quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5042: (Ex)citações (49): Réplica ao camarada José Belo (António Matos)



1. O nosso camarada António Matos, ex-Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, enviou-nos em 29 de Setembro de 2009 a seguinte mensagem:


Camaradas,

Aqui fica uma réplica ponderada ao camarada José Belo, hoje que vivemos as consequências
dum dia pós eleitoral, onde alguns conceitos adquiriram estatuto de desactualização ainda que os nossos concidadãos ausentes da realidade nacional deles possam não se aperceber.
Nem mesmo Ruy Belo teria razão nos dias de hoje, pese embora o lindíssimo poema que o Luís Graça nos recorda!

Camarada José Belo,

Estou perfeitamente convicto que dizer-se que Portugal é um país de tolerância e humanismo ou, quiçá, de brandos costumes, é chão que já deu uvas e nem a sua repetição à exaustão consegue hoje disfarçar a falácia que se lhe associa.

Percebo que todos aqueles que engrossam a nossa diáspora exprimam essa ideia, mas atribuo-a a um sentimento de saudade e ao fado que a necessidade intrínseca de se perfilarem ao lado da nação-mãe num misto de patriotismo e falta do seu colo implica.

A falta de tolerância está muito bem patenteada neste dia pós eleições onde, não tendo despontado qualquer maioria absoluta, são constantes as declarações dos vários partidos com assento parlamentar na indisponibilidade de viabilização da governabilidade do país.

Aproximamo-nos inexoravelmente dum precipício social de dimensões incalculáveis e onde os brandos costumes já deixaram de ser paradigma de Portugal.

Estamos um país muito moderno;

Já nos matamos nas ruas em tiroteios de fazer calar um qualquer cowboy do farwest americano;

Já silenciamos uma estação de televisão privada onde um governo mexe (ou é mexido?) pelos cordões das marionetas em mãos hábeis escondidas atrás do biombo ;

Já se escuta clandestinamente, dizem, o gabinete do Presidente da República;

Criam-se inventonas e intentonas ao nível de um qualquer Watergate;

Sustentam-se até ao limite da prescrição, crimes tipo Casa Pia onde a culpa só não morre solteira porque havia um estúpido dum Bibi que serviu de cobaia;

Enfim, até tentamos envolver a figura do Santo Padre nas eleições do bairro!

Não queria deixar este texto ao tratamento de mero e singelo comentário mas antes dar-lhe uma exposição de poste ao nível do que melhor se faz neste blog uma vez que discordo da opinião do José Belo ao se confranger com a crítica irónica a que se sujeitam os brandos costumes.

Meu caro, já lá vai esse tempo, mas agora, a globalização que bem conhecerás aí pelos lados nórdicos dos fleumáticos senhores das neves, também nos trouxe a crua realidade da vida moderna com as suas vantagens, é certo, mas com injustiças pungentes que uma democracia permite na sua qualidade da pior forma de governo exceptuando todas as outras já tentadas (Churchill dixit).

Com amizade,
António Matos
Alf Mil Minas Arm da CCAÇ 2790


Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.

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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P5041: Estórias do Juvenal Amado (23): O velho milícia

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 30 de Setembro de 2009:

Caros Carlos, Luis, Virgínio, Magalhães e restante tabanca.

Esta é uma estória sobre a nossa passagem por Galomaro.
Não consegui confirmar que o nome dele seja efectivamente Mamadú, mas penso que ele é do tempo dos camaradas que estiveram na área antes de mim.

Aproveito para enviar algumas fotos da tabanca.

Na foto aérea que foi tirada no sentido de Bafatá na direcção do Dulombi. Do lado esquerdo vê-se a pista, do lado direito uma fiada mais escura são as grandes árvores que ladeavam o caminho de Cansamba, Duas Fontes, Dulombi, Bangacia, Campata e Saltinho.

Também junto à casa grande com quatro pequenas, à direita destas mal se vê, penso que seja o famosíssimo Regala.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


O VELHO MILICIA

Boina castanha debotada, olhar como quem olha para além de nós, o Mamadu acariciava a espingarda, como quem fazia festa a um neto.

Sentava-se à porta de sua palhota, mascava incessantemente alguma coisa e de tempos a tempos mandava uma daquelas cuspidelas, que velozes atingiam dois ou três metros. A saliva saía com um barulho particular dos seus lábios apertados.

A idade era indefinida, pois para nós miúdos de 22 anos, um homem com 50 ainda por cima africano era um velhote.

Muito magro e alto, caminhava lentamente casaco de camuflado demasiado largo e calções feitos a partir de umas calças da farda n.º3.
Era a indumentária constante do velho milícia de Galomaro.

Às nossas perguntas sobre os anos de guerra, respondia com um sorriso melancólico e indefinido.

Corria a estória que no passado ele tinha abatido 6 guerrilheiros num ataque a Cossé.
Falava-se que por isso tinha a cabeça a prémio.

Às nossas perguntas como tinha sido, respondia fazendo uma espécie de mímica, agachava-se apontava a hipotético inimigo e seis vezes premia o gatilho. O seu pouco vocabulário de português, era assim complementado com os gestos, acabando a sua narração batendo levemente na G3, dando assim a entender que tinha sido com aquela mesmo, que tinha cometido o feito que lhe era atribuído.
Depois disso mais uma cuspidela, a conversa morria ali sem mais demoras.

Não sei o que lhe terá acontecido após a independência, se não fugiu, possivelmente foi morto, o que se lamenta, a ser verdade ter a cabeça a prémio.

Juvenal Amado

Tabanca de Galomaro

Vista aérea de Galomaro

Padre Nuno na tabanca de Galomaro

Fotos: © Juvenal Amado (2009). Direitos reservados.
Editadas por CV
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4983: (Ex)citações (47): Sexo e amor em tempo de guerra (Juvenal Amado / S.N.)

Vd. último poste da série de 30 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4884: Estórias do Juvenal Amado (22): O que será na verdade a coragem

Guiné 63/74 - P5040: Historiografia da presença portuguesa em África (21): Bolama, Farim... Álbum fotográfico de 1943 (Beja Santos)




Guiné Portuguesa > Farim e Bolama > 1943 > "Um album fotográfico que é uma raridade para bibliófilos muito exigentes... Imagens de uma Guiné que não conhecemos" (BS)

1. Mensagem enviada pelo nosso camarada Beja Santos, em 16 e 17 de Dezembro de 2008:

Este álbum (que me foi oferecido) tem uma singela dedicatória:

«Desculpe oferecer-lhe, Lourdes, um álbum em tão mau estado exterior. Como tem, porém, curiosas fotografias, deste caleidoscópio que se chama a Guiné, não resisti à tentação de lho mandar. E com ele vão as muitas saudades do Artur, Bissau, 24 de Novembro de 1952.»

O ofertante chamava-se Artur Martins Meireles, era um prestigiado funcionário colonial que se especializara na cultura dos manjacos (trabalhara em Caió, Jeta, Pecixe, ia agora ser nomeado administrador em Farim) e dirigia-se assim a Maria de Lourdes Soares d'Oliveira, com quem casará alguns meses depois.

Ambos viverão 10 anos na Guiné, percorrendo Farim, Teixeira Pinto, Gabu e São Domingos (aqui os dois viverão os ataques promovidos a partir do Senegal, em Julho de 1961).

O álbum data de 1943, está dominado pelo espírito do exotismo, retrata uma África de contrastes e sabores completamente longínquos para esses Europeus atraídos pelo desconhecido desses nativos a quem generosamente exercíamos a nossa acção civilizadora. Fotografias de Amândio Lopes, desenhos e legendas de Ascensão Júnior e Fausto Duarte.[Vd. imagem da bonita capa do álbum, aqui à esquerda]...

Vejam-se os aviões que planaram sobre as águas de Bolama,veja-se a Farim dos anos 40, onde viveu a Lourdes, a protagonista do livro «Mindjer Grandi», que estou a escrever [, e que voltará a casar, em segundas núpcias, com o Comandante Teixeira da Mota].

Não existe nenhum exemplar nas bibliotecas onde seria esperável encontrá-lo. Vou oferecê-lo à Sociedade de Geografia, a seu tempo. Um abraço, Mário

Imagens (editadas): © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2009). Direitos reservados

Guiné 63/74 - P5039: Tabanca Grande (176): José Manuel Pechorro, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 19, Guidaje (1971/73)

1. Mensagem de José Manuel Simoa Pechorro, ex- 1.º Cabo Op. Cripto da CCAÇ 19, Guidaje, 1971/73, com data de 28 de Setembro de 2009:

Olá Luís Graça,
Decorreu quase um ano que detectei o v/sítio na Internet.
Estava numa sonolência a respeito da minha presença na Guiné. Ao ler sobre Guidaje, Guileje e Gadamael, etc., a minha visão dos acontecimentos e da guerra no ultramar ficou melhorada.

Solicito a minha inscrição na Tabanca Grande, junto dos Tertulianos, se me quiserem acolher.

Os meus agradecimentos e cumprimentos aos criadores do blog: Luís Graça, Virgínio Briote, Carlos Vinhal, Eduardo Magalhães e colaboradores.

Idem, aos que relataram o cerco a Guidage: o 1.º Tenente AN/FZE Albano Alves de Jesus; o Albano M. Costa, da Ccaç 4150; o Amílcar Mendes, 38.ª CCmds; o Sargento-Mor Pára Manuel Rebocho; o ex-1.º Cabo Pára Victor Tavares (BCP 12) CCP 121; o ex-1.º Cabo Manuel Marinho, BCaç 4512/72; os Pilotos da FAP, etc.

O motivo do contacto é em memória de todos os intervenientes e homenagem aos mortos. Aos soldados da CCaç 19, injustamente maltratados... e às forças militarizadas africanas fuziladas pelo PAIGCV, não esquecendo os que na metrópole lhes recusam os seus direitos.

Escolheram estar do nosso lado, confiando em Portugal e suas promessas. Foram abandonados!

Não foi só pelo dinheiro (soldo), como alguém mencionou, referente aos soldados da CCaç 19.
À noite, o calor no colchão e o sono não vinha, ia ao pé das sentinelas, onde conversando, me diziam estar no exército português por uma Guiné Melhor. Se o PAIGCV vencesse o futuro seria muito mau! Tinham razão.
Os povos simples da Guiné mereciam melhor sorte.

Houve heróis nestas guerras, e recordo o Ten Cor António Correia de Campos. Foi ele que evitou o abandono de Guidaje, e acontecesse uma grande tragédia! O IN derrotado desistiu.

Relembrando o dia 8, pergunto o que terá realmente acontecido à coluna?

O ex-1.º Cabo Marinho respondeu:

GUIDAJE - A PRIMEIRA GRANDE EMBOSCADA em 8/9 Maio 73 - P4957: Tabanca Grande (173): Manuel Marinho, ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Farim e Binta (1972/74).

Com humildade remeto em anexo o meu relato, caso ajuízem que se deve publicar, do período de Abril a 9 de Maio de 1973. Deduzindo quem ler o motivo de realizar uma coluna apressada no dia 8 levando auxílio a Guidaje.

No texto seguem duas fotos.

Agradecido, os meus cumprimentos,
José Manuel


2. Comentário de CV:

Caro camarada José Manuel, bem-vindo à Tabanca Grande.

Tenho um esclarecimento a fazer. Quem fundou o Blogue foi o nosso camarada Luís Graça. Eu, o Magalhães Ribeiro e o Virgínio Briote apenas damos uma mãozinha, porque o trabalho é muito. Repara que és o 371.º tertuliano. Não percebo muito de tropa, mas não faltará muito formaremos um Batalhão.

Falando agora de ti. Muito obrigado por te dirigires a nós e por teres a coragem de dizer que nos espias há quase um ano. Sabemos que temos muitos camaradas que nos seguem, mas que por qualquer motivo pessoal não se nos dirige, embora alguns comecem a colaborar connosco, fazendo comentários nos nossos postes.

O trabalho que envias, relativo aos acontecimentos de Guidage em Abril/Maio de 1973, é muito extenso pelo que será publicado num outro poste.

Reparei que não mandaste uma foto do teu tempo de Guiné que sirva fazer uma tipo passe, como aconteceu com a actual. Logo que possas envia-a.

Esperamos que este teu contacto seja o primeiro de muitos, não só para falar dos trágicos acontecimentos de Guidage, mas também participando com outros relatos e experiências vividas no tempo que estiveste pelo Norte da Guiné.

Em nome da tertúlia, deixo-te um abraço de boas-vindas.
CV
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4973: Tabanca Grande (175): Carlos Sousa, ex-Alf Mil Op Esp, CCAÇ 1801, Ingoré/Bissum-Naga/S. Domingos/Cacheu/Antotinha(Ingoré) - 67/69

Guiné 63/74 - P5038: História de vida (23): Maria da Glória, uma saudosa filha com um dom especial para o fado (Cristina Allen)

1. Mensagem de 22 de Julho de 2009, enviada pelo Mário Beja Santos:

Luís, Meu querido amigo, junto o texto que a Cristina me pediu para digitar. Tens aí as 2 fotografias da Glória [, à esquerda], de óculos escuros, uma, com um pano guineense, a outra. A Cristina está muito comovida pelo acolhimento que o blogue deu à sua dor e à memória da nossa adorada Locas. Um abraço muito sentido do Mário



2. Texto de Cristina Allen, mãe da Maria da Glória Allen Revez Beja Santos (1976-2009) (*), que nos deixou vai fazer 3 meses (no próximo dia 2 de Outubro de 2009):


Caro Luís Graça,

Tenho, perante mim, duas fotografias da autora do texto que vai ter a gentileza de publicar, envolvendo o nosso blogue (foi este o seu último trabalho universitário) (**). E um disco de António Chaínho com a seguinte dedicatória: “Para a colega Glória, com um beijinho do António Chainho. 16-08-2003”. É que ele queria ensinar-lhe alguns truques na “Academia do Fado e da Guitarra” e lançá-la, mas ela, já doente, fugiu-lhe.

A Glória cantava quando queria. Iniciara-se no Colégio de S. João de Brito, junto de antigos alunos e teve, por padrinho D. Vicente da Câmara. Numa dessas noites de fado que o Colégio promovia, recordo-a no palco numa fila que começava com António Pinto Basto, praticamente todos os Câmaras e terminava com ela e Tozé Martinho. Recordo-a, esbelta, num longo vestido, preto e justo, envolta num manton de manilla antracite, bordado a seda tom sur tom, nos seus longos dedos os meus anéis mais faiscantes, as mãos juntas no peito, agradecendo, com fervor, os aplausos.

Mas com a nossa filha, o picaresco e o inesperado aconteciam quase sempre, de mãos dadas. Uma professora sua, e minha amiga conterrânea, fez-me um gesto discreto, indicando o fundo escuro do salão, atrás do palco. Escapara-se com um muito jovem (e atrevido!) Zé da Câmara e, receosa, lá foi a mãe que teve de presenciar uma insólita cena. O Zé dizia-lhe que com aquele vestido pouco se via dela e “mostra as pernas”, pediu. E ela, que não se preocupava nada e não era provocadora, levantou cuidadosamente a saia e, devagarinho, rodou e mostrou-lhas. Pu-los na ordem com um valente raspanete.

Recordo-a, ainda, num espectáculo em S. Jorge, nos Açores, cantando com outros amadores, após o espectáculo de Carlos do Carmo, um fado da mãe deste e ele, nos bastidores agarrado aos seus pulsos: “Continue, minha menina, com essa garra só vi a minha mãe”. Tinha então 17 anos.

E perdoe-me, Luís Graça, se narro mais outro episódio dos caprichos de uma inconsciente diva.

Num passeio que fiz com outros colegas meus a Leiria, levei-a e fomos acabar a noite num local onde se cantavam baladas de Coimbra. No intervalo, disse, alto e bom som, que também queria cantar. Que não podia, diziam, que as mulheres não cantam fado coimbrão e no rebuliço que se gerou ouviam-se gritos que diziam: “Canta! Canta!”.

Generoso, o dono da casa, lançou-lhe sobre os ombros uma capa e ela, com um tenor zangado, escolheu a “Samaritana”. O rapaz viu-se aflito, porque era baixote e a voz dela ia do contralto ao mais fino murmúrio. A certa altura, estava o tenor vermelho e em bicos de pés, esticando-se todo, mas lá se aguentaram os dois num belíssimo dueto. A assistência estava entusiasmada, toda a gente em pé. E, depois, sacrilégio dos sacrilégios, entregou a capa e passou o resto da noite a cantar fado de Lisboa.

Ela tinha os ímpetos do seu pai e da sua mãe.

Nas fotografias que lhe enviamos há uma que tem por fundo um pano da Guiné. Adorava-os coloridos, mudava-os, trocava-os, cobrindo paredes, mesas e o topo de uma estante baixa encastrada no vão de uma janela. Nessa foto, estava de partida para a Holanda. Tinha ainda 21 anos. A outra é muito mais recente, talvez de meados de Junho passado. Estava, como sempre, de back-pack, com o seu portátil e roupas atiradas à pressa e ao acaso, lá para dentro. Ao seu rosto de 32 anos voltara a serenidade e a doçura. Estava mais jovem. Encontrara alguém que lhe devolvia a serenidade e a afastara dos riscos. De luxo, só os óculos escuros, que coleccionava.

Quanto ao texto académico que vai ter a amabilidade de publicar, e que diz respeito ao blogue, é possível que haja imprecisões, sobretudo na entrevista que gentilmente lhe concedeu.

Isto porque alguém lhe emprestara um gravador antigo e ela nem sequer o experimentou. Quando se lançou à transcrição, a sua voz e a do Luís vinham de muito longe, abafadas por silvos agudos e equívocos ruídos que nos fizeram, a ambas, rir às gargalhadas. Penosamente, lá se procurou descodificar a sua entrevista e, se imprecisões houver, ela não se importará nada que as corrija. A Glória era humilde, nestas coisas de estudos e estava de regresso à Faculdade, após anos de ausência.

Perdoe se me alonguei sobre os seus fados. Mas ela estava mais lá que nas andanças académicas.

Grata por publicar este seu último trabalho à volta da Guerra Colonial e das memórias dos ex-combatentes. (***)

Cristina Allen


Nota: Também fez com a ajuda do pai um outro trabalho sobre o Islão, outro ainda sobre o filme “O clube dos poetas mortos” e deixou no computador um estudo inspirado por uma intragável obra filosófica sobre Ética e Moral, em que eu colaborei.

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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes sobre a Maria da Glória:

6 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4644: In Memoriam (24): Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos: "Morte, onde está a tua vitória ?" (Mário Beja Santos / Luís Graça)

6 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4645: In Memoriam (25): Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos (1976-2009): Missa do 7º dia, 4ª feira, 19h, Igreja do Campo Grande

9 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4660: In Memoriam (26): Fazendo o luto pela Maria da Glória e agradecendo a todos a solidariedade (Mário Beja Santos)

10 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4664: Blogoterapia (116): Os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são (José Martins)

(**) Entrevista ao Luís Graça, no 1º trimestre de 2009, sobre a criação e o funcionamento do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. A publicar em breve.

(***) Vd. poste anterior da série > 22 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4400: História de Vida (14): Refazendo a vida correndo o mundo (José Eduardo Alves)

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5037: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (9): Súmula sobre o Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu)

1. Publicamos hoje um trabalho escrito pelo então Alf Mil Carlos Geraldes (*) da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, à ordem do seu CMDT, sobre o Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu), enviado em mensagem de 26 de Setembro de 2009.


Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu)

(Súmula dos conhecimentos adquiridos no período de Out. 1964 a Abr. de 1966)

Situação Geral:


Presentemente, não existem “tabancas” (aldeamentos indígenas) aliciadas pelo “IN” (Inimigo), embora em 1963, um grupo de terroristas que pretendia actuar na zona de Paúnca se tivesse acoitado em Madina Mamadu Sanússi (da etnia “Fulas-pretos”).

Foram escorraçados e mantida a população da tabanca sob vigilância, tendo-se criado lá um posto de cipaios. Todavia, tendo, os elementos suspeitos da tabanca, procurado refúgio no Senegal, nunca mais a referida população manifestou tendências suspeitas.

Durante o período 64/66, não se registaram quaisquer infiltrações ou tentativas de aliciamento por parte do IN.

Poucas são as tabancas e os caminhos que não estão devidamente assinalados na carta de 1/ 50.000, sendo, no entanto, de chamar a atenção para o traçado do caminho que vai de Fasse à ”cambança” (sítio onde se atravessa um rio), que não é o que vem indicado na carta. Na realidade, o caminho inflecte para Norte, cerca de 45 graus, atravessando por completo o Mato de Sacaio e localizando-se a cambança no ponto de intersecção de uma linha que fosse traçada de Fasse a Sare Bacar, com o rio Gêba.

Pelo facto de quase toda a região estar protegida, a Norte pelo rio Bidigor, a Oeste pelo rio Gêba e a Sul pelo rio Cumtimbo, goza naturalmente de certos privilégios no que diz respeito às defesas naturais contra possíveis acções do IN. Apesar disso, apenas na época das chuvas se poderá confiar nessas “muralhas”, pois somente o rio Gêba mantém, durante todo o ano, um nível de caudal suficiente para impedir a passagem a vau.

Existem três tabancas-chave, situadas junto de outras três cambanças utilizadas por quem vai ou vem do Senegal: Guiro Iero Bocari (Sinchã Queuto), Madina Mamadu Sanússi e Fasse.

Em todas elas a população tem-se mostrado digna de confiança, colaborando activamente com as “NT” (Nossas Tropas), no controle e vigilância das respectivas cambanças. Todas as canoas, durante a noite, ficam presas a cadeado, na margem de cá.

Em Guiro Iero Bocari existe uma ponte feita com troncos e “carentins” (grandes esteiras feitas de entrançado de bambu), de construção recente, mas apenas utilizável em tempo seco. É também de fácil controlo, pois só permite a passagem, em fila indiana, de três pessoas de cada vez, no máximo.

Todo o “chão” (território, nação) tem demonstrado estar incondicionalmente do lado da tropa, posição que não deixa de aproveitar largamente em seu favor, com constantes pedidos de transporte dos seus haveres, além de ajuda material em armas e munições, medicamentos, etc. No entanto, evidenciam um forte sentido de hospitalidade, notando-se até uma certa rivalidade entre as tabancas mandingas e fulas, nos actos de bem receber os visitantes.

A tabanca do interior, de maior importância, é, sem dúvida, Fasse, não só pelo valor estratégico, como pelo valor que tem por ser o centro mais importante no ensino do Alcorão, em todo o regulado. O “mouro” (sacerdote) da mesquita de Fasse é tido como uma das personagens mais importantes da região. O próprio traçado das ruas do interior da tabanca de Fasse, chama a atenção pelo seu traçado geométrico, pela largueza e higiene, denotando um elevado nível cultural da população, relativamente a todos os habitantes do resto do “chão”.

Existe uma mesquita, coberta com folhas de zinco, oferta do Governo da Província.

Pertencendo à etnia “Fula-Forro”, dedicam-se com êxito às culturas tradicionais, assim como à manutenção de um Horto de bananeiras e outros frutos comestíveis.


Situação Particular: Paúnca

1) A Povoação:

É um dos centros populacionais e comerciais mais importantes da zona de Gabu e Bafatá. Com um perímetro de pouco mais de 4 mil metros, está cercada por uma rede de arame farpado c/ aba.

Todas as casas ficam situadas no interior da rede e existem abrigos para atiradores deitados ao longo da face Norte e Oeste.

De Paúnca partem caminhos, para todas as tabancas da periferia, perfeitamente transitáveis pelos carros militares em qualquer época do ano.

As vias mais importantes são: Paúnca-Fasse; Paúnca-Sinchã Queuto e Paúnca-Sinchã Molele. A mesquita de Paúnca é uma das maiores e mais característica da região, pois obedece a um estilo de construção já pouco comum neste género de edifícios.

Outra casa que se destaca, no interior da tabanca, é a casa do régulo, de forma rectangular e com um mastro para hastear a bandeira nacional em dias de festa.


2) A População:

É quase toda constituída por indivíduos de etnia “Fula-Forro”, seguindo-se por ordem numérica, os de etnia “Saracolé” e os “Mandingas”, estes em menor número. Existe também uma numerosa colónia de “Balantas”, “Papéis” e “Manjacos” que constituem os grupos de trabalhadores das casas comerciais. Vivem separados numa espécie de bairro, situado nas traseiras do aquartelamento. São ordeiros, embora se embriaguem frequentemente, pois não praticam a religião muçulmana, como o resto da população.

Os fulas dedicam-se ao cultivo da “mancarra” (amendoim), do milho, do arroz e da mandioca, além da secular criação de gado vacum. Outros dedicam-se ainda ao pequeno comércio e outros são alfaiates.

São amigos de festas, que promovem com assiduidade, pedindo sempre a prévia autorização, à tropa.

Existem 3 ferreiros situados junto das entradas da povoação e o mais importante é o que tem a oficina à entrada do caminho que vem de Sinchã Queuto.

O “cherno” (pessoa de respeito) é o velho Amadu Bari, que apesar de idade avançada (mais de 80 anos) mantém uma excelente saúde e um humor muito especial. É um grande amigo da tropa e, sempre que pode, não deixa de visitar o quartel. O filho, Iaia Bari tornou-se um excelente colaborador da tropa como intérprete e informador. Domina com facilidade o dialecto Mandinga, o dialecto Saracolé, assim como alguns outros dialectos do Senegal e da Gâmbia. Fala e escreve bem o Português e dedica-se à prática de enfermagem, auxiliando o 1º Cabo Enfermeiro do Destacamento, no tratamento de civis, com os medicamentos destinados ao serviço da “Psico”. Tem um irmão, quase cego, que goza da fama de ser informador directo do Governador.


3) O Comércio:

Reveste-se de características especiais, diferente do que é praticado noutras localidades da fronteira, pois não depende do trânsito dos “gilas” (contrabandistas semi-autorizados), nem dos senegaleses que vêm ao nosso lado fazer compras. O comércio mantém-se sempre em qualquer altura do ano, abastecendo, tanto a população deste regulado como a dos outros, situados no interior. Durante a campanha da mancarra (Janeiro a Março) é muito intensa a circulação de burros carregados com os habituais dois sacos e a das camionetas de caixa aberta que depois os transportam para Bafatá. Não existem, durante todo o ano, períodos mortos, mas apenas pequenas flutuações.

As casas comerciais existentes são seis, com representação das firmas, “Barbosas”, “Gouveia” e “Pinheiros”. Todos os comerciantes mantêm boas e cordiais relações com a tropa, sendo de destacar o que dirige a filial dos “Barbosas”, o Sr. Correia. É o comerciante mais antigo de Paúnca, com amplos conhecimentos sobre os problemas do regulado. É, também, o único comerciante que se preocupa em manter uma certa rede de informações, que tem sido muito útil à tropa. No entanto, tem medo de prováveis represálias do IN sobre a sua pessoa, pois em 1963 foi alvo de um atentado na estrada Paúnca-Bafatá. Actualmente tem adoptado, por isso, uma atitude fria e de quase completo mutismo, quando a tropa o aborda directamente ao balcão da loja. Mas abre-se em confidências se a “entrevista” for mantida num clima de discrição.

Por vezes o receio dele chega a parecer excessivo e até infundado.

É muito amigo do Administrador Barros, de Gabu, a quem fornece sempre em primeira mão as informações que recebe, algumas de interesse apenas militar e que, não raras vezes, têm servido para criar situações falsas, à tropa, que se encontra destacada.

É de evitar fornecer-lhe quaisquer informações referentes ao IN, de acção imediata.


4) O Régulo:

É um velho sem energia e espírito de mando. É pouco conceituado pelos súbditos, pela fraqueza de ânimo dele. No entanto é apoiado por alguns homens “grandes” de grande poder e prestígio.

Nas relações com a tropa mostrou-se sempre de grande humildade, fazendo amiudadas visitas para “partir mantenhas” (apresentar cumprimentos) e também com o fito, menos louvável, de pedinchar um pão ou um pouco de açúcar.

Colaborou sempre de forma eficiente quando o furriel encarregado do rancho necessitava de comprar galinhas ou cabritos.

Tem muito medo da guerra, da qual nem gosta de ouvir falar.

Cavaleiro Embaló, um chefe terrorista, de pouca importância, é seu sobrinho, mas ele renegou esse parentesco, ameaçando-o de morte.


5) Os Cipaios:

Existe um corpo de cipaios comandados por um Cabo, directamente dependentes do Chefe de Posto de Sónaco. Têm uma actividade bastante reduzida, limitando-se à cobrança dos impostos e à resolução de pequenos litígios entre os civis. São muito reservados em relação à tropa.


6) A Milícia:

É uma força constituída por 18 elementos, comandados por um “alferes” e por um “cabo”.

Fornecem, para o serviço de transporte de água e lenha para o aquartelamento, 3 homens por dia, que durante a noite fazem também um posto de sentinela à entrada da Casa da Milícia. São integrados nas Secções do Pelotão, quando estas efectuam patrulhamentos. Psicologicamente são pouco aguerridos e bastante preguiçosos. Contraem dívidas sem grande dificuldade e abusam facilmente se lhes são concedidos alguns favores.

Quase todos se ofereceram para cumprir o serviço militar, na próxima incorporação. Os que são casados são bastante ciumentos, surgindo atritos entre eles e os soldados europeus que estão menos esclarecidos quanto ao modo de tratar a mulher indígena.

Constituição do grupo:

Comandante: Samba
1.º Cabo – Bamba Jamanca
N.º 61 – Manca Baldé
N.º 64 – Demba Embaló
N.º 65 – Aliu Candé
N.º 67 – Bobo Jau
N.º 70 – Puloro Candé
N.º 75 – Samu Baldé
N.º 76 – Jarga Jaló
N.º 80 – Turá Baldé
N.º 82 – Bobo Quitá
N.º 85 – Umaro Jau
N.º 86 – Braima Jaló
N.º 87 – Aliu Embaló
N.º 89 – Ussumane Camará
N.º 90 – Sare Jaló


7) Os Soldados Africanos:

São quatro: Sadú, Jau, Santos e Sáco. Os dois primeiros são fulas, os outros balantas. O Santos é natural de Bissau, onde foi empregado comercial. É o mais culto e o mais pretensioso. Tanto ele como o Saco embriagam-se com frequência se não forem reprimidos. Os outros dois são mais sossegados e nunca deram origem a qualquer distúrbio. Estão todos desarranchados.


8) A Escola:

É um edifício de construção recente, com apenas uma sala de aula e alojamento para o professor que, em caso de necessidade, já tem albergado um pelotão de reforço, durante dois ou três dias.

A frequência é bastante reduzida, devido ao natural costume do fula de evitar que os filhos tenham outra educação que não a tradicional.

O professor, Timóteo, é de etnia manjaco, protótipo de negro meio civilizado, arrogante com a pouca sabedoria que adquiriu sem a necessária profundidade e preparação, mas que julga ser muita. Tem grande dom de palavra e gosta de organizar festas onde se possa evidenciar. Levando uma vida de estroina, descura por completo as suas funções de ensino, tendo até criado a fama de tratar brutalmente os alunos.

É um elemento de forte poder aliciante, imiscuindo-se entre os soldados de quem, facilmente, conquista a confiança. Por mais de uma vez, e por motivos diversos, se mostrou suspeito, embora nunca tenha havido provas concretas. Todavia evidencia uma forte tendência racista.


9) A Taberna:

Situa-se em frente do quartel e é propriedade de João Vieira (por alcunha “O Passarinhas”), casado com uma cabo-verdiana. O resto da família é constituído por duas filhas e uma sobrinha, que o auxiliam no balcão. Alberga também hóspedes ocasionais.

Todos têm procurado, sempre, captar as simpatias das tropas recém-chegadas, na mira de benefícios futuros, pois vivem na expectativa de poder explorar, o mais possível, quem lhes frequenta o estabelecimento.

Os conflitos entre esta família e os soldados são pois inevitáveis e frequentes, provocados quase sempre pela existência das raparigas, utilizadas pelo “Passarinhas” como um autêntico chamariz.

Em 1963 levantaram suspeitas de colaborar com o grupo IN acoitado em Madina Mamadú Sanússi, mas não apareceram provas.

O “Passarinhas” dedica-se também à prática ilegal de dar injecções, deslocando-se até às tabancas do interior.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5032: Blogoterapia (128): Somos de facto um povo de poetas, de soldados com cravos na boca das espingardas (Carlos Geraldes)

Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5013: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (8): A Poderosa Rainha

Guiné 63/74 - P5036: Historiografia da presença portuguesa em África (20): Monografia da Agência Geral do Ultramar, 1961 (Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Beja Santos:

Caríssimo Carlos,

Por causa da minha 'Mulher Grande', voltei à Sociedade de Geografia de Lisboa à procura de referências da 'Royal Society of London', onde o marido da minha heroína [Comandante Teixeira da Mota] iria fazer uma conferência. Não é que no meio da molhada de papéis não me aparece esta pequena monografia da Guiné? Não resisti a lê-la de fio a pavio e dar conta de um mundo que praticamente conhecemos em vias de extinção ou em profunda transformação.

Um abraço do Mário



2.Histpriografiada presença portuguesa (*) > Pequena monografia da Guiné, Agência Geral do Ultramar, 1961por Beja Santos

A Agência Geral do Ultramar publicava com regularidade pequenas monografias dos territórios ultramarinos, chegando mesmo a actualizá-las periodicamente. Só encontrei a monografia da Guiné com data de 1961. A estrutura era muito simples: situação geográfica, clima, flora, população, governo e administração, bosquejo histórico, comunicações, transportes, economia, ensino, espectáculos, turismo, etc.

À data, a Guiné tinha, segundo o recenseamento, mais de 510 mil habitantes, dos quais 2200 eram brancos. Bissau [foto à esquerda, postal ilustrado, edição Foto Serra, s/d] contava com mais de 18 mil habitantes, dos quais 4 mil eram europeus.

Havia 21 escolas do ensino primário oficial, e os estabelecimentos a cargo do Estado tinham ao seu serviço 45 professores; as escolas missionárias dispunham de 185 professores, além do pessoal eclesiástico.

O Liceu Honório Barreto teve no ano lectivo 1960 – 1961 uma população escolar de cerca de 300 alunos e a Escola Industrial e Comercial de Bissau tinham uma população de 200 alunos.

As estradas pavimentadas não excediam os 60 quilómetros. No tocante à aviação, a TAP [Transportes Aéreos Portugueses] viera substituir os TAGP. (Transportes Aéreos da Guiné Portuguesa). Os TAGP ligavam Bissau a Dakar duas vezes por semana, utilizando um quadrimotor Heron e Bissau à Ilha do Sal, uma vez por semana. Via Dakar e Sal era possível ter ligações com Lisboa. Com a TAP, as coisas mudaram, devido à linha Lisboa – Bissau – S. Tomé – Luanda. De acordo com uma errata publicada nesta monografia, foram realizadas viagens experimentais de uma ligação aérea Bissau – Lisboa via Tenerife ou Sevilha.

Bissau tinha um jornal diário, o Arauto, com uma tiragem de 1500 exemplares e o mensário Bolamense também com uma tiragem de 1500 exemplares. A grande atracção turística era a caça, não esquecendo belezas naturais como a mata do Cantanhez e a Lagoa de Cufada. Referia-se igualmente a praia de banhos de Varela e casas de espectáculos como o Cine Udibe e o Cine Bafatá.

Não há referência aos hotéis, o que é de estranhar, isto quando o Anuário da Guiné Portuguesa, de 1946, menciona o Grande Hotel, o Hotel Miramar e o Hotel Avenida-Bar, com gerência de Maria Queiroz (desconfio que era a pensão da D. Berta).

1961 é o ano de viragem: em meados do ano, S. Domingos, Varela e Suzana serão atacadas e vandalizadas por forças do Movimento de Libertação da Guiné. A militarização será um facto em 1963, com a entrada em cena do PAIGC.

O mundo desta pequena monografia extinguiu-se, tudo quanto aqui se lê passou ao domínio das curiosidades históricas.
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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 29 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4756: Historiografia da presença portuguesa (20): 1º Cruzeiro de férias às colónias de C. Verde, Guiné, S. Tomé... (Beja Santos)

Guiné 63/74 – P5035: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (21): A noz-de-cola


1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos a sua 21ª estória:

Camaradas,

Arranjando sempre um bocadinho do meu super-ocupado tempo, nomeadamente nas minhas lides profissionais diárias, lá vou rebuscando no meu baú das memórias da guerra e, para minha surpresa, vou encontrando alguns dos meus velhos textos que há dava como esquecidos e, outros, que até já os julgava perdidos.

Este é mais um deles:

A NOZ-DE-COLA

Confesso que sempre me fez confusão os elementos da Milícia, ou os elementos do Pelotão de Nativos, que saíam connosco regularmente para o mato, estarem sempre a mascar uma semente parecida com uma noz, a que chamavam COLA.

Eram homens que não comiam e pouco bebiam durante o tempo que duravam as nossas missões. Sendo seres humanos como nós deviam naturalmente, no mínimo, terem necessidades idênticas como os restantes.

A desidratação provocada pelo calor, provocava-nos a inevitável sede e a consequente necessidade de água, que se tornavam era um tormento permanente e comum a todos.

Esta estranheza, fazia-me questionar sobre o comportamento dos elementos nativos, apesar de eu logicamente saber que eles estavam perfeitamente habituados às tão adversas condições climatéricas do território, nomeadamente nas temidas e indesejáveis épocas das chuvas.

Um dia, para meu espanto, os mesmos militares mostraram-me uma semente, a que chamavam Cola, muito parecida com uma noz de cor escura.

Eles não paravam de as mascar, e foram-me dizendo que a Cola, lhes dava força, tirava a sede e cortava a fome.

Pedi-lhes um bocado para experimentar o sabor e o efeito do produto.

Se quanto ao sabor conclui que era amargo, áspero e seco, já quanto ao efeito não retirei qualquer resultado prático.

Levado pela minha curiosidade, fui perguntar ao Furriel Enfermeiro Agostinho da minha Companhia, o que sabia sobre a Cola.

O mesmo por estar ocupado, ou não me querer aturar, deu-me um dicionário e disse-me: “Procura”.

Não me fiz rogado e com uma bojeca a acompanhar lá fui procurando naquelas páginas o eventual “segredo” da coisa.

Encontrei, Noz-de-cola, que estava assim descrita: (É um forte estimulante, antioxidante, melhora a concentração, aumenta o poder de resistência e diminui o apetite. Afrodisíaco ligeiro.).

Fiquei esclarecido, numa época em que os narcóticos eram desconhecidos e tabu, já os nativos os usavam para fins de subsistência física e psíquica.

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Fotos: Mário Pinto (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Guiné 63/74 – P5034: Agenda Cultural (29): 2º Ciclo de Colóquios-Debates, “Fim do Império: Olhares Civis” (Beja Santos)


1. O nosso Camarada Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52,Missirá e Bambadinca, 1968/70, reenviou-nos o seguinte mensagem/convite, com data de 29 de Setembro de 2009, tornando-o extensivo a todo o pessoal da Tabanca Grande:

Boa tarde.

Envio a V. Ex.ª o convite para o 2º ciclo de colóquios-debates “Fim do Império: Olhares Civis”.

Grata pela atenção,
Fernanda Marta Marques


Um abraço,
Beja Santos
Alf Mil, Cmdt do Pel Caç Nat
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P5033: Poemário do José Manuel (30): O sol queima em Colibuia...

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250, Os Unidos de Mampatá (1972/74) > O heliporto de Mampatá, um héli aguarda que alguém chegue da mata...

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250, Os Unidos de Mampatá (1972/74) > Avançando pela mata...

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250/72, Os Unidos de Mampatá (1972/74) > A descansar na mata...

Fotos, legendas e poema: © José Manuel Lopes (2009). Direitos reservados.

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250/72, Os Unidos de Mampatá (1972/74) > O Zé Manel, ou o Josema (pseudónimo literário), que durante a sua comissão na Guiné escrevia todos os dias um poema (*)...

Infelizmente, destruiu a maior parte deles... Salvaram-se umas escassas dezenas, que têm vindo a ser aqui publicados (**)...

Neste poema há uma referência à estrada em construção que, vinda de Mampatá, seguia para Colibuía, Cumbijã, Nhacobá e Salancaur, em pleno corredor de Guileje.

Amanhecer em Colibuía

O sol queima em Colibuía,
e nas tendas de campanha
sentimos o seu abraço,
logo, logo, pela manhã
e é só o começar
de uma semana de rações,
sete dias de suores,
milhares de comichões,
de bons e maus humores
e outras complicações.

Os dias lá vão passando
entre picagens,
patrulhamentos,
em cordões de segurança
à construção da estrada
que avança lentamente,
como cobra gigantesca,
pelo matagal imenso.

A semana chega ao fim,
volta-se a Mampatá,
um paraíso afinal
e o bálsamo ideal
do inferno quinzenal.

Colibuía 1973

josema

[Enviado em 4/4/2008. Revisão / fixação de texto: L.G.]
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Notas de L.G.

(*) Sobre o José Manuel Lopes, vf. poste de 3 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3165: Os nossos Seres, Saberes e Lazeres (6): Com o José Manuel, in su situ, um pé no Douro e uma mão no Marão (Luís Graça)

(**) Vdc. postes anteriores desta série:

29 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4757: Poemário do José Manuel (29): Como eram belas as bajudas que conheci...

2 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4451: Poemário do José Manuel (28): Matar ou morrer ? Não...

11 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4011: Poemário do José Manuel (27): Um ruído vem do céu / e há cabeças no ar, / hoje é dia de correio...

13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3884: Poemário do José Manuel (26): O regresso a Mampatá, 35 anos depois...

24 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3787: Poemário do José Manuel (25): A Morte

17 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3468: Poemário do José Manuel (24): Sabes o que é morrer... ?

9 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3289: Poemário do José Manuel (23): Naquela mata o silêncio magoa...

23 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3145: Poemário do José Manuel (22): (...) Como os dias passam devagar / Contados a riscar um calendário...

22 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3084: Poemário do José Manuel (21): O recordar dos sentidos: como é bom ver, sentir, ouvir, cheirar, saborear, falar...

9 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3039: Poemário do José Manuel (20): Mãe, se eu não regressar, lembra-te do meu sorriso...

1 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3010: Poemário do José Manuel (19): Aqueles assobios por cima das nossas cabeças...

22 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2973: Poemário do José Manuel (18): Não se morre só uma vez...

15 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2946: Poemário do José Manuel (17): A Companhia dos Unidos

2 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2911: Poemário do José Manuel (16): Saudades do Douro e do Marão...

25 de Maio de 2008 >Guiné 63/74 - P2884: Poemário do José Manuel (15): Dois anos e alguns meses

17 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2852: Poemário do José Manuel (14): É tempo de regressar às minhas parras coloridas...

15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2844: Poemário do José Manuel (13): A matança do porco, o Douro, os amigos de infância, os jogos da bola no largo da igreja...

9 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2824: Poemário do José Manuel (12): Ao Zé Teixeira: De sangue e morte é a picada...

2 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2806: Poemário do José Manuel (11): Até um dia, Trindade, até um dia, Fragata

24 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2794: Poemário do José Manuel (10): Ao Albuquerque, morto numa mina antipessoal em Abril de 1973

19 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2776: Poemário do José Manuel (9): Nós e os outros, as duas faces da guerra

14 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2757: Poemário do José Manuel (8): Nhacobá, 1973: Naquela picada havia a morte

10 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2739: Poemário do José Manuel (7): Recuso dizer uma oração ao Deus que te abandonou...

5 de Abril de 2008 Guiné 63/74 - P2723: Poemário do José Manuel (6): Napalm, que pões branca a negra pele, quem te inventou ?

28 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...

19 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2665: Poemário do José Manuel (4): No carreiro de Uane... todos os sentidos / são poucos / escaparão com vida ? / não ficarão loucos ?

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2630: Poemário do José Manuel (3): Pica na mão à procura delas..., tac, tac, tac, tac, tac, TOC!!!

9 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2619: Poemário do José Manuel (2): Que anjo me protegeu ? E o teu, adormeceu ?

3 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2608: Poemário do José Manuel (1): Salancaur, 1973: Pior que o inimigo é a rotina...

Guiné 63/74 - P5032: Blogoterapia (127): Somos de facto um povo de poetas, de soldados com cravos na boca das espingardas (Carlos Geraldes)

1. Mensagem de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, com data de 26 de Setembro de 2009:

Caro amigo Vinhal:

Quando me atrevi a enviar os meus escritos para a Tabanca Grande nunca poderia adivinhar a recepção de que estou a ser alvo.
Fiquei tão emocionado como na véspera do dia em que embarquei de regresso à, então chamada Metrópole, após aqueles dois anos de incertezas, dúvidas e terrores por que passei. Somos de facto um povo de poetas, de soldados com cravos na boca das espingardas. As atitudes que por vezes alguns tomam de machismo violento, não passam de uma máscara a que recorrem os fracos e os cobardes, receosos de os tomarem por isso mesmo.

Assim, não poderei afastar-me por muito tempo nem para muito longe. Estou irremediavelmente ligado ao blogue como se um cordão umbilical ainda me ligasse ao ventre materno. Os comentários que me foram dirigidos são as vozes dos meus irmãos que julgava mortos e enterrados no meio do matagal para lá da curva do rio.

Felizmente estão aqui bem vivos e vão-se juntando cada vez mais para ajudar a sufragar a dor e o sofrimento que um povo fez a outro povo. Levaremos ainda muito tempo a tentar compreender como foi possível aquela guerra, as cruezas daquela guerra entre homens bons e simples, sonhadores e sábios, que no dia do armistício se abraçaram comovidos com a memória lavada, mas com o coração quente de alegre fraternidade.

Como foi possível esquecer os massacres, os assassínios, as humilhações, os roubos, as violações? Só pela presença de um outro poder, que nunca quisemos admitir, constatar. Não, não me refiro a Deus, esse ser criado pelo homem, para lhe servir de panaceia e o livrar de pensamentos vertiginosos quando se debruça nos porquês do Universo. Não, refiro-me talvez a um poder que provém das profundezas do Cosmo, que nos antecedeu, nos guiou até aqui e irá conduzir toda a Humanidade até ao fim dos tempos. Uns dirão: é o Amor! Balelas! É fácil demais.

Eu diria antes que é o progresso das civilizações, o aperfeiçoamento das relações humanas. Hoje já não olhamos com estranheza outro ser humano só porque é de outra cor. Mas era assim há 300 anos atrás, quando o considerávamos um objecto, um ser sem alma, tal como um animal ou um vegetal? Agora é muito diferente não é?

Bom, mas desculpa-me estar para aqui a filosofar sem jeito. O que eu queria dizer também é que vou anexar a este e-mail um documento escrito em Paúnca, a pedido dos chefões daquela altura (1965) e que é mais ou menos um Relatório de Situação que obedecia a um esquema já predeterminado para aquele tipo de relatórios usados pelas NT (e para mostrar serviço, é claro). Fui eu que o escrevi por ordem do meu capitão e o que é facto é que não contém qualquer facto empolado ou embelezado. Naquela data, a situação ali era mesmo aquela, pelo menos aos meus olhos.

Hasta siempre,
Carlos Geraldes
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Notas de CV:

O texto referido pelo nosso camarada Carlos Geraldes, por ser muito extenso, vai ser publicado na sua série Gavetas da memória.

Vd. último poste da série de 16 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4963: Blogoterapia (126): Pensar em voz alta: Em noite e dia de "cerrar dente" (Torcato Mendonça)

Guiné 63/74 - P5031: Notas de leitura (25): "Memórias de um guerreiro colonial", de José Talhadas - Parte III (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 25 de Setembro de 2009:

Caríssimo Carlos,
Aqui vai o terceiro e último texto sobre a obra do sargento Talhadas, muito digna da nossa atenção.

Já tenho mais dois livros para ler: “Um amor em tempos de guerra” do Júlio Magalhães e “Os heróis e o medo” de Magalhães Pinto.

Não prometo para quando há recensões, estou num momento crucial da escrita da "Mulher Grande" e tenho afazeres profissionais inadiáveis.

Um abraço do
Mário


Memórias de um guerreiro colonial (3)
Beja Santos

A Guiné, entre 1970 e 1971

O Destacamento de Fuzileiros Especiais 12, a Unidade do Sargento Talhadas, entrou em ritmo frenético operacional, ao longo de 1970. Como ele escreve:

Foram assaltados acampamentos no interior do território. Foram feitas acções armadas contra aldeias, onde podiam pernoitar grupos de guerrilha. Foram realizados golpes de mão em áreas junto, ou mesmo dentro, do Senegal, que culminaram com a mais espectacular, a entrada na base de Sanou, dois quilómetros internada na região de Casamansa, no prolongamento das então portuguesas bolanhas de Sano e Bucaur. Mas, no ritmo operacional, a nossa fronteira verdadeira era o rio Cacheu. Saltitávamos, entre as duas margens, por um território extenso, com a parte sul totalmente despovoada de quartéis”.

Comparativamente à comissão anterior (entre 1967 e 1969), havia cada vez mais operações e os fuzos eram a única Unidade de intervenção do COP 3. O Sargento Talhadas dá a sua opinião sobre a evolução da guerra:

As unidades do Exército limitavam as suas deslocações ofensivas à volta dos seus acampamentos, que sofriam, constantemente, bombardeamentos, que os desgastavam. Havia muita desmoralização entre as tropas, chegadas à colónia, cada vez mais, com uma instrução deficiente, ainda por cima dirigida por capitães cansados. Qualquer deslocação entre dois aquartelamentos exigia a organização de toda a máquina militar desse quartel, e o movimento dessas tropas transformava-se mesmo em pesadelo, em termos de segurança”.

E relata a emboscada a elementos da Companhia de Bigene montada pelo PAIGC que, perante a fraca capacidade dos emboscados, permitiu a aproximação dos guerrilheiros. Pediu-se apoio aos fuzos que, quando chegaram, encontraram soldados completamente desorientados, encolhidos debaixo das viaturas:

Contaram então que os guerrilheiros os tentaram apanhar à mão, tendo eles escapado, andando à volta dos veículos, numa correria que mais parecia uma brincadeira entre o gato e o rato. Os homens do PAIGC, que não quiseram – ou não puderam – abater os soldados, acabaram por retirar, levando algumas armas e equipamento rádio. Fez-nos recordar um episódio da guerra do Solnado”.

O Sargento Talhadas não esqueceu Sambuiá, o cemitério de fuzileiros na Guiné. Era um ponto estratégico, uma zona de cambança do PAIGC do interior do Senegal para sul do Cacheu, terreno de vegetação frondosa, mata fechada, muito palmeiral e abertas com capim alto. O inimigo tinha na região alguns grupos de combate. Foi aí que em 24 de Outubro de 1970 morreu o telegrafista Max Mine. O inimigo fez uma emboscada perfeita, com diferentes grupos, os fuzos perderam capacidade de manobra. Max Mine fora atingido gravemente com uma bazucada. Os helis vieram salvar a situação, com o Lobo Mau à frente. Escreveu então à namorada:

Fomos emboscados e quase todo o destacamento foi apanhado em campo aberto. É terrível sentir a morte de um colega, com o qual vivíamos há nove meses. Era um jovem satisfeito com a vida e que assim de um momento para o outro desaparece”. E o autor explica Max Mine: “De seu nome Ulisses de Pereira Correia, adquiriu essa alcunha nas andanças de comboio entre a sua Beira Baixa e Lisboa. Quando lhe perguntaram em que carruagem vinha ele, respondeu: na do Max-Min, referindo-se ao facto de estar indicado apelas os lugares a informação de mudança de temperatura, conforme se queria mais calor ou mais frio”.

As recordações de Max Mine permitiram ao autor regressar à base de Sano e a novas Operações com destruição de moranças e captura de material.

Da base de Ganturé, donde os fuzileiros vigiavam o Cacheu, a Unidade do Sargento Talhadas partiu para dar protecção à construção de uma estrada alcatroada entre Teixeira Pinto e Cacheu: durante 24 horas consecutivas, uma Unidade de Fuzileiros patrulhava a região e ao fim desse tempo era substituída por uma Companhia de Comandos. Depois do assassinato de três majores e um alferes, em Abril de 1970, o estado de espírito em Teixeira Pinto era de desalento e frustração. Cresceram as tensões e ouve mesmo confrontação entre militares, entre fuzos e soldados africanos. A Unidade do Sargento Talhadas foi punida, foram metidos numa lancha, ficaram três dias ao largo de Bissau. Daí foram transferidos para Porto Gole. Foi a partir daqui que passaram a intervir na região do Corubal. Voltaram a destruir acampamentos e, na região de Gampará capturaram imenso material e destruíram um hospital. Recebe o segundo prémio Governador da Guiné, é condecorado com a medalha de Valor Militar com Palma, casou.

Na segunda metade de 1971 voltou a Ganturé, recomeçaram as Operações, capturaram o Comandante, mas a vida no COP 3 passara a ser desinteressante. A qualquer momento, a guerra reacendia-se, as tropas especiais pouco mais podiam fazer que fazer recuar temporariamente as forças do PAIGC.

A comissão acabou, o Sargento Talhadas ficou na Marinha, foi destacado para a capitania de Setúbal.


Por fim, Angola

Tudo começara em Angola, tudo iria acabar em Angola. A seguir ao 25 de Abril, foi-lhe feito o convite para integrar uma Unidade que iria preceder à transição dos postos navais para os antigos guerrilheiros ao longo do rio Zaire. Ele pensava que ia voltar à Luanda dos tempos maravilhosos da sua adolescência. Encontrou uma cidade cheia de medo onde se movimentavam os refugiados à procura do primeiro meio de transporte para fugir. Partiu para o rio Zaire e precedeu à entrega do posto da Pedra Feitiço à FNLA. Surgiram os desacatos e as tensões. O Sargento Talhadas não apreciou o que viu em gente que renegava aos seus princípios. Volta à Luanda e assiste ao caos, que ele descreve minuciosamente. E por fim deixou Angola abordo do paquete Uige:

Eu que fora um guerreiro colonial de alma e coração, abandonava a terra de expansão portuguesa, sem glória”.

Encostado à amura do navio, as lágrimas rolam-lhe pela face. A pátria em que acreditara deixara de existir.

As memórias do Sargento Talhadas são expressivas, na singeleza de alguém que não precisa de promover vanglórias ou dourar a imagem. Tudo ressuma a sinceridade, sente-se que ele responde por tudo quanto experimentou e observou. Disciplinado, não deixa de protestar perante inúmeras injustiças que presenciou. Por todas estas razões, o registo de todas as suas recordações merecia ser amplificado pelo próprio, juntando-se a ele muitos outros testemunhos das forças especiais.

Este livro passa a pertencer ao património do blogue.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5011: Notas de leitura (24): "Memórias de um guerreiro colonial", de José Talhadas - Parte II (Beja Santos)