quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4814: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (8): “O Padre eterno”

1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 8ª estória, que faz parte do seu livro "Golpes de Mao's - Memórias de Guerra", que muito agradecemos, com data de 06 de Agosto de 2009, a que deu o seguinte título:

O PADRE ETERNO

O «Padre Eterno» não era alcunha. É apenas o apelido – algo invulgar – do Firmino, alentejano de corpo inteiro.

Nado e criado em Borba e de nome completo Firmino Carola Padre Eterno.

O Padre Eterno foi um militar “especial” na Companhia.

Até se poderá dizer “especial de corrida” porque foi condutor-auto.

Depois de ter andado de “cu tremido” e no “bem bom” uma boa temporada na Metrópole como condutor do Coronel Braancamp Sobral, em diversas unidades militares... um dia... acabou-se-lhe a “mama”. E foi mobilizado.

Foto do Padre Eterno à civil em Bissau
(Obviamente na “5ª.Rep.”)

Foi para a Guiné incorporado na C.Caç. 642, do Batalhão dos Águias Negras como 1º. Cabo Condutor-Auto e por causa de um “levantamento de rancho”... foi punido com 15 dias de prisão disciplinar agravada, despromoção a soldado raso e transferido para outra Unidade.

Calhou-lhe a “675”. Obviamente que na vida militar não é o melhor “cartão de visita” chegar a uma Companhia isolado e “sem para quedas” e com a fama de ter estado metido num "levantamento de rancho".

Teve a sorte de encontrar um Comandante de Companhia como o Capitão Tomé Pinto que lhe “leu” de imediato “a cartilha”...

– O que se passou anteriormente não me interessa. Interessa-me o teu comportamento na C.Caç. 675 a partir desta data. Se te portares bem não vais ter problemas... E recomendo-te que o faças.

O Padre Eterno nunca esqueceu “a recomendação” e entrou na família da “675” como "gente grande".

“Entrou” tão bem que parecia que nunca tinha estado noutro lado.

Bem disposto, brincalhão, mas atilado e excelente operacional.

Foi devido à sua “ratice” que localizou uma mina anti-carro no dia da operação de Sambuiá – 5 de Janeiro de 1965 – e evitou uma tragédia, que podia ter causado mortos e feridos.

A sua versão do levantamento de rancho (de que foi acusado) é anedótica mas na vida militar uma palavra a destempo pode ser... ”a morte do artista”...

O Padre Eterno chegou atrasado a uma formatura para o jantar, desconhecendo que estava iminente um levantamento de rancho, e “caiu” como um “pato” quando o Oficial de Dia chegou à formatura.

– Quem são aqui os “meninos finos”?

– Quem é que não quer comer?

O Firmino não conseguiu ficar calado, como convinha, armou-se em “engraçado” e “lixou-se”:
– Eu é que não janto. Recebi hoje uma encomenda de casa com um paio – daqueles de comer e chorar por mais – e tive um lanche daqueles à antiga. Eu é que não vou comer.

Efectivamente não comeu do rancho mas “comeu” um castigo que... lhe estragou a digestão.
Apesar da azia dos dias seguintes teve a “sorte grande” de ter ido parar à “675”.

Onde foi um militar estimado por toda a gente.

Tinha sempre uma “estória” da sua terra para contar e, mesmo repetidas, os seus ditos causavam sempre gargalhadas no aquartelamento.

Sem dúvida que o apelido – Padre Eterno – ajudava e, não sendo alcunha, passou à história da companhia como sendo o filho do principal sócio de um armazém de vinhos de Borba. O nome da firma em causa deixava sempre a rapaziada de boca aberta e convencida de que o Firmino estava “a regar”.

Mas não estava.

Mais tarde quando fomos ao seu casamento a Borba foi-nos confirmado que o Pai do Firmino tinha sido mesmo um dos sócios da firma “Padre Eterno & Salvador das Almas, Armazém de Vinhos !!!

E depois há aquela estória da “sandes de atum” que arranjou ao “Caldas”, quando ele estava no Hospital Militar de Bissau, cujo crédito já “chegou” ao Céu...

Firmino já um pouco longe do “estado novo” mas ainda em boa forma.

(Foto de Maio de 2009, em Évora).

Foto do autor

Firmino Carola Padre Eterno alentejano puro e membro ilustre da “Família 675”.

E quer se queira quer não dá sempre jeito ter por amigo um “Padre” que... ainda por cima é “Eterno”...

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675

Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

9 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4803: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (7): O “Caldas” da CCAÇ 675, Binta - 1964/66

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4813: (Ex)citações (38): Resposta a J. Mexia Alves (António J. Pereira da Costa)

1. Resposta de A.J. Pereira da Costa (*), Coronel, comandante da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74, ao poste P4680 de J. Mexia Alves (**), enviada ao Blogue no dia 10 de Agosto de 2009:

Caro Camarada
Aqui vai a resposta:

Primeiro quero dizer que para além da guarda das memórias temos o dever de interpretar o que sucedeu. Temos o dever de o analisar fria e logicamente, mesmo que as conclusões não sejam aquelas que mais nos agradariam. Julgo que é isto que o blog pretende ao dizer que temos que falar antes que outros o façam por nós. Enquanto intervenientes, mesmo “a quente”, teremos uma perspectiva mais correcta do que os vindouros, mesmo bem intencionados, que só poderão especular sobre o que possa ter acontecido. Já hoje aparecem por aí umas teses de mestrado e doutoramento, escritas por amadores que terminam por conclusões absolutamente inaceitáveis. Podemos estar certos de que o tratamento de que seremos alvo vai ser muito mais boçal, insensível e injusto do hoje, quando, entre nós, uns dizem que sim, outros que não, outros que talvez, outros que possa ter sido de outro modo ou nem tanto... Temos uma vantagem: mesmo com uma visão sempre parcial, quiçá imperfeita, anima-nos a experiência e essa não se transmite.

Começava por pedir que consultasses o POST 4801 (***) da autoria do Vitor Junqueira que trata dos que fugiram e explicita bem o que eu quis dizer no meu post.

Curiosamente, o número de desertores[1]é surpreendentemente baixo, quer se considerem os que o fizeram já nos TO, quer se considerem os que desertaram ainda nas unidades de Portugal (faço apelo à vossa memória para que se recordem quantos desertaram efectivamente nas unidades onde foram prestando serviço). Não estou a incluir nestes os que desertavam – especialmente praças – para trabalhar e ganhar algum dinheiro, para manterem as famílias no limiar da sobrevivência e que, depois se apresentavam. Tive casos destes. Os jovens – adolescentes, às vezes – que saíam do país antes ou depois de terem “dado o nome” (e foram bastantes, não sei quantos) não desertaram fugiram e, muitos deles talvez tenham saltado da frigideira para o fogo…

Por outro lado, quem se opõem a qualquer coisa pode optar por se afastar, simplesmente, ou hostilizar e lutar contra essa coisa de modo mais ou menos empenhado. Temos exemplos como do Ten. Veloso da FAP que desertou, em Moçambique, com avião, mecânico e tudo… É também uma forma de valentia. Não creio que a apresentação às autoridades e, com lealdade e valentia, informá-las de que se não faz isto ou aquilo tivesse sido uma solução. As “autoridades” eram desonestas e viciosas na sua acção e além de distorcerem o acto e de o apresentaram como algo de ignóbil, triturariam o idealista que se dispusesse a desafiá-las. Não tenho conhecimento de alguém que o tenha feito e se no no estrangeiro o fizeram alguma vez… aqui tal não era possível. Não nos esqueçamos dos tempos que então se viviam. Às vezes parece que as pessoas se esquecem. Os povos têm má memória, mas também não abusemos…

Quando analisamos o desfeche de uma guerra, temos de ser objectivos e aceitar o sucedido. Hipoteticamente podemos determinar causas. No nosso caso particular, estou convencido de que aquilo a que chamamos “guerra” foi um fenómeno sociológico que decorreu em Portugal e que terminou com a independência de várias fracções do país relativamente ao poder central. Talvez fosse boa ideia perguntarmo-nos porque é que havia um “poder central” e se este era parte da solução ou do problema? Qual a relação desse poder com as diferentes possessões? Porque é que mil escudos valiam mil e cem “pesos”/escudos e mil pesos valiam apenas 900 escudos? E outras questões que, na altura, começámos a levantar, uma vez em contacto coma realidade. Porque será que, ainda hoje, com o português como língua oficial, na Guiné, só 16% da população fala e escreve português (correctamente?)?.

Teremos que aceitar razões tácticas e todas as outras: estratégicas, económicas, políticas (seria a guerra possível na conjuntura mundial actual) sociológicas e até antropológicas. Estamos a analisar um fenómeno. Estamos no campo da História e não no campo da moral ou no divã do psiquiatra.

Tê-la-ão perdido os políticos, tê-la-ão perdido uns quantos militares… Claro camarada! Mas a “guerra” é um fenómeno total e os países funcionam com políticos que servem o poder económico e determinam a actuação dos dignitários do sistema (de todas as condições, tipos e níveis) que, à medida que se desce na hierarquia fazem, os trabalhos de cada vez mais maior pormenor, com tudo o que esta expressão possa significar de bom e de mau.

A História faz-se quando os factos começam a ficar frios e, por isso mais exactos e compreensíveis. Ainda agora andamos a re-estudar as Invasões Francesas, ocorridas há exactamente 200 anos, e temos chegado à conclusão que foram tudo menos um jogo Portugal – França a contar para a Taça dos Países com Guerra…

Claro que os opinadores não podem ser aceites, especialmente aqueles que, não tendo estado no terreno, vêm agora explicar como é que se devia ter feito. Como se os povos reagissem “na maior ordem” nas alturas de tensão e crise e as sociedades funcionassem de acordo com as “directivas superiores”… (Se assim fosse a vida dos sociólogos era uma monotonia…) Onde é que isso aconteceu? Não te esqueças que nos degladiávamos havia 13 anos e, por vezes de forma muito dura.

Ter estado e com grande entrega não é, por si só, uma vitória na guerra. É apenas a conduta própria dos homens jovens, por isso mais generosos. E a entrega é própria de quem tem certezas, não esqueças. Nós talvez as tivéssemos, pois nunca tínhamos tido tempo para as questionar, digo eu, claro…

Não creio que alguma vez tenhamos deixado de olhar para o inimigo como inimigo, nem vejo que a recíproca não seja verdadeira, nem havia razões para que assim não fosse. Suponhamos que o Inimigo não passava de um bando de terroristas criminosos. Ao serem capturados deveriam ter sido julgados e condenados, nem que fosse num julgamento imperfeito e tendencioso. E foram-no? Não. Eles eram soldados inimigos. Claro que há maneiras e “maneiras” de tratar o inimigo, mas isso não cabe aqui e agora… Não considero que tenhamos vencido porque hoje realmente não vemos aquele povo e aquela Nação como inimiga. Era imoral e irracional se assim fosse. Devemos vê-la como uma Nação e um povo que gostaríamos – e até gostamos – de ajudar a ser mais fraterna, mais solidária, mais coesa e sobretudo mais feliz. Mas isso não nos dá a vitória. Custa-nos, ver tantos mortos de um lado e de outro, e afinal não vemos um povo mais independente, um povo mais feliz. É o nosso comportamento de homens civilizados a funcionar e nada mais. Claro que a culpa não é só deles, mas também daqueles que não souberam fazer tudo o que estava ao seu alcance para que a Nação se construísse na paz e no progresso. Esta afirmação aplica-se a qualquer outro povo/país flagelado com lutas fratricidas e assolado pelas diferentes formas de miséria, mas convém não esquecer que quem ganha uma Bandeira e uma forma independente de estar no mundo é responsável a partir daí.

Já agora, camarada, lembro-te que as Bandeiras ganham-se contra alguém e é muito raro que essas vitórias não sejam acompanhadas de violência. A História prova-o. Daqui que eu não possa aceitar que nós ganhámos a guerra e que o PAIGC ganhou a guerra.

Só havia dois beligerantes: nós (Portugal) e a Guiné (representada pelo PAIGC). Não entendo como é que quem veio a perdeu total e completamente. Os poderes guineenses independentes só teriam que conquistar o respeito do seu povo – o que é o mais lógico – e os poderes portugueses não eram, e bem, chamados a intervir, para além da ajuda que lhes fosse pedida. Esta sim deveria, talvez, ter sido dada com o estatuto de Nação “mais favorecida”. Mas já passaram 35 anos…
Estou absolutamente de acordo quando afirmas que neste espaço, nos convívios, encontramos espaço para falar do que não falávamos e isso é a razão porque nos devemos manter unidos à volta deste mais que projecto, que nos une até nas divisões próprias do pensar de cada homem, mas que nos leva a fazer a história, feita das nossas histórias, que um dia poderá ser a verdadeira história da guerra da Guiné e não aquela que alguns que sobre ela escrevem querem que seja, por razões que apenas lhes assistem a eles, e com isto não me estou a referir a ninguém em particular, que fique bem expresso.

Também a mim me resta-me deixar-te o abraço de quem contigo viveu momentos que nunca esquecerá e a todos os que os viveram também por aquela Guiné dos nossos sonhos.

Um Abraço do
António Costa
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4672: Blogoterapia (117): Quem somos nós? (António J. Pereira da Costa)

(**) Vd. poste de 13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4680: Resposta ao amigo Pereira da Costa (J. Mexia Alves)

(***) Vd. poste de 8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4801: (Ex)citações (37): Propaganda (Vítor Junqueira)

Guiné 63/74 - P4812: Contributo sobre a CCAÇ 4942/72 (António J. Sampaio) (2): "Os primeiros dias"

1. Mensagem de António Sampaio, ex-Alf Mil na CCAÇ 15 e Cap Mil na CCAÇ 4942/72, Barro, 1973/74, com data de 6 de Agosto de 2009:

Caro Camarada

Envio hoje mais uma página para a história da 4942/72 que eu conheci.

Se acharem que não deve ser publicada não publiquem. Em consciência devo estas recordações aos camaradas dessa Companhia com quem convivi.

Gostava que estas linhas, fizessem acordar outros que também com eles viveram.

Enquanto me permitirem, darei conta de figuras como o Rui (cabo da arrecadação e o melhor apontador de morteiro - por instinto que conheci), o Prioste (mecânico que chegou a chefe de mecânicos da Fiat no Funchal – segundo creio), o Mosca (melhor pescador que conheci – à granada ofensiva), o Silva das transmissões (que nos ia matando numa crise de total descontrolo – era dos forcados de Vila Franca de Xira) e de muitos outros que recordo como parceiros de bons e maus momentos.

Se me quiser juntar à lista agradeço, e se a puder editar também por apelidos então era ronco mesmo.

Um abraço e até um dia destes ao café se andar cá por Leça
António Sampaio


Contributo sobre a CCAÇ 4942/72

2.ª Parte (*)

“Os primeiros dias”

O ambiente era totalmente irreal para uma situação de guerra e se de facto o 25 de Abril já tinha ocorrido, não é menos verdade que se continuava a fazer operações. E se os contactos não tinham a violência a que todos estávamos habituados, não tinham simplesmente deixado de acontecer.

Não foi fácil a alguém, com a formação militar a que tinha sido sujeito desde os 10 anos de idade, perceber o que ali se passava.

Ainda hoje não tenho a certeza absoluta do que se passou. Penso conhecer alguma da verdade mas tenho igual certeza de não a conhecer toda.

Continuo no entanto firmemente convencido de que não há maus soldados, somente podem ser mais ou menos difíceis. Pode haver, isso sim, comandos melhores ou piores, ou mais ou menos adaptados ao pessoal que comandavam.

Foi talvez uma falta grave nunca se ter feito essa avaliação. Quantas vidas se teriam poupado?

Passado este aparte.

Tentou o Alf Lima explicar a situação e o melindre e dificuldade operacional que representava, pois nem garantia a segurança das instalações e do pessoal.

Como o fim da tarde ocorreu sem demora, informaram-me que era hora de jantar e que estavam à espera que o Alf Lima desse autorização.

Com o respeito que sempre lhe reconheci e que se transformou em amizade, séria, perguntou-me se podia autorizar o inicio da refeição e se eu próprio não queria jantar também. O que de facto aconteceu.

Primeiro choque – numa unidade em que estavam 1 capitão e 3 alferes, os alferes não tinham autorização de se sentar à mesa com o capitão. Mesas separadas e poucas conversas era a norma, como fui informado.

Convidei o alferes Lima para me acompanhar e perguntei pelos outros alferes. Só um estava presente e foi-me nessa altura apresentado, à civil. O outro encontrava-se destacado em Ingoré como fui informado. Mas, enfim, já fomos 3 à mesa e nunca mais deixou de ser assim. Felizmente!!!!!!!!!!!!!!!!!

A classe de sargentos, também fazia segregação. O 1.º Sargento sentava-se sozinho à mesa (o exemplo vinha de cima), mas para mostrar a incongruência da situação, passada a refeição sentava-se à mesa da lerpa, onde profissionalmente limpava o furriel mecânico que ali deixava tudo o que lá ganhava. Enfim...

Uma noite de descanso refez as forças para enfrentar o desafio.

Sempre dormi bem, até bem demais (ainda em Mansoa, na CCAÇ 15, durante um alto, adormeci no trilho e só fui acordado por um fiel balanta, caso contrário se calhar ficava numa situação difícil.

Recolhidas as informações que quiseram dar-me e feita a analise da situação, confirmei a ideia inicial de que estava num buraco.

A análise às fichas do pessoal indicava uma Companhia que parecia mais um depósito disciplinar do que uma unidade operacional. Castigos em cima de castigos era o que se via mais nas notas de assento. Não podia ser verdade. Admitia dois ex-desertores, alguns ex-refractários, algumas porradas no CTIG, mas tantas?

Tinha de haver alguma razão para isso. Urgia descobrir qual e rapidamente senão corria o risco de ainda piorar a situação.

Apresentei-me a uma Companhia devidamente formada antes de almoço e após curta apresentação, seguida por muita desconfiança, pareceu-me que o primeiro passo para a normalização da situação, estava dado.

Nessa tarde os camaradas alferes refizeram as escalas de vigilância e reforços dos postos da breda e dos 81, que por incrível que pareça não eram guarnecidos desde a crise.

Houve que normalizar o rancho, as messes e os bares.

Parece mentira? Foi o que me pareceu a mim também na altura.

Havia ranchos diferentes para oficiais e sargentos e praças.

Havia messe de oficiais, outra de sargentos e o refeitório das praças. De notar que havia a mesa do capitão e a dos alferes. Nos sargentos o 1.º comia em mesa separada dos furriéis.

No bar, uma tabanca a servir para o efeito, havia separação idêntica à da messe, não sendo os alferes convidados a co-habitar com o capitão. (não sei se na lerpa o senhor não estaria presente pois o 1.º precisava de ganhar a vida e ganhava...)

Tudo isto tinha sido determinado superiormente!!!

Para abreviar...

O maior escândalo rebentou quando sugeri que se fizesse um torneio de futebol entre os 3 GCOMBs, encarregando-me eu de tentar pôr de pé uns joguinhos de volei (onde me sentia mais à vontade, pois nunca fui de futebóis) em que eu também participava num campo que com voluntários improvisámos na placa do heliporto. Jogar ao lado de soldados não era considerado conveniente num passado próximo e criou grande expectativa.

Como não podia deixar de ser, ajudou a quebrar a barreira de gelo e a começar aquilo que se tornou numa sã camaradagem, confiança e respeito, entre todos.

Passado poucos dias, comovi-me quando pedi um grupo de voluntários para uma missão e a Companhia em peso deu um passo em frente.

ESTAVAMOS TODOS NO MESMO BARCO. COMEÇAVAMOS A SER UMA FAMÍLIA.
__________

Nota de CV:

(*) Primeira parte do "Contributo sobre a CCAÇ 4942/72, integrado no poste de apresentação do nosso camarada António Sampaio de 9 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4662: Tabanca Grande (159): António João Sampaio, ex-Alf Mil da CCAÇ 15 e Cap Mil da CCAÇ 4942/72 (Guiné, 1973/74)

Guiné 63/74 - P4811: Informações adicionais ao Poste 4800 (Hélder Sousa)

Hélder Valério (*), ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72, deixou este comentário no poste "Guiné 63/74 - P4800: Em busca de... (85) O Fiat do..." (**):

Caros amigos e camaradas, em particular o José Rocha, das Transmissões do BART 2875 de Piche.
Não sou a pessoa mais indicada para responder às dúvidas que ele apresenta e mesmo um ou outro aspecto não entendo bem.
No entanto vou tentar alinhar algumas informações/respostas que podem ajudar.

Na área onde o José Rocha esteve, Piche, já pudemos ler aqui no Blogue que a organização territorial mudou à medida da evolução do esforço de guerra e das suas vicissitudes. Não indo mais atrás no tempo, temos que o BART 2857, esteve na zona de 68 a 70, sendo depois substituído de 70 a 72 pelo BCAV 2922, o qual, por sua vez foi substituído pelo BCAÇ 3883. Os dois últimos Batalhões tinham como área, para além da "sede", Piche, Companhias colocadas em Buruntuma e Canquelifá e seus Destacamentos, sendo que o do José Rocha também tinha inicialmente Bajocunda, salvo erro.

Também se fala muito de Copá, que pertencia organizacionalmente a Pirada, mas que, segundo o livro/relato da história da CCAÇ 3545 feito e publicado por Fernando Sousa Henriques, Alf Mil Op Esp daquela Unidade, como ficava no limite da sua área de intervenção, era algumas vezes apoiada por eles.

Sobre os "comentários sobre Canquelifá de 72/74 feito por pessoas que nunca lá puseram os pés", não sei bem a que é que o José Rocha se refere, mas é realmente verdade que há um P1216 (***) de António Santos, das Transmissões do Pelotão de Morteiros 4574/72 que na época estava adstrito ao Batalhão sediado em Nova Lamego e que diz: "Copá foi extinto em 14 de Fevereiro de 1974, após violentas flagelações, Mareué idem em 11 de Março de 1974, mas o aquartelamento mais sacrificado foi o de Canquelifá, que sofreu flagelações a toda a hora. Neste caso a arma mais utilizada foi o morteiro 120, e houve abrigos que não resistiram.

A 20 de Março de 1974, entrou em cena o Batalhão de Comandos Africanos, com as três Companhias que dele faziam parte integrante. Saíram de Nova Lamego em coluna composta por viaturas militares e civis e dirigiram-se para o local. A operação durou 3 dias, de 21 a 23 de Março 1974. Segundo os canhenhos militares, capturaram 3 Morteiros 120, 1 RPG, 2 espingardas, 367 granadas de Morteiro e deixaram 26 mortos do lado IN (do nosso lado nada dizem)...

Mas cá o rapaz, no dia 22 [de Março de 1974], como não fazia nada, e porque o condutor da ambulância era do meu pelotão e foi chamado à pista, eu fui com ele. Chegados ao local, era um vaivém de helicópteros que traziam mortos e feridos. Eu dei uma mãozinha para pegar nas macas. Retirava dos helis e, segundo instruções do médico, ora pousava na pista (estava morto), ora colocava num Dakota que estava logo ali (estava muito ferido)... Vi pernas destroçadas por estilhaços de não sei de quê!"

Calculo que a referência aos tais "comentários sobre Canquelifá por pessoas que nunca lá puseram os pés" seja, de facto, retativa ao que o António Santos relata, mas fico sem saber se o que o José Rocha pretende é algum tipo de esclarecimento sobre o que o António Santos diz, por se estar a falar dum local que em tempos anteriores tinha pertencido à área de acção do Batalhão do José Rocha e ele, José Rocha, não ter tido conhecimento (o que o A. Santos refere é passado em Março de 74...) ou porque a "coisa" lhe parece "mal contada".

Nessa época eu também já não estava na Guiné, por isso só posso "ajudar" relatando o que a propósito está no tal livro com a história da CCAÇ 3545, Companhia que estava em Canquelifá, e que diz, para esse dia:
"A 22 de Março, pelas 08H30, um grupo IN, estimado em mais de 200 elementos, emboscou uma coluna constituída por duas Chaimites, uma White, três Berliet e quatro Unimog, no itinerário Piche-Nova Lamego, na região de Bentem, causando às NT 6 mortos, 15 feridos graves e 3 feridos ligeiros, que se discriminam a seguir".

No livro referido ("No Ocaso da Guerra do Ultramar", de Fernando de Sousa Henriques) apresentam-se então os nomes dos vitimados, que foram:

- mortos:
Fur. Manuel Joaquim Sá Soares, responsável pela Chaimite;
Fur. José António Teixeira, responsável pela White;
Sold. Vítor Manuel Jesus Paiva;
Sold. João da Costa Araújo;
Sold. Bambo Nanqui;
Sold. Bailo Baldé.

- feridos graves:
Fur.Carlos Manuel Fanado (ficou sem as duas pernas);
Fur. Carlos M. Charifo;
Fur. Cherno Jaló;
1.º Cabo Manuel da Silva Saavedra;
1.º Cabo Silvino Neto de Matos;
1.º Cabo José Bacar Sané;
Sol. Adelino Dias;
Sold. Numar Camará;
Sold. Carlos Alberto Queba;
Sold. Braima Balde;
Sold. Seco Maru Baldé;
Sold. Rachide Bari;
Sold. Ingala Embaló;
Sold. Pedro Dias;
Sold. Ba Turé.

- feridos ligeiros:
Fur. Pedro Manuel dos Santos;
Sold. Joaquim Rolando Pinto;
Sold. Domingos Dias Salgado.

Após a listagem das nossas baixas, o relato remata com "nesta forte emboscada, em que o IN, que se encontrava instalado do lado Sul da estrada e com elementos seus em cima das árvores, sujeitou toda a coluna a intenso fogo de RPG-2 e RPG-7, assistiu-se, logo de início, à destruição de 1 viarura Chaimite, que ardeu juntamente com o condutor e o Furriel que a comandava, de 1 White e de 1 Berliet. O IN capturou ainda 3 espingardas G3, 1 metralhadora HK21 e 1 Racal TR-28. De registar o facto de o 1.º Cabo Augusto Nunes da Graça ter resgatado da Chaimite, já em chamas, o Capitão Fernando Ferreira e o Furriel Pedro Santos".

Espero que estes dados possam ajudar o António Santos a dar corpo à notícia que tinha dado antes sobre as consequentes evacuações a partir de Nova Lamego e que possam também satisfazer as dúvidas do José Rocha.

Aproveito para relembrar o José Rocha que ao tempo dos acontecimentos acima descritos a estrada Piche-Nova Lamego já era toda alcatroada e bem desmatada em ambos os lados, o que dava uma (falsa) sensação de segurança, pela ideia que se tinha que seria possível ver á distância qualquer problema que o IN eventualmente pretendesse colocar.

Isto que acima relatei foi o que aconteceu em parte do 1.º trimestre de 74, sendo que no que diz respeito aos tempos de 70-72, ou seja do Batalhão que sucedeu ao do José Rocha, isso já está no que o Francisco Palma escreveu.

No que diz respeito à questão do Fiat abatido, na zona, tudo o que li, no Blogue e no livro que dei conta, foi de facto em 31 de Janeiro de 74. O mês de Março foi também muitas vezes indicado como um mês funesto para a nossa FA, por força dos abates de Fiat's, mas em 1973, nunca vi nada referido a 74, mas também não consigo ler tudo.

Relativamente à história do piloto do avião abatido em 31 de Janeiro, que andou pelo Senegal, utilizou bicicleta, passou por Dunane e foi até Piche, já foi tudo contado, recontado e reafirmado.

Espero ter ajudado.

Um abraço
Hélder S.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4593: Controvérsias (22): As influências dos grandes mestres (Hélder Silva / José Brás)

(**) Vd. poste de 8 de Agsoto de 2009 > Guiné 63/74 - P4800: Em busca de... (85) O Fiat do Pilav Gil foi abatido em Janeiro ou em Março de 1974? (José Rocha)

(***) Vd. poste de 27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1216: A batalha (esquecida) de Canquelifá, em Março de 1974 (A. Santos)

Guiné 64/74 - P4810: ”PAIGC – Análise dos tipos de resistência , 2 - Resistência económica” - Páginas 15 a 19 (Magalhães Ribeiro)

1. Do arquivo pessoal, do Eduardo José Magalhães Ribeiro, ex-Fur Mil Op Esp (Ranger) da CCS do BCAÇ 4612/74, Mansoa 1974:

Camaradas,

Para os interessados no conhecimento da documentação, hoje histórica, que circulava entre as hostes do PAIGC, nos anos 70, e constituíam peças da sua escassa bibliografia aplicada na filosofia da acção psicológica sobre os seus seguidores, apoiantes e outros interessados dou, nesta mensagem, continuidade à publicação de um caderno prático utilizado nessa finalidade.

A publicação foi iniciada no poste - P4721 (capa e páginas 1 a 4) e continuada nos postes – P4753 (páginas 5 a 9) e P4799 (páginas 10 a 14).

Neste, seguem-se as páginas 15, 16, 17, 18 e 19, dum total de 28 páginas.

A qualidade de uma ou outra página não é das melhores.

O documento tem inscrito na capa os seguintes dizeres: ”PAIGC - ANÁLISE DOS TIPOS DE RESISTÊNCIA, 2 - Resistência económica, Aos camaradas participantes no seminário de quadros, realizado de 19 a 24 de Novembro de 1969, (Este texto é escrito a partir de uma gravação das palavras do secretário geral)”.






Um abraço Amigo,
Magalhães Ribeiro

Documentos: © Eduardo José Magalhães Ribeiro (2009). Direitos reservados.
__________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

8 de Agosto de 2009 >
Guiné 64/74 - P4799: ”PAIGC – Análise dos tipos de resistência , 2 - Resistência económica”, Páginas 10 a 14 (Magalhães Ribeiro)

Guiné 63/74 - P4809: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (12): Fá Mandinga, o único sítio onde tive direito ao luxo de um quarto

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fá Mandinga > CART 2339 (1968/69) > Do álbum fotográfico do Torcato Mendonça, Fotos Falantes II, nº 1: em cima, o quarto do Alf Mil Torcato Mendonça; a meio, o artista, junto à janela; em terceiro lugar, a contar de cima, a ceriomónia do hastear da bandeira... Muitas subunidades passaram por Fá Mandinga, para se ambientarem ao terreno e ao clima da Guiné, antes de seguirem para o seu destino: no caso da CART 2339, foi Monsambo, entre Bambadinca e Xitole, um estratégico aquartelamento construído de raíz pelo Alf Mil Mendonça e seus camaradas da CART 2339. Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Direitos reservados. Estórias de Mansambo II > Fá Mandinga por Torcato Mendonça (*) Finalmente chegaram. Já a tarde ia alta e Fá Mandinga aí estava. Não parecia um aquartelamento. A entrada tinha a cancela com arame farpado, uma leve protecção para o militar da porta de armas e, enquanto rolavam aquartelamento dentro, iam aparecendo os edifícios adaptados à tropa. Coluna parada e ordem para desembarcarem. Deu-se então o reencontro com um alferes e um sargento que, umas semanas antes, por via aérea os tinham precedido a fim de tratarem das burocracias e instalação da Companhia Independente. Tiveram recepção calorosa e a vida, de burocracias e instalação facilitada. Breve formatura, material diverso arrumado e está a tratar da instalação. A ele e ao outro alferes indicaram-lhe uma “vivenda”. Já lá estava o outro alferes instalado. A dita vivenda, certamente de algum antigo colaborador de Amílcar Cabral, tinha quartos para os alferes, messe de oficiais e sargentos, cozinha e arrumos e duas ou três casas de banho. Não sabia que aquele quarto, que agora ocupava e onde ia arrumando as suas roupas, livros e demais haveres, seria o primeiro e único quarto onde viveu na Guiné. Nunca mais teve tal luxo. No futuro seria o abrigo, a morança das tabancas ou, se pernoitasse em Bambadinca ou noutra cidade, lá teria o quarto de empréstimo. Houve outros poisos mas são outras vidas… Bateram à porta e disse: - Entre. Abre-se a porta e aparece um africano com um sorriso alvar e franco. - Sou o Lali e trabalho aqui para os oficiais. Venho acender o Lion Brand. - Vem acender o quê? - disse. O Lali ria, mostrava uma caixa e disse: - É para os mosquitos fugirem. Foi a vez de ele rir. Depois de acender, perguntou se ele precisava de alguma “coisa”. - Sente-se aí, que quero fazer umas perguntas. De pronto o Lali respondeu: - Não posso sentar… Olhou-o e compreendeu. - Logo falamos então. Saiu e dirigiu-se às instalações do Grupo, apanhando o ar, ainda quente, do final da tarde, sentindo aqueles cheiros e sons tão diferentes. Estava tudo a correr bem, conversaram um pouco, viram escalas e serviços e sentia-se, os outros também certamente, deslocado naquele ambiente. Depois do jantar veio até cá fora um pouco e não tardou a regressar ao quarto. Agora é que era e “a dança ia começar”… ____________ Nota de L.G.: (*) Vd. postes anteriores desta série que, por diversas razões, não seguido uma ordem lógica e cronológica: 29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4435: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Bissau, a caminho de Fá 4 de Junho de 2009 Guiné 63/74 - P4459: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (8): Mussá Ieró, tabanca fula em autodefesa, destruída em 24/11/68 1 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4618: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Cansamba, subsector de Galomaro, 1 de Agosto de 1969 3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4633: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Bafatá, Amor e Ódio 14 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4683: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (11): Cansamba II, o Serra e o Burro

Guiné 63/74 – P4808: Estórias do Zé Teixeira (37): “A vala, salva vidas” (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Mais uma estória do nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, enviada em 8 de Agosto de 2009: 

A VALA, SALVA VIDAS

(do meu Diário)

Buba, 1968 - Julho, 22

…Chegado a Buba, toda a gente correu para os poucos chuveiros existentes, formando fila. Enquanto uns se molhavam, outros esfregavam o sabão, fazendo um rodopio. Os restantes, completamente nus, esperavam pacientemente uma vaga, quando o IN apareceu a baptizar a Companhia atacando de canhão sem recuo, morteiro e "costureirinha". De repente um estrondo lá longe. Logo se ouviu a frase mágica que eu nunca mais vou esquecer - “Aí estão eles” - vinda de vários lados.

Numa fracção de segundos, o tempo da vida ou da morte, toda aquela gente desapareceu da vista.

Depois, bem depois, foi ouvir uma música muito estranha, de granadas de canhão e de morteiro a rebentar por perto. Armas ligeiras a vomitar fogo, rebentamentos a distância originários das nossas armas pesadas. Enfim, uma festa. Terrível festa. Os guerrilheiros atacaram com canhões sem recuo de dois sítios diferentes, segundo dizem, causando ainda mais confusão. Felizmente caíram todas fora do arame farpado, não deixando mazelas. Tentaram durante alguns minutos arrasar Buba, o que não conseguiram por fraca pontaria.

Em simultâneo com o ataque desabafa uma tempestade de chuva.

Deitado na vala e a aguentar a chuva e a metralha, completamente nu, com o corpo cheio de sabão, assim esperei que acabasse a "festa", para me ir vestir pois o sabão do corpo saiu por si, graças à chuva.

Que espectáculo! Centenas de corpos (muitos nus) encharcados, mas alegres, saíam calmamente da vala. O chuveiro rapidamente se encheu de novo, como nada tivesse acontecido. A vida continuava porque mais uma vez escapámos.

Perante esta dantesca cena, rendi-me à necessidade de me recolher, encostado à parede da caserna e dar graças a Deus, pela vida que sentia palpitar no coração, a recuperar de um grande susto.

VALA BENDITA

Estranho ruído ao cair da noite escura.
Quebra o silêncio expectante,
Atira-me para a vala,
Abrigo sem cobertura.
Salva-me a vida, naquele instante.
Tenebroso e longo momento.
Angustiante.
O coração bate como nunca senti.
Eu também fugi,
Ao ouvir, “aí estão eles”.
Que algum camarada gritou,
Quando, ao longe o estrondo da “saída”
Para o perigo o alertou.
Porém,
A granada que ali tão perto rebentou,
Mais uma vida levou.
Ah Vala!
Trincheira do medo,
Trincheira da sorte.
Vala bendita,
Que nos escondes da morte.
Momentos.
Minutos que são horas.
Tanto tempo…
Em que a vida não acontece.
O silêncio dos rebentamentos,
Impera.
O corpo estremece,
O medo entorpece.
Alguns, talvez poucos,
Dirigem a Deus uma prece
No tempo da catequese aprendida
Desordenada,
Remendada.
Há muito tempo esquecida.
Mas bem sentida.
Na esperança que a bala a si destinada,
Seja pela mão de Deus
Desviada.
E não lhe roube a vida.

Um abraço,
Zé Teixeira
1º Cabo Enf

Fotos: © José Teixeira

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4807: Estórias do Mário Pinto (9): O stress pós-traumático de guerra nos ex-combatentes, sem-abrigo, da zona de Lisboa

1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá", Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71, vive na margem sul do Rio Tejo – Setúbal -, e apesar de ter a sua vida muito ocupada, arranja tempo para fazer vigílias nocturnas pelas ruas de Lisboa, afim de prestar o auxílio possível aos ex-Combatentes (sem abrigo), muitos deles a sofrerem de stress pós-traumático de guerra.

É sobre o desenvolvimento deste seu trabalho extraordinário, e a sua dramática e dolorosa experiência e apreciação desta causa, que abraçou e acarinha, que nos enviou duas mensagens, com data de 09 de Agosto de 2009:

Camaradas,

Gostaria que este texto, na medida do possível, fosse publicada em poste, pois isto que a seguir vou cantar não são estórias… são tristes realidades.

Como o camarada Sargento-Mor (Luís Graça) ainda está nas suas merecidas férias, e o nosso camarada Sargento de Dia (Carlos Vinhal), anda muito ocupado a pôr a nossa Companhia a fazer ordem unida, uma vez que tem havido camaradas que andam a trocar o passo.

Só me resta o Sargento de Ronda (Magalhães Ribeiro), que apesar de estar também em férias, lá vai fazendo a ronda pelo “quartel” (Tabanca Grande).

Sendo eu Cabo do Piquete ontem, Sábado, como já vem sendo hábito à algum tempo a esta parte, fiz a minha vigília social (que incluiu uma sortida à cidade de Lisboa), integrado numa associação de voluntários bem conhecida, que presta assistência aos mais desprotegidos - “sem abrigo” -, onde, infelizmente, se encontram muitos Camaradas nossos ex-militares Veteranos de Guerra, padecendo de stress pós-traumático de guerra, muitos deles da frente da Guiné.

OS SEM ABRIGO E O STRESS PÓS-TRAUMÁTICO

Como sempre, e após estas missões, fico agoniado, envergonhado deste país e com uma revolta interior enorme, difícil de debelar, por não poder resolver os graves problemas de degradação da condição humana que me são dados a observar.

Quem tinha por obrigação de o fazer, não o faz e, pior no meu ponto de vista, trata este grave problema nacional como se o mesmo não existisse.

O Exército Português, anda a proceder ao desmantelamento de um grande número das suas unidades. Ainda agora, o R.I. 11 de Setúbal, foi convertido na Escola Hoteleira de Setúbal (suas novas instalações). Não poderia, ou deveria, uma destas suas instalações servir para oferecer abrigo aos nossos infelizes Camaradas.

Isto seria o mínimo exigível a colocar o mais rapidamente na prática, enquanto não é tarde demais.

Os ex-Combatentes mais novos da Guerra do Ultramar têm 55/56 anos de idade, os mais velhos contam com 69/70 e mais anos de idade.

Um desconhecido número deles está doente.

NÃO SÃO ESTÓRIAS… SÃO REALIDADES!

É hoje uma triste realidade, infelizmente, as centenas de ex-Camaradas nossos que vivem na rua sofrendo do chamado Stress Pós-Traumático de Guerra.

Existem cerca de 150.000 antigos combatentes confirmados, por diversas instituições, a tomar fármacos para minorar os efeitos desta terrível doença. Quem o afirma é o presidente da A.P.V.G. (Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra) - Sr. Augusto de Freitas (médico). Mais afirma que existem centenas de camaradas nossos a viver precariamente e alguns a “rastejarem” e sobreviverem nas ruas, sem qualquer protecção ou abrigo.

Apesar do assunto ter já sido por diversas vezes debatido na Assembleia da República, e terem sido criados, por despachos, os Decretos-Lei 50/2000 de 7 de Abril, 35/99 de 5 de Fevereiro, 157/99 de 10 de Maio, criada a Lei 46/99 de 16 de Junho e a publicação em Diário da República - 2.ª série de 5/8/2004, do despacho conjunto MDN e MS sobre o Stress de Guerra e o seu Reconhecimento, a verdade é que pouco, ou nenhum, resultados práticos têm dado esta legislação toda.

O apoio aos nossos camaradas continua a ser prestado por Homens de Boa Vontade e por Instituições Beneméritas, com as suas melhores organizações como: L.C., A.P.V.G., L.B.V., M. S.V., S.C.M., O C.A.M.P.S., O C.E.A.M.P.S., A.P.O.I.A.R. e CAIS, entre outras espalhadas pelo Pais.

No dia 25 de Maio 2009, realizou-se na Liga de Combatentes um encontro de reflexão sobre a situação dos nossos Camaradas “sem abrigo”, com a presença do Sr. General Joaquim Chito Rodrigues, onde foi delineado o apoio a prestar a estes nossos Camaradas e a " Estratégia Nacional Para a Integração de Pessoas Sem Abrigo (2009/2015).

Segundo os estudos da Drª. Luisa Sales do Hospital Militar de Coimbra, sobre esta matéria, apresentado no âmbito do Congresso Nacional de Psiquiatria e Saúde Mental, foi referido que os sintomas de “stress” de guerra, pode manifestar-se ao fim de 30 anos, bastando para isso o simples ouvir de noticiários sobre qualquer guerra, sons de helicópteros, tiros ou explosões.

As alterações do sono são os sintomas mais frequentes no stress pós-traumático, causado por factores diversos como: ferimentos em combate, morte de camaradas, emboscadas, privação de necessidades básicas e vivencia de uma situação de prisioneiro de guerra.

Tudo isto são situações que quase todos nós vivemos.

Os nossos governantes limitam-se a decretar. Lavam assim as mãos como Pilatos e agora… desenrasquem-se como sempre fizeram pela vida fora!

Isto não é justo. Por isso é que apelo a todos para que invadam os sites e e-mails destes senhores, com petições, umas atrás das outras, em prol dos nossos camaradas “sem abrigo”.

Muitos já faleceram sem qualquer tipo de apoio… abandonados à sua sorte.

Por isto, deixo aqui um apelo à nossa Tabanca Grande e a todos os nossos Camaradas de boa vontade, que com dirijam mensagens aos nossos governantes, de demonstração de repúdio e revolta pela manutenção desta lamentável situação

Se cada um de nós enviar um e-mail e dermos conhecimento a outros nossos Camaradas, para que façam o mesmo, seremos milhares a “massacrar-lhes” as consciências.

Não nos podemos esquecer que a unidade faz a força, e a NET é uma arma poderosa.

Não temos nada a perder, a não ser os remorsos de baixarmos os braços e abandonarmos esta digna e nobre luta.

Seguem os sites e e-mails das entidades a visar:

PRESIDENTE DA REPÚBLICA
(O mesmo contem um espaço de comunicação)

PRIMEIRO MINISTRO
Correio electrónico: pm@pm.gov.pt
Página Int. Primeiro Ministro

ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
Procurar local Presidente
" " Grupos Parlamentares

MINISTÉRIO DA DEFESA NACIONAL
Procurar MDN
Ou, antigos.combatentes@defesa.pt

ESTADO MAIOR DO EXÉRCITO
Chefe Estado-Maior do Exército
ceme@mail.exército.pt

Não se esqueçam que somos um exército de 900.000 ex-Combatentes, se pelo menos 1/9 de nós fizer este gesto, seremos a maior manifestação no género no país.

O objectivo é fazermos tal bombardeamento às suas tabancas, que os mesmos sejam obrigados a vir ao terreno, conferenciar com as nossas instituições para a resolução do problema.

Força camaradas!

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Fotos: © José Félix (2009). Direitos reservados.
__________
Notas de M.R.:

(*) Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho


1. Continuação da publicação das memórias do Cherno Baldé, menino e moço em Fajonquito (1970/75), hoje quadro superior da administração pública da República da Guiné-Bissau (*):


Os amigos conhecem-se pelo volume da dádiva, ou....das sobras


Após a última partida [de futebol] da tarde e depois do toque da corneta das 19H30, voltava para o meu cantinho no quartel[,em Fajonquito,] a fim de recolher as sobras do jantar.

O meu barulhento patrão, o Dias, raramente trazia alguma coisa do refeitório, ele comia tudo e nem sequer se lembrava de pedir uma segunda dose, ocupado em pôr pitadas nos mexericos e conversas alheias, brigando as vezes quando tomava alguns copos de tinto a mais. Mas, mesmo assim, era ele que ordenava aos outros para me trazerem a comida, assegurava-me prontamente, atirando o seu prato no chão ainda por lavar.

Felizmente o Teixeira, um fino e aprumado lisboeta, mecânico-auto, vinha sempre atrás para salvar a situação. Ele trazia o prato cheio de comida que solicitava especialmente para mim no refeitório. De todos, era o mais calmo e ponderado, parecia também ser mais instruído. A destoar, todavia, era um pouquinho de nada loiro e muito solitário, passando a maior parte do tempo ocupado em leituras de jornais e revistas com figuras de mulheres semi-nuas, claro, quando o Dias estava a dormir ou se ausentava do quarto.

Ele não nos podia salvar de todos os perigos naquela concentração de jovens soldados endiabrados e mal humorados mas, à sua frente, nunca ninguém se atrevia a dar-nos um pontapé, ele intervinha de imediato, claro, quando o podia fazer. Era ele que se encarregava de recolher o meu salário ao fim do mês, 2 escudos e cinquenta centavos cada um (?), dinheiro que entregava à minha mãe quando não deixava perder no caminho. Não precisava daquele dinheiro para nada, pois, para mim bastava haverem as batatas, os frangos e o bacalhau que, de resto, pelo tamanho e qualidades, nunca mais voltei a encontrar em sítio nenhum.

Havia também o Silva, muito mais novo que os outros, moreno, óptimo futebolista e bom comilão, no dia em que se preparava um guisado de carne ou cozido à portuguesa, ele não trazia nada e encarregava-se, também, de lavar o seu prato.

O quarto homem, o Magalhães, era um empata-fodas de merda, sorriso amarelo e riso solto, sem amigos, sem princípios morais, trazia ou não trazia mas mandava-me lavar o seu prato na mesma e quando demorava a fazê-lo levava ainda um pontapé que fazia cair os óculos ao meu bom e gentil alfacinhas (Teixeira) em cima da sua cama.
- Filha-da-puta-barrote-queimado, ainda a resmungar!...

Ele estava bêbado a maior parte do tempo e não era a mim que ele se dirigia, seguramente. Não, ele dirigia-se a algo, invisível, que estava para lá de mim. De algo que o tinha obrigado a estar ali naquele cu-de-galinha-de-merda, como gostava de repetir, onde certamente não devia estar àquela hora do dia, do mês, do ano...e sei que mais.

Era uma revolta interior contra si mesmo e contra a sua impotência de mudar as coisas na sua maldita vida de soldado raso debaixo daquele calor tropical. Apesar dos momentos de mau humor frequentes, era bom profissional, conduzia um Unimog sempre limpo e impecável e nunca faltava às missões da coluna para Bafatá que tinham lugar uma vez por semana. Ao seu lado ia o Alferes Maia, chefe da missão.

Cherno Baldé

__________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4802: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (10): Futebol: ser do Benfica ou do Sporting, eis a questão

Guiné 63/74 - P4805: Parabéns a você (17): Alberto Nascimento da CCAÇ 84 e Tomás Carneiro da CCAÇ 4745 (Os Editores)

Hoje, dia 10 de Agosto de 2009, fazem anos os nossos camaradas:
Alberto Nascimento da CCAÇ 84 e
Tomás Carneiro da CCAÇ 4745/73 - Águias de Binta.



Alberto Nascimento (*), ex-Sold Cond Auto da CCAÇ 84, Bambadinca, 1961/63.


1. Alberto Nascimento dirigia-se assim ao Blogue em 9 de Junho de 2008:

Caro Dr. Luís Graça:

Sou um ex-militar, soldado condutor-auto, que cumpriu dois anos de serviço na então província da Guiné, entre 6/4/61 e 9/4/63, integrado na Companhia de Caçadores 84.

Como não podia deixar de ser, estes dois anos de convivência com as populações das várias etnias com quem tive contacto, mantiveram em mim o desejo de acompanhar, o mais perto possível, a vida daquele país e daquelas gentes tão maltratados antes e depois da independência.

Sou um dos visitantes assíduos do seu blogue Guiné 63/74, na tentativa de identificar alguns lugares por onde passei ou estive destacado, já que a CCAÇ 84, três meses depois de aterrar no aeroporto de Bissalanca, foi literalmente fragmentada e enviada para os mais diversos pontos do território, tendo o meu pelotão tido como último destacamento, entre Novembro de 1962 e 7 ou 8 de Abril de 1963, Bambadinca, sob o Comando de Bafatá
.[...]


2. Ao Alberto Nascimento, toda a Tabanca deseja um dia de aniversário bem passado junto dos seus familiares e amigos. Que nestas páginas, a contagem dos anos de vida deste nosso camarada, se contem por muitos e plenos de saúde.

Aqui ficam umas fotos ao acaso:



Guiné > Região do Oio > Farim > CCAÇ 84 > 1961 > Eu, à direita com capacete na mão, e o meu camarada e amigo Maximino, de G3 ao ombro

Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ 84 > 1962 > Mais uma pose para a fotografia, a G3 sem carregador

Região do Oio > Farim > CCAÇ 84 > 1961 > Eu, num baga-baga, com a G3, a armar-me aos cucos

Fotos: © Alberto Nascimento (2008). Direitos reservados

____________________


Tomás Carneiro (**), ex-1.º Cabo Condutor da CCAÇ 4745 (Águias de Binta), Binta, 1973/74

Recordemos Tomás Carneiro no dia 24 de Junho deste ano, poucos dias depois do nosso IV Encontro em Ortigosa:

Apresento-me, Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Condutor da CCAÇ 4745 - Aguias de Binta

Caros amigos,
Como alguns já sabem quem eu sou, aqui vai um texto.

Eu estive na Guine entre 1973 e 1974. Era Condutor e cheguei à Guiné no dia 8 de Julho de 1973.
[...]


Para quem já não se lembra, Soares Carneiro veio na véspera do nosso IV Encontro, de propósito dos Açores, Ilha de S. Miguel, para se encontrar com um seu antigo camarada de Companhia. Regressou à sua Ilha no dia 21.

O alvo de tão grande manifestação de amizade e dedicação foi o nosso camarada Pedro Neves.

Duas fotografias desse encontro memorável para ambos, já que não se viam desde o regresso da Guiné, há cerca de 35 anos.

Pedro Neves e Tomás Carneiro. Um reencontro proporcionado pela Tabanca Grande. O mundo é tão pequeno quando visto da porta da nossa Caserna.

Nesta foto aparece também a esposa do Pedro, a Ana Maria, que nos confidenciou que ficou feliz por ver a alegria de ambos quando se reencontraram.

Nesta foto, Henrique Matos e Tomás Carneiro. Que os une? Ambos são ilhéus do Arquipélago dos Açores. Dois representantes daquele valente povo insular.

Fotos: © Eduadro Magalhães Ribeiro (2009). Direitos reservados


Para o nosso camarada Carneiro enviamos um abraço tão grande quanto o mar que nos separa.
No barco da amizade vão os nossos votos de longa vida, plena de saúde junto da família e amigos.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. postes de Alberto Nascimento com datas de:

11 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2930: Bambadinca, 1963: Terror em Samba Silate e Poindom (Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63)

10 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3044: Estórias avulsas (16): Os cães de Bambadinca (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)

14 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3059: Memórias dos lugares ( 9): Bambadinca , 1963 (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)

7 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3181: História de vida (17): A falsa Mariama, mandinga de Bambadinca, a sua filha, e o seu amigo... (Alberto Nascimento)

16 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3459: Histórias da velhice (1): Eu e o 1º Pelotão da CCAÇ 84 em Farim, em Julho de 1961, em socorro de... Guidaje (Alberto Nascimento)

21 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3492: Controvérsias (9): Eu fui para Farim, em Julho de 1961, com a G3, com o 1º Gr Comb da CCAÇ 84 (Alberto Nascimento)

2 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3964: Nuvens negras sobre Bissau (6): O Nino morreu vítima de si próprio (Alberto Nascimento)

18 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4049: As abelhinhas, nossas amigas (5): As abelhas e a NEP (Alberto Nascimento)

8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4796: Estórias avulsas (47): O enfermeiro Lomelino (Alberto Nascimento)


(**) Vd. postes de Tomás Carneiro com data de:

22 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4560: IV Encontro Nacional do Nosso Blogue (6): De São Miguel, Açores, com emoção e amizade (Tomás Carneiro, CCAÇ 4745, 1973/74)

28 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4596: Tabanca Grande (156): O açoriano Tomás Carneiro, ex-1º Cabo Cond Auto, CCAÇ 4745 (Binta, 1973/74)

Vd. último poste da série de 4 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4776: Parabéns a você (16): Rui Alexandrino Ferreira, Cor Reformado (Editores)

domingo, 9 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4804: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (1): "Os Elefantes"

1. O nosso Camarada Carlos Adrião Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676 (Bissau, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), que se apresentou na nossa tabanca em 6 de Agosto pp, enviou-nos a sua primeira estória, com data de 4 de Agosto de 2009:
Camaradas e Amigos:

Imagino que todos os dias devem receber, montes de estórias, fotografias e documentos vários. Eu só tenho isto e quem dá o que tem a mais não é obrigado. Oportunamente mandarei mais.

Os Elefantes
(Memória de Madina do Boé – Novembro de 1964)

O tempo estava a chegar ao fim. Tínhamos vindo só por uma semana e hoje era a última patrulha.

Amedalai, o guia que o régulo da aldeia nos tinha arranjado, parecia entusiasmado com o caminho que estávamos a percorrer. Falou durante todo o tempo, para nos fazer entender que naquela zona já não estávamos na Guiné, a que estávamos habituados.

Aqui começava uma outra Guiné, pouco povoada, misteriosa. De facto esta região, a Sul do rio Curobal, de Beli até Madina do Boé, era a zona “montanhosa” da Guiné. O chão era diferente, rochoso, erguendo-se, aqui e ali, em suaves ondulações, formando, por vezes, uma colina mais proeminente que nós nos apressávamos a trepar para ganharmos um melhor ponto de observação.

Para lá da fronteira, para onde nos dirigíamos, começava, segundo ele, uma vasta planície ocupada por uma nova espécie de selva, a savana. A lendária savana africana reino das feras e das manadas de todas as raças de bovinos que povoam a África. Terra dos elefantes também.

Em silêncio, como para melhor suportar o calor que gradualmente ia aumentando com o passar das horas da manhã, a coluna de soldados embrenhava-se por caminhos e pistas quase despercebidas no meio da mata, obedecendo às directivas habituais neste género de situações.
A missão consistia apenas em dar uma vista de olhos pela mata, investigar qualquer indício da presença de guerrilheiros. Mas a mata era um labirinto infernal, e o que houvesse de verdadeiramente suspeito, de certeza, não estaria ali para se deixar ver, principalmente pelos nossos olhos.

Hoje faltava ir até ao Sul de Madina do Boé. O mais possível ao Sul, evitando, no entanto, entrar no território vizinho da Rep. da Guiné. Como os mapas de pouco ou nada nos serviriam, a ajuda do guia era indispensável.

- “Meu alfero, hoje, com sorte, vai poder ver elefantes, só daqui se podem ver elefantes na Guiné”, afirmou a certa altura, o nosso guia, como se estivesse numa turística expedição de caça.

- “Tens a certeza?”, indaguei eu, incrédulo, mas ao mesmo tempo, esperançoso de que, finalmente, iria ver aquela África idealizada nos meus sonhos de aventureiro juvenil.

- “Sim, meu alfero, verdade! Eu já vi!”

Mas à medida que nos íamos embrenhando naquela mata cerrada a convicção nas histórias que o guia contava, ia diminuindo. E o Amedalai perante o nosso descrédito ia antecipadamente alinhavando desculpas, com a época das chuvas que este ano ainda não tinha chegado, com as confusões da guerra que mudam tudo, etc., etc.

- “Bichos não quer confusão! Quando soldado chega, eles tudo foge! Mas se houver sorte…” – continuava a afirmar ao mesmo tempo que exibia um amplo sorriso de orelha a orelha.

Quando finalmente chegámos ao minúsculo ribeiro que, naquela zona, faz parte da linha de fronteira que separa a Guiné-Bissau da Guiné-Konakri, um tal rio Capege, tão minúsculo que se ultrapassava com uma pernada mais esticada, a paisagem continuava na mesma. Nada de savana.

Mas Amedalai, subiu a um pequeno morro olhava na direcção de Leste, fixou a vista e dava a perceber que lá ao longe, bem ao longe, já na linha do horizonte onde a selva clareava e parecia esbater-se com o azul quase branco do céu, seria ali a savana.

E aquelas manchas que se moviam na linha do horizonte, como uma miragem, não seriam elefantes?

- “Está a ver, meu alfero? Está a ver?”, gesticulava o bom do guia apontando insistentemente para o interior da outra Guiné, tentando convencer-nos de que, algures, no meio daquela neblina lá bem longe, estariam os famosos elefantes. Ali era a terra deles, dizia.

- “Está bem, pronto! Parece que se vê qualquer coisa!” (Com um bocado de imaginação até lá estariam.)

E depois de darmos uma rápida olhadela em redor, viemos embora.

Quando chegámos ao quartel e pousávamos as mochilas, afirmávamos já, muito convictamente, que até tínhamos visto elefantes (mas muito ao longe, claro)!

- “E, vestígios dos turras viram alguma coisa?”

- “Não, não vimos nada!”

Mas mesmo assim, satisfeitos por mais uma missão cumprida, ala que se faz tarde e, “adeus e até ao meu regresso”, como se costumava dizer.

No dia seguinte pegámos nas trouxas, abandonámos o local, as crianças da escola, o simulacro de aquartelamento e os que, por sorte ou destino, teriam de ficar por lá, mais tempo. Esses, sim, iriam ter muito que contar.

Nós ficámos apenas com a vã glória de termos posto os pés do outro lado da fronteira, na outra Guiné (onde os turras se acoitavam), de termos bebido um pouco da água pura daquele inocente riacho e de termos “visto”, lá bem ao longe, mas muito ao longe, uns vultos de elefantes. Seriam?

Vamos crer que sim, senão esta aventura não teria sentido. Mas, se na verdade, nunca os chegámos a ver, no entanto eles deveriam andar por ali, tal como os guerrilheiros de Amílcar Cabral sempre lá estiveram, aguardando o momento certo.

Porque sem elefantes não há África. Eles são o derradeiro símbolo da força e do espírito de África.

Um grande abraço,
Carlos Geraldes – Viana, Mar.2009
Alf Mil da CART 676

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Notas de M.R.:

(*) Este é o primeiro poste desta série: "Gavetas de Memória".

Guiné 63/74 - P4803: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (7): O “Caldas” da CCAÇ 675, Binta - 1964/66


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 7ª estória, que faz parte do seu livro "Golpes de Mao's - Memórias de Guerra", gesto que muito agradecemos, com data de 06 de Agosto de 2009, a que deu o seguinte título:

O “Caldas”

O “Guimarães” levava a bazuca e eu ajudava-o a levar as granadas.


Quando saímos da bolanha para entrar na mata mudámos para o “quadrado”.

Sabíamos que “os gajos” estavam perto. Já tínhamos ouvido vozes...

Ouvi uma rajada e pareceu que o capim à minha frente era “cortado”...

Senti que tinha “levado”... O tiroteio era agora por todo o lado.

Deixei cair a arma... O braço direito não tinha força...

Aguentei-me de pé mas sabia que... ”me tinha calhado”... Não sentia dores mas estava “estonteado”...

O cabo enfermeiro – o "Rato" – ajudou-me a sentar.

Os tiros eram agora só dos nossos... Alguma malta estava à minha volta e lembra-me do nosso Alferes Tavares se chegar ao pé de mim com “cara de caso”.

Mostraram-me a minha arma. A rajada tinha acertado no carregador – 4 tiros –. E havia mais uma marca de bala entre a mola do gatinho e o cano. Quantas levei? Não sei!

Disseram-me que já tinham chamado o helicóptero. Consegui levantar-me e amparado pelo enfermeiro, e com a malta a animar-me, andámos mais um bocado para sair da mata. Onde tinha sido ferido o helicóptero não podia aterrar.

Lá chegamos ao sítio que “devia ser” e... encostei-me para... esperar sentado.

Lembro-me que foram duas horas compridas. Ou... se calhar... quase umas três.

Finalmente lá chegou o helicóptero.

Lembro-me do meu Alferes... ter a lágrima ao canto do olho.

«Olha o nosso Alferes! Isto não é nada. Só acontece a quem cá anda!».

Julgo que chegámos ao Hospital de Bissau por volta das 3 da tarde. Nessa altura já estava cheio de dores. O garrote que levava no braço doía-me “como caraças”!

As caras dos médicos que me viram fizeram-me algum “cagaço”.Ia ser operado logo a seguir. Depois... não sei quanto tempo depois... acordei amarrado a uma cama do Hospital.

Lembro-me de ter os pés amarrados e... o braço ferido estar todo “entrapado”. Só me apetecia dar pontapés... E doía-me. Muito...

Tive 3 dias a leite. Que fome eu passei!

O Joaquim Lopes Henriques, que nasceu nas Caldas da Rainha em 16 de Abril de 1942 e trabalhava na cerâmica até ir para o serviço militar, falou desta fase “complicada” da sua
vida sem dramatizar. Tinha acontecido e... ”prontos”.


Comoveu-se e ficou momentaneamente sem fala quando... se lembrou da visita que o condutor, o Padre Eterno, lhe fez ao Hospital de Bissau.

«Devo-lhe muitos favores! Levou-me uma ventoinha (fazia um calor do caraças no Hospital). Depois... ”à sorrelfa” foi lá fora buscar uma lata de atum e um pão. Nunca nada... me soube tão bem! Que gajo porreiro. Devo-lhe muitos favores!».

Depois... estive uns vinte dias no Hospital. Nessa fase fui só operado uma vez. Aproximava-se o Natal e soube que ia ser evacuado para «casa». Sei que cheguei a Lisboa de avião em 17 de Dezembro de 1965. Fui para o “Anexo” da Rua de Artilharia Um e... deixaram-se ir passar o Natal às Caldas da Rainha, com a obrigação de fazer o “penso” na Enfermaria do R.I. 5. O que fiz.

Depois... regressei a Lisboa e... foram mais 2 anos... de"boa vida"!

Dois anos e... sete operações. Sete!

Tive um ferro no braço.

Depois... chegaram a tirar um bocado de osso da perna para me pôr no braço. Não correu bem. Ficou uma” papeleta” no Hospital Principal e no “Anexo” tive uma semana sem me fazerem o penso(!?). Doía-me mas... tenho a mania de não me queixar!

Foi o Sargento Zé, do Anexo, que me safou. Voltei “de urgência” ao Hospital da Estrela e... mais uma operação.

Nestes “entretantos” com quem é que me havia? Com a minha namorada – a Maria da Conceição –!

Já namorávamos há 4 anos e... com muito tempo livre... engravidei-a! Casámos em 14 de Maio de 1966.

Uns meses depois fui chamado a uma “Junta” de 7 médicos que me disseram: Já foste submetido a 7 operações. Podemos tentar fazer mais alguma coisa, mas... as diferenças para melhor podem não ser muitas...

Não quero mais operações. Já chega.

Foi-me atribuída uma incapacidade de 46% e fiquei com uma “pensão” da Associação dos Deficientes das Forças Armadas. Regressei às Caldas da Rainha e voltei a trabalhar na cerâmica, na SECLA. Tinha limitações mas foram uns gajos porreiros para mim. Também “ajudou” o meu irmão ser encarregado da Fábrica!

Nessa “fase do campeonato” (já com um filho e “teso que nem um carapau”...) valeu-me a Cruz Vermelha Portuguesa que me ajudou a pagar a renda da casa durante 6 meses!

A vida estabilizou e passados alguns anos resolvi ir com o meu irmão para Angola para montarmos uma pequena fábrica de cerâmica. Por acaso... escolhemos bem a altura. Chegámos a Luanda em 18 de Abril de 1974. Uma semana depois dava-se a”Revolução” e... regressámos às Caldas em Dezembro de 1975!

Mais uma vez tesos!

Mais uma mudança na vida. Empreguei-me na “Molde”. Trabalhei até 2003. Agora estou reformado.Com filhos e netos.

Habituei-me ao meu braço da Guiné!

Tenho, apesar de tudo, boas recordações da “guerra”. E a “675” é a minha segunda família. Está claro que todos os anos vou aos “convívios”.

Nos intervalos... tenho tempo e uma “horta” para onde vou sempre que posso. Agriculto alguma coisa e aparecem sempre uns amigos para um petisco!

Mas como aquela “sandes” de atum que o Padre Eterno me deu em Bissau é que nunca mais como!

Um abraço,
JERO
Fur Mil da CCAÇ 675

Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

4 de Agosto de 2009 >
Guiné 63/74 - P4792: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (6): O “Rato” da CCAÇ 675, Binta - 1964/66

sábado, 8 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4802: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (10): Futebol: ser do Benfica ou do Sporting, eis a questão

1. Continuação da publicação das memórias do Cherno Baldé, menino e moço em Fajinquito (1970/75) (*):

Sporting ou Benfica?...

No início eu no sabia que partido tomar entre as duas claques predominantes, Sporting ou Benfica?... Foi o Dias que decidiu. Um dia entrou na conversa dos putos e disse prontamente:
- O Chico é do Sporting, pronto, nós em casa somos todos do Sporting, eu, minha mãe...

O Dias metia a mãe em todas as suas conversas e quando isso acontecia instintivamente eu sentia vergonha, ficava vermelho em seu lugar, entre nós a evocaçao da mãe, logo do sexo feminino, por um homem era sinal de fraqueza e não era bem acolhido entre adultos, iniciados.

Não tinha um clube bem definido assim de preferência, no entanto gostava muito do equipamento do Benfica, vermelho e branco. Também não tinha o meu ídolo, aliás não podia ter diante da tirania dos mais velhos que sempre se impunham. Ser o Pelé ou o Eusébio, na altura, era uma honra devida aos mais fortes.

Do Sporting não gostava lá muito do Yazalde, muito loiro para o meu gosto temperado na escola do Camões, o nome já era problemático pois soava a qualquer coisa parecida com lagarto na nossa língua materna e a cor da camisa, com aquelas tiras horizontais verde-brancas semelhantes a algumas cobras que tinha visto na floresta, ah... não! No entanto não podia contrariar o meu patrão. O Dias ficava furioso quando o contrariavam, mesmo entre brancos, era a mesma coisa. Ele impunha-se e os outros ou aceitavam ou ento era a briga, berrando como um doido.

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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série >5 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4782: Memórias do Chico,menino e moço (Cherno Baldé) (9): Futebol, rivalidades, bajudas... e nacionalismos(s)

Guiné 63/74 - P4801: (Ex)citações (37): Propaganda (Vítor Junqueira)

1. Caros companheiros

Mais uma vez estou a chamar a vossa atenção para os momentos menos bons do nosso Blogue, criados por alguns, poucos, mas reincidentes, camaradas que fervendo em pouca água, começam a usar de uma agressividade que nada tem a ver com o espírito do Blogue.

Vamos assentar uma coisa. A partir de hoje sempre que um comentário menos feliz despoletar outros mais violentos, eu, pura e simplesmente retiro-o assim como aos sequentes.

Reafirmo que devem resolver os vossos desentendimentos pessoais via mail, onde poderão à vontade usar palavras mais ou menos acintosas sem poluírem o Blogue.

A propósito de mais este desentendimento, recebi hoje uma mensagem do nosso camarada Vítor Junqueira com um comentário que deve ser lido com atenção.


2. Mensagem de Vítor Junqueira (*), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 - Os Barões, (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72, de hoje.

Carlos,

Começo a temer que a minha insistência se torne enfadonha. Mas, com sabes, ultimamente foram publicadas matérias que agitaram um pouco as águas. O que é óptimo. Se por um lado, são as que mais aprecio, por outro noto que alguns camaradas se deixam embalar nos comentários, podendo gerar-se alguma crispação. Ora é nessas alturas que me apetece dizer de minha justiça...

Se achares que o texto pode merecer a atenção de alguns dos nossos camaradas, publica p.f.

Com amizade e ao dispor,
VJ


Meus queridos amigos e ex-camaradas, da direita ou da sinistra, refractários, faltosos e desertores, visitantes e seguidores habituais deste Blog;

A todos, o meu abraço fraterno e descomprometido, e o pedido de desculpas por estar a aparecer com demasiada frequência.

Peço-vos uns momentos da vossa atenção para, em conjunto, reflectirmos sobre uma matéria publicada recentemente, que já fez saltar algumas tampas. O que na nossa idade é muito perigoso como já acautelei!

Começo por me corrigir a mim próprio: Quando me dirijo aos meus ex-camaradas, no mínimo estou a cometer uma blasfémia. Porque, no âmbito daquilo que aqui nos traz, ex-camaradas é coisa que não existe! Enquanto durar a nossa viagem à volta do sol, havemos de ser camaradas. O laço pode ser ténue ou forte, mas é indestrutível. Por isso, daqui em diante, aos da família passarei a tratar por camaradas, simplesmente.

Camaradas, poderá haver igual, mas não há ninguém que aprecie mais uma boa peleja do que eu. De qualquer natureza! E quando os contendores se batem por ideias, valores, princípios, honra e dignidade, coisas que para mim, como para vós todos são muito mais do que simples palavras, aí tiro-lhes o meu chapéu. Que fique bem claro que está nos antípodas do meu pensamento, fazer qualquer apelo à calma, armar em medianeiro, interpor-me no seio daqueles que sentem os pêlos do espinhaço arriçados. E se houver de correr sangue, que corra até que os cães o bebam de pé. Mas, por favor, não ofendam a vossa inteligência. Nem a minha. Vamos ao osso! Antes permitam-me que escreva um parágrafo justificativo.

Como já o afirmei nesta sede, fui voluntário para a tropa, fui voluntário para a Guiné, passei lá dois dos melhores anos da minha vida e notem que até então, ela, a vida, não me tinha dado razões de queixa. Participei, compartilhei o fardo convosco. Fi-lo consciente e convictamente, por respeito ao meu julgamento de então. Se a História se repetisse e as circunstâncias fossem as mesmas, hoje voltaria lá, certamente.

E no entanto, quero abraçar:

Os compelidos, faltosos e refractários que, à força ou depois de pensarem melhor, lá acabaram a fazer a queda na máscara ao meu lado.

Aqueles que espalhados pelo Mundo, obtiveram junto dos consulados as suas Licenças Militares definitivas, podendo dar continuidade às respectivas actividades profissionais, e remeter para a Pátria, as paletes de francos, marcos, dólares etc., que tanto jeito nos deram quando a pesada herança bateu no fundo. Os da sinistra, p.f. não levem a mal esta farpa! Abraço também os que por alergia ao teatro de operações, preferiram servir o país de outra forma, como por exemplo, integrarem a frota bacalhoeira (sabiam?);

E quanto aos desertores, porque tiveram a coragem de arriscar a prisão ou uma vida inteira no exílio, obedecendo a respeitáveis e nobres ideais, ou partiram por amor à pele, atitude que não se revestindo de uma nobreza por aí além, é igualmente compreensível, envolvo-os também no meu amplexo, mas sem direito a aplauso.

Por outro lado, não são meus camaradas:

Aqueles que vestindo a nossa farda, eram objectivamente combatentes do IN, a quem forneciam informações e até segredos de que tinham conhecimento por força das funções que desempenhavam;

Os que tendo integrado as FA de Portugal e jurado fidelidade à sua bandeira, saltaram para o outro lado da paliçada, oferecendo-se para colaborar activamente em planos que visavam a liquidação física de ex-companheiros de armas, incluindo os amigos;

Todos quantos encapotadamente, tal qual laboriosas toupeiras, se colocaram ao serviço de ideologias, objectivos e interesses de potências estrangeiras e pela escrita, pela palavra ou pela acção conspiraram, visando o desprestígio e aniquilação do exército fascista, nós! Esses não são meus camaradas.

Mas, notem bem, o facto de não serem meus (nossos) camaradas, não me dá o direito de os julgar sob qualquer prisma e ainda menos de os condenar, cabendo esse desígnio a outras instâncias, entre elas a História, que amparada pelo Tempo há-de apreciar de forma asséptica e distanciada os Homens e os factos do último quartel do séc. XX português.

Se estou certo até aqui, cabe-me deixar algumas perguntas:

Porquê então litigar à volta de acontecimentos sobre os quais, todos o sabemos, haveremos de discordar até ao fim dos nossos dias? De que serve apontar factos do passado ou nomes de pessoas que nunca nos caíram no goto, mas que sabemos serem objecto de grande estima e admiração por parte de importantes franjas da sociedade? Porque não cuidar da forma, para que não pareça cáustica, amarga ou revanchista, como avaliamos comportamentos de tempos idos, sabendo que o que foi já não é e o que ontem era uma virtude, amanhã será uma aberração? Admitamos por absurdo que à luz dos princípios e valores de hoje, uma qualquer entidade intemporal se punha a escrutinar os factos que consideramos mais relevantes da nossa história como nação. Apenas alguns exemplos:

A usurpação de terras à moirama, que para não criar chatices futuras era passada à espada, aquém e além mar, os trabalhos da Santa Inquisição, o holocausto dos Judeus de que os sobrantes tiveram que fugir ou viver escondidos até ao 25 de Abril, a execução (assassinato) dos Távoras a golpes de marreta no peito, com esposas e filhos a assistir enquanto aguardavam o mesmo destino, o genocídio de milhares de negros, índios e indianos, a escravatura mais obscena, negócio que controlámos através de famosos entrepostos ao longo da costa ocidental de África (ex. Senegal), o envio de homens para as trincheiras das Ardenas, pagos por cabeça como carneiros, as campanhas de África cujos protagonistas mais importantes dão o nome a muitas praças, ruas e avenidas cá do burgo, a nossa participação em bandalheiras como as que estão a ocorrer no Iraque e Afeganistão, em que um dos porteiros da guerra – lembram-se da conferência dos vendidos nos Açores? –, foi recompensado com um alto cargo na EU? Bem, com um currículo destes não haverá muitas nações no mundo, e a haver julgamento, hoje, estaríamos feitos!

Quer isto dizer que devamos assumir algum complexo de inferioridade ou culpa? Não, e por muito que estas manchas nos incomodem, a verdade é que factos do passado têm que ser visto à luz de contextos muito diferentes das envolventes sociais, económicas, religiosas etc., dos nossos dias.

Então as rádios Voz da Liberdade e Portugal Livre, mentiam? Claro que mentiam e desbragadamente! E a velha Emissora Nacional de Radiodifusão (buuuun…) se calhar não lhes ficava atrás! O Manuel Alegre desertou? Bem, ninguém o nega. Para uns, ele e muitas figuras gradas da nossa democracia, desertaram. Para outros, foram combater além fronteiras. Há ainda quem considere que todos não passam de um bando de oportunistas ressabiados com o regime. O Manuel Alegre foi para Argel onde seria difícil a polícia ir buscá-lo. Houve quem se fartasse de sofrer em Paris, Londres, Estocolmo … E depois?

O que eu pergunto é o seguinte; alguém quer ser juiz, alguém tem folha de serviço e tomates para os julgar? Eu digo já que não tenho!

Por isso camaradas, aqui vai o pedido de um amigo. Quando o tema for quente como este, não deixemos que ele nos fique atravessado na garganta com receio de melindrar alguém. Dissequemo-lo com o frio escalpelo da ponderação, deixando as acaloradas emoções de reserva para os nossos encontros!

Duas notas finais:

1.ª - Acabo de ouvir na TV que dois líbios detidos no inferno de Guantánamo, virão para Portugal. Se estão inocentes e foram vítimas de arbitrariedades monstruosas, dou-lhes as boas vindas. Se têm culpas no cartório, ou são potencialmente perigosos, têm ou tiveram ligações com redes terroristas, devemos exigir um esclarecimento exaustivo por parte das nossas autoridades.

Também li recentemente na Net que uma comissão do Senado dos States vai exigir a presença de Bush, Rumsfeld, Dick Cheney e mais uma série de personalidades importantes da anterior administração. Como arquitectos das guerras em que o país se envolveu no médio oriente, vão ter de se explicar quanto a um conjunto de atoardas cozinhadas pelas suas agências de informações, como aquela das armas de destruição massiva, que serviram para justificar perante o seu povo e o mundo, a catastrófica decisão de avançar para a guerra. Deverão ser também questionados acerca dos métodos utilizados no interrogatório de prisioneiros aos quais deram cobertura. No reino Unido, uma comissão com idênticos poderes e pelos mesmos motivos, vai chamar o Blair à pedra.

E aí, comecei a pensar: Querem lá ver que um dia o nosso Barrosito ainda vai assentar o cu no mocho?

2.ª - No Post 4785, em que se fala da propaganda by rádio, deixei um daqueles comentários rápidos citando sem citar Boake Carter “Em qualquer guerra, a primeira vítima é sempre a verdade”. Aqui fica o nome do pai da frase, assim como a sua tradução correcta: “Em tempo de guerra a primeira vítima é a verdade

Como sabem, para publicar é preciso ter conta no Google. Por isso usei o meu alias naquele browser que é JUAN de JUnqueira ANastácio, e é o mesmo com que assino um Blog cuja construção iniciei há pouco: http://kurtviagens.blogspot.com/

Quando o Juan voltar a atacar, já sabem que se trata do Vítor Junqueira.

Com muita amizade,
VJ
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4789: (Ex)citações (36): As minhas lágrimas há muito secaram (Vítor Junqueira)

(**) Vd. poste de 5 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4785: Estórias avulsas (47): Rádio “Voz da Liberdade” também mentia! (José Marques Ferreira da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65)