terça-feira, 4 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3404: Recortes de imprensa (9): Em Gandembel - O adeus à Guerra (José Teixeira / César da Silva)

1. Mensagem com trabalho reenviado pelo nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, em 2 de Novembro de 2008, com um desabafo de que seria a segunda vez que o estaria a mandar. Ao Zé, as nossas desculpas.


2. Através do Almeida, o camarada da CCaç 2317, que nos tem deliciado com a canção de Gandembel, na Tabanca de Matosinhos, chegou-me à mão uma reportagem do Diário Popular com data de 17 de Março de 1969 sobre Gandembel, assinada pelo jornalista César da Silva.

Gandembel é um local mítico da Guerra na Guiné, que alguns dos camaradas que em 1 de Março passado visitaram aquando do Simpósio sobre Guiledge.

O Título Em Gandembel – O Adeus à guerra seduz qualquer ex-combatente que tenha andado pela Guiné nessa época, a ler o referido artigo que abaixo descrevo.

O seu conteúdo espelha bastante bem o inferno de Gandembel. Estranho para mim, é o facto de a Censura política ou a Pide terem deixado passar este artigo, em pleno tempo de guerra, com uma descrição tão rigorosa do que era a guerra naquele local, que eu, estando em Mampatá Forreá e participando nas colunas de reabastecimento de algum modo testemunhei. Talvez porque Gandembel à data da vinda a lume do artigo, já estivesse desactivada.

Pode ler-se por exemplo: Afinal isto dará uma ideia do que efectivamente é a guerra no Ultramar? Pois eu permito-me pensar, de acordo com o que pude observar directamente na Guiné, que o conflito naquela Província não será melhor nem pior que o do Vietname, desde os quadros dirigentes, aos operacionais, desde a mentalização dos soldados inimigos, ao material por ele utilizado, o que é exactamente o mesmo.

Ao ler o artigo ficamos a saber que os fortes de Gandembel e Balana foram construídos com o objectivo de libertar, já nessa altura (princípios de 1968) a pressão sobre Guiledge, o que veio a acentuar-se após o abandono destas praças, em fins de 1968 e culminou com o seu abandono forçado em 1973.

Interessante também a descrição exagerada, a meu ver, das acções dos Páras, bem como a hilariante história do leite para o comandante Nino, que foi efectivamente verdadeira. Tanto quanto sei, porque acompanhava de perto a movimentação dos Páras e o seu enfermeiro era um camarada amigo, colega de curso, que mais tarde foi gravemente ferido numa A/C a caminho de Fulacunda, onde morreram creio que sete camaradas, tais encontros com o IN aconteceram e muitos mais, pois todos os dias ouvíamos em Mampatá o matraquear da metralha. Foi de facto apanhado manga de material, bem como o leite para o Nino. A quantidade de IN mortos, tal como é descrito, é que me parece exagerada. Talvez o Idálio Reis ou o Hugo Guerra nos possam dar uma ajuda, repondo tanto quanto possível a verdade dos factos.

Zé Teixeira




3. EM GANDEMBEL – O ADEUS À GUERRA

por Cesár da Silva ( com a devida vénia e homenagem pela sua coragem em ter ido até Gandembel e por ter escrito um artigo tão realista)

A operação “Bola de fogo” foi lançada pelas Forças armadas no dia 8 de Abril de 1968. Na madrugada do dia nove, após violento combate, foi fixada, com carácter provisório, a posição de Gandembel. Situava-se o referido ponto estratégico da estrada da estrada que, vinda de Kandiafara e passando por Cimbéli, na República da Guiné, liga a rodovia Mampatá-Cameconde, no nosso território. Em Kandiafara encontrava-se o grande depósito de material de guerra de Amilcar Cabral no Sul e Cimbali era o quartel general do comandante de todas as operações da zona.

Esta posição (a) permanentemente ocupada por soldados do exército, por vezes reforçada por tropas especiais, destinava-se a impedir a utilização inimiga do já famoso corredor de Guilege, o mais importante ao Sul da Guiné, na tentativa de evitar infiltrações de efectivos humanos e matérias no nosso território. No entanto, dada a proximidade da fronteira, o inimigo desencadeava diariamente violentos ataques de armas pesadas, quase sempre do outro lado da linha de demarcação, pelo que foi resolvido mudar o centro de operações dois quilómetros mais para norte, sobre a estrada do Balana, pois era mais seguro lançar os movimentos a partir daí e continuar a controlar o que para o inimigo constituía importante via de comunicação com grupos do interior.

Esforços e sacrifícios indizíveis

A fixação dos efectivos no actual ponto não foi, de modo algum, obra fácil. Pelo contrário, exigiu esforços e sacrifícios indizíveis. Para que o leitor possa fazer uma ideia aproximada, dir-lhe-emos apenas, o seguinte: Gandembel, tem a superfície de 40 decâmetros quadrados e está toda minada de valas e cercada de arame farpado, com espaços armadilhados; os soldados vivem em abrigos fortificados, construídos com milhares de toneladas de toros de árvores, pedra e terra removida. Pois tudo isso feito a braços, visto que os nossos rapazes, só dispunham de uma moto serra e duas viaturas. No gigantesco trabalho participaram todos os soldados com a respectiva arma numa das mãos e, na outra, uma pá, um machado, uma picareta, ou simplesmente, nada. Trabalharam continuamente de dia e de noite, mas apenas nos intervalos dos combates que eram obrigados a travar, ou que eles procuravam por força das circunstâncias, pois Gandembel nunca deixou de constituir alvo permanente para o inimigo, que contra ele ainda hoje dirige brutais ataques, quase sempre apoiados por armas pesadas.

O maior potencial de fogo inimigo na Guiné

É na zona de Gandembel que o inimigo possui o maior potencial de fogo e foi contra esta posição que utilizou, pela primeira vez na Guiné, o morteiro 120mm. Foi, também na mesma zona que plantou o maior número de fornilhos (minas reforçadas com torpedos de TNT), que se destina a cortar itinerários, pois tem grande potência e, portanto poder destruidor (b). Também é utilizada contra colunas militarizadas.

Muitas vezes no decurso das flagelações nocturnas o inimigo tentou penetrar no aquartelamento, chegando mesmo a cortar o arame farpado da primeira fiada e estabelecer abrigos pessoais perto da segunda, portanto praticamente dentro da unidade. Foi sempre repelido.

O auxilio das forças especiais

Os pára-quedistas deixaram quatro mortos em Gandembel e levaram alguns feridos, mas foram capazes de façanhas como a seguinte: numa nomadização orientada até algumas centenas de metros da fronteira, surpreenderam certa madrugada um bi-grupo inimigo (cerca de oitenta homens). Dizimaram-no completamente em menos de uma hora e estabeleceram contacto com outro que vindo da República da Guiné, pretendia socorrer aquele. Para esses já não foi tão mau, pois regressaram com sete elementos ao outro lado da fronteira, sem ferimentos graves. Cerca de seis toneladas de armas e munições e um grande carregamento de víveres, além de documentação importante, foi o balanço do espólio. É inacreditável, mas o que se segue, pode ser testemunhado pelos rapazes de Gandembel e pelos “Páras”. Do carregamento apreendido faziam parte víveres de vária espécie e leite para o comande “turra” João Nino. Alguns dias depois, ao anoitecer, alguns “turras” gritavam da orla da floresta

“pára-quedista gatuno dá-nos o leite do Nino. Dá-nos o leite do Nino, que ele precisa, está doente”

Pois os “Páras”quiseram levar-lho, mas eles, que tanto tinham implorado, não esperaram e fugiram.

Dois exemplos do que é a guerra na Guiné

Os rapazes de Gandembel supriram dificuldades à custa de um esforço heróico inigualável de abnegação e sacrifício sem conta. Apesar de debilitados fisicamente, pois desde o dia oito de Abril do ano passado, que não sabem o que é uma cama e muito menos um lençol, continuam a operar com elevada moral, até vinte e quatro horas por dia, prontos para entrar em combate. E para se avaliar em definitivo da capacidade do inimigo na zona, do elevado nível técnico dos seus quadros, que em tudo se aproxima, sem sombra de exagero do que acontece no Vietname, daremos apenas dois exemplos:

Uma coluna rodava de Guiledge para Gandembel com abastecimentos, protegida por dois grupos de combate. Em dada altura, o IN emboscado, disparou intensa fuzilaria, e, subitamente abriu numeroas colmeias de abelhas, atrás das quais fez explodir potes de fumo. Os soldados, martirizados pelos insectos não podiam permanecer no mesmo sítio para se protegerem.

Frequentemente, o IN inicia a flagelação com armas pesadas ao cair da noite e termina somente na madrugada. No dia 15 de Julho do ano passado, Gandembel sofreu um ataque desses, que agora já é par de vários outros. Mas, à altura, foi considerado o maior da Guiné desde o princípio da guerra. Forma disparados sobre a posição 236 granadas de canhão sem recuo e mais de 300 de morteiro 82 e 120.

Afinal isto dará uma ideia do que efectivamente é a guerra no Ultramar? Pois eu permito-me pensar, de acordo com o que pude observar directamente na Guiné, que o conflito naquela província, não será melhor nem pior que o do Vietname, desde os quadros dirigentes aos operacionais, desde a mentalização dos soldados inimigos ao material por ele usado, que é exactamente o mesmo.

Visita do Bispo de Madarsuma (c)

Gandembel foi a última posição avançada da Guiné que visitei durante a minha estadia nesta Província. Cheguei ali de helicóptero com o bispo de Madarsuma, Vigário Castrense das Forças Armadas, no dia de Natal. Recebeu-nos o comandante da sub-unidade, e, pouco depois comparecia também o governador e comandante chefe das Forças Armadas da Guiné. Assistimos à missa campal em ambiente de fervorosa fé. O prelado e o Governador partiram. Eu quis ficar. Era o meu adeus à guerra e queria portar-me com dignidade perante aqueles jovens soldados que me olhavam risonhamente, talvez comentando o facto de à nossa chegada (a do bispo de Madarsuma e a minha) ter sido festejada pelos “turras” com algumas descargas de morteiro e de metralhadoras pesadas. Julgo até, que eles comentavam entre si o facto de os normais habitantes de certo abrigo me terem ali, quando estes entraram (…) ao explodirem as primeiras granadas. Eu pensava que "gato escaldado de água fria tem medo ...” e tentava adivinhar a sensação do bispo de Madarsuma, que subitamente se sentiu agarrado por um braço no meio da parada e levado para o mesmo abrigo, onde eu já me encontrava.

O Adeus à Guerra

Depois do jantar, um dos oficiais perguntou-me:
- Amanhã não quer ir à ponte? (d)
- Pois claro que vou – respondi-lhe.
- Isso dependerá da festa que os turras nos deram esta noite, concerteza...
- Concerteza que não, senhor alferes! Eu sou um homem que tem medo. Por isso sou capaz de fazer o que todos os outros homens fazem e não são as minas de que há pouco me falou que me assustam.

No dia seguinte, visitei o pessoal de Ponte Balana, mas tive de regressar em corrida, para apanhar o helicóptero que me transportaria a Bissau. Os soldados reuniram-se à volta do aparelho insistindo em que querem receber exemplares do “Diário Popular” com mais frequência e pedindo para eu ver o que poderia fazer nesse sentido.

Foi o meus adeus à guerra. Um adeus com o coração amargurado e o pensamento cheio de admiração por tão extraordinários soldados.

César da Silva
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Notas do Zé Teixeira:

a. Suponho que se quer referir a Guiledge, pois nunca ouvi falar em Cimbali
b. Infelizmente eram utilizados para matar soldados portugueses e não só cortarem as picadas. Com isso podiamos nós bem.
c. D. António dos Reis Ribeiro – bispo titular de Madarasuma e Forças Armadas Portuguesas .
d. Fortim de Ponte Balana


Foto 1 > Gandembel > 1968 > Vista geral

Foto 2 > Gandembel > 1968 > Porta de armas

Foto 3 > Gandembel > 1968 > Construindo um abrigo.

Foto 4 > Gandembel > 1968 > Depois do trabalho, o mercido banho
Fotos: © Almeida (de Gandembel) (2008). Direitos reservados

Foto 5 > Gandembel > 2008 > Restos de um abrigo

Foto 6 > Gandembel > 2008 > Restos de um abrigo

Foto 7 > Ponte Balana > 2008 > O poço onde os “rapazes” de Gandembel iam buscar água

Foto 8 > Ponte Balana > 2008

Fotos: © José Teixeira (2008). Direitos reservados

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3240: Recortes de imprensa (8): 35 anos de independência da pátria de Amílcar Cabral

Guiné 63/74 - P3403: In Memoriam (11): Júlio Marques, ex-1º Cabo, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70, morto no dia de finados (Idálio Reis)

1. Mensagem do Idálio Reis, com data de hoje. Engenheiro agrónomo, reformado, residente em Cantanhede, foi Alf Mil Op Esp, CCAÇ 2317, Gandembel/Balana, 1968/69:


Meus caros Luís, Vinhal e Briote.

Perdemos mais um companheiro que viveu essa guerra que outrora se travou na Guiné. E há um enorme sentimento de perda.

Cordialmente, Idálio Reis


ASSUNTO: Morreu o Júlio Marques, meu conterrâneo e contemporâneo em terras da Guiné


A efemeridade da vida. Regressava o Júlio, da missa de finados celebrada no cemitério da freguesia, quando o seu coração o trai repentinamente, caindo fulminado por uma paragem cardíaca, deixando na maior dor os seus entes mais queridos.

Morre ainda relativamente novo, com 63 anos, após uma vida em que a sorte que lhe estava reservada, de tantas vezes lhe foi adversa, dando mostras de não o querer bafejar.

Paradoxalmente, o Júlio teve uma juventude feliz, mercê de um desvelado afã dos seus pais, que lhe proporcionaram que fosse estudar, e que viria a abandonar por iniciativa própria, algum tempo antes de ser chamado a cumprir o serviço militar.

Não quis, soube ou teve bastante capacidade para aproveitar a benesse ofertada, e os resultados que conseguiu almejar, foram praticamente nulos. E quando chega da Guiné, a única opção que foi capaz de enfrentar e para a qual estava melhor talhado, como a de tantos outros, foi a de dar continuidade à agricultura que era a forma de vida da casa paterna, e que, em princípio, lhe auguraria um futuro com algum desafogo.

Numa aldeia essencialmente rural, a sua casa agrícola despontava entre as melhores, e, conhecedor da actividade, rasgava-se-lhe um horizonte com razoáveis perspectivas para se inserir no seu meio. Estávamos mesmo no princípio da década de 70.

E os primeiros tempos correram-lhe de feição, sentindo-se um homem feliz, ainda que apenso a muito trabalho e canseiras. Mas esta agricultura, de minifúndio, vai entrando em crise, acentuada de ano para ano, e o Júlio perde rentabilidade. Dificulta-se-lhe a vida, manifestam-se dificuldades impossíveis de superar, e hoje vivia para sobreviver, com uma agricultura de subsistência.

Das vezes que nos encontrávamos, reconhecia nele um homem vencido pelas vicissitudes da vida. Cansado, sem queixumes, continuava bastante apegado às suas courelas, pois só com muito esforço conseguia juntar algum pecúlio para o seu quotidiano.

Tinha como vício o tabaco, e tantas vezes o aconselhava para deixar o cigarro. Ripostava-me que andava a tentar abandonar e que um dia o faria. Debalde!

Se lhe apontava este conselho, era tão só para ter um motivo de conversa, pois era bastante lacónico, pouco propenso para falar do que quer que fosse. E, em poucos minutos, desculpava-se e seguia o seu destino. Tornara-se um aldeão “à antiga”, um homem bom, com um tipo de vida muito caseiro.

Éramos conterrâneos, vivíamos nos extremos da aldeia, e durante a meninice raramente brincámos conjuntamente. A nossa grande amizade foi muito cimentada, quando a minha Companhia esteve em Buba, onde ele já se sediava, julgo que pertencendo à CCaç 2381 ou CCaç 2382 como 1º cabo.

No pretérito dia 1, tínhamo-nos cumprimentado no cemitério da freguesia. Era um homem que sempre dedicou um carinho muito especial à memória dos seus pais, que tanto labutaram por ele. Talvez, neste dia de homenagear mais sentidamente os nossos, um turbilhão de sentimentos e comoções mais transparece nas preces que lhes endereçamos. Não resistiu no Júlio.

Em dia de finados, porventura cismando na roda e rumo que a sua vida tomara, num ápice uma folha de Outono tomba para sempre. E deixa-nos mais pobres, pois a perda de um amigo é sempre uma fatalidade pesarosa.

Curvo-me em silêncio à perenidade da memória do homem grande que foi o Júlio Marques. Até sempre, bom amigo.

Um forte abraço a toda a Tertúlia
do Idálio Reis.

Guiné 63/74 - P3402: Acção psicológica a funcionar... O Desporto em Chão Manjaco (Jorge Picado)


1. Mensagem do nosso camarada Jorge Picado, ex-Cap Mil da CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, CART 2732, Mansabá e CAOP 1, Teixeira Pinto, com data de 1 de Novembro de 2008

Amigos e Camaradas

Estava com disposição de contar algo sobre a minha estada em Chão Manjaco e saíu-me a prosa que se segue.


Apsico a funcionar em Teixeira Pinto

Quando da minha apresentação, citei numerosos nomes de povoações, a maioria dos quais do Chão Manjaco, que levaram até a questionar o que saberia sobre o fatídico dia da morte dos Três Majores nesse Chão. Claro que, sobre esse acontecimento, só sei o que é do conhecimento geral, uma vez que nessa época andava por terras do Chão Balanta.

Já me referi, sobre a história da minha passagem por MANSABÁ, como acordei e acabei por ser colocado no CAOP 1 em TEIXEIRA PINTO. Como disse então, creio que foi com uma ajudinha directa ao então Comandante desse Agrupamento que na altura se encontrava de férias na Metrópole, mas, como agora quem poderia confirmar já cá não mora e, valha a verdade, depois de regressar não mais quis pensar nesses assuntos, não sei exactamente como ocorreu o facto.

A verdade é que pouco mais de 15 dias depois de me ter apresentado na CArt 2732 recebi a Nota n.º 7007/A, de 15MAR71 da 1.ª REP, dando-me conhecimento da colocação no CAOP 1 em substituição do Cap. Pinto de Lima, mandando-me apresentar logo que seja desnecessário. Estes amaldiçoados formalismos vertidos naquela expressão fizeram com que o nosso brilhante co-editor Carlos Vinhal tivesse que aguentar por mais uns tempos este desajeitado ex-Capitão

Assim em 04MAI71 saí às 6 horas da manhã de BISSAU para TEIXEIRA PINTO, numa coluna que atravessando o Rio Mansoa na jangada em JOÃO LANDIM cerca das 6h30m chegou ao seu destino cerca das 13 horas.

Tratando-se dum percurso para mim desconhecido – depois de JOÃO LANDIM com rumo a Norte apanhava-se a bifurcação antes de BULA, onde não se entrava e, rumando para Oeste passava-se por CÓ, PELUNDO e finalmente a nova casa – sempre em estrada bem asfaltada e de bermas bem desmatadas, mas a verdade é que, mesmo não conhecendo tal itinerário, já não senti qualquer emoção como tinha sentido cerca de 15 meses antes quando pela 1.ª vez rumei a MANSOA.

A verdade é que agora já era naturalmente um velho e não um reles periquito virgem nestas andanças. Os meus olhos já não vasculhavam para todo o lado à espera de ver aparecer a todo o momento os ferozes turras. Preocupado? Sempre. Mas agora, encarando com naturalidade e uma grande frieza a realidade duma paisagem desertificada, sem tão pouco saborear a possível beleza que, em circunstâncias de normalidade poderia usufruir.

A minha estadia neste Agrupamento não se comparou em nada com o restante tempo passado até aí nas outras localidades, dada a natureza das funções que passei a desempenhar e a aparente calma que se vivia. No entanto o meu alheamento por tudo que me cercava mantinha-se, raramente entrecortado por lapsos de lucidez.

Para me posicionar e enquadrar quem ler estas recordações esclarecerei que, quando cheguei o CAOP 1 tinha por Cmdt o Cor Art Gaspar P. de C. Freitas do Amaral, mais tarde substituído pelo Cor Pára Rafael F. Durão e lembro-me do Maj CEM Inocentes – Chefe do EM –, Maj CEM Barroco – Of Op (?) –, Cap Art Borges – Adj Of Op e meu camarada de quarto –, havendo possivelmente mais um que não recordo. Perdoem-me todos os outros, Alf e Fur do CAOP propriamente dito, mas de quem já não tenho na lembrança.

Passei a ser adjunto do Of Inf e Acap/Pop (?), o Maj Santos Costa, ficando com as tarefas relacionadas com os assuntos da Acap/Pop e assim, tendo deixado a G-3 ou qualquer outra arma, passei a empunhar lápis e bloco de notas de forma a documentar-me sobre os encontros que se efectuavam com as populações e os chefes das mesmas, anotar as preocupações, queixas, os avanços e atrasos na execução das obras planeadas e depois, no gabinete, redigir actas das reuniões e relatórios para serem remetidos ao COMCHEFE.
Depois deste intróito o que hoje quero recordar são 3 factos, de natureza desportiva, inseridos no âmbito das actividades da APSICO, ocorridos durante a minha permanência.

O 1.º diz respeito a uma prova de ciclismo organizada pelo CAOP – a 1.ª, não sabendo se posteriormente se realizou mais alguma – naquela localidade e designada por Circuito de Teixeira Pinto, da qual guardo 2 fotografias (tiradas por quem?) já bastantes deterioradas, mas que envio em anexo para que ajuízem da possibilidade de serem apresentadas.
Teve lugar esta prova no dia 12SET71, Domingo, como não podia deixar de ser e acerca dela transcrevo as parcas notas que constam da Agenda.

[Circuito T. Pinto -/9 inscritos. 15 voltas à Avenida, 24 km/1h 5m, por cima de lama, água e sob um calor tórrido. (10,15 -11,20). 1.º Abdul Karim (Pel.)]

Portanto e esclarecendo melhor, este circuito que decorreu na Avenida Central, constou de 15 voltas à mesma perfazendo um total de cerca de 24 km, tendo sido realizado em 1h05m, pelo menos pelo vencedor que foi um tal Abdul Karim (não sei se o nome estará correctamente grafado) do PELUNDO. Os inscritos teriam sido 9, segundo a nota, ainda que pela foto estejam alinhados à partida 10 (?).

A prova contou, como não podia deixar de ser, com a presença das Autoridades – Militares, Civis, Religiosas e Tribais – tendo-se iniciado às 10h15m e terminado às 11h20m. Como refiro a pista estava toda enlameada, cheia de poças de água – ainda visíveis nas fotos – e o calor era já elevado, condições aliás próprias da época (estava-se na época das chuvas).

As bicicletas eram as vulgares pasteleiras, como todos se devem lembrar, já muito usadas, mas que nem por isso fazia desanimar os concorrentes, como se pode observar, naqueles momentos antes da partida mais interessados quiçá a sonhar qual deles se transformaria no herói, face à inúmera assistência que povoava os passeios, mas principalmente perante as bajudas presentes!

Se as fotos puderem ser recuperadas, nelas se observarão alguns dos aspectos que enumerei, desde o ar descontraído – algum mais concentrado – dos concorrentes e suas maravilhosas máquinas, passando pelo terreno e o tipo de avenida que era de 2 faixas com separador central, até à numerosa assistência que emoldurava os passeios e não só, pois até no telhado duma casa em construção (?) se empoleiraram para ver melhor.

São visíveis 3 militares dos quais, admito que o de calções seja o Maj Inocentes, enquanto sobre os outros 2, apesar de perfil e postura de andar dum deles se parecer comigo, não ouso fazer qualquer sugestão. Só posso garantir que estava presente.

Finalmente tenho que confessar e, mais uma vez isto sucede, sempre que visiono estas fotografias me interrogo. Será que estive mesmo nestas paragens? Não teria sido um sonho? É que não tenho a mínima ideia daquilo que vejo. É como se nunca tivesse pisado aquela rua e, no entanto, nem eu sei quantas as dezenas de vezes que percorri aqueles cerca de 1600 metros da avenida fosse de jeep, Unimog ou mesmo a pé.

É isto que mostra o verdadeiro estado de alma em que me encontrava. Andava por ali, impessoal, aéreo, olhando, mas não vendo, qual sonâmbulo deambulando por entre a multidão e a paisagem. Por isso tudo aquilo se esfumou rapidamente, quando, naquela fase, devia ser o contrário. Se era a zona mais tranquila por onde passei, devia ser aquela cujas recordações mais perdurassem. Mas afinal não foi assim. Vá-se lá saber porquê.

Já quando logo no principio de 2007 li "Diário da Guiné. Lama, Sangue e Água Pura" do António Graça de Abreu, que me fartei de anotar, fiquei admirado por muitas das passagens que conta de TEIXEIRA PINTO, das quais não guardo recordação. Até quando ele cita o cinema, me admirei e no entanto, se não vi lá qualquer filme (não me lembro), pelo menos tive de assistir a uma sessão onde uma entidade religiosa da Mauritânia proferiu uma palestra em marabu (?).

O 2.º, que aconteceu no Domingo 26SET71, foi uma Prova de Atletismo, denominada pomposamente Légua de Teixeira Pinto que decorreu no mesmo lugar e constou de 3 voltas à mesma Avenida, num total de 5 km.
Deste acontecimento não guardo fotos e as notas ainda são mais parcas.

[Légua de T.PINTO. 10h – 30 c – 3 voltas Av. 5 km]

Iniciou-se às 10h, quando o tempo quente e húmido já fazia naturalmente mossas, contando com maior número de concorrentes, 30, naturalmente porque para o ciclismo era preciso montada e estas não abundassem, creio eu. Não posso explicar porque nem sequer o nome do vencedor anotei.

O 3.º acontecimento ocorreu no Domingo 3OUT71 e tratou-se dum Jogo de Futebol interno, para consolidação das relações entre militares metropolitanos e africanos. Uma equipa da CCS do BCaç 2905 contra uma representação da CCaç 16.

Devo dizer que estas partidas, realizadas sempre com o espírito de confraternização, eram sempre uma incógnita quanto ao seu desfecho, pois nunca se sabia quando poderiam dar para o torto. Recordo-me que antes de se tomar a decisão de as efectuar ponderava-se muito o risco e tomavam-se algumas cautelas… nesta, porém, não houve problemas, talvez porque o resultado final se traduziu num empate a 1 golo.

Apenas escrevi como notas [Futebol – CCS x CCAÇ 16 (1-1)].

E por hoje já chega de maçada.
Abraços
Jorge Picado



Fotos a que se refere o camarada Jorge Picado. Tiradas antes da partida para as 15 voltas pela Avenida Principal de Teixeira Pinto, que se completaram no tempo de 1 hora e 5 minutos.
Pena que viessem em tão mau estado. O que se conseguiu é muito pouco, em termos de resolução.

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Nota de CV

Vd. último poste de Jorge Picado de 28 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3369: Em busca de... (49): Resultado das buscas da causa da morte do conterrâneo de Jorge Picado, João Nunes Redondo, ex-Fur Mil Sap

Guiné 63/74 - P3401: Blogoterapia (70): Notícias da Tabanca Grande (Carlos Vinhal)

I. O Carlos Vinhal, que é um mouro de trabalho, mandou-nos hoje, a todos nós, um ficheiro pdf com a lista, actualizada dos nomes e dos endereços de email do pessoal da Tabanca Grande (ou tertúlia, como dizíamos originalmente, com algum pretensiosismo).

Garantimos que essa lista está em boas mãos, não correndo o risco de ir parar, por exemplo, aos ficheiros dos recrutadores de mancebos para guerras futuras. A verdade é que já somos, entre amigos e camaradas da Guiné, cerca de 280, residentes nas mais diversas partes do país, desde Miranda do Douro a Faro, e da Madeira aos Açores, e até no estrangeiro, na diáspora portuguesa (Austrália, Brasil, Canadá, EUA, França, Holanda, República Checa...). Sem esquecer a nossa querida Guiné-Bissau...

O Carlos aproveitou a oportunidade para esclarecer algumas dúvidas sopbre o envio de comentários, que voltamos a reproduzir aqui:

Caros camaradas e amigos tertulianos

Junto vos envio lista actualizada dos endereços da tertúlia.

Como aparecem amiúde camaradas a solicitar endereços, sugiro que a guardem em ficheiro nos vossos PCs e que a substituam sempre que vos envie outra mais actualizada.

Por outro lado, aparecem camaradas a queixarem-se de que não conseguem fazer comentários no Blogue por não terem conta no Google e lhes ser sugerido abertura de uma.

Deixo uns tópicos para deixarem o vosso comentário. Lembro que é uma forma fácil e rápida de interagirem com os camaradas que escrevem.

1 - Clicar na palavra Comentários existente no fim da cada postagem
2 - Escrever o texo na caixa, não esquecendo de indicar o nome para evitar o anonimato
3 - Introduzir os caracteres produzidos pelo Google na caixa de Verificação de palavras
4 - Na área de Seleccionar uma identidade, escolher a opção Anónimo
5 - Finalmente clicar em Publicar o seu comentário

Os editores estão disponíveis para, dentro dos seu conhecimentos, ajudar nas eventuais dificuldades que possam surgir aos tertulianos.

Pelos editores
Carlos Vinhal



II. Aproveitamos para reforçar o pedido da equipa editorial para que toda a gente participe também no blogue, regularmente, com os seus comentários, críticas ou sugestões. Participar significa, etimologicamente falando, tomar parte em, ser protagonista, ser actor... Não queremos que sejam sempre os mesmos a mandar bitaites. Além disso, já ninguém precisa mais de pedir licença e pôr-se em sentido, para fazer o seu comentário, crítica ou sugestão. Estamos todos na peluda e esquecemos o famigerado RDM:

Amigo ou camarada da Guiné:

A tua opinião é muito importante para nós. Podes (e deves) escrever, no final de cada poste ou texto, o que te aprouver: um pequeno comentário, uma nota adicional, um reparo, uma crítica, uma sugestão... Basta clicares duas vezes sobre comentários que aparece no fim de cada texto, antes dos Marcadores (palavras-chave).

O teu comentário será publicado instantaneamente, sem moderação. Se voltares ao blogue (clicando no ícone Refresh, por exemplo) , encontrarás logo o teu texto. Escreve com total liberdade e inteira responsabilidade (o que significa respeitar as boas regras de convívio que estão em vigor entre nós: por exemplo, não nos insultamos uns aos outros, somos capazes de conviver com as nossas diferenças, discordamos sem puxar da G3...).

Não precisas de ter uma conta Google/Blogger. Podes fazer um comentário como anónimo, mas é conveniente (e desejável) que deixes sempre um contacto teu (nome, localidade, antiga unidade e, se possível, e-mail, no caso de ainda não pertenceres à nossa Tabanca Grande). Os amigos e os camaradas da Guiné não se escondem no anonimato, são pessoas habituadas a dar a cara.

Um Alfa Bavo (ABraço).
Os editores LG/CV/VB

Guiné 63/74 - P3400: Histórias engraçadas (António Matos) (1): A fábrica de Mafra ou como se fazia um militar

1. Mensagem de 2 de Novembro, enviada pelo António Matos, ex-Alf Mil, CCAÇ 2790, Bula, 1970/72 (*):

O ser humano, quando transformado em militar, mesmo que à força, adquire características ímpares que lhe permitem graus de sobrevivência excelentes ainda que, para alcançar esse estádio, passe por situações e provações complicadas mas, por vezes, hilariantes.

Desde os bancos da escola (leia-se recruta) que nos habituámos a chafurdar em charcos nauseabundos e a sermos obrigados, ao chegar ao quartel, a apresentarmo-nos 10 minutos depois lavados, penteados, barba feita, fardados a preceito e, calcule-se, com aquelas botas engraxadas e a brilharem !!!

E não é que todos conseguíamos a façanha ?

Desde miúdo de tenra idade que, em minha casa, eu era obrigado ( felizmente !!) a fazer a minha cama antes de sair para a escola. Essa especialização deu-me a facilidade para na tropa não ter essa função como um quebra-cabeças em oposição a alguns camaradas que não tinham como hábito aquela arte de bem esticar lençóis sem deixar ruga que os levava a cumprir 100 flexões!

Em minha casa havia a célebre expressão do saudoso Pai que dizia Aqui não há não gosto!, e com isso tudo o que caía no prato era devorado com prazer. Em oposição, na tropa, todos vimos camaradas a revirarem as tripas quando eram confrontados com a necessidade de enfardarem com aquelas comidas enlatadas que, para eles, eram intragáveis.

Aliás cheguei a fazer verdadeiros banquetes com os pitéus que alguns desprezavam ...

Na tropa, muitos fomos barbeiros de ocasião na tentativa de safar o camarada que se descuidara e não cortara a trunfa o suficiente que lhe permitisse gozar o fim de semana.

Também o fui e, de tesoura em riste, aparei a guedelha ao Teófilo Leite, em Mafra, ao fim de cuja operação de estética, ele ganhou o fim de semana e eu habilitei-me à forca ! Qualquer semelhança da cabeça dele com um parafuso sextavado, não era pura coincidência !

Eu assentei praça em Mafra. A complexidade arquitectónica do Convento transformado em quartel dava-nos durante a 1ª semana uma certa condescendência da parte dos instrutores para pequenos atrasos à formatura pois não raras eram as vezes em que um tipo se perdia nos corredores e primeiro que desse com a saída ....

Eu vivia em Guimarães, de onde me deslocava todos os fins de semana para uma verdadeira transformação física e psicológica bem ao jeito da Laranja Mecânica. Nessa altura, um dos meus camaradas de viagens e de pelotão era o Abreu.

O Abreu usufruía do beliche de cima (1º dtº), do par de beliches ao lado do meu, sendo que eu habitava o rés-do-chão esquerdo. Certa madrugada, o Abreu terá sofrido duma violenta diarreia e começou a chamar pelo camarada do 1º esqº (o Barbosa, pegador de touros ) do qual pretendia que lhe indicasse onde raio eram os sanitários. As altas horas dessa madrugada não permitiram que o Barbosa acordasse daquele sono rônquico e, entretanto, o Abreu continuava a chamá-lo na tentativa de o acordar.

O Abreu acaba por se calar no preciso momento em que o Barbosa despertou virando-se para ele:
- Eh pá o que foi ? o que queres ?

Com cara de desesperado, o Abreu apenas lhe disse:
- Nada ! Já me caguei!

Um abraço,
António Matos

________________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

1 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3390 Tabanca Grande (95): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2790, Bula (1970/72)

2 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3392: Blogoterapia (67): Homenagem aos que choram (António Matos)

Guiné 63/74 - P3399: Estórias cabralianas (40): O meu sonho de empresário (falhado): a construção de uma tabanca-bordel (Jorge Cabral)

1. Mensagem do Jorge Cabral, enviada ao editor L.G.:

Amigão,

Aí vai estória, acompanhada de um Grande Abraço extensivo ao Vinhal e ao Briote.

Jorge Cabral


2. Estórias cabralianas (40)


Explicação de L.G.:

Mais uma estória cabraliana... ou história, para os purista da língua. Uma questão que, de resto, está em aberto, no blogue; mas, que me perdoe o Norberto Gomes da Costa, eu não vou alterar o título da série, só por não ser linguisticamente correcto. O nosso camarada não suporta o vocábulo estória. Um dia destes vamos falar sobre isso. Tenho uma opinião diferente da dele... De qualquer modo, deixem-me dizer que as histórias do Jorge Cabral só podem ser... estórias, tal como as estórias do Luandino Vieira ou do Mia Couto, dois grandes escritores lusófonos que renovaram a nossa língua comum e a literatura em português. É bom que os portugueses se habituem à ideia de que não são donos da língua portuguesa...

Voltando ao Cabral: ele está, aliás, em dívida comigo e com o resto do pessoal da Tabanca Grande e demais visitantes do nosso blogue. Prometeu-nos escrever 50 estórias. É assim que vem no contrato. E um contrato, num país de juristas, tem muita força... O Jorge Cabral é jurista, não ia agora aceitar que eu fosse rasurar o documento e substituir o vocábulo. Estórias cabralianas já pagam direitos de autor e só podem do Jorge Cabral. Esta é o nº 40. Faltam 10 para ele pagar o resto da dívida e a gente um dia publicar-lhe o livro... Proponho que o lançamento do futuro livro seja no Maxime.

After-War, Cabral Empreendedor Putófilo
por Jorge Cabral


Claro que lembro do Tosco! (**). Havia pretas, mulatas e até uma chinesa. Todas, mais os copos, trataram-me da saúde. Entrava sempre a coxear, por via dos descontos… Mas o meu preferido era o Bolero, onde jantava no primeiro andar, antes do Tango em baixo, tocado a rigor por uma orquestra de cegos. Ainda lá fui após o 25 de Abril. A mesma orquestra, as mesmas putas, mas a música mudara – Todos em coro cantávamos a Internacional.

Foi porém no "Sempre em Festa” – Ritz Club (***) – onde além do mais, cortava o cabelo e fazia a barba, que estabeleci contacto comercial, com um simpático casal de artistas octogenários. Eles actuavam lá, vestidos de noivos, num número brejeiro, ao qual aliás ninguém ligava…

Convidei-os a investir num negócio que afiançava altamente lucrativo… Uma Embaixada de putas à Guiné e até, se tudo corresse bem, a construção de uma Tabanca – Bordel.

Acharam a ideia excelente, e eu comecei o recrutamento. Já tinha onze inscrições… quando resolvi pedir ajuda ao Barbosa Henriques (****). Era preciso sensibilizar o Exército e a própria Pide, para este importante esforço de guerra. Ao invés de me ajudar, o Capitão, pregou-me uma valente descompostura:
- Mas o Cabral está maluco? Agora quer ser chulo?

Muito triste, desisti. A minha carreira de empresário acabou antes de começar.

Anos mais tarde, propus ao Conselho Científico da Escola onde leccionava, a implementação de uma Cadeira nova – Putologia.

Recusaram.

Porra, tenho sido mesmo um gajo incompreendido!...

Jorge Cabral
________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 25 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3237: Estórias cabralianas (39): O Marido das Senhoras (Jorge Cabral)

(**) Vd. poste de 30 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3380: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (10): Quando a guerra era com os copos... ou o elogio do Tosco, em Lisboa (Jorge Félix)

(***) Vd. poste de 5 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3025: Os nossos regressos (7): Perdido, com um sentimento de orfandade, pelos Ritz Club, Fontória, Maxime, Nina... (Jorge Cabral)

(****) Militar de carreira, Barbosa Henriques, nascido em Cabo Verde, foi instrutor da 1ª Companhia de Comandos Africanos, em Fá Mandinga, em 1970. Faleceu em 2007. Era coronel comando na reforma. Vd. postes de:

19 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1536: Morreu (1)... Barbosa Henriques, o ex-instrutor da 1ª Companhia de Comandos Africanos (Luís Graça / Jorge Cabral)

19 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1611: Evocando Barbosa Henriques em Guileje (Armindo Batata) bem como nos comandos e na PSP (Mário Relvas)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3398: Pensar em voz alta (Torcato Mendonça) (16): O veterano e o Macaquinho

O Veterano e o Macaquinho

Meus Caros

Estava por aqui e, de um texto antigo apaguei, acrescentei, falei com o Macaquinho e anexei. Se o fulano (macaquinho) falasse diria estar o "dono" e amigo com problemas de "cuca".

Não sabe que existem pessoas que vão, em estupidez, muito para além do egoísmo. Curiosamente chocamos com eles no nosso quotidiano e já pensamos ser a normalidade. Devia dizer antes: eu e não nós.

Aconteceu-me, escrevi e aí vai o escrito.Desabafos numa noite Outonal...



Torcato Mendonça

ex-Alf Mil da CART 2339 (1968/69)

A tarde envelhece rápida, cada vez mais rápida, à medida que este Outono avança.
Ouvi-te atentamente.
Desligaste sem acabarmos a conversa.
Talvez por isso, ia sair mas parei. Sentei-me a pensar. Fico calado, nada digo? Mas, pensando melhor, porque não o faço?

Diz, na esquerda do blog sermos uma espécie em extinção. Não vou tão longe ou não quero ir. Penso é que há muita gente a "borrifar-se" nos antigos Combatentes. Depois a geração dos nossos filhos tem outros problemas e a que se instalou, entre nós e eles, quer é tratar da sua vidinha.
Por isso resolvi alinhar umas palavras e enviar-te. Preciso fazê-lo.

Também eu envelheço, neste Outono de vida, cada vez mais curta, mais enrugada em cada dia que passa. Por isso e não só, respondo-te, pois, escrevendo.

Perguntaste-me porque nunca mais escrevi no Blogue. Não és o primeiro a fazê-lo. Posso responder-te de várias formas. Depois juntas tudo, agitas e terás, possivelmente, a resposta. Assim:
- Tive um Julho quase parado. Idem em Agosto e um Setembro igual. Claro que andei por aqui e ali. Pouco, é certo, e, muito menos que o habitual. O Outubro voou ou quase nem o senti, tal a voragem dos dias.
- Posso acrescentar que me faltou a vontade, inspiração e preferi ler a escrever. Gosto de o fazer. Música em fundo e apago-me, ou, se preferires, vou caminhando conforme o tema da leitura.
- Mas se acrescentar os montes de leituras e trabalhos atrasados, muitos ainda assim permanecem, para pena minha, já estás mais perto.
- Posso ainda acrescentar algo que me levou muito tempo e deu um imenso prazer. Porventura prazeres de jovem ou de homens com rugas de mil sóis.

Bem aí tens quase tudo. Agitas então e zás sai a resposta…Acrescenta ainda o hábito quebrado ou interrompido. Mas África, a Guiné está sempre presente.

Isto sem falar de assuntos que me transcendem. O blog não é meu e os Editores são soberanos. Ponto final.

Olha, aí por fim de Agosto e Setembro estive quase um mês, menos, sem ler o blog. Fi-lo depois ao correr da “rodinha” do rato. Estive “fora” e sem Net.Gostei de uns escritos e nem tanto de outros. Fiz dois ou três comentários em “mata insónia”. Caminhar pela noite é a normalidade. Hábitos e gostos ou a necessidade do silêncio, da solidão, do encontro connosco.

Ao ler aqueles escritos todos, verifiquei um ponto comum: a saudade, o gosto pela Guiné e pelas suas gentes. Feitiço, não de mulher, mas daquela Terra.

Depois pensei:
– Então não é preferível ler tal diversidade de opiniões e de memórias, a escrever? Ou, se for escrevendo, vou arquivando. Claro que tenho aqui uma resma para teclar, uma série de escritos que já foram. Outros terão que ser cortados aqui e acolá – género trabalho de alfaiate do antigamente – e depois ver o que deles fazer.
Acrescento ainda que os ventos não sopram de feição. Outras vidas.

Falei de comentários. Fiz alguns. Um ou dois viraram post. Não queria comentar ou intrometer-me tanto. Um, há muito tempo, era sobre um dos mais conhecidos Pilotos da FAP. Conheci-o. O Capitão Neto, nascido no ex-Congo Belga, creio eu amigo do Jean… tratava o Piloto Honório por irmão. Aliás tratavam-se por irmãos. O Cap. Neto, antes ou quando regressamos à Metrópole no Uíge, contou-me o que se passou no desastre do Cheche. Não te vou contar agora, pois disso já muito se falou. Merecia um dossier.

Cherno Rachide

Comentei vários escritos ou posts. Poucos? Muitos? Nem sei que te diga. Um, que era mail virou post também. Era sobre a hipotética duplicidade da actuação de Cherno Rachide.

Claro que, forçosamente, a sua actuação tinha que estar de acordo com as duas forças beligerantes. Era um homem africano, profundamente conhecedor do seu Povo. Outros, não africanos, não fariam jogo duplo? Só que agente duplo pressupõe uma “arregimentação”. Ora se aplicada ao Cherno talvez seja forte demais. Se aplicada a outros nada tem de anormal ou pejorativo. Não se faz nenhuma guerra sem serviços de informação capazes. Perdem-se sempre sem eles…adiante!

Um comentário, talvez mais um cumprimento, um abraço, foi sobre o tratamento que o Estado continua a dar aos antigos combatentes, ao abandono dos militares africanos que connosco trabalharam, aos que por lá ficaram sepultados e aos que, após a “libertação” foram, cobardemente, fuzilados.


O meu macaquinho

Devo comentar menos. Quando leio e, caso não me agrade ou agradando, sinta vontade de dizer algo, por vezes não posso nem devo falar para não levantar polémicas, falo com o meu Macaquinho.

Não conheces o meu macaquinho? Bem, tenho vários e variados. Um é especial e acompanha-me há muitos anos. Senta-se sobre a secretária. Baixo, talvez dez ou doze centímetros, pelo negro e macio, cara marota de tom acastanhado. Tinha um apito. Com o tempo ou, se preferires, a idade, estragou-se. Antes, se abanado apitava. Agora só se ouve o barulho do rolar do apito.

É o meu confidente. Zango-me com ele, questiono-o sobre todos os temas. Como felizmente não fala, se o fizesse que problema tínhamos, ajuda a descarregar o bom ou mau humor, os problemas que um tipo tem e por aí fora. Ora falar mais com o macaquinho é menos problemático e ele logo me “diz” os caminhos a percorrer.

Aí tens um monte, uma mão cheia de motivos para nada de préstimo escrever. Repara que, caso tenhas lido o blogue, terás tido ocasião de sentir textos de forma e conteúdo diferente. Gente nova a arejar, a fazer pensar e sentir que, posso estar enganado, mas é bola de neve – rola e engrossa no tempo. Disse isso ao Luís Graça há muito tempo. Parece-me ter razão.


Para pensar

Mas não esqueçamos os “velhos”. Um colocou cinco questões que me têm feito pensar. Já escrevi e risquei. Voltei a pensar. Difíceis as questões. Tu que criticas sempre. Tu, que para lá da crítica, tenho que to dizer, nada ou pouco fazes a não ser em teu proveito ou que te traga algo… pensa nelas, medita e diz-me. Podes ficar aborrecido por te ter chamada egoísta, no mínimo. Pára, pensa e diz-me. Eu atrevo a repetir a questões:

(i) O heroísmo do soldado Português;
(ii) A confiança que os soldados depositavam em nós, os quadros;
(iii) A nossa passagem por África, que beneficio social e económico trouxe para Portugal;
(iv) A nossa religiosidade, de então e actual, e o porquê da diferença;
(v) As nossas famílias, que amarguras passaram por cá aquando da nossa ausência.

Então? Difíceis? Pois eu meditei, escrevi, risquei, voltei a reflectir e a escrever. Falta muito para chegar onde quero.
Serás tu capaz de, depois de pensar bem nelas, ou numa ou noutra somente, escreveres a dizeres-me o que pensas?

Já me mandaste “passear”. Fazes mal. Se reflectisses e escrevesses algo, fazia-te bem.

Olha, eu “falei” com o macaquinho, em troca de conversa de louco e peluche, mas isto é assunto sério demais. Pensa e diz algo, a mim claro. Eu continuo a reflectir e a escrever. Não mostro a ninguém. Se um dia o fizesse, enviaria primeiro a uma ou duas pessoas…

Até…

Torcato Mendonça

Um alentejano que vive hoje no Fundão
__________

Notas: artigos relacionados em

2 de Novembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3394: Blogoterapia (68): Amnésia, vergonha, denegação ou ocultação dos próprios nossos mortos (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P3397: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (1): A ida, do RI5 a Bissau


Luís Faria,
ex-Fur Mil Inf MA
CCAÇ 2791,
Bula e Teixeira Pinto,
1970/72


Capítulo I > A minha viagem - Do RI5 a Bissau

Em 1969 era eu, um bom moço, melhor rapaz e estudante do antigo 7.º ano, quando me convidaram para o RI5 [Regimento de Infantaria nº 5, nas Caldas da Rainha), sob o comando de Giacomino Mendes Ferrari (creio ser o nome correcto). E por lá andei a fazer a recruta com as insígnias de Instruendo. Até que, chegou a hora de escolher uma das Especialidades disponíveis, a saber: Amanuense, Atirador e Operações Especiais. Dado que para Amanuense não ia concerteza e para Atirador era certo, optei por ser o melhor da minha rua e só por isso pelas Op Especiais!

Por lá apareceu um dia o famoso Cap Robles e… lá fui parar a Lamego, ao CIOE [Centro de Intrução de Operações Especiais].

Boa comida, bons pequenos almoços… e há que optar: Op Esp (Rangers) ou Comandos? Fui parar a Penude, ao novo Quartel dos Comandos sob o comando Cap Jaime Neves. Boa comida, más dormidas!...

Estávamos no Inverno, um frio de rachar e depois de muitas peripécias que recordo com saudade a camaradagem, a disciplina, a preparação física e bélica adquiridas, o conhecimento humano em várias vertentes… muito me serviram na Guiné!... Dizia eu do frio de rachar… e um belo (!?) regresso de fim de semana, vou dar com o corpo na enfermaria, com gripe. Lá se foram o salto da ponte, o esgoto, o slide e o rapel!... E lá fui eu para Tancos, sem crachá, mas com os conhecimentos, tirar o curso de Minas e Armadilhas (nada de novo) com direito a Diploma, claro está!

Depois de ter resolvido, a contento, um problema grave de despromoção e prisão por ter invadido um aquartelamento da NATO (entrei com o meu amigo Meirinhos e outro por um buraco na rede), eis-me a caminho do RI 16, Évora, cidade do Templo de Diana, para formar Companhia com destino à… Guiné (o pesadelo que poucos quereriam !)

Ao tempo Salazar morreu, Tenentes ausentaram-se, falou-se que a guerra na Guiné tinha amainado e ia acabar (grande alívio !!!), enfim, valeram aquelas donzelas simpáticas e de fala doce e musicada, que nos distraíram o pensamento. Certo, Jorge Fontinha? E já que o nosso Tenente se ausentou, quem assumiu o comando do 4.º Gr Comb, deixando o 3.º, fui eu, por ser o Furriel mais antigo. E assim, o Jorge Fontinha (Op Esp), o Chaves (açoriano) e eu, lá demos instrução ao 4.º Gr Comb, levando-o até ao aquartelamento abandonado do RAC-Espargal em Oeiras, de onde embarcámos, em 19 de Setembro de 1970, depois das cerimonias habituais - Movimento Nacional Feminino, cigarros, Parada, despedidas e mais (só um meu irmão soube da minha partida) - no paquete inclinado para bombordo Carvallho Araújo, que nos levou ao destino, via Açores e Cabo Verde.

Ao entrarmos no Geba, já noite, na amurada a pensar e a sentir o cheiro caraterístico daquela Terra, entrei em alerta ao ver que os Turras já nos estavam a atacar com objectos incendiários que vogavam pelas águas em direcção ao barco...

Ufa… que alívio?! Afinal era apenas fauna marítima eléctrica!!!!!

E eis-nos atracados no cais do Pijiguiti, prontíssimos para o IAO e para o que mais viesse. Estávamos a 2 de Outubro de 1970. A partir desta data nos iríamos transformar em Homens, rapidamente…

Um abraço a todos os Tertulianos
Luís Sampaio Faria


Foto 1 > Luís Faria na Parada do RI5, Caldas da Rainha, cujo Comandante era o Coronel Giacomino Mendes Ferrari

Foto 2 > Fevereiro de 1970 > Luís Faria já no Curso de Comandos, em Penude, no novo Quartel dos Comandos sob o comando Cap Jaime Neves.

Foto 3 > Setembro de 1970 > RI 16 > Luís Faria durante a Semana de Campo

Foto 4 > A bordo do Carvalho Araújo, saída de Angra do Heroísmo, a caminho da Guiné

Foto 5 > Setembro de 1970 > Luís Faria em Ponta Delgada

Foto 6 > Cabo Verde > Luís Faria em Mindelo, Ilha de São Vicente durante a escala do Carvalho Araújo naquele Arquipélago

Fotos: © Luís Faria (2008). Direitos reservados.

___________________

Nota de CV

Vd. poste de 31 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3388: Tabanca Grande (94): Luís Sampaio Faria, ex-Fur Mil da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto (1970/72)

Guiné 63/74 - P3396: Em busca de... (50): Ainda as pesquisas de referências de António Andrade Júnior da CART 1692, Guiné 1967/69 (José Martins)

1. Em 26 de Outubro de 2008, Gonçalo Andrade mandou esta mensagem ao nosso Blogue:

Amigo Luis Graça,
O meu pai foi combatente na Guiné (Cameconde), aproximadamente entre 03/1967 e 03/1969.
Infelizmente, o mesmo faleceu, vítima de acidente de viação em 1979 (tinha eu 8 anos) e a minha mãe também faleceu em 1983 (eu com 12 anos) igualmente de acidente automóvel.
Desta forma, não tenho quem me dê informações ou referências e ando em busca das origens.

Pelo referido, excepto as datas e algumas fotografias, nada mais sei, nem nome/número da Companhia, nem ramo das forças armadas a que pertenceu.
Gostava de obter informações a seu respeito, fotografias e filmes onde aparecesse e de saber se a sua Companhia se organiza em confraternizações.

O seu nome era António Andrade Júnior e era natural de Estremoz, nascido em 1945.
(...) (*)



2. No dia 27 o nosso camarada José Martins dirigia-se assim ao Gonçalo Andrade e à Tertúlia e ao Goçalo Andrade, filho do nosso camarada António Andrade Júnior que pertenceu à CART 1692:

Bom dia Camaradas e meu novo FILHO.
Para o Gonçalo, começo por enaltecer a sua atitude de procurar as origens. Chamo-te filho porque defendo que OS FILHOS DOS NOSSOS CAMARADAS, NOSSOS FILHOS SÃO.

(...) (**)

3. Mais recentemente (30 de Outubro de 2008 (?)) o Gonçalo Andrade mandou este mail ao nosso camarada José Martins:

Boa Noite Amigo José Martins,
Falamos há dias no seguimento deste e-mail, na altura não relacionei de imediato com o primeiro e-mail e quero agradecer, sinto-me como um filho efectivamente.

No trabalho de pesquisa, virei as minhas 65 fotografias ao contrário e procurei ordenar datas e locais. A maior parte nada diz no verso. Contudo apurei as seguintes datas e localidades:

30/08/1967 Cacoca
23/10/1967 Cacine
03/11/1967 Cacine
08/11/1967 Cacoca
Ano 1968 - Todas Cameconde
16/02/1969 - Bissau

Penso que bate mais ou menos certo com a informação que me enviou no anexo deste mail.

Tenho também recebido algumas informações do camarada António José Pereira da Costa que diz julgar ter servido com o meu pai e me perguntou se, no espólio, via referências a CART 1692 - SPM 4248 (?).

Andei muitos anos a ganhar coragem para esta demanda (e foi preciso chegar aos 37 anos). Senti-me na obrigação! Tenho 2 filhos de 10 e 3 anos, netos de avós que não conheceram. Queria partilhar com eles estas memórias e deixar-lhes as raízes que não tive, para além do orgulho que deverão ter de um avô que sofreu na pele os males de uma guerra e transmitir-lhes este espírito de camaradagem que vai faltando no mundo moderno.

Um abraço muito amigo
gonçalo andrade

P.S.: O Arquivo Militar, a tal caixa n.º 81 é consultável? Também pedi informações para a Liga Combatentes. Ajudaria chegar à lista dos incorporados, já que até ver não demos com a Caderneta Militar.

4. Em 30 de Outubro, José Martins respondia:

Bom dia Gonçalo
Acho muito bem a preocupação de saber as origens, para se saber como vamos para o futuro.

Sei o que é ter um avô, que se admira, sem se ter conhecido.
O meu avô materno esteve em Moçambique nos finais do Século XIX.
Mais tarde, veio a bater com os costados em França, onde apenas esteve entre Janeiro e Junho de 1917, tendo sido evacuado para Portugal, com incapacidade permanente e total para o serviço militar. Foi reformado muito novo, tinha a minha mãe mais ou menos oito anos, como gaseado de guerra.

Um irmão do meu pai, tio paterno portanto, tambem esteve em França, integrado no mesmo Regimento. Mais tarde, em 1962, fundaria em corpo de voluntários em São Salvador do Congo, sendo o seu primeiro Comandante, quando tinha 62 anos, exactamente a minha idade.

Eu estive na Guine entre 1968/1970, como Furriel de Transmissões.
Estes foram os combatentes da Familia.
No entanto há mais duas gerações: o meu bisavô materno e o meu filho mais novo (são três - 36 / 37 / 29 anos e um neto com quase treze anos)

Enfim, vamos ao que interessa:

No Arquivo Histórico Militar (2.ª a 6.ª feira) das 11,30 às 17,00 horas é possivel consultar a documentação e, a pedido, tiram fotocópias cujo preço, por ser documentação tão importante, é quase de borla. É nessa documentação que devem constar o nome e outros elementos de todos os militares que fizeram parte do batalhão, além de outras informações relacionadas não só com o desenvolver da campanha, mas tambem no aspecto disciplinar.

Neste início de dia estou a dar conta da correspondencia que tenho neste mail (profissional) para depois me dedicar ao trabalho, pois logo à tarde (19 horas) vou estar numa conferência de um antigo combatente, Cristovão de Aguiar, que escreveu um livro sobre a sua Unidade, na Biblioteca Museu Republica e Resistência, em Benfica/Lisboa.

É tudo. Um forte abraço e continução de uma boa pesquisa, que vai compensar.
José Martins

5. Hoje, dia 3 de Novembro de 2008, recebemos esta mensagem do Diogo, relatando todos os pormenores dos resultados das diligências efectuadas até agora.

Caros Amigos (espero não me ter esquecido de ninguém),

O sentimento de gratidão é imenso perante tanta vontade em ajudar e espiríto de companheirismo. Ver a divulgação nos blogues foi o pico! Tenho recebido fotografias, mapas, informações e tudo em pouco mais de 1 semana!

A persistência compensa e os meus amigos apontaram TODOS na direcção certa, nomeadamente os senhores José Martins (1) e António José Costa (2)(perdoem-me não pôr as patentes militares) através da informação da Companhia, mapas e fotografias, dado que, após intensa procura, apareceu ontem a Caderneta Militar (que anexo).

Efectivamente, o meu pai, António Andrade Juniór, esteve na Guiné entre 08 Abril de 1967 (data de embarque) e 03-03-1969 (data de embarque em Bissau). Serviu na CART 1692 e no BART 1914 (Sem Temor!!) - RAL 1. O seu N.º Mecanográfico foi 01758066 Classe 1966/3.ºt.

Nas fotos vi referências a um Nunes, Engenharia e a um Espadinha e o senhor António José Costa, também já me identificou alguns dos locais das fotos e, confirma-se assim que serviu com o meu pai.

Dado este importante primeiro passo, tomo a liberdade de pedir que me continuem a fazer chegar informação, nomeadamente fotos, filmes, história e episódios da BART 1914 e tudo quanto relaccione o meu pai, nomeadamente dos camaradas que com ele privaram. Em busca das memórias perdidas... dado que, uma árvore de grande porte, sem raízer firmes, torna-se frágil.

Sei também que, para mim são memórias não contadas e que pretendo recuperar e que, para os meus amigos, poderão ser aquelas que pretendem manter no baú. Pelo facto peço desculpa.

Por fim, caso este BART ou Companhia, organizem confraternizações, gostaria eventualmente de poder participar em representação do meu pai. Gostaria de conhecer os seus camaradas. Seria uma honra, por representação, pertencer a esta família.

Anexo a caderneta do meu pai, penso que ajude (3).

Nutro por todos vós, caros amigos, um sentimento de grande respeito, admiração e amizade.

Grato por tudo quanto já me fizeram chegar e que ajuda a conhecer o pai que tão cedo perdi e uma parte muito importante da sua vida.

Um grande bem haja. Tudo quanto precisarem da minha parte pessoal ou profissionalmente, fico ao vosso dispor.

Atentamente
gonçalo andrade
________________

Notas de CV

(1) - Trata-se do nosso camarada José Martins, ex-Fur Mil Trms Inf da CCAÇ 5

(2) - Trata-se do nosso Tertuliano Cor António José Pereira da Costa

(3) - Infelizmente não foi possível publicar a Caderneta Militar por ter chegado em formato PDF

(*) Vd. poste de 26 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3360: Em busca de... (47): Referências a meu pai, António Andrade Júnior, Cameconde, 1967/69 (Gonçalo Andrade)

(**) Vd. poste de 28 de Outubro de 2008, Guiné 63/74 - P3367: Em busca de... (48): Resultado das pesquisas efectuadas em busca de referências de António Andrade Júnior, CART 1692 (1967/69)

Guiné 63/74 - P3395: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (9): Tempo de Gandembel...(Alberto Branquinho)



Alberto Branquinho

ex-alf mil
CArt 1689
1967/69

Outra forma de falar

GANDEMBEL

Sangue
fome
suor
sede sede
urina
sono sono
cansaço
fezes
medo medo medo
medo e pó.

Gandembel
um homem dissolve-se no tempo que não passa
na merda
na esperança no pó no fumo
e ficam só cabeças em suspensão
a sede mata sorrisos
pedaços de corpos fecundam a terra
ávida de sangue de sangue e água
prenhe de chumbo e cinza.

Gandembel
o tempo não passa não anda
o tempo espera pelo tempo
espera espera espera
amanhã amanhã depois de amanhã
coração-detonador
estilhaçado de saudade
de raiva e de tempo parado.

Gandembel
tempo de sangue
tempo de morte
tempo de espera
tempo de sono
tempo de sede e fome
tempo sem amanhã
tempo de raiva
tempo de medo e de pó.
________________________

in “SobreVivências” (Espólio de guerra) -2004
__________

Notas: artigo da série em

28 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3368: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (8): Navegações...

domingo, 2 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3394: Blogoterapia (68): Amnésia, vergonha, denegação ou ocultação dos próprios nossos mortos (Luís Graça)


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Capela de Nossa Senhora do Socorro (1877) e Cemitério da freguesia (c. 1890) > 1 de Novembro de 2008 > O recinto de festas da N. Sra. do Socorro, na freguesia de Paredes de Viadores, enche-se de viaturas e pessoas que, aproveitando o feriado de Todos os Santos, vêm celebrar o Dia dos Fiéis Defuntos, ou Dia de Finados, ou simplesmente Dia dos Mortos, que no calendário religioso é a 2 de Novembro. Hoje há missa às 2 horas da tarde. Depois o padre segue para o cemitério para uma breve cerimónia religiosa, aspergindo com água benta as sepulturas. É um acto de comunhão entre vivos e mortos. Antigamente, creio que antes do Vaticano II, havia três missas, seguidas... Mas mesmo hoje a capela, que data de 1877, torna-se pequena para a multidão que aqui se junta. A fé já não é (nem pode ser) a mesma, mas o ritual mantém-se. Como há séculos.


O cemitério local enche-se de flores -hoje ostensivamente - e durante toda a tarde as famílias da freguesia visitam as campas dos seus mortos e convivem, ruidosamente umas com os outros. A festa dos mortos é também a celebração da vida, da convivialidade e do reforço dos laços dos vivos, que são vizinhos uns dos outros, e que também estão na lista dos candidatos ao além, só que não sabem em que lugar... Só o barqueiro de Caronte (*) é que tem a lista dos passageiros. É também quiçá a recusa da morte, da partida definitiva, do fim da peregrinação terrena, a reivindicação da imortalidade, a manifestação da culpa por se estar vivo em lugar daqueles de nós, que nos eram muito queridos, e que morreram (ou partiram) antes de nós...

Quem vive mais longe (Porto, Lisboa...), vem de propósito neste dia enfeitar as campas dos seus entes queridos, aqui enterrados... Terra de antigos rendeiros, pobres, que fazem hoje questão de mostrar, aos ricos e aos fidalgos de antigamente, que a democracia e a liberdade trouxeram também a igualdade de oportunidades e a mobilidade social... No meio do pequeno cemitério da freguesia de Paredes de Viadores, há ostensivamente uma capela, a da família da Casa da Igreja, que foram desde os tempos do liberalismo, os verdadeiros donos e os senhores desta terra e dos seus habitantes... No cimo da porta da capela, em estilo revivalista, neogótico, pode ler-se a frase niilista, latina, Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris (Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás-de tornar)... Mesmo na morte, os homens tentam, patética e inutilmente, reproduzir a segregação sócio-espacial que mantinham em vida... É por isso que eu gosto da designação dada a alguns cemitérios (públicos) no sul: Campo da igualdade... Metaforicamente falando, a gadanha da morte ceifa tudo e todos, ceifa rente a vida, e não poupa tanto a espiga de trigo como a erva do campo, o rico e o pobre, o herói e o cobarde, o novo e o velho, o são e o doente, o herói e o cobarde, o amigo e o inimigo...




Marco de Canaveses > Freguesia de Paços de Gaiolo (outrora pertencente ao concelho de Bem Viver, extinto em meados do Séc. XIX) > Cemitério local > As duas únicas campas de terra batida, num cemitério de mármores e granitos reluzentes... São de dois já esquecidos combatentes da guerra do Ultramar: Joaquim M. P. de Araújo, morto em Angola, em 21/6/63 (ao que parece, de acidente), e Francisco Gonçalves Soares, "morto em combate em Moçambique", em 27/6/68... Há mais de quatro décadas: já é muito para a memória dos povos...

Passei por lá, e havia gente à volta das campas, de todas as campas, menos destas duas... Tirei fotografias aos grandes, vistosos e dispendiosos arranjos florais, sobre as pedras de mármore que devem ter custado os olhos da cara aos herdeiros... Fotografei grupos de familiares e amigos em amena (e aqui e acolá alegre, viva, saudável) cavaqueira. Percebi que a homenagem aos nossos mortos é também ( e sobretudo ?) para os vivos se mostrarem uns aos outros... Que estão vivos, e de boa saúde, e que estão prósperos, bem de vida... Mas que também têm sentimentos e que têm decência e recato e memória e saudades... E que sabem chorar, sinceramente, os seus mortos.

No sul, também há o culto antiquíssimo, pagão, dos mortos... Mas aqui, no norte, o cristianismo (e a Igreja Católica Apostólica Romana) soube enquadrá-lo melhor...

Por todo o país, no Portugal profundo, os mortos são lembrados no seu dia. All souls' day, diz-se em inglês. O dia das alminhas (que ternura de termo!), como diz o nosso povo. Leio na Enciclopédia Católica (cuja origem remonta a 1917) que "the theological basis for the feast is the doctrine that the souls which, on departing from the body, are not perfectly cleansed from venial sins, or have not fully atoned for past transgressions, are debarred from the Beatific Vision, and that the faithful on earth can help them by prayers, almsdeeds and especially by the sacrifice of the Mass. (See PURGATORY.)"...

Traduzindo para a língua do Gil Vicente, Camões, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Ruy Belo ou Herberto Helder: A fundamentação teológica desta festa é a doutrina segundo a qual as almas que, ao partirem do corpo, não estejam perfeitamente limpas dos pecados veniais, ou não tenham totalmente expiado as suas transgressões passadas, ficam privadas da Visão Celeste. No entanto, os fiéis sobre a terra pode ajudá-los por intermédio de orações, esmolas e sobretudo do santo sacrifício da Missa. (Ver Purgatório.)

Marco de Canaveses > Freguesia de Paços de Gaiolo, junto ao Rio Douro > Cemitério local > 1 de Novembro de 2008 > Um dia do ano, lembramos também os nossos mortos, os que partiram antes de nós no barco de Caronte... E alguns, como os antigos combatentes da guerra do ultramar/guerra colonial, partiram nos seus verdes anos, muito antes da sua vez... Em Paços de Gaiolo, encontrei duas campas, lado a lado, de terra batida... Dois modestos jarros com malmequeres davam a entender que ainda têm entes queridos, lá na terra, que se lembram deles... Ou amigos ou vizinhos... A modéstia dos malmequeres constrastava com os caríssimos arranjos florais que, mesmo em época de crise, os vivos fazem questão de trazer da cidade para homenagear os seus mortos na aldeia... Como este que aqui se reproduz...


Não sei qual é o entendimento da Igreja Católica em relação aos seus membros que morrem em combate... Pode ser-se herói da Pátria e mesmo assim não se estar na lista dos eleitos... Pode ter-se morrido pela Pátria e mesmo assim esse sacrifício ter sido perfeitamente inútil... Ou no mínimo, branqueado, ignorado, esquecido, ocultado ou até mesmo denegado. Pode-se ter morrido pela Pátria, Mátria ou Fátria, em Angola, Guiné ou Moçambique, e mesmo assim ser-se completamemente esquecido (o pior dos abandonos) nos nossos cemitérios, no dia das alminhas...
Para onde vão as almas dos combatentes ? Quase sempre, muitas vezes, em toda a parte, para o limbo, para o purgatório do esquecimento. Como em Paços de Gaiolo, ou em tantas outras freguesias do nosso querido Portugal profundo...

De facto, a guerra do ultramar nunca existiu. Os mortos do Ultramar nunca existiram. Há uma amnésia geral em relação aos nossos mortos do Ultramar, uma espécie de denegação, de branqueamento, de alívio... Por que o fim daquela guerra foi literalmente o fim de um pesadelo... Para os jovens da minha geração. E é bom que os jovens de hoje saibam isso: havia o serviço militar obrigatório e era altíssima a probabilidade de se ser mobilizado para uma das três frentes de guerra que Portugal mantinha em África... Hoje há pudor em falar desta guerra, pudor, vergonha, culpa... Da guerra e dos seus mortos, dos trasladados e dos insepultos, dos seus desaparecidos, dos seus estropiados, dos seus mortos-vivos, dos que vagueiam, ainda hoje, como fantasmas pelas margens do Rios Geba, Corubal, Mansoa, Cacheu, Buba, Cumbijã, Cacine, na Guiné, ou nos rios de Angola e de Moçambique...

Se calhar a amnésia é recíproca: de nós, felizardos que estamos vivos, em relação a eles que tiveram o azar de morrer (quase sempre de morte matada); e se calhar deles em relação em nós, já que não mais nos visitam, nem nos assombram, nem nos incomodam, nem nos questionam...

No dia dos Fiéis Defuntos, os que morreram de morte matada no campo de batalha, na África remota, distante, não têm uma menção especial, uma atenção especial, um ramo de flores especial... Será que deveriam tê-lo ? (**)

Fotos e legendas: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

__________

Notas de L.G.:

(*) Na mitologia grega, Caronte ou Kharon (do grego, Χάρων - o brilho, o fulgor) era o barqueiro do inferno (onde reinava Hades) que cambava as almas dos recém-falecidos para a outra margem do rio que dividia o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Era costume, entre os gregos da Antiguidade Clássica, deixar na boca do morto uma moeda - geralmente um óbulo - para pagar a Caronte o bilhete da viagem (que era sem regresso).

Aqueles que não podiam, por qualquer motivo, pagar a tarifa, ou cujos corpos ficavam insepultos (no campo de batalha ou em caso de catástrofes naturais, por exemplo), vagueavam pelas margens do rio durante um período de cem anos. Só muito poucos - heróis como Eneias, músicos e poetas como Orfeu... - tiveram o privilégio de viajar no barco de Caronte, com bilhete de ida e volta...

(**) Vd. o magnífico texto escrito, sobre este tópico, pelo nosso Esquilo Sorridente, nome de guerra do Zé Teixeira entre os escuteiros> 2 de Novembro de 2008> Guiné 63/74 - P3391: In Memoriam (10): Recordemos os camaradas que se foram desta vida (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P3393: Tabanca de Matosinhos (5): Reunião em Felgares, Torre de Moncorvo (Paulo Santiago)

1. Mensagem do dia 13 de Outubro de 2008, nosso camarada Paulo Santiago, ex-Alf Mil do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72, a quem pedimos desculpa pela demora na publicação deste contacto:

Camaradas

No último Sábado (11OUT08), reuniram-se em Felgares-Moncorvo (*), a convite do camarada Moita, vários amigos da Guiné. Da Tabanca Grande estavam presentes, peço desculpa se esquecer alguém, Pimentel, Xico Allen, José Manuel (Josema), David Guimarães, João Rocha, Paulo Santiago, António Silva, Francisco Silva, Barbosa. Da Associação Humanitária Memórias e Gentes estavam o Zé Moreira, o Gustavo e o Nando. Havia também algumas senhoras a acompanharem os respectivos maridos.

O Moita tratou-nos muito bem. Os peixes do Sabor em molho de escabeche, uma maravilha, os enchidos, excelentes, a vitela mirandeza, divinal. Quanto a vinhos... um perigo. Veio para a mesa um Cistus Reserva 2004, óptimo aroma, paladar a não esquecer, um copo a chamar outro, e após dois bebidos, olho o rótulo com mais atenção e leio 15% vol...

Terminou-se ao café com aquela mistura diabólica de bagaço com mel, preparada pelos amigos de Coimbra, e já experimentada durante a viagem de Coimbra à Guiné em Fevereiro passado.

Falou-se na nova expedição humanitária à Guiné que está marcada para sair de Coimbra em 12 de Fevereiro de 2009. Vai haver repetentes dentre os camaradas da Tabanca, para já o António Silva e o Francisco Silva que irá meter mais três semanas de férias no Hospital Amadora-Sintra.

Além dos bens a serem transportados em contentor, pensa-se noutros projectos que se possam prolongar no tempo, ou seja, não levar só o peixe, levar anzóis e linhas e ensinar a pescar. O Josema está entusiasmado para ir na expedição, juntamente com o Carvalho, recentemente apresentado no blogue.

Uma última nota. O Álvaro Basto não foi, está para os Alpes a ensaiar o jipe, foi representado pelo pai que foi sozinho do Porto para Moncorvo... apesar dos 85 (oitenta e cinco) anos. É um participante activo na mini-Tertúlia de Matosinhos.

Abraço
P.Santiago


Foto 1 > O Moita conversando com o Armindo, dois participantes do Simpósio de Guiledje

Foto 2 > O António Silva, de pé, na conversa com o Pimentel, mais atrás o João Rocha. Mais três participantes na Expedição e no Simpósio

Foto 3 > O Xico Allen entre o Nando, o Gustavo e o Zé Moreira, falando, provavelmente, de peripécias da travessia do deserto.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3278: Tabanca de Matosinhos (3): Convite do Fernando Moita para uma incursão a Felgar, concelho de Torre de Moncorvo (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P3392: Blogoterapia (67): Homenagem aos que choram (António Matos)

Mensagem do nosso camarada António Matos (*), ex-Alf Mil da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, com data de 2 de Novembro de 2008:

Homenagem aos que choram

Cá volto eu outra vez nestes primeiros contactos de Tabanca, recordando outras tabancas lá por terras de poucas saudades, onde deixei muita da pureza da minha meninice, alguns dos amigos que fiz desde os Arrifes em Ponta Delgada e que tinha jurado trazê-los de volta ao colo das suas Mães, aos abraços enternecedores dos Pais, aos beijos das namoradas ...

Tal não se concretizou e hoje, ao ver os rostos daqueles que eram meninos, confrange-me o sofrimento incalculável de quem tenha recebido um telegrama a anunciar uma morte por actos de bravura em defesa da Pátria!!!!
Caramba, muitos dos nossos camaradas morreram tão simplesmente por serem os homens errados, no sítio errado à hora errada!
Muitos de nós não tinham tido sequer tempo de interiorizarem o quanto essa Pátria (que hoje os esquece em favor de outros que seguem para missões de meia dúzia de meses e a troco de belas fortunas), lhes pediu, de borla, para que fossem heróis na medida das suas forças!

Caramba, eu vi miúdos a chorar na caserna com saudades dos seus familiares !
Caramba, eu vi miúdos a baterem-se com uma heroicidade contagiante pela defesa do camarada em apuros que lhe estava ao lado!
Caramba, eu vi miúdos a fazerem frente a um contingente de guerrilheiros liderados pelo Nino Vieira!
Caramba, eu vi miúdos a caírem nas minas e a ficarem decepados!
Caramba, meus caros, eu vejo, todos vemos, o abandono a que esta Pátria nos relegou!

Não, não faço parte de qualquer associação de apoio aos ex-combatentes; nunca me disponibilizei a engordar as filas de manifestantes que se propõem zelar pelos interesses de todos nós; nunca expus publicamente o meu desencanto com os sucessivos (des)governantes que têm passado pelos corredores dos Passos Perdidos numa atitude de vil desrespeito por esta geração que é a minha; mas agora, do alto da palhota da minha Tabanca, tento compreender o meu tempo e as novas gerações onde já pontuam os meus filhos, os meus netos, e os filhos e os netos dos meus camaradas de armas.

Os tempos deram uma grande cambalhota e os valores alteraram a sua ordem hierárquica.
Hoje pertencemos a uma geração que sendo sobrevivente a uma guerra, assiste à transformação do paradigma da vida.
Hoje há filhos a morrer antes dos pais pelas mais diversas razões: droga, uso indevido de armas, acidentes viários, gangesterismo, AVC's, stress, incertezas profissionais, etc., etc., etc.
Duvido que esta juventude tenha alguma simpatia pelo conhecimento desta aventura africana na qual os seus pais se envolveram.
Têm tanto com que se preocupar...

Enfim, em dia de todos os mortos, rendo-me à memória de todos aqueles que partiram dirigindo às respectivas famílias o meu sentido silêncio já que as palavras teimam em não sair pelo nó que se forma na garganta.

Voltarei mais tarde para me dedicar também às ocasiões que nos faziam rir. E foram muitas...

Abraços,
António Matos
__________

Nota de CV

(*) Vd. poste de 1 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3390 Tabanca Grande (95): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2790, Bula (1970/72)

Vd. último poste da série de 28 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3364: Blogoterapia (66): Amargos de boca (J. Mexia Alves)

Guiné 63/74 - P3391: In Memoriam (10): Recordemos os camaradas que se foram desta vida (José Teixeira)




Recordemos os camaradas que se foram desta vida, no tempo em que era tempo para viver.
Por José Teixeira




Roubaram-nos o tempo que era tempo para cantar a vida. Forçaram-nos a viver o tempo que foi tempo do troar das armas para matar a vida. Quantos por amor à sua e à dos camaradas mataram ! Quantos a perderam num sofrimento atroz, seus gritos ainda ecoam nas nossas memórias. Quantos, hoje, têm vida que não é vida. Essa, deixaram-na lá longe algures no Óio, no Cantanhez, no Morés, em Gandembel, Guiledge, Guidage, Gadamael, Buba, Fulacunda e em tantas outras terras da Guiné, então dita portuguesa.

Apontam-nos falsos números. Perto de dez mil nas três frentes. E os outros ? Os do outro lado da contenda ? Os homens e mulheres válidos, cheios de vida, as crianças e os velhos, que conhecemos nas tabancas por onde passamos, ou se encontravam na hora errada nas tabancas controladas pelo inimigo, o alvo preferido dos nossos mandantes?

Quantos ? Ninguém ousou fazer as contas, na esperança de que o tempo perca a memória.

Não haveria tantos guerrilheiros, tanto ou mais inocentes que a maioria de nós?

Que apenas queriam viver e foram arrastados para a luta ?

Os nossos mandantes subornavam os africanos com dinheiro e arroz (Caçadores nativos, milícias, militares e comandos). Creio que não era por acaso que alguns comandantes africanos cortavam as orelhas aos mortos que faziam ao inimigo. Não havia um comandante de companhia que dava 500$oo ao guia na hora da partida e lhe prometia outros tanto se os levasse junto do inimigo? Quantas cruzes de guerra ele trouxe? E quantos mortos?

Hoje choram-se esse mortos, alguns dos guineenses, como a Cadi Candé que ao saber que eu conheci o seu pai, Aliu Candé, de imediato deixou que uma lágrima deslizasse suavemente pela sua face e hoje, telefona-me e escreve-me para saber se estou bem e partir mantenhas, chamando-me quirido tio .

O amigo Hamadú, sargento da milícia de Mampatá, que para grande desgosto meu já não fui a tempo de o abraçar, pois morreu dois meses antes de eu voltar à Guiné, contou-me numa das muitas noites de luar e de conversa amena, que os bandido (nome dado a todos quantos se refugiaram no mato para combater as forças de ocupação), nos primeiros tempo da guerra, cercava as tabancas fieis a Portugal e entravam à caça de gente para as suas forças. A frase que mais se ouvia era: Agarra! Agarra! Homens mulheres, crianças e jovens eram aprisionados e levados à força para serem re-educados na arte da guerra. Em Mampatá eu mesmo testemunhei uma cena dessas, já em 1968, quando um grupo inimigo se aproximou da tabanca e agarrou cinco pessoas que estavam nas redondezas na labuta diária do ganha pão, da agricultura. Valeu-lhes a reacção rápida de alguns dos poucos militares que lá estavam. Um pequeno grupo avançou na sua perseguição e conseguiu recuperar os cidadãos, para grande alegria de toda a tabanca, que não mais esqueceu este acto.

Em Março de 2008, durante o Simpósio fui abordado por uma antiga guerrilheira, por sinal ainda muito bonita, para me felicitar e agradecer a planta/flor que coloquei em Gandembel e as lindas palavra que proferi em sentida homenagem a todos quantos lá deixaram a vida. Soube então, que nesse tempo, ela, apenas com quinze anos era uma das telegrafistas de serviço na área do Cantanhez e já acompanhava os guerrilheiros que me combateram e a tantos de nós, desde Quebo/ Buba até Catió.

Quem não conheceu no Simpósio a enfermeira Domingas, hoje colega de trabalho do meu grande amigo Quintino Pourcel (grande no aspecto físico e no coração) em Canjadude, à data meu companheiro de enfermagem em Empada ! Foi ela com dezoito anos apenas, a enfermeira que esteve no inferno de Guiledje a prestar os socorros aos guerrilheiros feridos. Tantos e tantos jovens arrastados para o cenário de guerra fraticida, que com certeza, tanto como nós, prefeririam viver a vida a que tinham direito e a perderam, num tempo que não era ainda o seu tempo de partir.

No teatro de guerra, o tempo deixou de ser o nosso tempo. Perdeu a alma, o sentido do caminho a seguir. Não havia futuro, a não ser salvar a pele. O sonho da vida a construir, esfumou-se na roda da morte que nos cercava. Tinha os limites do arame farpado que nos envolvia.

Estávamos de algum modo impedidos de sermos nós próprios, mas a máquina de morte que nos injectaram – ou matas ou morres!

Reflectíamos um perfil de homens crispados de angústia, tentando afastar o medo. Inconformados, animados de duas ideias básicas para a sobrevivência: que o tempo passasse depressa, se possível a voar, como gritava o camarada Franklim, o telegrafista da Companhia - apetece-me voar ! Ou, a de regressar e se possível sem maleitas.

Massacrada a personalidade individual, transformamo-nos numa personalidade colectiva: Andávamos em grupo, comíamos e bebíamos em grupo, pensávamos em grupo, não, pensavam por nós; éramos os macaquinhos da G3; agíamos em grupo. Ora disparávamos, ora corríamos, ora ficávamos horas e horas, colados ao chão, olhos postos na mesma direcção, ora ficávamos quietos e absortos no espaço, de olhos e ouvidos despertos, mais que despertos. Até a dormir, os ouvidos ficavam acordados. O troar das granadas ao sair da boca dos canhões que o inimigo nos enviava pela calada da noite eram o suficiente para nos despertar e quando elas se desfaziam em mil bocados assassinos, nas paredes da caserna, encontravam o vazio quente dos leitos que momentos antes acolhiam os nossos corpos, agora protegidos na vala aberta ali á porta, enquanto os camaradas se batiam, lá na frente, junto ao arame farpado, por todos nós. Testemunhei isso mesmo, várias vezes. Recordo Buba, na noite em que pelas quatro horas da matina, fomos acordado pelo som de 11 canhões sem recuo e três morteiros, com inimigos de costureirinha quase junto ao arame farpado. Uma granada, das primeiras a ser enviada para nos dar os bons dias rebentou na parede da caserna semeando os seus estilhaços mortíferos pelos colchões ainda quente, mas sem vida, felizmente.

Então apareciam os fantasmas sem medo, os anti-heróis. O enfermeiro corria em direcção à enfermaria; o artilheiro voava para junto das suas peças de artilharia e punha-as a vomitar a morte; O homem do morteiro aparecia como que por encanto, junto do seu menino.

O diálogo das armas tornava-se então ensurdecedor, era como que o Apocalipse prometido. Se os da frente pediam munições, logo surgiam voluntários, cuja forte vontade de viver, os impelia para a acção debaixo do alto risco de encontrarem a morte.

No fim, como no lavar dos cestos na vindima, apareciam os comandantes, a fazer a conferência das eventuais vítimas. Passavam pela enfermaria, seguiam para as casernas, procuravam nos esconsos. . .

Assim vivemos o tempo, que não era o nosso tempo. Tempo em que muitos se perderam e por lá deixaram a vida.

Recordemos, neste dia que lhes é dedicado, com a saudade que ainda nos trespassa o coração, os que tombaram a nosso lado, os filhos da nossa Pátria. Talvez não saibamos ou já não nos lembremos dos seus nomes, mas aqueles gritos de dor sem esperança, aqueles olhares de angústia e desespero. . . Continuam bem vivos na nossa mente. O pó do tempo jamais os esquecerá.

Lembremos todos os que pereceram naquela guerra ingrata, independente da cor, raça, religião ou noção de pátria. Brancos e africanos, éramos irmãos e fizeram de nós inimigos.

Que bela lição de irmandade nos têm dado, a todos quantos ousaram lá voltar, agora voluntariamente, para reviver acontecimentos e reencontrar amizades que construímos e lá deixamos , sem um adeus até ao meu regresso.

Zé Teixeira

(José Teixeira foi 1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70)
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Pequeno apontamento de CV

Obrigado Zé Teixeira por esta homenagem que quiseste fazer aos nossos camaradas falecidos na Guerra Colonial, neste dia de Finados em que lembramos aqueles que de algum modo marcaram a nossa vida, sejam familiares ou amigos.
Já não me consegues surpreender, pois sou um admirador do que escreves, mas a cada intervenção tua mais convicto fico que tens uma sensibilidade fora do comum.
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 1 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3389: In Memoriam (9): Trasladação de José M. Fernandes Carvalho: as diligências de José Martins