quinta-feira, 16 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4696: Vindimas e Vindimados (José Brás) (7): Nhala I

1. Mensagem de José Brás (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, com data de 14 de Julho de 2009:

Companheiro Carlos

Aqui vai mais uma estória a incluir na série “Vindimas e Vindimados

A esta irá seguir-se “Nhala II” e vem do centro de um pequeno tsunami, parte ocasionado pelo que conheces e já esquecemos, e parte gerado neste processo de chamar de novo imagens e emoções difíceis de esquecer mas também difíceis de recordar por dentro.

Um abraço
José Brás


Nhala I

Que porra é esta pessoal
Éh caraças olhem o tamanho dos clarões
É aqui pertinho, pá
A norte da estrada de Buba
É em Nhala, é em Nhala
Não há problema, já estão acostumados.
Gaita, pá, mas aquilo é de mais, rebentam com tudo
Cala a boca piriquito, não estás é habituado
Deixa que já te habituas
Se não lerpares primeiro


Gente jovem, um magote de macho, furriéis, sargentos e praças saíam à pressa do bar comum, e outros de suas casernas, olhavam agitados o topo das árvores que no limite do desmatado, para além da soleira sul da pista, fechavam o espaço físico de Aldeia Formosa e deixavam adivinhar um mundo de medos e fantasmas. Ouviam aquele som novo, telúrico e cavo, que mais lhes parecia sair da terra do que das mãos de homens, negros que fossem e do inimigo.

Quinze dias era o que tínhamos desta trampa, e trampa era, aqui para nós, qualquer coisa que não fosse a asa protectora da mãe; trampa, ainda que fosse Aldeia Formosa, um paraíso como havemos de constatar mais tarde quando elas começarem a morder.

Estes quinze dias haviam passado nas calmas, rancho melhor que no puto, cerveja fresca, sorna, serviços como na tropa de Lisboa, guarda, faxina, na fonte a partir mantenha com as bajudas da aldeia, boas como o milho, de mama rija, e atrevidas, sempre nos risinhos umas com as outras, afastando a mão branca que lhes procurava as carnes, dengosas no modo, ”iiiih pissoal branco, ca põe mão, em mim”, atiçando fogos, levantando pragas contra a mania do Capitão “já sabem, tenham cuidado com bajudas, estão prometidas e os pais contam com as vacas da troca. Nem em sonhos, malta. Não quero problemas sociais aqui”.

Sociais!? Que raio de porra seria essa, problemas sociais?

Problema social era a calada da noite no sanitário, cada um a contas consigo próprio, em auto-gestão à conta das bajudas.

A Buba, apenas uma ida, em coluna, amparados pelos velhinhos das Fox, caminho a butes por causa das minas, trinta quilómetros, mais ou menos, que na altura pareceram cinquenta e agora me parecem dez, carregar tralha do cais para o dorso de unimog's e GMC’s, voltar pelo mesmo caminho, um calor danado, lama de enterrar carros até à pança, descarregar tudo, empurrar, empurrar até a alma sair pela boca, voltar a carregar, quinhentos metros mais à frente tudo ao princípio.

Ainda era noite quando saímos. Picar estrada a passo de caracol, o Sol a sair da copa das árvores, já vermelhão, pintando de vermelho a terra da estrada, espalhando um bafo de humidade quente, o cheiro intenso de África que se irá colar a cada um até ao fim dos seus dias, sendo que uns irão ter dias curtos, ainda que o não saibam, e outros os alongarão por anos e anos, noutras guerras e diferentes, noutras paragens, remoendo passados, trazendo à memória tais cenas como se houvessem corrido em fita de cinema, cada um, personagem, actor, espectador, do seu próprio filme, envolto e encadeado numa certa realidade irreal, crescentemente irreal.

E sede. Sede como ninguém tinha tido na vida. A falta absoluta de líquido no corpo. Sede bruta que nem aceitava os avisos dos mais precavidos e capazes de a suportar, para beberem pouco de cada vez, um gole, molhar a boca, apenas, poupar na água porque a que se encontrava por ali nos charcos, melhor era nem lhe tocarem.

Gente houve que a meio do caminho já havia bebido a sua e a de outros, olhando os cantis alheios com olhos de carneiro mal morto.

Mas pronto, nem trolha tivemos em encontros maldosos, como nos haviam prometido os das Fox antes da saída nas conversas de bar da noite anterior, meio a acagaçar novato, meio a sério.

Sarrafusqueta foi, quinze dias antes, no dia da chegada. Pequena, espécie de boas-vindas, parece que habitual na recepção a branquelas acabadinhos de chegar. Uns nomes feios a mães e esposas gritados em bom português, umas rajadas, a malta a olhar-se uns aos outros, ainda incrédulos, demorados no reagir, com medo até de disparar, mas enfim, dando troco, diriam os das Fox que no risco de se aleijarem a si próprios.

Chegar ao quartel, nesse dia, chuveirada, roupa limpa, primeiro copo pago, imposto à velhice, soldados a saírem para a Aldeia em busca de fêmeas, segundo se consta, que também já esperavam por carne tenra e branca e pelos pesos que sempre haviam de dar jeito para alimentar família e comprar ronco no comerciante Fuad.

Seis dias antes estavam ainda em Lisboa, no Cais do Sodré, no Martim Moniz, no Bolero e nas baiucas todas onde se podia comprar sexo disfarçado de cerveja cara ou de whisky falso pago a preço do bom. Um dia não são dias e ninguém sabia já dos seus, para falar a verdade.

Espantava-me, eu, com a corrida daqueles gajos, desembestados, desacordados de sonos velhos, arrastados pelos que já conheciam a praça. Não me cabia na cabeça tal coisa, é certo, mas sempre nesta mania de tudo tentar entender e perdoar a humano jovem mas já muito lixado pela vida, eu remetia as culpas para um País de costumes estritos, de pecados e infernos, onde, ainda por cima, haviam fechado as casas de putas antigas onde o coito custava barato e estava garantido por inspecção médica e fiscalizações.

Naquela noite de estoiros e clarões, quinze dias após a chegada, foi a primeira vez que o pessoal da 1622 se pôs a si próprio a questão mais ou menos assim: “debaixo daquele fogo? Quem é que aguenta? deve estar o quartel meio destruído. Ainda bem que não me calha a mim”.

Também mais tarde havemos de descobrir que não é bem assim.

O Capitão pira nem precisou de mandar reunir Alferes porque Alferes não faltavam ali no ripanço da messe deles, ouvindo Bach no gira discos trazido do Funchal, acomodado a preceito, pronto, também, para cumprir seu serviço militar nos trópicos, e voltar ao puto, sem traumas, sem febres palúdicas, nem restos de blenorragias.

Dois pelotões! Rápido, porra! Bruno e PG. Imediatamente a dar uma mão àquela gente, montados até Mampatá e à pata depois.

Fox’s à frente, rádio, dois morteiros e duas bazoocas, Mg com o Banharia.

Contacto rádio daqui com Nhala, PRC10, da coluna com o quartel em escuta permanente.

Ala Milhano, ainda que leve mais tempo a executar isto tudo do que a dizê-lo.

Saiu a tropa e mal o havia feito, quinhentos metros, talvez, do quartel de Aldeia, ordem para fazer alto, tudo p’ra trás, acabou a guerra por hoje, informação de Nhala que a mão estendida já não era necessária, que não havia azar, que evitássemos a viagem não fora os gajos haverem montado emboscada ou semeado minas para a eventualidade.

Nada foi aquilo, apenas uma espécie de exercício que o PAIGC nos ofereceu, mais a nós em Aldeia, espectadores do fogo de artifício, que aos de Nhala, habituados que estavam a festas desatas. Ajeitavam almas e corpos para futuros violentos e certos.

E nem falaria disto, não fosse o acaso de querer apresentar-vos Nhala no fito de contar estória mais completa que trago encalhada há muito.

Nhala foi só um posto intermédio, quando íamos a Buba e não queríamos fazer a estrada directa, mais curta, passando perto de Missirá e um pouco antes ainda, entroncamento à esquerda por onde se ia quando o destino era Colibuia ou Cumbijã.

Bolola, logo a seguir, um lugar na carta militar da tropa portuguesa, um lugar no mapa político da Guiné Bissau ainda hoje, provavelmente local de moranças de gentes antes e depois da guerra.

O que era, então, Bulola, pelo menos entre Novembro de mil novecentos e sessenta e seis e Junho de mil novecentos e sessenta e sete?

Que me lembre, nada, se nada era o que encontrávamos no caminho, além de esporádicos e curtos encontros com rajadas, estrondos e vozearia de inimigos que eram e não eram, quando calcorreávamos o caminho de Buba, unimogues e GMC’s, tudo vazio e leve à ida, ajoujados na volta com comes e bebes que abasteceriam a pobre cozinha dos soldados da Companhia durante mais um tempo.

E a messe de sargentos num espaço melhorado em asseio e qualidade de mesa, a messe de oficiais num outro lugar ainda mais recatado, porque nestas coisas de estômagos cada casta tem o seu, nas maneiras de estar à mesa, nas convenções de acesso limitado, no guardanapo de pano, de papel ou costas da mão, copo de vidro, de plástico, púcaro de lata, no gim tónico, umas tapas de queijo antes da refeição, whisky ou conhaque, depois, cadeirão de recosto no fim, tudo respeitando o mais possível hábitos trazidos da mesa da mãe, coisas que em soldados vindos do pastoreio, das hortas, das vindimas, da construção civil, do trabalho de sol-a-sol, não se esperaria, com as excepções devidas à regra geral.

Geral era o refeitório da soldadagem. Rectângulo de alvenaria coberto de folhas de zinco e recoberto por colmo, numa plataforma ligeiramente elevada em relação à inclinação do terreno, três degraus para entrar, mesas corridas, bancos corridos em chão de cimento escuro, prato escasso para a fome de cada um, vinho do barril, baptizado no puto, rebaptizado em Bissau, com um pozinho, dizia-se, para tirar a tesão que pouco jeito dava ali, tempo curto à mesa porque quem pouco sabe depressa o reza, tudo lavado de imediato, a balde e escova rija, faxinagem de escala, duas vezes ao dia o ritual, não falando da refeição da manhã, pequeno-almoço lhe chamavam uns, café da manhã, mata-bicho.

Mampatá era o cruzamento que definia o caminho a seguir. Em frente, directos a Buba, com uma volta larga a Sul, mas a qualquer um sem apoio da carta ou mapa e na falta de referências a olho, dando a ilusão de estrada quase recta.

Ou então, voltando a Norte, por Uane, outra volta larga depois, descendo até Buba, atravessado que fora Nhala, por dentro, uns quilómetros atrás.

Voltemos, então, a Nhala, agora que perdemos tanto tempo às voltinhas a Sul e a Norte, em Buba, em Missirá, em Mampatá, em Uane, em Sare Donhe, se bem que desta nem falámos por se localizar um pouco à esquerda do nosso caminhar, voltemos a Nhala se é de Nhala que quero falar agora porque, se em Nhala comecei este falar, foi porque de Nhala queria fazer centro, hub, como na anglosaxonização (!!!) do falar português, tanta gente diz hoje, hub, querendo dizer de deambulações guerreiras na zona.

Portugal Pequenino e Darsalame eram nomes de tabancas na margem esquerda do Corubal, em linha recta tão perto do Xitole que, emboscados a cerca de dois quilómetros da primeira tabanca, ouvíamos o rio a correr e os motores das viaturas da tropa.

Não mais de quinze dias era o nosso tempo de Guiné, caras ainda enjoadas da travessia no Niassa, marcas do Inverno de Abrantes e Santa Margarida na pele, muitas dúvidas ainda nas cabeças, desconfiadas de que essa coisa da guerra, tirando o troar do ataque na Nhala, era apenas exagero de caçador, nas calmas em Aldeia Formosa com direito a banhos no Saltinho.

Ordem de cima, vá-se lá saber porquê, mandava juntar tropas de Aldeia e de Colibuia para um golpe de mão a Portugal e Darsalme. Coisa fácil, como dizia o Umarú Jaló, jovem mas feito àquelas andanças e permanentemente ansioso por acção. Eram só duas aldeias isoladas de tudo, picada a cortar mata e bolanha a partir de Nhala, coisa de quinze quilómetros.

Coisa fácil seria, apesar do caminho se alongar demais para os nossos hábitos metropolitanos. Seria, se fosse como se previa, sem merdas no caminho, sem encontros malandros, só andar, G3, mantimentos para aguentar a volta de manhã, bornal e o pouco mais que um ou outro acreditava dar jeito, caminho feito de dia, abancar a dois quilómetros do objectivo. Seria, não fora a bailarina que alguém deixara como esquecida, enterrada num chão mole logo atrás de um grosso tronco de árvore decepada por ventos velhos e de haste tripla apontando ao céu.

O João, nativo que fora já elemento do IN e agora vivia no quartel de Aldeia Formosa na sua qualidade dupla de guia de tropa branca e carpinteiro nas horas livres, chegado ao obstáculo, apoiou a mão direita no dorso da árvore, passou a perna esquerda para o outro lado, com a mão esquerda agora também apoiando o movimento, fez força para passar a outra perna.

Morreu ali mesmo, ninho de pássaros de aço, que lhe buscaram o corpo.

O Furriel Bernardes que seguia logo atrás do João, ouviu o estrondo e só descobriu que comera também a sua parte, quando as pernas se dobraram feitas trapo e o deixaram cair enrolado sobre o capim meio podre da picada.

O Alferes Baptista com pê, como sempre dizia a quem calhava apresentar-se, civil ou militar, também levou do mesmo, aliás, carga maior que a do Furriel, ou se menor, mais grave porque lhe tramou bexiga e rim.

Abortar a operação era e foi a solução a tomar, durante a noite o caminho ao contrário, um morto e dois feridos graves no lombo, a confiança abalada, a certeza que o movimento fora detectado, a dúvida se de outro local da mata não sairia alguém a cobrar mais imposto de sangue.

Dia seguinte, reconhecimento ao local, dois pelotões, um de cada Companhia. Sem nada que aparentasse mexidas, um pelotão regressa e outro fica em emboscada na expectativa de romagem à árvore derrubada.

Ficou o pelotão do Ávila e, voluntário na ida, fiquei com ele a experimentar a noite do mato, os ruídos, os cheiros, o sabor do risco, a excitação do novo.

Cada soldado com seu poncho no chão, dormindo à vez, soldado sim, soldado não, naquela correnteza de corpos estiraçados, alerta uns, acordados, alerta outros, mesmo no sono, um olho no burro outro no cigano.

Molhei-me e acordei espantado, duvidoso ainda, um eu racional embaraçado perante o outro eu instinto e descomandado.

Nem houvera sonho! Apenas a memória que navegara por dentro do tempo e do gesto mais fundo guardado em zonas do ser que não me conheço.

Ou, talvez, o sistema nervoso autónomo extravasando das suas funções.

Um orgasmo pleno e perturbador, a meio da noite de um chão duro, a dois passos do objectivo que havia de ser mais tarde, Portugal Pequenino, com o som do Corubal nos ouvidos e os barulhos nocturnos da mata, a mais de quinze quilómetros de Nhala.
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Nota de CV:

(*) Vd. último poste da série de 8 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4658: Vindimas e Vindimados (José Brás) (6): Achamos nós que não nos conhecíamos

Guiné 63/74 - P4695: O Nosso Livro de Visitas (66): Manuel Seixas da CCAÇ 1422/BCAÇ 1858 (K3/Saliquinhedim, 1965/67)

1. Mensagem de Manuel Seixas, ex-combatente da Guiné, pertencente à CCAÇ 1422/BCAÇ 1858, que esteve no K3/Saliquinhedim, (1965/67), com data de 10 de Julho de 2009:

Assunto: Pedido

Meu caro dr. Luis Graça

Vou todos os dias ao seu blogue para ver se há novidades e um já encontrei um companheiro do K3 e falei logo com ele.

Agora o que lhe peço, tivemos um almoço em Almeirim com 11 companheiros. Foi uma alegria depois de 42 anos, mas eu gostava que publicasse no seu blogue este acontecimento, não sei se será possível.

O meu muito obrigado
Manuel Seixas


2. Comentário de CV.

Caro Manuel Seixas.
Quando te dirigires ao nosso e teu Blogue não precisas de tratar o Luís Graça por doutor, já que na nossa Tabanca não fazemos distinções de classes nem dos antigos postos militares. Aqui somos camaradas com um só posto: ex-combatente da Guiné.
Como verdadeiros camaradas tratamo-nos por tu, o que não implica falta de respeito.

Pena que não tenhas mandado mais pormenores acerca do vosso Encontro, tal como data de realização e uma ou outra fotografia para ilustrar o acontecimento.

Ficamos ao teu dispôr para o que precisares de nós e se for essa a tua vontade, gostaríamos de te ter como tertuliano do nosso Blogue. Basta que mandes uma foto do teu tempo de tropa e outra actual, tipo passe de preferência, em formato JPEG, contes um pouco da tua passagem pelo K3, onde fui imensas vezes já que estava em Mansabá.

No meu tempo completámos o alcatroamento da estrada Mansabá/K3, coisa que no teu tempo não havia. Deveria ser uma zona muito perigosa, já que por perto do Bironque havia carreiros muito mal frequentados pela gente do PAIGC que imperava ali por Madina Fula. Afinal tínhamos tão perto o mítico Morés.

Panorâmica do K3/Saliquinhedim

Foto: © Carlos Silva (2008). Direitos reservados
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Maio de 2009

Guiné 63/74 - P4437: O Nosso Livro de Visitas (65): L.J.F. Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250, Mampatá, 1972/74

Guiné 63/74 - P4694: Meu pai, meu velho, meu camarada (6): Ex-Cap Pára João Costa Cordeiro, CCP 123/ BCP 12 (Pedro M. P. Cordeiro / Manuel Rebocho)

Guiné > Região de Tombali > Corredor de Guileje > 26 de Março de 1973 > O Cap Pára João Cordeiro, comandante da CCP 123 / BCP 12, no meio do grupo do Marcelino da Mata. Foi ele que comandou a operação de resgate do Pilav Ten Miguel Pessoa, ejectado sob os céus de Guileje, depois do seu Fiat G-91 ter sido abatido por um Strela, na véspera... (*)

Foto: © Miguel Pessoa (2009). Direitos reservados.

1. Mensagem de Pedro Miguel Pereira Cordeiro, sob a forma de comentário ao P4216 (**):

Caros Senhores

Desde já agradeço a gentileza de todos os que fizeram questão que eu tomasse conhecimento deste poste.

Eu, a minha Mãe e a minha irmã mais velha Patrícia acompanhámos sempre o meu Pai nas 2 comissões que fez, uma em Angola (onde nascemos os dois) e a segunda na Guiné, na qual veio, tal como referido, a falecer.

Por altura do seu falecimento já faltava muito pouco tempo para terminar a sua comissão e, como a minha Mãe estava grávida da minha irmã mais nova e estava a passar muito mal, voltámos pouco tempo antes para a Metrópole.

O seu falecimento foi, e ainda hoje é, um golpe brutal para a nossa família que se fez, aumentou e encurtou sempre em teatro de guerra. Sou pois, também, um filho dessa guerra que vocês vivenciaram de forma tão intensa, cada um à sua maneira.

Frequentei o Colégio Militar onde fui colega de tantos outros filhos de ex-combatentes: Bação Lemos, Brito, Santiago, Veiga, Quintans dos Santos, Alvarenga, só para nomear alguns do meu curso Colegial. Da guerra a maior parte de nós ouvimos histórias em segunda e terceira mão, raras vezes aos nossos Pais (os que ainda os tinham), desbotadas e incertas.

Sempre pensei seguir as pisadas do meu Pai e tornar-me Pára-quedista de carreira. Quis o destino que. no último ano do Colégio, um incidente com um oficial me tivesse mostrado tudo o que a tropa pode ter de mau... resolvi não dar mais um desgosto à minha Mãe e ainda hoje não sei se fiz bem.

O certo é que hoje, homem feito (quase 40 anos), sei muito pouco de meu Pai e menos ainda do Militar que foi. Se os ex-combatentes falam pouco da Guerra, menos falam ainda aos filhos de camaradas falecidos...

Este foi o primeiro testemunho não solicitado e, como tal, imparcial a que tive acesso. Por tal estou profundamente agradecido, afinal é parte da minha história, da história do Avô das minhas filhas!

Alguns de vocês acharão estranho, mas a verdade é que passo pouco tempo sem pensar no meu Pai, a sua ausência é, para mim, muito presente, assim seja com todos os nossos filhos quando nos formos, de preferência que fiquem um pouco mais conscientes dos nossos predicados, defeitos e humanidade. Tal foi-me negado, qualquer acrescento é um tesouro inestimável!

Peço desculpa se me alonguei demais mas para mim a guerra foi anteontem e vai estar presente na minha vida até eu morrer.
Um grande abraço e muito obrigado.

Pedro Miguel Pereira Cordeiro,
filho do Cap Pára João Costa Cordeiro

2. Pronto depoimento, a meu pedido, sobre o Cap Pára João Cordeiro, cmdt da CCP 123 (Bíssalanca, BA 12, 1972/74), por parte do Manuel Rebocho, ex-sargento pára-quedista da CCP 123 (Maio de 1972/Julho de 1974), hoje Sargento-Mor Pára-quedista, na Reserva, e doutorado pela Universidade de Évora em Sociologia da Paz e dos Conflitos (tese de doutoramento: A formação das elites militares portuguesas entre 1900 e 1975) (***).


Meu caro e camarada Luis

Conheci, para o bem e para o mal, muito bem o Capitão Pára-quedista Cordeiro.

Também para o bem e para o mal, o que fui na Guiné deveu-se a ele: primeiro pelo ódio que tínhamos um pelo outro, depois pela cumplicidade a que a guerra nos obrigou, que nos tornou amigos. Fizemos as pazes, assumindo ambos que havíamos cometido um excesso em determinada altura.

Na minha tese de doutoramento dedico-lhe, também para o bem e para o mal, várias páginas.

O Capitão Cordeiro faleceu num salto em pára-quedas, porque o mesmo não abriu. Salto esse que foi efectuado sobre o nosso batalhão, [BCP 12,] em Bissalanca.

Escrever para um filho sobre o comportamento do pai não é, para mim, tarefa fácil.

Tenho recebido vários e-mails de camaradas que me pedem uma cópia da tese, alegando que a mesma lhe terá sido enviada por mail, mas lê-se com dificuldade. Talvez algum amigo do Capitão Cordeiro queira enviar ao Miguel uma das ditas cópias que parece andam a circular.

Mas uma coisa adianto ao Miguel: o ódio que eu tinha pelo seu pai e vice-versa, resultou mais de uma criancice do então 1.º Sargento Pára-Quedista Catarino (comigo há sempre nomes, nunca me peçam que os omita), que lhe foi fazer queixas minhas, de factos que o próprio Catarino tinha criado.

O Capitão Cordeiro foi pouco hábil e criticou-me severamente e eu respondi-lhe à letra, o resto é fácil de imaginar. Os melhores Sargentos colocaram-se do meu lado, alguns Oficiais seguiram-nos e o Comandante mandou calar toda a gente, e arrumou o assunto.

Nenhum tivera razão. Todos nos excedemos e todos perdemos.

Já na Guiné, e por sugestão do Capitão Cordeiro, perante todos os graduados da CCP 123, aceitámos dividir as responsabilidades do que havia acontecido. Para citar as palavras do Capitão Cordeiro, "dividimos a bicicleta ao meio". Pelo que, há 38 anos que eu, ao falar sobre o assunto, assumo que tive 50% de responsabilidades no lamantável incidente, cuja verdadeira responsabilidade foi dum terceiro.

Um abraço

Manuel Rebocho

3. Comentário de L.G.:

Meu caro Pedro: Só temos, para já, dois pequenos comentários sobre o seu pai, enquanto militar. Talvez se arranje mais, no futuro, incluindo postes e fotos. (Vieram de dois antigos camaradas da FAP, o então Pilav Ten Pessoa, o primeiro a ser abatido por um Strela; e o Manuel Rebocho, que era então, em 1973, sargento pára-quedista na subunidade comandada pelo seu pai.).

É o nosso testemunho, solidário... Espero que o ajude a também reorganizar as suas memórias de infância e adolescência, você que estava lá, na Guiné, nesse fatídico dia em que o pára-quedas do seu pai não se abriu... (****).

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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 19 de Março de 2009 Guiné 63/74 - P4051: FAP (18): Kurika da Mata (Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74)

Vd. também poste de 14 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4184: FAP (22): Entrega do meu pára-quedas ao Museu dos Pára-quedistas, na Base Escola de Tancos (Miguel Pessoa)

Caro João [Seabra]:

(...) Quanto ao Cap Cordeiro, também me incluo na lista dos que têm por ele grande consideração. Não me posso esquecer que foi o grupo de pára-quedistas que ele comandava quem primeiro chegou ao pé de mim, conjuntamente com o grupo do Marcelino, quando me recuperaram do corredor do Guileje.

"Podes ver uma foto do Cap Cordeiro no post 4051, durante a acção em que fui recuperado. Senti muito a sua morte num estúpido (mas sempre possível) acidente num salto de treino, na Guiné. Um abraço. Miguel Pessoa" (...).



(**) Vd. poste de 19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4216: Comentários que merecem ser postes (4): Homenagem à memória do Capitão Pára-quedista João Costa Cordeiro (João Seabra)

(***) Vd. postes anteriores desta série:

20 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4059: Meu pai, meu velho, meu camarada (1): Memórias de Cabo Verde, São Vicente, Mindelo, 1941/43 (Luís Graça)

21 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4060: Meu pai, meu velho, meu camarada (2): Militar de carreira, herói da 1ª Grande Guerra, saiu do RAP 2 como eu (David Guimarães)

21 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4062: Meu pai, meu velho, meu camarada (3): No Dia Mundial da Poesia (António Graça de Abreu)

24 de Maio de 2009> Guiné 63/74 - P4407: Meu pai, meu velho, meu camarada (4): Não é um elogio fúnebre que te quero dedicar... (António G. Matos)

26 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4420: Meu pai, meu velho, meu camarada (5): A minha família e o RAP2 (Vila Nova de Gaia) (David Guimarães)

14 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4184: FAP (22): Entrega do meu pára-quedas ao Museu dos Pára-quedistas, na Base Escola de Tancos (Miguel Pessoa)

Caro João:

(...) Quanto ao Cap Cordeiro, também me incluo na lista dos que têm por ele grande consideração. Não me posso esquecer que foi o grupo de pára-quedistas que ele comandava quem primeiro chegou ao pé de mim, conjuntamente com o grupo do Marcelino, quando me recuperaram do corredor do Guileje.

"Podes ver uma foto do Cap Cordeiro no post 4051, durante a acção em que fui recuperado. Senti muito a sua morte num estúpido (mas sempre possível) acidente num salto de treino, na Guiné. Um abraço. Miguel Pessoa" (...).



(****) Vd. postes do Manuel Rebocho:

14 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P877: Nós, os que não fazemos parte da história oficial desta guerra (Manuel Rebocho)"

(...) tomei contacto com o vosso/nosso blogue, através do então Furriel Miliciano José Casimiro Carvalho, da CCAV 8350 (a que abandonou Guileje, em 22 de Maio de 1973), o grande herói de Gadamael Porto, que, não obstante isso, também não faz parte da história oficial da Guerra da Guiné"(...).

28 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P919: Vamos trasladar os restos mortais dos nossos camaradas, enterrados em Guidage, em Maio de 1973 (Manuel Rebocho)

21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1099: O cemitério militar de Guidaje (Manuel Rebocho, paraquedista)

4 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1150: Carta a Pedro Lauret: A actuação do NRP Orion na evacuação das NT e da população de Guileje, em 1973 (Manuel Rebocho)

5 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1151: Resposta ao Manuel Rebocho: O papel do Orion na batalha de Guileje/Gadamael (Pedro Lauret)

17 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1187: Guidaje: soldado paraquedista Lourenço... deixado para trás (Manuel Rebocho).

22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1453: Ninguém fica para trás: uma nobre missão do nosso camarada ex-paraquedista Manuel Rebocho

Guiné 63/74 - P4693: Fichas de Unidades (4): História da CCAÇ 594 (José Martins)

1. Esta ficha de unidade resultou de um pedido do nosso Camarada Júlio Pinto, que foi 2º Sarg Mil da CART 769, (Angola, 1967/69), que pertence à nossa Tabanca Grande, para satisfazer uma solicitação de um seu Amigo e Camarada-de-armas da Guiné, através do nosso Blogue.

2. Registamos, mais uma vez, com elevado apreço o nosso melhor agradecimento, pela preciosa ajuda prestada pelo já habitual "colaborador permanente", o José Marcelino Martins... Obrigado!

No dia 13JUL2009, O Júlio Pinto dirigiu um e-mail ao José Martins, com o seguinte teor:

Amigo José Martins, sou um ex-Combatente de Angola e faço parte da Tabanca. Sou Júlio Pinto e tenho reparado que o amigo, tem sido um investigador sobre as Companhias e Batalhões, que andaram pela Guiné. Ora eu tenho um amigo de nome Artur da Costa Rodrigues, que foi 1º cabo da CCAÇ 594 e que foi mobilizado no RI 15, de Abrantes. Tinha como comandante o Cap de Inf Mário Jaime Calderon Rocha.O que eu pedia ao amigo era, se possível, obter a composição da dita Companhia, para esse meu colega tentar localizar alguém, que lhe possa avivar a memória daqueles tempos.Esta Companhia embarcou para a Guiné em 27-11-1963 e regressou a 28-10-65.
Se for possível muito bem. Mas se não for agradeço na mesma.
Um abraço,
Júlio Pinto

O José Martins respondeu assim:

Caro Júlio Pinto,A colaboração que posso dar neste caso, resume-se a enviar alguns elementos sobre a subunidade e o resumo da actividade operacional. Eventualmente poderei referir qual o processo da unidade que se encontra, se existir, no Arquivo Histórico Militar, em Lisboa, pois será nesse processo que existirão os nomes de todos os elementos sobre a CCAÇ 594.
Um abraço,
José Martins

O Júlio Pinto retorquiu:

Qualquer coisa que consigas, para no meu amigo, será muito bom.
Fico a aguardar.
Um abraço,
Júlio Pinto

O José Martins em 14JUL2009, já dispunha de alguma informação que passou a enviar:

Caro Júlio Pinto,
Com um abraço para ti e para o camarada Artur Rodrigues, envio o que posso disponibilizar sobre a CCAÇ 594. Infelizmente não existem elementos disponíveis no Arquivo Histórico Militar, em Lisboa, para consulta mais pormenorizada.
José Martins

Companhia de Caçadores nº 594

A Companhia de Caçadores nº 594 foi mobilizada no Regimento de Infantaria nº 15, em Tomar, tendo embarcado para a Guiné em 27 de Novembro de 1963, desembarcando em 03 de Dezembro de 1963, sob o comando do Capitão de Infantaria Mário Jaime Calderon Cerqueira Rocha.

Permaneceu em Bissau até 20 de Dezembro, data a partir da qual e até 27 desse mês, por fracções, seguiu para Mansabá, assumindo a responsabilidade do subsector em 23 de Dezembro de 1963, substituindo a Companhia de nº 461. Ficou integrada no dispositivo do Batalhão de Caçadores nº 512 e, posteriormente, do Batalhão da Artilharia nº 645.

Realizou operações, entre outras, nas regiões de Uália e Manboncó. No período de Janeiro a Junho de 1964, destacou um pelotão para reforço da guarnição de Farim e, de Junho a Setembro desse ano, reforçou a guarnição de Bigene, recolhendo seguidamente à sua subunidade.

Neste período sofre um ataque na estrada de Farim – Mansabá, sendo ferido em combate ANTÓNIO BARATA FARINHA, soldado nº 2486/63, solteiro, filho de Miguel Farinha e Fe4lismina Barata Farinha, natural do Lugar de Relvas, freguesia de Ermida e concelho da Sertã, de que resulta a sua morte em 4 de Março de 1964, tendo sido inumado na campa nº 727 do Cemitério de Bissau.

Em 12 de Setembro de 1964, foi rendida no subsector de Mansabá pela Companhia de Artilharia nº 642, sendo deslocada para Bissau, integrada no dispositivo do Batalhão de Caçadores nº 600, tendo por missão a segurança e protecção das instalações e populações da área.

Em 9 de Janeiro de 1965 foi substituída pela Companhia de Caçadores nº 557 e deslocada para Buba, para intervenção e reserva do Batalhão de Caçadores nº 513 e, posteriormente, dos Batalhão de Caçadores nº 600 e, mais tarde, do Batalhão de Caçadores nº 1861, tendo tomado parte em operações nas áreas de Bantael Silá e Chinchim Dárin entre outras. No período de 29 de Abril a 3 de Julho de 1965, destaca um pelotão para Nhala.

Temporariamente e em 3 de Julho de 1965, foi deslocada para Aldeia Formosa, para actuar na região do Forreá, onde se manteve até 17 de Agosto de 1965. Sobrepondo com esta diligência em Aldeia Formosa, destacou para Guileje um pelotão, no período de 04 de Julho a 03 de Agosto de 1965, para reforço da guarnição local.


Novamente em Buba, foi rendida, por troca, a 15 de Outubro de 1965 pela Companhia de Caçadores 1438, recolhendo a Bissau, integrando o dispositivo do Batalhão de Caçadores nº 1857, com a missão de segurança e protecção das instalações e populações da área, até ser rendida pela Companhia de Caçadores nº 1488.

Embarcou de regresso à metrópole em 26 de Outubro de 1965.

Foi condecorado com a medalha da Cruz de Guerra de 1ª Classe, o 1º Cabo de Infantaria MANUEL VALENTE DA SILVA, conforme Ordem do Exército nº 15, série III de 1966.

Não tem história da Unidade no Arquivo Histórico Militar.

(José Martins)

Texto: © José Marcelino Martins (2009). Direitos reservados
____________
Notas de M.R.:

(*) Numa pesquisa, pelo Google, sobre a CCAÇ 594, descobri no site “Dos Combatentes da Guerra do Ultramar, Angola – Guiné – Moçambique, do António Pires”, uma mensagem com data de 04/JUN2009, contendo um apelo do Manuel Jóia da Fonseca Mendes, que foi do 1º Pelotão desta Companhia, e cujo telemóvel é 919 926 499.

(**) Vd. outros postes relacionados com a CCAÇ 594 em:


(***) Vd. também o anterior poste desta série em:

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4692: História da CCAÇ 2679 (21): O meu regresso à Guiné, após as férias na Metrópole (José M. Matos Dinis)

1. Mensagem de José M. Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 10 de Julho de 2009:

Carlos
Aqui vai mais um pedaço de estórias, com a particularidade de se referirem à transferência da Companhia para Bajocunda.
Um abraço tabancal.
José Dinis


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679
O MEU REGRESSO À GUINÉ APÓS AS FÉRIAS NA METRÓPOLE


A viagem de regresso à Guiné aconteceu com normalidade. O avião aterrou em Bissau por entre as cores, castanha da terra de barro quente, e o verde da profusa vegetação que a cobria. Dirigi-me ao Grande Hotel onde novamente me instalei. Queria folgar até chegar à guerra.

No dia seguinte encontrei dois camaradas do Leste, que me referiram haver uma espécie de perseguição à malta do mato para preenchimento de serviços na cidade. Ora, se o interesse em Bissau já era relativo, sentirmo-nos caçados para entrar de serviço era uma forma de desgraça a evitar sobre maneira. Nestes considerandos alguém alvitrou abalarmos para Bafatá. Por mim tudo bem, procuraria alojamento no Esquadrão de Cavalaria e daí chegaria facilmente a Piche. Depois abordámos a questão da ida. Via aérea, segundo eles, seria difícil ou impossível.

Pelo rio até ao Xime também não se afigurava boa solução. Decidimo-nos pelo aluguer de uma avioneta de quatro lugares, piloto incluído, por menos de um conto a cada, piloto excluído, naturalmente.

Entrámos no aparelho e sentei-me na frente, ao lado do piloto. Atrás, os bacanos que me convenceram. Era com curiosidade que sobrevoava o território, com a preponderante verde da vegetação em todos os lugares não alagados. Palmares, floresta e bolanha desfilavam a meus olhos. Os outros passageiros começaram a fumar. Nada de especial. Naquele tempo não constituía preocupação. Falávamos ocasionalmente. O piloto fazia movimentos suaves na manutenção da aeronave segundo a rota. Até que um dos fumadores quis atirar fora a beata, e sem atinar com a melhor maneira de se comportar, abriu a porta para aquele efeito. Essa atitude provocou algum desequilíbrio do avião, e o piloto começou a barafustar. A porta não fechava. Inclinando-se sobre mim, o piloto tentava fechá-la. Sem sucesso. Os três passageiros calados.

Provavelmente algum rezava. Perante o insucesso, o piloto picou o aparelho, novamente inclinado sobre mim, tentava agarrar a forta e fechá-la. Eu via as palmeiras a subirem na minha direcção, e com toda a pressa, pelo que passei a dar-lhe cotoveladas para endireitar a avioneta, aflito, imaginando um desfecho desgraçado. Tarde, muito tarde, à beira de um ataque de nervos, sem saber como proceder sobre o equipamento de maneira a fazer subir o avião, mas a acotovelar o piloto, este fez a manobra necessária para inverter o sentido, de descendente na vertical, para ascendente, coisa que me deixou muito aliviado. No estreito banco de trás, os fumadores permaneciam calados, mas imagino que sentiam o mesmo tefe-tefe que eu.

Lá no alto permanecia o problema da porta aberta e o avião instável.
Esta situação deve ter induzido o piloto à repetição da manobra, pelo que seguiu-se uma descida a pique, enquanto nos ofendia, até que, já perto do solo, logrou fechar a porta malvada, e subiu nos ares com o ar da pessoa mais mal tratada deste mundo.

Sãos e salvos aterrámos em Bafatá. O pessoal mostrava-se consternado. O piloto, então, tomou a iniciativa: pediu a massa e baldou-se com maus modos. Eu pirei-me para o Esquadrão, e a infeliz sociedade desfez-se ali, sob o sol tórrido do Leste.

Em questões de aeronáutica, como em muitas outras, sou um zero absoluto, mas fiquei desconfiado que ele teatralizou, quis acagaçar-nos. E essa foi a minha grande experiência em máquina voadora.

Na cidade fui informado sobre a transferência da Companhia de Piche para Bajocunda, e iniciei o caminho logo na primeira oportunidade.

Afinal não parodiei no regresso à Guiné. No aquartelamento era o caos.

Três Companhias, um Pelotão de Caçadores Nativos - o 65, outro de Artilharia, Este pessoal todo nas instalações antes ocupadas por uma Companhia e o Pelotão de artilheiros. Mas guerra é guerra. No refeitório como na messe havia turnos. O nosso pessoal estava a dormir em tendas de dois panos, e porque era época de chuvas, por vezes era o lagoaçal mal saíam dos colchões estendidos no chão. A mim valeu a experiência anterior e voltei a dormir na enfermaria, em género clandestino. A minha bagagem controlada pelo Zé Tito estava em condições.

Mas deram-me outras notícias desagradáveis.

Quando a 2679 chegou a Piche, os velhinhos aliviaram parte da bagagem do nosso pessoal, de tapa-chamas a artigos pessoais. Agora dera-se o inverso. A Companhia partia e os nossos quiseram ressarcir-se tendo decidido aliviar a bagagem dos piras para reposição dos stocks com que tinham arribado a África. Tão mal o fizeram que houve queixas sobre o gamanço, ainda o pessoal permanecia na localidade.

Erro de previsão, seguramente. Em resultado disso, houve revista às malas dos transmutantes. Aconteceu a chatice com um patife que me envergonha por ser meu homónimo e prestar-se a confusões. Ao abrir a mala, o nabo, tinha o material ainda alheio mesmo à vista, sobre as suas coisas.

Levou uma porrada, claro, provavelmente agravada por ter sido o único a deixar-se apanhar. Badalou-se sobre o assunto, e em Bajocunda já éramos temidos como marginais perigosos.

A segunda notícia desagradável resultou de um acto de guerra desencadeado pelo IN, que foi uma jornada de sorte para as NT.

Um belo dia, o Caco Baldé deslocou-se a Pirada que, entretanto, era elevada à condição de sede do COT-1 com um major a comandar. Talvez por inspiração especial que o ar fronteiriço deve ter provocado, o general mandou tapar as valas de defesa e protecção periférica, com o argumento psicolista de que era necessário desenvolver relações de boa vizinhança e paz.

Em Pirada também havia fartura de tropa. Para além da Companhia local, estavam, pelo menos, dois pelotões de páras, infantes açorianos e o pelotão de artilharia.
Uma noite, ainda cedo, o pessoal distraía-se com a projecção de um filme, quando foi dado o alarme, os turras tinham entrado em Pirada. Felizmente, aquela parte do IN não primou pela oportunidade, nem pela inteligência organizativa para o assalto, nem pela eficácia. Alguns ficaram pelas casas comerciais a consubstanciar roubos de mercadorias diversas, e, incrivelmente, não aconteceu quase nada. Parece até que se perderam uns dos outros movidos pela ganância oportunista. Mas constou-me que um pára feito prisioneiro, caminhava ameaçado pela arma que o turra lhe apontava, até que decidiu inverter a situação, voltou-se repentinamente, tratou mal o turra, e pôs-se ao fresco. Não cheguei a saber se o ComChefe o terá punido por traição à política estabelecida para criar raízes de paz.

Esta companhia de páras manteve-se na região por algum tempo, e com eles estabeleci simpáticas relações. Até me ensinaram a fechar as portas para dormir no mato. O pessoal instalava-se ao longo de um trilho e, a distância prudente, armadilhavam-se os extremos do dormitório. Quem viesse havia de dar sinal.

Recuando ao mês de Julho, a 2679 recebeu o novo capitão, logo epitetado de Trapinhos, em resultado da reunião de dois factores: o ar alucinado e um dos apelidos. Em verdade, mais parecia um desafortunado e amarfanhado centurião das legiões romanas, conforme os bonecos glosados nas aventuras do Asterix, olhar encovado, físico frágil e mal sustentado em ossatura delgada e saliente. Dificilmente parecia oriundo da Academia Militar. Conheci-o no meu regresso de férias em Bajocunda. Tratou-se de uma outra notícia desagradável na medida em que já se lhe referiam em termos depreciativos.

O "Trapinhos"

"A companhia começa então a consciencializar-se da sua difícil missão no sub-sector, não só devido à grande extensão dos seus limites iniciais (territoriais?), como também por ter de dividir as suas forças na protecção às duas auto-defesas da área (Tabassi e Amedalai) e do Destacamento de Copá" - in História da Unidade.

Nestas condições era imperioso um comandante com pulso, determinado e inteligente, face à exposição perante o IN, as populações, as desagradáveis acções de operacionalidade em condições que podiam sugerir favorecimentos, a necessária logística, enfim, com capacidade para harmonizar em condições de dificuldade. Não foi o que veio a acontecer.

Quanto ao Foxtrot, encontrei a malta bem disposta, e confiante demais, talvez por já conhecerem a geografia da zona e quererem mostrar à vontade de veteranos ao novo alferes.

Nota: psicolista, deriva de psicola s.f. termo que resulta da fusão de psicologia e Spinola, que significa uma acção psicológica de sedução ao IN ou às populações locais. Fora disto não tem significado e, naquele âmbito, muitas vezes não tinha sentido.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série, de 26 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4588: História da CCAÇ 2679 (20): Férias na Metrópole em Junho de 1970 (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P4691: Convívios (154): 5º Encontro / Almoço / Convívio da CCAÇ 1426, Geba, Camamudo, Cantacunda e Banjara, 1965/67 (Fernando Chapouto)


1. Do nosso Camarada Fernando Chapouto, ex-Fur Mil da CCAÇ 1426 (1965/67), Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, recebemos a seguinte mensagem dando-nos conta da 5ª confraternização anual da sua Companhia:


Realizou-se no passado dia 11 de Julho o 5º. Encontro da minha CCAÇ 1426, que andou por Geba, Camamudo, Cantacunda e Banjara, entre os anos de 1965/67.

O convívio teve lugar na Amieira, perto de Portel, no coração do Alentejo.

Infelizmente a grande maioria dos ex-Combatentes da minha companhia não são muito dados a convívios, por diversos motivos, de que se adivinham alguns.

Uma dessas causas, que é mais comum à maioria dos portugueses, em 2009, e a que ninguém pode ficar indiferente é, sem dúvida nenhuma, a malfadada e nefasta crise que o país atravessa, com todas as vicissitudes e dificuldades que lhe são inerentes, e que muito tem martirizado inúmeras famílias portuguesas.

Assim, fazendo jus ao velho ditado, de inspiração camoniana: “Que os muitos por ser poucos nam temamos”, apenas se apresentaram à chamada final 29 heróis da Companhia, prontos para tudo.

Não desarmamos, nem nos rendemos. Não somos desses. Poucos sim, mas com grandes, lindas e maravilhosas famílias, acreditam?

Foi espantoso verificarmos que 29 guerreiros, conseguiram reunir com os seus familiares um total de 111 (cento e onze) adultos e ainda algumas crianças.

Se duvidam da minha narração anterior, apresento-vos a seguir 4 indesmentíveis provas visuais:

Os guerreiros que se apresentaram à chamada - o 3º em pé da esquerda para a direita é o Fur Mil Vaqueiro, o penúltimo sou eu e o úlitimo é o Alf Albardeiro. De cócoras, o 1º homem do lado esquerdo é o Alf Almeida.

Os familiares dos guerreiros, em grande número, que muito ajudaram à festa e que muita curiosidade mostraram também em conhecerem as nossas histórias.

O Fur Mil Vaqueiro - à esquerda - e o Alf Mil Almeida que eram do mesmo pelotão

Os três organizadores do encontro - à esquerda estou eu, no centro está o 1º Cabo Delgado e o 1º Cabo Mira - do lado direito. Os risos deviam-se ao símbolo do restaurante “O Aficionado”, sob o qual nenhum de nós queria ficar na foto.

Um forte abraço do,
Fernando Chapouto
Fur Mil CCAÇ 1426

Fotos: © Fernando Chapouto (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P4690: Depois da guerra, o stresse... da paz (1): Em Binta, vivi uma experiência única (José Eduardo Oliveira)

Guiné > Região do Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1965/66) > Emblema da companhia, 1965. Lema: "Nunca ceder"... Autoria: Arquitecto José Pedro Roque Gameiro Martins Barata, irmão do médico da companhia, Alf Mil Médico Alfredo Roque Gameiro Martins Barata.

Louvor colectivo da CCaç 675. O.S. nº 60 do CTIG, de 23 Julho 1965:

De 29 Junho a 24 Dezembro 1964:

• 51 acções de fogo
• 418 casas de mato destruídas
• 80 inimigos abatidos
• 44 prisioneiros
• 107 abatises levantados

A partir de Março 1965 as populações começam a apresentar-se às nossas tropas.

Guiné > Região do Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1965/66) > Convívio com a população da tabanca de Binta. Ao fundo, à esquerda, em tronco nú, e empunhando a máquina fotográfica, o Alf Mil Médico Barata, muito estimado pela população. Foto do José Eduardo Oliveira, 1965.


Guiné > Região do Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1965/66) > A Tabanca Nova, 1965. Fotografia de Belmiro Tavares, ex-Alf Mil, editada por L.G.

A recuperação das populações levada a efeito na Guiné aconteceu
e quem teve a oportunidade de a viver não mais a esqueceu.
É que, efectivamente, depois das operações militares…
em que emboscados,
angustiados, famintos e sequiosos, enlameados…
fizemos a guerra,
também tivemos a paz.
Que construímos com as nossas mãos.
E não interessa a paz…sem população!
Palavras do Comandante da CCaç 675:
«O nosso orgulho de capitães
era termos populações e podermos apoiá-las:
não era termos mais mortos
ou menos mortos, mais tiros ou menos tiros.
E as populações começaram a regressar.
Fizémos um aldeamento,
cuja segurança era feita por eles próprios.
Quando começaram as sementeiras de arroz,
as mulheres vinham entoar aqueles cânticos ao pôr do sol,
que são coisas
que não podemos esquecer"...


Fotos (e legendas): © José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados

1. Texto do novo membro da nossa Tabanca Grande, José Eduardo Oliveira, ex-Fur Mil Enfermeiro, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim (1964/66). Nasceu em 1940, em Alcobaça. Tem 4 anos de serviço militar (1962/66). É jornalista, sub-director do quinzenário regionalista O Alcoa, e autor de Golpes de Mão's - Memórias da Guiné, 2009 (*)


2. Depois da Guerra... o stresse da Paz!
por José Eduardo Oliveira


A quarenta e tal anos da minha passagem pela guerra não consegui arrumar no meu arquivo morto todos os stresses que me acompanharam …depois da guerra. É a tal "guerra sem fim" de que muitos falam.

Mas - assim o penso sinceramente – acho que... nunca a trouxe para casa. Se não dormia... deixava que os outros dormissem!

Nunca passei pelo stress pós-traumático onde... não há tréguas nem acordos de paz!

Guerra dentro da minha cabeça tive algumas. Dentro de casa... tentei sempre não passar as minhas angústias aos outros.

Em momentos de crise fechei-me e aguentei. Com a ajuda de muitos anti-depressivos. E esses, eu sei que serão até ao fim da vida.E sei também dos seus efeitos secundários. É um preço a pagar... Já com muitas prestações liquidadas…

Apesar de tudo, de mal o menos!

Mas sei que muitos tiveram crises. Graves crises. É uma guerra ainda presente em muitas famílias portuguesas.

A sintomatologia é longa. Pesada. Violência física e psicológica. Para si próprios e para os familiares mais próximos.

É dos livros. A agressividade e a passividade. Duas das características mais vincadas nos ex-combatentes que sofrem de stresse pós-traumático. Alguns alternam as duas. Outros são tão absolutamente deprimidos e passivos que não chegam nunca a exaltar-se. A guerra psicológica é intensa. Diária. "O stress de guerra é contagioso e crónico", como afirmam especialistas.

A quarenta e tal anos da minha passagem pela guerra alguns dos meus stresses de paz sobrepõem-se aos de guerra…

Vou tentar explicar:

Vivi em tempo em guerra uma experiência comunitária tão intensa e tão próxima de uma sociedade perfeita que nunca mais encontrei... nada parecido.

Refiro-me, obviamente, à sociedade dita normal, em que tive de me integrar depois do regresso da guerra em 1966.

A minha experiência comunitária foi ainda muito marcado por um chefe. Também não voltei a encontrar ninguém do seu gabarito nos quarenta e tal anos seguintes…

No Norte da Guiné, em Binta e sua região, criámos uma comunidade «ancorada» numa unidade militar que (re)fez uma aldeia, onde chegaram a viver cerca de mil pessoas.

Nessa aldeia e nesse tempo fizemos quase tudo. E com as nossas mãos. Reparação de casas e armazéns, arruamentos, uma pista de aviação, uma capela, um posto de enfermagem. Abrimos poços, instalámos luz eléctrica. Fizemos escolas e creches. Fomos professores, engenheiros, arquitectos, operários especializados. Fizemos hortas. Tivemos um aviário. Demos nomes às ruas e fizemos as respectivas placas toponímicas. Reparámos o cais. Fizemos um campo de futebol, organizámos jogos e competições, fizemos um jornal. Tínhamos o nosso próprio 'totobola'. Capturámos uma manada de vacas. Fizemos uma ferra do gado e organizámos uma tourada. Tivemos uma biblioteca, vimos cinema (com ajuda da Marinha de Guerra), desfiles de Carnaval e marchas populares.


E…mais importante que tudo, ajudámos as populações. Assegurámos-lhes condições de vida que, talvez, nunca tivessem tido anteriormente. Ajudámos nas suas sementeiras e na assistência médica.

Conseguimos o respeito e a estima da população.

O Presidente da Câmara de Binta – leia-se Comandante da 675 - governava com segurança e justiça, e era receptivo a todas as ideias de quem queria fazer alguma coisa. Pode-se dizer que todos -uns mais que outros, obviamente –se empenharam no crescimento e valorização dessa comunidade. Até com obras de arte, como foi o caso da «estrela», desenhada com garrafas de cerveja na Avenida Capitão de Binta, que teve o traço do Campo de Ourique, cenógrafo na vida civil.

O Governo de então só terá falhado nas Secretarias de Estado ligados ao ramo alimentar, o que motivou algumas remodelações no que respeita a vago-mestres.

Quando saímos de Binta…tivemos direito a lágrimas de saudade… dos que ficaram.

Tínhamos sido importantes para eles e... para nós próprios .

O último ano em Binta aconteceu n’outro mundo! Quase que tínhamos esquecido o mundo para onde regressámos em Maio de 1966!

Quando regressámos à Metrópole e à vida civil chocámos com um mundo onde a nossa importância anterior rapidamente se esbateu.

Já estava tudo feito - éramos apenas um pequeno parafuso de uma máquina gigantesca que girava sem cessar – e à nossa volta já não tínhamos a malta da Companhia. Todos tinham partido para as suas vidas. Para longe.

Nos nossos novos empregos aparecem-nos novos chefes, de pequena estatura!

Onde estavam Chefes como o Capitão de Binta!

Os primeiros tempos do regresso foram terríveis. Foi (era)uma luta desigual ! Poucos nos entendiam. Poucos nos podiam ajudar!

Só a família mais próxima conseguia entender um pouco do nosso drama.

Nos primeiros meses corríamos sempre há chamada de cada camarada que se casava. Viajávamos de norte a sul do País para nos voltarmos a encontrar.

Naquelas horas que estávamos juntos voltávamos lá! E o nosso Capitão normalmente estava por perto!

Depois tínhamos que voltar ao mundo dito normal ,onde ninguém falava a nossa linguagem!

Que tempos amargos. Trabalho. Trabalho. E ... solidão.

Lembro-me de há noite, depois do trabalho, no meu quarto da Pensão, em Leiria (trabalhava então no Banco Pinto & Sotto Maior) passar minutos, horas a olhar para um mão, a mirar as unhas. O tempo corria lento e... as noites eram compridas na passagem para um novo dia. Chato, desinteressante... que os outros pensavam que era bestial! Empregado bancário, que bom! Às seis da tarde, fechavam-se os estores e ia-se trabalhar para o 1º. Andar. Às escondidas da fiscalização. À borla, pois claro. Colonialistas eram os da Casa Gouveia, da CUF, na Guiné. Pois!

Quando vinha ao fim de semana a casa, em Alcobaça, o sorriso da minha mãe (sempre a minha Mãe), animava-me um pouco. Os seus mimos, as comidas especiais, o seu amor incondicional, conseguiam encorajar-me a enfrentar mais uma semana da... outra guerra!

Foram longos meses de uma vida adiada, que me consumiu por dentro…

Sentia-me à deriva!

Tive em casa dos meus Pais alguns camaradas da Guiné: O Tenente Pedro Cruz (**), o ex-Alferes Santos, o Rato. Escrevia-me com outros. Chegou a data do 1º. Convívio. Em Lisboa. Pouca gente, por dificuldades de contacto. Mas um dia grande.

Tenho uma foto desse primeiro convívio em Maio de 1967. Já lá vão uns anitos!!!

De vez em quando sabíamos alguma coisa do nosso Capitão que…já era Major. Promovido por distinção. Para orgulho de todos nós.

E …depois o tempo passou… Casamento, nova vida profissional, família aumentada, realização pessoal e profissional, novos Chefes, com nível, casa nova, carro novo, e vitórias nas lutas…do dia a dia!

O retorno de alguma importância…na vida a que me tinha habituado em Binta …na tal vila de Binta…na pequena comunidade do Norte da Guiné onde «o céu era o limite»!

O tempo…o passar dos anos… atenuou as memórias daquele tempo excepcional.

Mais tarde, muito mais tarde…na idade do condor, maduros pela passagem dos anos e com netos por perto…percebemos que…afinal a guerra, a nossa guerra foi uma experiência única quando conseguimos construir a paz.

Se calhar fomos uns privilegiados. Nós conseguimos…com as mãos que fizemos a guerra …fazer também a paz!

Essa experiência única nas nossa vidas perdura ainda.

Não foi fácil ultrapassar o streess da paz…mas conseguimos.

Por alguma razão o emblema da Companhia referia que a 675 nunca cederá.

Não cedeu.

A acreditar em João Turé, natural de Binta, que ao tempo da passagem da 675 pela sua aldeia tinha 8 anos, e é actualmente presença habitual nos convívios da Companhia, ainda hoje os mais velhos falam do bem que a tropa do Capitão de Binta fez na sua região…

Acreditamos que sim… agora com direito às nossas lágrimas de saudade…

Em Binta….no Norte da Guiné…vivemos alguns dos melhores tempos da nossa vida. Lá longe…junto ao Cacheu… nos idos de 60!

José Eduardo Reis de Oliveira

_______________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 14 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4686: Tabanca Grande (162): José Eduardo Oliveira, ex-Fur Mil, CCAÇ 675, Binta, 1965/66

(**) A CCAÇ 675 teve dois comandantes: Cap Inf Alípio Tomé Pinto (ferido em combate, hoje Ten Gen Ref), o Ten Inf José Pedro da Cruz.

Guiné 63/74 - P4689: Blogpoesia (54) : Abraço com aço não rima, nem rima a morte com sorte... (José Brás)

1. Continuação da publicação de poemas do José Brás (*), enviados em 29 de Março último à nossa amiga Cristina Nery (**).


Dr.ª Cristina Nery: Há muito tempo longe do ambiente da memória da guerra, ultimamente buscando as gentes que cruzaram os mesmos lugares, juntos ou separados no tempo e no modo, gostaria de estar amanhã em Coimbra mas 'o rei manda marchar mas não manda chover'.

Envio-lhe aqui alguns textos a que não me atrevo a chamar 'poesia', porém sofridos na terra da Guiné.

Cumprimentos
José Brás



Na corte
a forma do br(aço)


Abraço
com aço
não rima
nem rima
a morte
com sorte

…porém
de aço
na corte
nos quiseram
então
a forma
e o braço


GUINÉ

CÉU

Mar longo inatingível
poço negro-rubro-azul
fornalha de mil fogos queimando encéfalos
estrada-libertação de impossíveis
cenário de um sol-tudo-quase-nada
que acende labaredas nas retinas


HOMEM


Esforço quase-sangue
tatear quase-saliva
corpo tosco e baqueante
latejar de veias-não-azuis
protesto que fica apodrecendo
no cardume de revoltas não-gritadas


O homem

olhas as mata
e dizes
- Por aqui passou o homem
por aqui correu o sonho
e o sangue...


olhas a mata
e dizes
- O cibo
a palmeira
a bolanha
as pegadas do homem

olhas a mata
...e vês o homem


muitas são
as marés
que te roubam
a rota do lugar
que te recebeu
ao nasceres
…e
largos
os caminhos do mar
que te azulam
a parda memória
dos dias
sem regresso


Guardador do tempo

Mais que estar
sou
neste lugar
o aprendiz do modo
o guardador do tempo
e da mata

a palavra gravada
na pedra
da memória
... homem

[Revisão / fixação de texto / Bold: L.G.]

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Notas de L.G.:

(*) José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, autor do romance Vindimas no Capim, Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura)... Alentejano, vive em Montemor-O-Novo, foi chefe de cabine na TAP, dirigente sindical antes do 25 de Abril (SNPVAC - Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil).

(**) Cristina Nery, filha e neta de camaradas nossos, investigadora no CES/UC - Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, tem-se interessado pelo estudo e divulgação da poesia da guerra colonial:

Vd. poste de 29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4093: Agenda Cultural (5): Poetas da guerra colonial em conferência internacional, Coimbra, CES/UC, 30/3/2009 (Cristina Néry)

(***) Vd. poste de 30 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4107: Blogpoesia (35): Tinhas no olhar / sinais seguros de esperança... (José Brás)

Último poste desta série:

10 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4663: Blogpoesia (53): História de Portugal em sextilhas (Manuel Maia) (VIII Parte): Da Monarquia Constitucional à República

Guiné 63/74 - P4688: Em busca de... (78): Em busca de pessoal da CART 1689, Cabedu, 1967/68 (António J. Pereira da Costa)


1. Mensagem do nosso camarada António J. Pereira da Costa, Coronel, que foi comandante da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74, com data de 14 de Julho de 2009:

Camaradas,

Estou a estudar a possibilidade de dar o nome de uma rua, na aldeia onde nasceu, ao Alf Art Henrique Ferreira de Almeida, falecido em combate, durante uma flagelação ao nosso aquartelamento, na noite de 13/14JUL68, e que foi condecorado com a Cruz de Guerra.

Procuro alguém que tivesse integrado esta companhia e convivido com ele!

Segundo apurei, a CART 1689 esteve em sítios muito diversos e mesmo em Cabedu esteve pouco tempo.

Um Abraço,
António José Pereira da Costa
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Notas de M.R.:

(*) Vd. postes anteriores, relacionados com a CART 1689:










22 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3081: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (4): Os meninos à volta da fogueira...


15 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3745: O Nosso Livro de Visitas (52): Fernando Cepa, ex/Fur Mil, CART 1689 (1967/69), natural de Esposende



27 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4592: Bibliografia de uma guerra (51): "Cambança" de autoria de Alberto Branquinho (José Martins)

30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4612: Contraponto (Alberto Branquinho) (2): Não vale a pena chorar

2 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4627: Bibliografia de uma guerra (52): Andanças e... Cambança(s), de Alberto Branquinho (Luís Graça)

(**) Vd. poste anterior, desta série em:

28 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4599: Em busca de... (77): Antigo camarada do RI 10, Aveiro, 1965 (Rui Alexandrino Ferreira)