusão desta estrada colaborou diariamente na segurança do tráfego da mesma
- Colaborou na defesa próxima e afastada de BAMBADINCA.
- Individualmente os elementos que constituem o PEL DAIMLER 2206, colaboraram nos mais variados serviços internos do BART 2917, ao qual estava adido.

Vacas de Carvalho, oficial de tiro do CIMIL, de boina com as armas de Cavalaria, na estrada Bambadinca-Xime com General Spínola.

IV - BAIXAS SOFRIDAS, PUNIÇÕES, PROMOÇÕES, LOUVORES E CONDECORAÇÕES

Baixas sofridas – Nada

Punições – Nada

Promoções

Foi promovido ao actual posto em 31 de Maio de 1971, o 2. º Sarg de Cav NM 32156559, José António Paulino.

Louvores

Louvado pelo Exm.º Comandante do CAOP2, o Sr. Alf Mil NM 13207568, José Luís Vacas de Carvalho

Louvados pelo Exm.º Comandante do BART 2917, os seguintes militares deste Pelotão:


Condecorações

Todos os militares que constituem o PEL DAIMLER 2206, foram agraciados com a Medalha Comemorativa das Campanhas da Guiné.

BATALHÃO DE ARTILHARIA 2917

Proposta de Louvor

Proponho que seja louvado o Alferes Miliciano de Cavalaria NM 13207568, José Luís Pais Vacas de Carvalho, Comandante do Pelotão de Reconhecimento Dailmler 2206, pela excelente maneira como comandou o seu Pelotão ao qual soube incutir destacado espírito de corpo e elevado moral, a par de uma marcada eficiência, disciplina e sentido das responsabilidades.

Oficial competente, muito dinâmico, desembaraçado, decidido, corajoso e leal, tomou parte voluntariamente, ao longo da sua comissão de serviço na Guiné, não só em diversas Operações e Acções, como também em colunas logísticas, demonstrando de forma inequívoca não temer situações de perigo.

Chamado a colaborar em tarefas estranhas ao seu Pelotão, nelas se houve com muito acerto, sendo em especial de assinalar a sua acção como Oficial de tiro do CIMIL de Bambadinca, onde se distinguiu pelo interesse, competência e resultados obtidos.

Muito estimado pelos seus subordinados, e apreciado pelos seus superiores o Alferes Vacas de Carvalho foi sempre também um excelente camarada, devendo ser considerado um Oficial de mérito que bem cumpriu a sua comissão.

Quartel em Bambadinca, 25 de Novembro de 1971

O Comandante
João Polidoro Monteiro
Ten Cor Inf


Fão, Esposende, 1994> Vacas de Carvalho (na foto, à direita) no 1.º Encontro de camaradas de Bambadinca

Montereal, Maio de 2008> Vacas de Carvalho, ex-Alf Mil de Cav (na foto, à esquerda), no III Encontro Nacional, agarrado à sua viola de sempre.
______________

Nota de CV

Vd postes da série de:

5 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2918: História da Cavalaria em Bambadinca (1): Pel Rec Daimler 1133 (1966/68) adido ao BCAÇ 1888 e ao BART 1904 (Jaime Machado)

10 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2927: História da Cavalaria em Bambadinca (2): Pel Rec Daimler 2046 (1968/70) adido ao BART 1904 e ao BCAÇ 2852 (Jaime Machado)

Guiné 63/74 - P3000: Bibliografia (28): Amílcar Cabral: nada mais prático do que uma boa teoria (Luís Graça)


CHABAL, Patrick - Amilcar Cabral: Revolutionary Leadership and People's War. 2 rev edition. London: C Hurst & Co Publishers Ltd; 2004. 278 p. £14.95

This text tells the story of Amilcar Cabral, who, as head of the PAIGC, Guinea-Bissau's nationalist movement, became one of Africa's foremost revolutionary leaders. He led Guinea-Bissau's nationalists to political and military success over a colonial power.

Source/ Fonte:
Hurst & Co (Publishers) (courtesy from / com a devida vénia...)



1. Ao chegarmos ao poste P3000, e às cerca de 700 mil páginas visitadas (cerca de 1300 por dia, nos últimos doze meses), deixem-me hoje, amigos e camaradas, publicar um dos meus textos, esquecidos no limbo dos meus papéis da Guiné... Criador e editor deste blogue, a publicar os papéis dos outros, não me resta tempo para escrever os meus...

É sobre a análise da estrutura social da Guiné feita por Amílcar Cabral e que é reveladora das qualidades de Cabral como pensador, como teórico, como analista social... O que ainda hoje me leva a respeitá-lo e a admirá-lo, é que, para além do grande político, do dirigente revolucionário combativo, do genial estratego militar e do tenaz organizador, há nele um homem culto e intelectualmente brilhante, seguramente um dos melhores da sua geração e de toda a África.

Ele sabia que a acção colectiva organizada, incluindo a luta armada de libertação, tem de ser guiada pela teoria. Cabral não se limitou a ler a cartilha dos pensadores (marxistas-leninistas) que, no seu tempo, influenciaram grande parte das elites e dos dirigentes africanos da época da descolonização. Uma influência desastrosa e desastrada, em muitos casos. Cabral, pelo contrário, era capaz de pensar pela sua própria cabeça e confrontar a teoria com a prática: o pensamento sempre guiou a sua acção; e foi capaz de reformular a teoria à luz dos ensinamentos da prática...

Passados trinta e cinco anos da sua morte, é pena não termos uma edição crítica das suas obras (1). Cabral está morto e esquecido. Tanto na sua terra como em Portugal, em África como no retso do mundo. Digo-o com pesar. A sua existência (física) faz-nos falta, a todos nós. E é sobretudo duro ver que ele não teve ninguém, com a sua estatura humana, intelectual e moral, para o substituir à frente dos destinos do PAIGC e da Guiné independente, um sonho que ele de resto já não chegou a viver. É confrangedor ver, por exemplo, a deriva teórico-ideológico do actual PAIGC, que ele criou e ajudou a crescer... A criatura não sobreviveu ao seu criador... Não é caso único na história...

De qualquer modo, estes apontamentos que escrevi em tempos, nos finais dos anos 70, e que revi agora, são também uma pequena homenagem ao intelectual guineense que eu já admirava, quando despertei para a política e para a problemática da guerra colonial, a partir de 1961, com os meus quatorze anos, e que, por ironia, fui obrigado a combater, de armas na mão, ao ser mobilizado para a Guiné, oito anos depois, em 1969...
Devo reconhecer que sou apenas um leitor de Amílcar Cabral, e não um especialista. Não conheço ainda, de resto, a biografia escrito pelo Patrick Chabal, considerado o seu melhor biógrafo e um especialista do seu pensamento e acção. Tive o privilégio de conhecer, por ocasião do Simpósio Internacional de Guileje, o investigador francês, que vive em Inglaterra, e que fala o português... Estes apontamentos que a seguir se publicam são apenas um resumo crítico de alguns textos do Amílcar Cabral sobre a estratificação social da Guiné ... (LG)
____________

Amílcar Cabral, analista social, por Luís Graça
(i) A distinção cidade/campo
Em 1964, Amílcar Cabral fez uma sumária análise da “estrutura social” da Guiné colonial. Era uma análise tipicamente marxista, ou melhor, que usava conceitos sociológicos de inspiração marxista. Socorro-me de um texto que condensa diversas intervenções orais feitas por Cabral, em francês, num seminário organizado pelo Centro Frantz Fanon de Milão, em Treviglio, de 1 a 3 de Maio de 1964.

Estava-se ainda no início da “luta de libertação” (oficialmente iniciada em 23 de Janeiro de 1963, com um ataque ao aquartelamento Tite), mas o PAIGC já detinha, desde a sua criação em 19 de Setembro de 1956, uma larga experiência de organização e de luta política na clandestinidade, apesar da repressão da PIDE. Tinha também um ano e tal de experiência de luta armada.

Recorde-se, que de Janeiro a Março de 1964, as NT tinham lançado uma contra-ofensiva na Ilha do Como, com a Op Tridente, a maior que se realizou no CTIG, em 11 anos de guerra. Por outro lado, entre 13 e 17 de Fevereiro desse ano, o PAIGC realizava o seu primeiro Congresso, em Cassaca, em pleno Cantanhez, região que reclama como sendo a primeira “região libertada”.

Depois da Batalha do Como (o primeiro grande embate do PAIGC contra um exército convencional, reforçado por importantes meios aéreos e anfíbios), o principal linha de infiltração de homens e material a partir da vizinha República da Guiné-Conacri passa para o célebre Corredor do Povo (ou corredor de Guileje). A Batalha do Como foi bem explorada em termos de propaganda, e contribui em muitos para criar um mito: João ‘Nino’ Vieira (que não participou directamente na batalha, ao que parece, por estar hospitalizado em Conacri).

Voltando ao texto de Amílcar Cabral, ele começa por fazer a clássica distinção entre o campo e a cidade. No campo, sinaliza dois grupos principais: (i) um, que ele chama semifeudal, representado pelos fulas; (ii) e outro, o dos balantas, que seria um grupo sem Estado, leia-se, sem poder político.

Entre estes dois grupos étnicos extremos haveria depois situações intermédias: por exemplo, (iii) mandingas e biafadas, de um lado; papéis e felupes, de outro (Os exemplos são meus).

Grosso modo, haveria uma coincidência entre o semifeudalismo e o islamismo, por um lado, e a ausência de organização estatal entre os animistas, por outro. O caso dos Manjacos, animistas, merece uma atenção à parte, uma vez que “à chegada dos portugueses mantinham já relações que se poderiam qualificar de feudais” (Cabral, 1976.24).

Quanto aos fulas, o fundador, dirigente e teórico do PAIGC fala deles em termos de uma forte “estratificação social”. Em primeiro lugar, temos (i) os chefes, os nobres e os dignatários religiosos (por ex., o Cherno Rachid de Aldeia Formosa); vêm depois, (ii) os artesãos e os jilas ou comerciantes ambulantes (que circulam pela Guiné, Senegal e Guiné-Conacri); finalmente, e na base da pirâmide social , (iii) os camponeses.

Sobre o grupo dirigente, Amílcar Cabral diz o seguinte:

“Os chefes e a sua comitiva têm ainda, a despeito da conservação de certas tradições relativas à colectividade das terras, privilégios muitos importantes no quadro da propriedade da terra e da exploração do trabalho de outrem. Os camponeses que dependem dos chefes são obrigados a trabalhar para eles um certo período do ano”.

Daí chamar aos fulas, aliados históricos dos portugueses, um grupo semi-feudal.

Os artesãos desempenham um papel importante na sociedade fula, constituindo um núcleo embrionário de uma indústria de transformação da matéria-prima: do ferreiro, na base da escala, até ao artesão do couro. Os comerciantes ambulantes (jilas) são os que têm, na prática, a possibilidade de acumular dinheiro. Por fim, os camponeses: em geral desprovidos de direitos, seriam os “verdadeiros explorados da sociedade fula”.

A estratificação da sociedade fula também pode ser vista a partir da família, extensa, que é a sua célula: a família de um homem grande é constituída pela morança; um conjunto de moranças formam uma tabanca; um conjunto de tabancas um regulado; e por fim, os regulados fulas estão associados ao chão fula (Leste da Guiné, compreendendo hoje as regiões de Bafatá e de Gabu), uma entidade territorial e simbólica, ligada à conquista.

Aqui a mulher não goza de quaisquer direitos sociais: participa na produção sem quaisquer contrapartidas; por outro lado, a prática da poligamia significa que ela é, em grande parte, propriedade do marido.

Estranha-se, não haver aqui uma referência ao fanado feminino e sobretudo ao profundo significado sócio-antropológico que tinha (e tem) a Mutilação Genital Feminina entre os Fulas (mas também entre os Mandingas e os Biafadas). Será que Cabral tinha consciência das terríveis implicações, para a mulher, desta prática ancestral, e também aceitava tacitamente em nome do relativismo cultural, tal como os antropólogos colonialistas ? Não conheço nenhum texto em que o ideólogo do PAIGC tenha tomada posição sobre este delicado problema.


(ii) Os balantas, sociedade horizontal
O outro exemplo extremo é o dos balantas, um sociedade sem estratificação. É o conselho dos anciãos da aldeia (ou de um conjunto de aldeias, em geral ribeirinhas e próximas) que tomam as decisões relativas à vida comunitária. A propriedade da terra é da aldeia. Cada família recebe uma parcela para trabalhar. Os instrumentos de produção, por sua vez, pertencem à família ou ao indivíduo.

O balanta é monógama, apesar de “fortes tendências para a poligamia” (sic). A mulher tem mais liberdade e estatuto na aldeia balanta do que entre os fulas. Cabral também não refere, na ocasião, os seus rituais de passagem, a cultura da virilidade, o uso e o abuso entre os balantas do consumo do “vinho de palma” e das suas eventuais consequências (v.g., saúde mental, violência doméstica, comportamentos antissociais).

Ainda no que refere ao campo, Cabral refere a existência de um grupo minoritário de pequenos proprietários africanos que se teria revelado “muito activo no quadro da luta de libertação nacional”. Dos europeus nos campos ele não fala porque praticamente não existiam. Mas
existiam caboverdianos, com as suas pontas (hortas)… Porquê omiti-los ?

Recorde-se que Cabral era de ascendência caboverdiana e originalmente casado com uma portuguesa. Sabe-se que parte da administração colonial, pelo menos ao nível de posto administrativo e de circunscrição administrativa, é preenchida funcionário portugueses de origem caboverdiana. Seria interessante termos estatísticas sobre isso.

Nas cidades, haveria dois grupos distintos: (i) os europeus; e (ii) os africanos. Ao nível mais elevado, entre os europeus, estão os altos funcionários da administração colonial, a começar pelo governador geral, mas também os directores das empresas (por ex., Casa Gouveia, pertencente ao Grupo CUF; a NOSOCO, ligada aos interesses franceses). É um grupo restrito que está isolado do resto dos escassos milhares brancos que existiriam no início da década de 1960 (dois a três mil). A um nível intermédio, pode-se referir os demais funcionários públicos, os pequenos comerciantes, os empregados de comércio, as profissões liberais. Por fim, teríamos os operários diferenciados.

A estratificação entre os africanos seria mais complexa: em primeiro lugar, temos os funcionários superiores e médios (da administração colonial e das empresas), as profissões liberais, os empregados de comércio com contrato de trabalho e os pequenos proprietários agrícolas; depois, vêm os assalariados propriamente ditos: os empregados de comércio sem contrato, os trabalhadores dos portos, dos barcos e dos transportes, os trabalhadores domésticos ou criados (em geral, homens), os operários de pequenas fábricas e oficinas de reparações. Cabral não os considera como fazendo parte do “proletariado” ou da “classe operária”.

Há por fim os “sem classe”, que Cabral divide em dois grupos: (i) o dos mendigos, desempregados, prostitutas, etc. (poderia ser o nosso "lumpen-proletariado” se na Guiné houvesse um proletariado com consciência de classe, o que não era o caso, na altura); (ii) um segundo grupo, "que se revelou muito importante na luta de libertação nacional, e que é constituído por um número muito elevado de jovens, vindos recentemente do campo, que conservam laços estreitos com este ao mesmo tempo que entraram em contacto com a vida dos Europeus”.

Seria interessante conhecer-se, com detalhe, a origem social dos principais dirigentes, políticos e militares, do PAIGC: sabe-.se que alguns, como Luís Cabral, Aristides Pereira, Turpin, eram empregados das casas comerciais europeias (a Casa Gouveia, a Nosoco, etc.) que poderíamos considerar como o “front office” do colonialismo.


(iii) A dificuldade de mobilização dos camponeses
Posteriormente, em 1969, num seminário de quadros (3), Cabral teve oportunidade de precisar melhor o seu pensamento sobre os camponeses da Guiné que ele não considerava uma “classe social”, mas antes como uma “camada especial”, pessoas que vivem no campo (“mato”), que vivem da agricultura, ou seja, dos produtos que a terra dá.

Contrariamente ao pensamento maoísta, Cabral não considera os “camponeses pobres” – os que, cultivando a terra, não saem do círculo da pobreza, são roubados no peso dos produtos, pagam impostos e taxas aos chefes tradicionais, trabalham uns tantos dias para estes dirigentes semi-feudais, aliados dos “tugas”… - como a classe mais importante da Guiné, do ponto de vista da luta de libertação. A amarga experiência de Cabral leva-o a falar das dificuldades de mobilização do campesinato guineense:

“Ainda hoje, quando alguma coisa não corre bem, fogem e põem-se do lado dos portugueses, mesmo sendo pobres e infelizes” (Cabral. 1976.111).

Lembra ainda as diferenças que, a nível do campo, existiam na época em Cabo Verde e na Guiné. No primeiro caso, havia a propriedade individual da terra, enquanto que no caso da Guiné a terra pertencia, teoricamente, à comunidade, à tabanca. Além disso, havia também a grande propriedade (nas Ilhas de Santiago e de Santo Antão) e a pequena propriedade (por ex., ilhas de S. Nicolau e Brava). Também existia a figura do rendeiro, do camponês sem terra. Em Cabo Verde faria sentido a palavra de ordem: “A terra a quem a trabalha”, mas não na Guiné. Aqui, além disso, há o factor étnico a ter em conta, e que vem complexificar a análise da estrutura social.

Cabo Verde e Guiné tinham em comum o facto de serem sociedades coloniais, ou seja, dominadas por um Estado estrangeiro, com as suas tropas, a sua polícia, a sua administração, os seus missionários, os seus antropólogos, etc. “Somos um povo sem autonomia” (Cabral. 1976. 114).

Que tipo de sociedade representam os Balantas, pergunta Cabral. Estão “talvez na fase de desagregação do comunismo primitivo, mas muito longe deste” (Canral. 1976. 115). Era uma sociedade que não conhecia o dinheiro, as relações mercantis, até aos finais do Séc. XIX. A moeda foi introduzida pelo colonialismo, o que modificou inevitalmente a sociedade balanta (e as outras, de outros povos animistas).

Já os fulas têm uma estrutura “feudal”, com chefes, com senhores, com gente que lhes está subordinada, os artesãos e os camponeses, ou seja, gente dos ofícios (“corporações”), e gente que trabalha a terra (e que na Europa do feudalismo se chamavam “servos”)… Mas seria inapropriado falar de feudalismo fula, porque a propriedade da terra não é individual, mas sim comunitária.

Usando a vulgata marxista, Cabral utiliza conceitos como “desenvolvimento das forças produtivas”, “infra-estrutura”, “super-estrutura”, “classe burguesa”, “classe operária”. etc. Mas, em geral, tem um discurso didáctico, em crioulo, procurando operacionalizar os conceitos e exemplificá-las. A sua linguagem procura fugir ao jargão, à langue du bois, tão típica dos anos 60, entre os movimentos e partidos marxistas ou de inspiração marxista.

Era o Cabral um marxista ? Teríamos que ter em linha de conta o seu pensamento, a sua escrita, os seus discursos, a sua prática… Há quem diga que ele nunca foi verdadeiramente um marxista, como é o caso do seu principal biógrafo, o francês Patrick Chabal, que escreve em inglês e vive no Reino Unido.

Onde Cabral revela o seu melhor é como pedagogo, como educador, em intervenções orais, em crioulo, como no seminário de quadros de 19 a 24 de Novembro de 1969 (“Os princípios do Partido e a prática política”). Usando uma linguagem simples, coloquial, recheada de imagens, é aí que Cabral se revela como o grande comunicador, o grande sedutor que é:

“Na Guiné, por exemplo: por um lado há gente da cidade, por outro, gente do mato, pelo menos. Na cidade o que é que há ? Na cidade há brancos e pretos. Entre os africanos há altos empregados e empregados médios, que têm a certeza de que no fim do mês ganha o seu dinheiro certo. Têm aquela ideia de comprar o seu carrinho, como eu, por exemplo, que tinha o meu próprio carro. Com geleira [frigorífico], boa raça de mulher, filhos que vão ao liceu de certeza e que mesmo, se estudarem muito, vão para Lisboa.

“Depois, há aqueles empregadinhos que fazem o seu Sábado, o seu tinto e o seu bacalhau, que podem comprar o seu rádio transistor, as suas coisas. Depois há os trabalhadores de cais, reparadores de carros, podemos meter aí também os chauffeurs e outros que vivem um bocado melhor. Trabalhadores assalariados em geral. E depois há aquela que tem nada que fazer, que vive de expedientes cada dia, por todo o lado, que nem mesmo sabem que fazer para arranjarem maneira de viver. Quer gente de vida fácil, como as prostitutas, quer pedintes, trapaceiros, ladrões, etc., gente que não tem nada que fazer. Isto é que é a sociedade das cidades” …

O que tem em comum esta gente da cidade, empregada, com um certo estatuto e um certo nível de vida ? Estão “todos agarrados aos tugas, fingindo ser portugueses o máximo que podem, até proíbem os filhos de falar outra língua em casa que não seja o português”…

Cabral está a falar para um auditório onde há gente (boa parte dos dirigentes e quadros do PAIGC) que veio desse meio relativamente privilegiado dos “empregados”, do universo (restrito) dos “assimilados”, o embrião de uma pequena burguesia africana. Conclui ele:

“Alguns de vocês, por exemplo, que eram empregados, mas que são nacionalistas, não é verdade ? Mas os interesses eram mais ou menos os mesmos, vivem sempre na mesma esfera, no mesmo grupo social” .

Tenho ideia que Cabral se movimentava (e pensava) melhor no campo do que na cidade, já que ele trabalhou como engenheiro agrónomo, na Guiné e depois em Angola, ao longo da década de 1950. Entre 1953 e 1956 fez o recenseamento agrícola da Guiné (…), e julgo que lhe veio daí a sua admiração pelos povos animistas, e em especial os balantas, os magníficos camponeses da Guiné, os grandes cultivadores de arroz.

Cabral utiliza o exemplo da sua própria origem social e da sua experiência pessoal, para melhor ilustrar os conceitos que usa na análise da estratificação social da população na Guiné e em Cabo Verde. Dá o exemplo dos trabalhadores portuários e dos transportes marítimos, que formam um outro grupo, distinto do primeiro:

“Vocês podem encontrar-se, conversar, mas sabem que não vão sentar-se juntos com eles à mesa para comer”.

O mesmo se passa no “grupo dos tugas, por exemplo, as famílias do governador, do director do banco, do director de Fazenda, etc., não vemos aí nunca a mulher do tuga operário ou de qualquer um que é batedor de chapas. Só se ele tiver alguma filha muito linda, que toda a gente admira, e que de vez em quando vai dançar com a gente da alta. Mas a mãe, que não sabe ler nem escrever, não vai. Acompanha a filha à porta e sai. Vocês lembram-se de casos desses em Bissau”. E Cabral está a pensar nos famosos bailes da UDIB – União Desportiva Internacional de Bissau onde a só “a fina flor” colonial podia entrar, pelo menos até ao início da guerra…

Falando das gentes do mato, Cabral dá uma lição sobre os balantas, grupo que ele não só conhece, como agricultores, como admira, enquanto povo, que foi historicamente um povo resistente. Chama-lhes uma “sociedade horizontal”, isto, é, “que não classes por cima umas das outras”. Entre eles não há hierarquias. Os chefes foram uma invenção dos tugas, que lhe impuseram régulos fulas ou mandingas, nalguns casos antigos cipaios, leais aos portugueses:

“Cada família, cada morança tem a sua autonomia e, se há algum problema, é o conselhos dos velhos que o resolve, mas não há um Estado, não há nenhuma autoridade que manda em toda gente”. A sociedade balanta seria uma sociedade tendencialmente igualitária, que Cabral descreve nestes termos singelos :

“A sociedade balanta é assim: Quanto mais terra tu lavras, mais rico tu és, mas a riqueza não é para guardar, é para gastar, porque um indivíduo não pode ser muito mais que o outro”… Explicitando melhor: “Quem levantar muito a cabeça já não presta, já quer virar branco, etc. Por exemplo, se lavrou muito arroz, é preciso fazer uma grande festa, para gastar”…

Já os fulas e os mandingas são sociedades verticais, estratificadas, têm os seus próprios chefes, que não foram impostos pelos tugas… Mas é bom que os camaradas saibam, acrescenta Cabral, que os fulas e os mandingas da Guiné não são verdadeiros fulas e mandingas…

Recuando no tempo, sabe-se que os mandingas vieram de fora e conquistaram o território do que é hoje a Guiné até à região de Mansoa… Os vencidos foram ‘mandinguisados’, assimilados, tornaram-se mandingas. “Os balantas recusaram-se e muita gente diz que a própria palavra balanta significa aqueles que recusam. O balanta é aquele que não se convence, que nega. Mas não recusou tanto, porque existe o balanta-mané e o mansoane. Sempre apareceram alguns que aceitaram e foram aumentando aos poucos”, islamizando-se…

E aqui põe-se uma questão interessante: por que é que os balantas foram a grande base de apoio do PAIGC ?

Em 1969, Cabral não tem dúvidas na resposta: não é por eles serem melhores do que os outros, mas por causa do seu tipo de sociedade, horizontal, rasa, igualitária, composta por homens livres que querem continuar a ser livres, sem a “opressão dos tugas":

“O balanta é e o tuga por cima dele, porque ele sabe que o chefe que lá está, o Mamadu, não é nada seu chefe, é uma criatura do tuga. Portanto, mais interesse tem ele em acabar com isso para ficar com a sua liberddae, absolutamente. E é por isso também que, quando qualquer elemento do Partido comete um erro com os balantas, eles não gostam e zangam-se depressa, mais depressa do que qualquer outro grupo” (Cabral, 1976. 125).

Luís Graça
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Nota de L.G.:

(1) Vd. Obras ecolhidas de Amílcar Cabral, de que foram publicados 2 volumes pela Seara Nova

CABRAL, A.- Unidade e luta (compil. Mário de Andrade). Lisboa : Seara Nova, 1976-1977 (Obras Escolhidas de Amílcar Cabral). 1º Volume: A arma da teoria, 249 pp. 2º volume: a prática revolucionária, 224 pp.