quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 – P5647: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (27): Baptismo de fogo - Parte 1



1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias (a 27ª), com data de 14 de Janeiro de 2010:


«Baptismo de fogo» - Parte 1

Binta, 5 de Julho de 1964


O estacionamento era fustigado pela chuva que desde há umas horas caía em grossas bátegas. Na noite escura preparava-se a nossa primeira operação «a sério». Tomou-se uma refeição quente enquanto se trocavam piadas entre os mais animosos. Os mais ensonados iam acordando aos poucos.

Tiveram um significado especial as palavras que o nosso capitão Tomé Pinto nos dirigiu antes de iniciarmos a caminhada. Falava com calma e tentava transmitir segurança aos seus homens. Do bom êxito da operação que íamos empreender poderia resultar a sorte da companhia. Seria preciso que todos dessem o seu melhor.

Agora ia ser a sério. Íamos ao encontro do inimigo.

A nossa missão “resumia-se” numa batida à região de Lenquetó (situada a cerca de 12 kms do estacionamento), tabanca onde se julgava estar reunido com pessoal o «Chefão» da zona, um tal Paulo Lomba, conhecido pelo BARBAS.

Tentaríamos destruir a tabanca e fazer prisioneiros.Bebíamos as suas palavras. Lembra-me de pensar que nunca um “Pinto” me tinha parecido um “Galo” tão aguerrido e mandão. Ali, a haver “pintos”, era todos nós, maçaricos com dois meses de Guiné.

Teríamos que caminhar com o maior cuidado e no máximo silêncio pois o itinerário que íamos seguir “atravessava” uma região onde algumas tabancas ainda estavam habitadas.

Quando saímos do aquartelamento íamos uma hora atrasados em relação à partida previamente marcada, devido à chuva que não abrandava.

Eram 02h00.

Guiados pelo guia Malan Sissé percorremos com segurança e rapidez os primeiros quilómetros, ritmo que no entanto não pôde ser mantido pois a partir do entroncamento de Caurbá até à bifurcação de Genicó tivemos que rodear 13 abatises. Estes «vultos» sinistros com quem pela primeira vez tomávamos conhecimento atestavam a presença do inimigo na nossa zona. Caminhámos lentamente e com redobrados cuidados quando passamos perto de Genicó que estava habitado.

Passámos pelo "esqueleto" carbonizado de uma camioneta da serração de Binta, que o inimigo tinha destruído há poucos meses atrás.

Às 04h45 estávamos perto do nosso objectivo.

Ouviu-se por momentos com nitidez, no silêncio da noite, o ruído característico do pilão. Não muito longe cães latiram. Lentamente percorremos a distância que nos separava de Lenquetó.

Às 05h15 começou-se o envolvimento da tabanca instalando-se em meia-lua os dois grupos de combate.

Poucos momentos depois viram-se alguns indivíduos sair caminhando na nossa direcção. Gritou-se para que fizessem alto. Retrocederam rapidamente fazendo fogo de pistola de dentro da tabanca. As nossas tropas abriram fogo e durante alguns momentos dezenas armas automáticas crepitaram simultaneamente. Parecia uma trovoada. A reacção do inimigo embora diminuta fez-se sentir.

Um «suicida» descortinou o nosso capitão em pé, protegido por uma árvore, e avançou para ele correndo com um «canhangulo» em posição de fogo. Foi abatido depois de meia dúzia de passos.

Outros dois indivíduos saíram em correria da tabanca e ziguezagueando conseguiram passar por meio de uma secção, escapando ao fogo de duas ou três dezenas de atiradores. Foi uma fuga desesperada que, com um mínimo de probabilidades de êxito, resultou. Pareciam voar e escaparam-nos autenticamente entre as mãos!

Houve uma certa dificuldade em controlar esta primeira “descarga” para se passar ao interior da tabanca, conseguindo-o o nosso capitão com o seu exemplo e com a sua experiência (já tinha andado por Angola), arrastando consigo alguns homens, que penetraram lentamente na tabanca. Houve um inimigo que, apesar de ferido, lançou uma granada sendo abatido acto contínuo. Não se registaram outros actos de resistência mas foram abatidos ainda alguns indivíduos que tentaram fugir para o exterior.

Iniciou-se a revista das moranças e começaram-se a reunir prisioneiros, alguns deles feridos, para um pequeno largo no centro da tabanca. Foram prestados os primeiros socorros aos que mais necessitavam. Não se encontraram armas, não se conseguindo da parte dos prisioneiros informações.

Começaram-se a encaminhar os prisioneiros para o exterior da tabanca enquanto se incendiavam as moranças que iluminaram sinistramente o alvorecer.

Com dificuldade devido ao número (cerca de 40) e ao estado de alguns prisioneiros perdeu-se bastante tempo antes de se iniciar a marcha de regresso.Quando estávamos para partir apresentou-se um novo prisioneiro que tinha passado despercebido a quando da revista à tabanca.


Seriam talvez 07h00 quando lentamente nos começámos a afastar de Lenquetó que ardia. A nossa missão estava cumprida.

Iniciámos o regresso ao estacionamento, donde tínhamos partido cinco horas antes.

Na tabanca tinham perecido duas ou três dezenas de inimigos.

Com os dois grupos de combate, progredindo em quadrado, andaram-se uns 500 metros, interrompendo-se a marcha várias vezes por dificuldade em fazer caminhar os prisioneiros dentro do nosso dispositivo. Um prisioneiro já moribundo, o chefe da tabanca, teve que ser abandonado por já não poder deslocar-se, sendo-lhe ainda injectado morfina para alívio do seu sofrimento.

Decorridas mais umas centenas de metros foi descoberto um homem (isolado) que apesar de avisado em altos gritos para não fugir o tentou fazer, sendo perseguido e abatido. Tiveram de fazer-se novas paragens devido aos prisioneiros que se deslocavam com muita dificuldade no centro do quadrado.

Quando a cerca de 500 m de Caurbá progredíamos numa zona fortemente arborizada, (com muitos arbustos e pequenas palmeiras), fomos emboscados pelo inimigo. Ouviu-se um rebentamento de granada já depois de a "guarda da frente" ter passado, seguido momentos depois por outro estoiro.

Depois de um primeiro momento de expectativa e surpresa (houve quem pensasse até que os rebentamentos se deviam ao descuido ou imprevidência de algum dos nossos soldados) instalámo-nos rapidamente em círculo, «mascarando-nos» com a vegetação existente no local.

Seriam cerca de 08h00.

Houve mais alguns tiros do inimigo, de pistola e pistola-metralhadora, respondendo a nossa tropa com grande poder de fogo em todas as direcções.

O inimigo não estava longe e havia lançadores de granadas dentro do nosso dispositivo. O rebentamento da segunda granada provocou ferimentos no Furriel Mesquita e no 1° Cabo Craveiro, que seguiam na linha da frente, do lado esquerdo, sendo tratados por alguns soldados que utilizaram a propósito os pensos individuais, e pelo Furriel Enfermeiro Oliveira, verificando-se serem ligeiros os seus ferimentos.

Momentos depois tivemos a sensação de estarmos envolvidos pois os tiros de pistola-metralhadora, pistola e rebentamentos de granadas sucediam-se de todos os lados. O nosso dispositivo, um tanto ou quanto desarticulado, avançou para uma zona mais descoberta, instalando-nos em círculo junto de uma grande árvore. Entretanto na retaguarda havia também contacto com o inimigo sendo feridos o Sargento Gouveia Marques (com estilhaços de granada), num braço e o 1. ° Cabo Marques (com uma rajada de metralhadora), no escroto e num testículo.

Continuámos a responder ao inimigo com fogo baixo e uma bazucada deve ter feito grandes estragos no inimigo, pois ouviram-se gritos lancinantes durante alguns momentos.

Junto à árvore já referida o nosso capitão, calmamente, transmitia ordens e recomendava ordem no fogo para não virem a faltar munições.

Os feridos entretanto tinham-se deslocado até ao abrigo dessa árvore (que passou a servir de posto de comando e enfermaria) onde foram mais convenientemente tratados, verificando-se inspirar cuidados os ferimentos do Cabo Marques.Antes ainda de nos instalarmos junto à árvore do “Comando”, que vimos referindo, o Soldado n.° 2212/63, Chita Godinho conseguiu abater um inimigo que fazia fogo muito próximo com uma arma de repetição e corajosamente deslocou-se até este retirando-lhe a espingarda.

O inimigo continuou a flagelar-nos mas do nosso “círculo” continuava a partir um «furacão» de ferro e fogo.

Foi pedida a aviação para apoio e um helicóptero para evacuação do ferido mais grave, o Marques, que embora cheio de dores continuava a manter um sangue frio e serenidade notáveis, nunca desanimando nem exteriorizando o seu sofrimento.

O apoio aéreo não se fez demorar muito localizando-nos com relativa facilidade depois das indicações dadas pela rádio pelo nosso capitão. Ainda antes da chegada dos aviões (doisT6) o inimigo tinha tentado fazer uma autêntica carga sobre o nosso dispositivo, sendo abatidos, uns dois ou três indivíduos, a uns cinco ou seis metros da árvore onde se abrigavam o nosso capitão, o Furriel Enf.º, o cabo radiotelegrafista e os feridos já mencionados anteriormente.

Também ainda antes da chegada dos aviões soubemos pela rádio que a coluna-auto que se dirigia ao nosso encontro, com duas secções comandadas pelo Alf. Santos, tinha sido também emboscada junto do entroncamento de Caurbá, e que tínhamos um ferido grave por estilhaço de granada.

Com a chegada do apoio aéreo o inimigo mostrou-se menos activo, fazendo no entanto ainda por duas ou três vezes fogo de pistola-metralhadora para os «caças».

Os pilotos, habilmente conduzidos pelas informações de terra, fizeram fogo por várias vezes para os locais donde o inimigo nos tinha flagelado, lançando ainda uns «roquetes» para umas casas de mato nas proximidades da tabanca, que se avistava ao fundo, à esquerda.


Cerca das 11h00 chegou o helicóptero para evacuação do ferido sendo a sua descida comandada pelo nosso capitão que, a peito descoberto, conseguiu evitar que descesse num local onde poderia estar o inimigo. Em manobra impecável o helicóptero desceu apenas a uns 20 metros da árvore junto da qual se encontravam os feridos.

Rapidamente o Marques foi transportado até ao helicóptero pelo Enfermeiro Oliveira, auxiliado pelo nosso Capitão Tomé Pinto e pelo AIf. Tavares, revelando o pessoal do helicóptero grande experiência e calma. Sempre com a hélice em movimento o helicóptero elevou-se rapidamente, dirigindo-se para Binta onde o esperava um condutor gravemente ferido aquando do ataque à coluna-auto, que entretanto já não estava debaixo de fogo, não podendo no entanto aproximar-se da zona de Caurbá por se encontrar avariada uma viatura.

Os T6 continuavam a evolucionar sobre a área dando-nos uma sensação de agradável protecção o ruído dos seus motores.

A pedido do Capitão Tomé Pinto os pilotos metralharam a zona por onde, electrizados pelo exemplo do nosso Comandante de Companhia, que arrancou de imediato para a frente, seguimos o mais rapidamente possível, respondendo ao fogo inimigo que, de cima das árvores, nos continuou a flagelar durante algum tempo. Com um dispositivo em «cunha» conseguimos iludir o inimigo que não esperava a nossa saída pelo local onde ela se verificou.


A experiência e o arrojo do nosso Capitão conseguiu que dois grupos de «maçaricos», que se “agarravam” ao chão logo que se ouvia um tiro, «voassem» por uma zona batida pelo fogo do inimigo que nos viu afastar com rapidez e segurança. A registar a tentativa de fuga de três prisioneiros aquando da retirada da zona da emboscada, que no entanto foram abatidos, sendo de louvar a calma e serenidade das duas secções que tinham a seu cargo a guarda ao numeroso grupo de prisioneiros, trazendo-os sem mais uma baixa até ao estacionamento.

Os quilómetros que nos separavam ainda de Binta foram percorridos debaixo de um calor sufocante que exigiu de cada um, um esforço suplementar, pois vínhamos a caminhar desde as 2 horas da madrugada.

Logo que nos afastámos de Caurbá o dispositivo voltou à formação de "quadrado" sempre superiormente comandado pelo nosso capitão, que extenuado por um esforço extraordinário ficou sem voz e teve de se aproveitar do vozeirão do Furriel Juca (um homem pequeno mas com voz de gigante...) para continuar a transmitir as suas ordens.

O Capitão Tomé Pinto em 1964

Cada metro de mato exigia já um esforço penoso para o percorrer.

Desejava-se os barracões de Binta mais do que, em qualquer outra altura, um hotel de luxo.


Foi para muitos (entre estes e muito na vanguarda o «cronista»...) o dia «D», o dia mais longo das suas vidas...

Já próximo do estacionamento o nosso capitão e um grupo de combate foram ainda ao encontro da coluna-auto para proteger o seu regresso.

Quando chegámos a Binta, onde também se tinham vivido horas de grande ansiedade, eram 12h30.

Acabava-se, de viver o nosso primeiro dia operacional em terras da Guiné. Tínhamos combatido duramente com o inimigo e obtido uma vitória esmagadora. Do Cacheu até à fronteira do Senegal os que tivessem «escapado» fariam a nossa melhor «publicidade».

Não se poderá dizer que não tivemos um baptismo de fogo animado.


E… nunca um “Pinto” me tinha parecido um “Galo” tão aguerrido e mandão.

O Capitão Tomé Pinto actualmente

(Os ex-militares da CCaç 675 saudam especialmente, hoje, dia 14 de Janeiro, o "seu" Capitão - agora Ten. General -, pela passagem do seu 74º. Aniversário. Parabéns e que conte muitos mais).

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P5646: Bibliografia de uma guerra (55): Armados Para a Paz, de Albino Silva

1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva (ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70), com data de 11 de Janeiro de 2009:

Caro Camarada Carlos Vinhal
Em primeiro lugar o desejo de um Bom Ano, para ti e para todos os Chefes de Nossa Tabanca Grande, e para que a mesma continue a crescer porque é para mim uma grande alegria ler e ver fotos de tantos tertulianos como eu.

Como tenho dito, a nossa Tabanca é o meu primeiro jornal diário e é o único que fala verdade, o mais puro de todos que são lançados nas bancas, pois as nossas notícias saem de nossos corações ainda magoados e traumatizados do passado já distante, embora seja esquecido pelos sucessivos Governantes, em nós está sempre na memória no dia-a-dia.

Carlos acabei de escrever mais um livro, este com o título "Armados para a Paz", pois era assim a CCS/BCaç 2845.

Este livro será exclusivamente para a Companhia, e será lançado no dia 1 de Maio no Convívio da mesma, em principio em Buarcos.

Desejava assim que fosse anunciado este meu trabalho, pois é sempre a pensar na Guiné e na Companhia que vivo os meus dias, por isso só me sinto bem quando escrevo alguma coisa para os meus camaradas.

Podes ficar ciente que te vou oferecer um exemplar porque quem esteve na Guiné vai gostar de ler meu trabalho. Sei que aquilo que lá passei e que afinal passámos todos.

Brevemente te enviarei alguns trabalhos, os quais serão dedicados a todos os camaradas que estiveram na Guiné, pois assim como gosto de ler o que foi do nosso passado, também de certeza que outros gostarão de ler o que eu faço.

Termino com um grande abraço para todos os Tertulianos, um Bom Ano, e aos Chefes de Tabanca sempre boa disposição e força de vontade para nos continuar a aturar...

Albino Silva
Soldado Maqueiro
CCS/BCAÇ 2845
Teixeira Pinto


2. Comentário de CV:
Caro Albino, cá receberemos o teu livro com muito gosto para fazermos uma recensão, e por que não, publicar algumas histórias do teu Batalhão.

Agradecemos as tuas simpáticas palavras que são um bálsamo para continuarmos este trabalho, sempre tendo em vista a preciosa colaboração de todos os tertulianos.

Um abraço de parabéns para ti, pelo trabalho que desenvolves destinado essencialmente aos teus camaradas de Batalhão.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4552: Convívios (146): Encontro das CCAÇ 2367, CCAÇ 2368 e CCAÇ 2313 (1968/69), (Albino Silva)

Vd. último poste da série de > 9 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5618: Bibliografia de uma guerra (54): 30 anos de guerra colonial (José Brás)

Guiné 63/74 - P5645: Blogues da nossa blogosfera (32): A nova Tabanca da Lapónia, de José Belo, Kiruna, Suécia


Tabanca da Lapónia, blogue do José Belo: Ponto de ENCONTRO para todos os Nalus, Beafadas, Mandingas, Fulas, Felupes, Balantas, Papéis, Bijagós, Minhotos, Transmontanos, Beirões, Estremenhos, Ribatejanos, Moiros de Lisboa, Alentejo e Algarve, Madeirenses, Açoreanos (incluindo coriscos e bichos-mal-amanhados!),e LAPÕES"...

É um blogue INCLUSIVO, pelo menos promete... Para já está vazio, o que só pode ser atribuído ao rigoroso inverno da Lapónia (LG).


1. Mensagem de Joseph Belo, com data de ontem. O tuga José (Belo, para as bajudas) vive na Suécia, desde 1976 (se não me engano), numa espécie de auto-exílio... Mais concretamente, vive na cidade mineira de Kiruna (menos de 20 mil habitantes), a cerca de 150 km do círculo polar ártico (Brrrr!!!, que briol, camaradas!). Maioral, foi Alf Mil da Alf Mil Inf da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70). Foi camarada de outros Maiorais como o nosso Zé Teixeira, da Tabanca de Matosinhos. E amigo de outros camarigos como o Joaquim Mexia Alves, da Tabanca do Centro. Está reformado como Capitão Inf (não sei se recebe a pensáo de sangue, suor e lágrimas...). É o autor da popular série Da Suécia com Saudade. (*)

Em Kiruna, dizem-me que é um homem de leis (e de lei). Mais concretamente, Adv.Konsulent/Svår flickor, um misto de advogado e e especialista em raparigas mázinhas... (Na Suécia, há especialistas para tudo).

Ele, que vive na diáspora lusitana, é daqueles que sabe dar o valor à palavra Saudade, à nossa língua... e ao calor da nossa Tabanca Grande! (LG)



Assunto: Participar o nascimento de uma nova Tabanca.

Venho deste modo participar a Vocelências o nascimento (prematuríssimo) de mais uma Tabanca, Filial. Para mais, filha de mãe incógnita (!), o que vem complicar as coisas. (OBS/ eu escrevi...filha DE mãe!). Prometo que a jantarada da inauguração nao será a uma Quarta-Feira para não concorrer, nem com Cozidos, nem com Sardinhadas ou Caldeiradas!

A nova Tabanca chama-se TABANCA DA LAPÓNIA (http://tabllap.blogspot.com/).

As cerimónias oficiais serão em fins do próximo mês, altura em que por aqui já existe hora e meia de luz diária. Estão todos obviamente convidados assim como Familiares e Amigos. Sem querer fazer humor fácil, a ementa consta de um jantar-frio, composto de carnes de rena, de salmão e, para calar os mais reguilas, de BACALHAU, do alto, do bom, do norueguês, que é desembarcado no porto de Narvik a pouco mais de uma centena de kilómetros daqui.

Os precos proíbitivos do vinho tinto aqui na zona levam a que tanto os aperitivos, o acompanhante da refeição e os digestivos, sejam a boa e forte(!) Vodcka local, bebida à maneira da Lapónia, ou seja, por copos de água em ritmo acelerado.

Se me desculparem mais uma...pertinência, gostaria de lembrar alguns promenores aos interessados na jantarada:

(i) Como têm estado aqui SÓ 40 graus NEGATIVOS, e depois de observar algumas fotografias de outras festas com a presença dos Camaradas, verifiquei que as "calvas aristocráticas" abundam. Recomendo que não esqueçam de se fazer acompanhar de um dos nossos tão típicos barretes. Nao tem importancia se da Nazaré, de Campino, de Saloio, contanto que seja...quente! (E, p'ra mais, vamos fazer uma inveja aos Lapoes!).

(ii) Não enviem as confirmações das vossas presenças ao jantar por meio de...pombos-correios. Ao aterrar já serão franguinhos congelados!

(iii) Os Camaradas que fumam, por amor de Deus!!!, não queiram ser simpáticos para os não fumadores e não se ponham a....abrir as janelas!

(iv) Tendo em conta as idades bíblicas que a maioria de nós já vamos tendo,os que quiserem aliviar-águas durante o longo banquete não esqueçam que não estão na Lusitânea, indo fazê-lo por detrás de uma pedra...de gelo. Os 40 graus negativos costumam pregar partidas nestas situações.

BEM VINDOS!

PS - Os que se derem ao trabalho de visitar o site,e tenham nascido em Lisboa (como eu), ou no Alentejo e Algarve, não levem muito a sério o que escrevi na introdução da nova Tabanca da Lapónia, pois sem aqueles NOSSOS Antepassados não teria havido...nem Fado para a Amália genialmente cantar, nem ensopado de cabrito em coentrada, nem o delicado peixe alimado!

2. Comentário de L.G:

Definitivamente, isto é a internacionalização do nosso blogue, a globalização da nossa Tabanca Grande. Alfragide, Candoz, Matosinhos, Paris, Monte Real (Leiria, Portugal), Monte Real (Canadá), USA, Austrália, Brasil... Para onde vamos, camaradas, ou melhor, onde já chegámos, camaradas! Agora Kiruna, na Lapónia!

Não liguem ao perfil do tabanqueiro (que é intraduzível em sueco e que, em português, precisa de meter explicador):

"EGÓLATRA com fortes deficiências BICÚSPIDES resultantes das vacuidades provocadas por demasiadas participações em TERTÚLIAS ESQUERDISTAS-PSEUDÓPEDES que se não devem ,de modo algum, confundir com as Esquerdistas/PUXAVANTES que acabam por criar figuras de alto gabarito em Comissões Europeias"...


O convite está feito. Há gajos, entre nós, suficientemente malucos para irem a Kiruna, em veículo todo o terreno, à inauguração do iglô, quer dizer, da morança (uma, duas, três....?) da Tabanca da Lapónia. Já houve aqui gajos que uma semana depois de cancelago o Paris-Dakar, já estavam a atarvessar a Mauritânia, por conta e risco e passapaorte da Al-Queida...

O máximo que subi, acima de Estocolmo, foi Karstad...Mas um dia gostava de ir a Kiruna. Como gostava de ir a Viana, visitar o nosso tabanqueiro nº 2, o Sousa de Castro. E a muitos outros sítios onde haja amigos e camaradas da Guiné... Até lá, até Kiruna, vamos publicando as reflexões do José Belo, uma das quais está na calha, sobre a (des)colonização... Um Alfa Bravo. Luís

3. Saudações da Tabanca do Centro, blogue fundado pelo Joaquim Mexia Alves e para já animado por ele e pelo Vasco da Gama

quinta-feira, 14 de Janeiro de 2010

Da Suécia com amor!

Nada de confusões
Nessas cabeças já gastas,
Tão cheias de incerteza,
É que o amor da Suécia
É p’lo Cozido à Portuguesa.
Diz-me o nosso camarigo,
José Belo de seu nome,
Que virá de avião, de skate, ou a pé,
Apenas para comer,
O afamado cozido,
Com a malta da Guiné.
É que não sabem vocês
Que por causa de um vento estranho
Que sopra no Litoral e na Beira,
Chegou até á Lapónia
O cheiro da farinheira.
Não contente com isso,
Este ventinho maldoso
Levou também consigo
Um cheirinho a chouriço.
Coitado do José Belo
A tiritar do frio imenso!
Quando olha para as renas vê vacas,
E todo o verde são couves,
Cozidas mesmo a preceito.
E o vento que nunca cessa
De lhe levar o cheiro intenso!
É uma dor de alma,
Um tormento,
Não devia ser permitido
Que odor tão salivante
Fosse nas asas do vento.
Prometo solenemente
Que te guardo a melhor parte,
Fica com esta certeza.
Não só eu,
Mas toda a gente,
Te servirão alegremente
O Cozido à Portuguesa.

Monte Real, 14 de Janeiro de 2010

Joaquim Mexia Alves
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Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P5644: Blogoterapia (138): Detecção de minas por picagem (Manuel Marinho)

1. Mensagem de Manuel Marinho* (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), com data de 11 de Janeiro de 2010:

Caro Carlos Vinhal.
Envio-te este texto, como sempre deixo ao teu critério a sua validade.


DETECÇÃO DE MINAS / PICAGENS

O treino dado aos soldados, já numa fase adiantada quando era já um dado adquirido a ida para a Guerra Colonial, era uma ficção, estou convencido que se houvesse treino adequado, se possível dado por militares que já tivessem passado pela guerra, ter-se-iam minorado algumas situações desagradáveis.

Assim e nas condições em que a maioria foi preparada para a guerra, é caso para dizer que todos nós fomos HERÓIS.

Lembro-me de andar uma manhã para percorrer 1km na detecção de minas de fragmentação dissimuladas no terreno compostas de fumo e serrim(?) e quase nunca detectadas, que rebentavam quando o recruta passava, accionada por um cordel, nas mãos do instrutor que assustavam quando detonadas e eram levadas muito a sério.

Picagem em terreno firme. A viatura rebenta-minas vem atrás
Foto: © Jorge Teixeira (Portojo) (2009). Direitos reservados.



Nema- Farim

No caso concreto das minas, havia os Sapadores incorporados no Batalhão que as retiravam quando solicitados para o efeito, e que minavam os trilhos por onde passava o IN, mas quem fazia as picagens, na maioria das vezes, eram os atiradores, do 1.º e 2.º GComb/1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512 sediados em Nema até aos ataques a Guidaje, (quando saímos de Nema para Binta), pelo menos no nosso caso era assim, embora os Sapadores fizessem algumas acções de patrulhamento em conjunto com os nossos GComb.

As minas eram o terror que acompanhava o soldado operacional em toda a comissão, de tal modo que a tarefa de picador**, era sempre recebida com desagrado.
O factor psicológico de pisar uma mina era de tal ordem, que havia camaradas que pediam que se algo de mal acontecesse preferiam que acabassem com eles, a ter de voltar amputados.

Quando fomos (já a sério) em treino operacional de Nema até ao corredor de Lamel para as futuras protecções descontínuas às colunas vindas de Jumbembem, Cuntima e Canjambari, para irem a Farim fazer os abastecimentos, ficámos com a sensação de não termos feito bem os trabalhos de casa.

Seguíamos os elementos da 14.ª Companhia que seguiam na frente da coluna e o andamento foi tão normal que nos interrogamos como era feita a picagem.
Quando nos mandaram parar e ficar a emboscar até as colunas passarem, na ida para Farim e depois voltarem, perguntei a um elemento da 14.ª se tinha havido picagem, pois tinha sido rápida a marcha, ele sorriu e disse-me:

- As picagens são feitas mais com os olhos, se fosse como nos ensinaram nunca mais a coluna passava, vocês vão aprender isso rapidamente.

Depois nas repetidas idas ao mato para fazermos as protecções descontínuas às colunas, tínhamos de fazer a respectiva picagem até ao local onde ficávamos, até as mesmas regressarem de Farim.
Nessas picagens eram escolhidos um conjunto de cerca de 6 elementos para o trabalho de picagem do solo, 3 de cada lado na picada de modo a cobrir os espaços onde as viaturas passavam, e de facto com o hábito aprendemos a ler onde pôr os pés.
Devo dizer que era uma tarefa que nenhum de nós gostava, e das vezes em que era eu um dos eleitos, não deixava de resmungar e a minha má disposição era evidente, de nada valia andar com a HK-21 porque o alferes mandava trocar a arma com outro camarada.

Numa dessas vezes ia concentrado olhando e picando o solo, eis que ouço o toc da pica ao bater em algo, paro de imediato, e algo temeroso exclamo:

- Mina!

Com a nossa malta toda parada, avança o alferes mais um furriel, verificam a possibilidade de tirarem a mina, depois se a memória não me atraiçoa foi o furriel que com a faca de mato retirou cautelosamente a terra em volta de um pequeno objecto de forma circular enterrado no solo, não havia espoleta e depressa se deu conta que a mina era uma lata de ração de combate virada ao contrário.

Esta descoberta valeu-me, um elogio da parte do alferes que me disse em tom trocista:

- Estás a ver porque te coloco mais vezes na picagem, porque só os bons são capazes até de detectar latas!

Noutra altura um dos meus camaradas de GComb já farto de ser escolhido para a picagem, e como forma de mostrar o seu descontentamento pegou na vareta da picagem colocou-a ao ombro e avança em frente em passo acelerado perante os nossos apelos para que parasse. Lá o conseguimos acalmar, em abono da verdade devo dizer que foi um excelente operacional, mas estas atitudes eram um escape para a forte actividade operacional que havia, mas que foi compensada pela actividade pouco visível do IN devido a constante vigilância nossa no sector, com bastantes noites passadas no mato.

Depois com o aparecimento de minas anti-pica, (rebentavam ao contacto da pica) as Berliets com os sacos cheios de areia, colocados na dianteira das viaturas, sobre os seus rodados fizeram muitas as vezes de picadores, salvando muitos camaradas da morte e da mutilação.

Já agora uma palavra de apreço aos nossos camaradas condutores, que apenas com uma perna dentro da viatura para a condução da mesma, a outra ia da parte de fora, no sentido de minimizar os danos físicos se acontecia o rebentamento, quando eram projectados, havia-os na minha Companhia, mas sei que a partir de certa altura era uma prática bastante usual em toda a Guiné.
Uma palavra de sentida homenagem a todos os camaradas que voltaram para a sua Pátria destroçados por engenhos explosivos, e que me continuam a dar lições de vida, no seu dia a dia, esses são os meus Heróis.

Um grande abraço
Manuel Marinho

Mina AP (antipessoal) de petardo único e detonador, feita em madeira.
Foto: © Raul Albino (2009). Direitos reservados


Mina anticarro detectada por um pica da CART 2732 no Bironque, estrada Mansabá-Farim.

Efeitos de uma mina anticarro numa GMC ao serviço da CART 2732
Fotos: © Carlos Vinhal (2009). Direitos reservados

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5501: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (12): Vamos ajudar camaradas em dificuldades (Manuel Marinho)

(**) 30 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4760: Pensamento do dia (17): Recordando as Picas (Jorge Teixeira/Portojo)

Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5477: Blogoterapia (137): Palavra de honra que não consigo entender (José Brás)

Guiné 63/74 - P5643: Memória dos lugares (68): Os militares eram uns tipos do caraças (Torcato Mendonça, CART 2339, Mansambo, 1968/69)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Fotos Falantes I  Foto 3 > Um alfero fula...




...  e a sua morança (Fotos Falantes, Foto 2)




... um bando de militares > Fotos Falantes II > Foto i2


... outro bando > Fotos Falantes II > Foto i5

... a famosa MG 42 > Fotos Falantes II > Foto i13


... o militar tem boina de cor e emblema esquisito > Foto Falane I, Foto 19...



.... Foto Falante I > Foto 14



... o célebre Seco Camará, picador e guia das NT, natural do Xime, mandinga (morto, mais tarde, à roquetada, em 26 de Novembro de 197o, a caminho da Ponta do Inglês) > Fotos Falantes I, Foto 15...




... em passeio turístico, armados com material do PAIGC. Até um RPG 2, que descaramento!  > Fotos Falantes II, Foto 9


Fotos: © Torcato Mendonça (2010). Direitos reservados


Caro Luís e Vinhal
(se o endereço não for este, o do Luís Graça,  avança o do Vinhal)

A titulo meramente informativo ou talvez não.
Sem titulo.
Os militares eram uns tipos do caraças.
Havia-os  de várias espécies e formatos.
Vocês sabem tão bem ou melhor do que eu.
Sabem pois.
Eu disso,  sei pouco.
Vidas...

Isto a propósito da MG...
Os militares que não eram pára-quedistas ou fuzileiros,
também usavam a dita metralhadora.
Vide Fotos Falantes II - Foto i5, i2, i13
e um bando de militares,
pouco regulares
em atavio
e armamento
- vide Fotos Falantes II
- Foto 9 (em passeio turístico),
armados com material do PAIGC.
Até um RPG 2, que descaramento.

Em Fotos Falantes I, Foto 19,
o militar tem boina de cor e emblema esquisito;
ou na 14;
o Seco na 15;
o Braimadico (Op Lança Afiada) na 9;
um alfero fula na 3
e sua morança na 2.

Ainda nas Fotos Falantes III,
Fotos 58 e 59
a HK
e uma Santinha Protectora de mosquitos e outras alimárias...

Seriam militares de Tropa Normal...
E o que é isso????
Que atavio...

Dizem
que o coordenador (?) daquele grupo
gostaria de ter uma BOFORS...
Enviem-lhe uma porra,
dá jeito aos gajos, porra.
Agora já é tarde.
Se fosse há 40 anos....
a guerra que aqueles militares, os das fotos, faziam
era pouco ortodoxa...
Melhor dizendo,  uma merda...
Mas se davam um passo atrás
era para tomar balanço...
E vai para a frente com mais força...
para trás nunca,
como dizem no Alentejo:
para trás mija a burra...ió...

Eu abraço-vos,  T M

[Torcato Mendonça]

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5642: Falando da Psico na Guiné e na sua componente política (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 11 de Janeiro de 2010:

Carlos,
Hoje envio um texto que não sei se cabe em alguma das rubricas existentes.
Trata-se de uma abordagem à componente política da guerra que, entre nós, foi comummente designada de "psico".
Sobre essa matéria afiguram-se-me muitas dúvidas e interrogações que derivam da minha experiência e venho partilhar no blogue.
Pode acontecer, até, que alguns conhecedores possam esclarecer sobre o assunto.

Para ti e para a Tabanca Grande, vai um grande abraço
José Dinis


Relativamente à "Psico"

A guerra de África, para além da belicidade implícita, também se desenvolvia na vertente política. De facto, uma preocupação das autoridades portuguesas concentrava-se na preservação das populações à influência das actividades dos movimentos emancipalistas, preocupação que, agora, apreciada à distância de 30/40 anos por estudiosos estrangeiros, atingiu objectivos muito satisfatórios.

De facto, quer em Angola, quer em Moçambique, durante o período da guerra, assistiu-se a crescendos económicos e sociais absolutamente notáveis. Desenvolveram-se infraestruturas, expandiu-se a Administração Pública, o ensino, a rede assistencial. A par disso, também as actividades privadas, da agricultura à industria, do comércio aos serviços, conheceram forte incremento, do que resultou um exponencial crescimento da mão de obra, alguma dela já com requisitos de especialização. Concomitantemente, aumentou a produção de riqueza. Por outro lado, cresciam e modernizavam-se os agregados populacionais e, é importante acentuar, harmonizavam-se as comunidades multi-raciais.

Na Guiné, porém, região de aparente parcos recursos, para além da exploração agrícola e do corte florestal, não se registou especial desenvolvimento em outras actividades, com excepção para o comércio animado pelo fluxo migratório de militares. Socialmente também não se notaram grandes progressos. O território também não foi apetrechado com equipamentos de monta, além de registar um tremendo deficit na capacidade para produzir energia.

Com estas condicionantes, a política designada "Por uma Guiné melhor", que o General Spínola promoveu como objectivo maior na preservação da fidelidade das populações ao interesse português, consubstanciava-se no proteccionismo daquelas, em áreas tão importantes como o suporte alimentar, a prestação de cuidados médicos e medicamentosos e, não menos importante, no incremento do prestígio das autoridades tradicionais, pela via da realização de congressos do povo, e o regular patrocínio de visitas religiosas a Meca.

Qualquer uma destas acções, isoladamente, se não seguissem uma política integrada, pouco valor teriam para o objectivo mais importante de cimentar a união do território pela fidelização dos povos, mais a mais, considerando a multiplicidade de raças naquele mosaico regional. No entanto, parece que não foram criados mecanismos dinamizadores e consecutivos para aqueles propósitos.

Para a prossecução desses objectivos, e na ausência de anteriores estruturas civis, passaria a caber à tropa um importante papel no suprimento daquelas necessidades, competindo-lhe a prestação assistencial às populações, bem como o fornecimento de alimentos, quando o clima de guerra era impeditivo das normais actividades de agricultura e pastorícia. Para além disso, devia ser feito algum esforço na área do ensino, condição essencial para a ligação dos povos autóctones à potência dominadora. Em boa verdade, não tenho a certeza de que essas políticas tenham sido bem organizadas, e que a tropa, nomeadamente a de quadrícula, tenha sido suficientemente sensibilizada e mobilizada para o efeito.

Devemos ter em conta que, naqueles tempos, era escassa a informação. Na Guiné não havia jornais, havia uma estação de rádio, não havia televisão. As populações, como a tropa, tinham, assim, como único veículo informativo, a audição de programas rediofónicos, sendo que as populações atendiam mais às emissões do Senegal e outros países limítrofes, enquanto a tropa ouvia o Pifas. Eram fracos e de reduzida audiência os serviços noticiosos, e praticamente nulos os de informação.

Assim sendo, e porque as autoridades portuguesas deviam conhecer a dificuldade, parece-me que a forma de a suprir, teria sido através da emissão de directivas de doutrina, informação e acçao, difundidas para as unidades militares, que empreenderiam as desejadas e coordenadas acções em todas as frentes. Essa forma de coordenação, teria que ser, posteriormente, devidamente fiscalizada na forma como teria sido concretizada, para os necessários ajustes, sempre que necessários.

Ora, do meu periscópio, tais medidas não aconteceram, e o programa "Por uma Guiné melhor" coxeou em vez de andar. Digo do meu periscópio, que é do meu ponto de vista, na medida em que na zona leste por onde andei, não vi, para além dos cuidados de enfermagem, e da tímida e discutível acção dos reordenamentos, qualquer obrigação ou estímulo relativamente à convivência e melhoria de condição das populações locais e autoridades tradicionais, por força de acções concertadas pela presença militar. Desta letargia resultou uma grande ineficácia na promoção da política de integração e fomento que seria desejável para o território.

De facto, na minha Companhia, a CCaç 2679, não tenho conhecimento que tenha sido lida ou discutida qualquer directiva sobre a matéria em apreço; também não aconteceu qualquer reflexão relativamente ao relacionamento com as populações; nem sequer a preocupação de fazer funcionar uma escola onde fossem ministrados conhecimentos primários para ler, escrever e contar, tanto para a tropa que deles carecesse, como para os jovens locais, sempre curiosos e com vontade de assimilar conhecimento, do que resultou uma vivência de costas voltadas, e a percepção, para os mobilizados, de que a "psico" constituía um mecanismo protector dos pretos e punitivo para os brancos, denegrindo-se nas bases a concepção política.

A confirmar-se a incongruência, isto é, que a estranha ausência da minha Companhia a integrar uma política comum a todo o território, com vista à promoção social, desenvolvimento económico e apoio à actividade da população, não foi prática isolada, antes o retrato extensivo à maioria das unidades militares, somos obrigados a concluir que o General Spínola, e, eventualmente, a sua entourage, comportou-se como um demagogo inane, referindo-se mais para os orgãos metropolitanos, do que preocupado em executar localmente, promovendo a sua imagem, talvez com outros objectivos.
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5614: História da CCAÇ 2679 (32): Reflexões sobre Tabassi e o mau relacionamento com o Trapinhos (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P5641: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (3): O nosso Cabo Enfermeiro José Botas

1. Mensagem do nosso camarada Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), com data de 8 de Janeiro de 2010:

Caro amigo e camarada de armas.
A partir de agora, se não virem inconveniente vou enviando uma série de apontamentos, uns mais sérios e outros mais cómicos, no fim o que de real se passou no dia a dia de uma Companhia.

Também tive a oferta de umas folhas de um jornal dos Aguias Negras de 1964, com artigos com interesse e que mais tarde irão seguir.


Notas soltas da CART 643 (3)

O nosso Cabo Enfermeiro José Botas


Um militar que era considerado por todos. Quem não se lembra do 1.º Cabo Enfermeiro José Botas, natural de Coimbra, moço sempre alegre e bem disposto, dando ânimo a todos os que recorriam ao posto de socorros? Infelizmente já não se encontra entre nós, faleceu vai para 15 anos.

O Botas durante a sua comissão, pode-se dizer, foi um mártir, por diversas vezes sofreu ferimentos em emboscadas, sempre com estilhaços de granada de mão, que iam fatalmente ter com ele e sempre nas costas que eram a prova.

Mas a história que vou contar nada tem a ver com o IN.

Em certa altura aterrou um Dornier 27 em Bissorã com um médico dentista, mais a sua cadeira tradicional e o seu ajudante, para passar revista às dentuças do pessoal.

Claro que o Botas, como era o Cabo Enfermeiro e o serviço do Médico seria executado no posto, disse logo em voz alta aos camaradas que já se encontravam em fila:

- Rapaziada eu sou o primeiro, porque ser 1.º Cabo Enfermeiro é um posto.

O Médico mandou avançar e eis que lá vai o Botas, mas como tinha na frente três dentes em avançado estado de cárie, o médico não esteve com meias medidas e sacou-lhe logo os respectivos.

A debandada foi repentina e de tal ordem que a fila desfez-se quase por completo. A risada foi geral e durante bastante tempo os companheiros diziam no gozo:

- Ó Botas como és um posto, não queres ser o primeiro outra vez?

O Botas depois de passar à disponibilidade sofreu bastante, nunca foi reconhecido como deficiente nas diversas Juntas Militares a que recorreu, processo conduzido pelo sempre grande amigo Sargento Bajouco, vivia miseravelmente com a mãe muito velhinha, porque a sua coluna não o deixava trabalhar.
Mais tarde eu e o Bajouco ainda o ajudámos económicamente, e num encontro da Associação de Amizade do Bart 645 todos se prontificaram a ajudá-lo, mas em vão, porque a morte entretanto o levou.

Até um dia grande amigo.
Rogerio Cardoso
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5630: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (2): O César e o Capitão Silveira

Guiné 63/74 - P5640: Canjadude, a chegada de um periquito (1): De Lisboa a Gabú (José Corceiro)

1. Mensagem de José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), com data de 10 de Janeiro de 2010:

Caro Luís Graça, Carlos Vinhal e Colaboradores, Boa Tarde
Envio este trabalho caso queiram postar.
O título pode ser CANJADUDE, A CHEGADA DE UM PERIQUITO, este ou outro que achem adequado. Logo que tenha a palavra-chave Canjadude tudo OK.

Boa semana de trabalho, um abraço para vocês e para todos os tertulianos. Haja saúde.
José Corceiro


INTRODUÇÃO

O que escrevi sobre o passado, praticamente foi transcrito dos apontamentos que tenho da época, alterei alguns tempos verbais, algum discurso e adequei alguma adjectivação, de forma a torná-los contextualizados; excluí passagens para não tornar o documento tão maçudo. Já passaram mais de 40 anos desde que escrevi os apontamentos, que serviram de apoio e referência para escrever este artigo. Os apontamentos têm estado arrumados e esquecidos, sem justificação alguma, a não ser desinteresse. Após o meu regresso, excluindo, 3 ou 4 meses, após a minha vinda, que mantive correspondência regular com alguns amigos, que continuaram na Guiné e um telefonema feito há 30 anos, não tive mais contactos (não os tinha) com camaradas do meu tempo embora não tenha havido razão e motivação para este comportamento. Ainda não há um mês é que acidentalmente, na “Net”, descobri o José Martins.


CANJADUDE, A CHEGADA DE UM PERIQUITO (1)

Somos obra moldada por diversas condicionantes, meio sócio-económico, família, ambiente, amigos, experiências… e hereditariedade. Porém, acho que o meu Genoma humano, não trouxe mapeado o código belicista, eu tenho os 46 cromossomas, sendo um emparelhamento XY, como todo homem tem, mas predicados armíferos e destreza militar, não me cativam, não nasci para ser combatente guerreiro, embora saiba que todos somos por natureza animais selvagens à nascença. Mesmo assim, fui parar a uma guerra e não sei onde nem como, arranjei forças para levar a minha missão até ao fim, ainda que não tivesse tido necessidade de disparar uma arma no teatro de guerra.


Uma das necessidades primárias dos seres vivos é a sobrevivência

Contrariando o psíquico e o somático consegui força e aprumo para chegar a bom porto e estar agora aqui.
Estava a meio da especialidade de transmissões, BC 5, quando recebo a notícia (08-02-1969) a dizer que no dia 4 de Fevereiro de 1969, o meu tio, Francisco Vaz Silva, irmão da minha mãe, praticamente com a minha idade, tombou em combate em Angola, Zala, BCAV 2854/CCAV 2431. O meu tio veio de França, voluntariamente, para cumprir o serviço militar. Da minha terra tombaram dois mancebos em combate no Ultramar, meu tio foi o primeiro. Era tio, amigo e companheiro, fomos criados juntos, até andámos na mesma escola, brincámos à xoina e ao pião.

Em 2 de Maio 1969, recebi a reconfortante notícia que estava mobilizado, rendição individual, para a Província da Guiné.
Fui para a minha terra, gozar os 10 dias da praxe devido à mobilização. Por recear que a minha família viesse a saber, não tive coragem de contar, a quem quer que fosse, que estava mobilizado para o Ultramar, pode não ter sido a melhor opção, eu é que estava no palco, e ponderando, pareceu-me a mais razoável. Tinha a família toda de luto e destroçada. A minha avó passado meia dúzia de meses faleceu, relativamente nova, com menos idade do que eu tenho agora, tendo contribuído a morte do filho para esse fim. O meu avô, sentia uma certa culpa por ter incentivado o filho a regressar de França, para cumprir o serviço militar, ainda que, para tentar ocultar e minimizar o seu sofrimento, dissesse que ele tinha morrido em defesa da Pátria.

O funeral, do meu tio, só se realizou em 23 de Junho de 1969, já eu estava na Guiné. Passaram mais de quatro meses, após a sua morte até se realizar o funeral, sem que entidade alguma tivesse tido a amabilidade de dar uma justificação para esta dilação de tempo, embora tenha havido esforços do lado da família, para obter informações; a família continuava a sofrer em lume brando!

Campa de meu tio na sua terra natal, Vale de Espinho, Sabugal.

Em 24 de Maio 1969, por volta do meio-dia, deixo o Porto de Lisboa no N/M Niassa, rumo à Guiné. Foi emocionante e comovente, ver aquela moldura humana de familiares e amigos a despedirem-se. No cais, eram uns com lenços nas mãos a acenar, outros com lenços nos olhos, no nariz, na boca, outros deitavam as mãos à cabeça, enquanto outros apertavam a barriga, cada familiar e amigo expressava queixume e desespero com o sentimento de gesto diferenciado. Um quadro impressionante que me fez cogitar e questionei-me:

- Será, que é a atitude mais acertada, eu empenhar-me a defender a Pátria e a Bandeira neste caso?

- Será, que têm razão os que desertam, como fizeram alguns da minha terra?

Fiquei confuso, ao ver tanto rosto carregado de tristeza, fisionomias que transpiravam sofrimento e mágoa e, pensava:

- Não será esta expressão de dor uma manifestação de revolta colectiva amordaçada, e estão aqui os familiares a despedir-se dos seus ente queridos, como que a implorar, alertar e sensibilizar, os responsáveis do País, para ver o que estão a fazer à "mocidade"…?

- Se a minha família soubesse que eu estava de partida, também estariam aqui com este pranto? Estas e outras dúvidas apoderaram-se do meu pensamento…
Fiquei esmagado, senti-me qual neutrão, quando se dá a explosão da bomba atómica, insignificante!

Como era rendição individual, no barco, não tinha laços de proximidade com ninguém. Não havia conhecidos. Fui escalado para ficar responsável, por um grupo de dez homens para juntamente com dois, irmos buscar a alimentação à hora das refeições. Após a distribuição da mesma, cada um arranjava o melhor local onde podia comer, era no chão, nas escadas, onde houvesse um buraquinho, era a lei do desenrasca, mais parecíamos uns indigentes. Quanto a dormir e higiene, o mínimo que se podia dizer é que eram condições desumanas, era uma promiscuidade!

Antes de passar pelo Funchal, segundo dia de viagem, comecei a enjoar, era o conflito do meu sistema nervoso para-simpático com o simpático, estava instalada a guerrilha, durou até à Guiné.

Dia 29 de Maio 1969, por volta das 21.00 horas, cheguei ao Porto de Pidjiguiti em Bissau, só desembarquei dia 30. Levaram-me para o DGA, onde logo que cheguei, quis a minha fada madrinha que encontrasse, por mero acaso um amigo, tínhamos estudado juntos. Não me deixou mais. Escrevi, e pedi desculpa aos meus Pais pelo que tinha acontecido, assim como a outras pessoas a quem devia esclarecer e informei que estava tudo bem. Nestes três ou quatro dias, que estive em Bissau, tinha que estar presente na parte da manhã para responder à chamada e saber se havia transporte para o meu destino. O meu amigo, arranjou-me lugar para dormir, sossegadamente, senão tinha que dormir ou numa viatura ou no chão, servindo a bagagem de cabeceira, como muitos estavam a fazer, aparecendo quase todos cheios de edemas das picadas dos mosquitos, eram aos milhares e não resistiam à tentação de uma sugadela de sangue fresquinho de periquito.

Nestes dias, praticamente, não dei despesa ao Exército, só os transportes, do DGA para Bissau e regresso. Para descomprimir e fazer uma purgação de exultação, assim como libertar energias negativas, o meu amigo e outro amigo dele, levaram-me a ver, e não só, umas lavadeiras, numa bolanha, relativamente perto do DGA, não sei bem o local exacto, quando se ia de Bissau para lá, era lado direito.

Sou por natureza bucólico, encanta-me o campo, a paisagem a floresta, fiquei surpreendido, havia contraste com o espaço árido entre o DGA e Bissau. Além disso, foi agradável ver as lavadeiras, algumas completamente nuas, uma mais atrevida e desinibida, vendo o nosso olhar maroto e malicioso, aveludado de concupiscência, dirigiu-se ao meu amigo nestes termos:

- Bu mamé é puta, sinon bu cá tinha nascido.

Não sei se será algum provérbio guineense, mas foi oportuno, nunca o esqueci. Para o meu íntimo, estes momentos a que vinha assistindo, já eram reveladores do fosso cultural entre nativos e metropolitanos, começava-me a aliciar a idiossincrasia e a genuidade do povo guinéu, despido de formalismos e preconceitos; para mim era pureza, esplendor natural, como que um ode à criação. Logo ali, se iniciou mais um despertar, por um lado a intuição, por outro o raciocínio, comecei a ficar sobressaltado e a entender que era outra cultura, outra forma de ser e estar na vida, eles estavam no seu habitat. Só havia que aceitar e respeitar eu estava desintegrado, sou invasor!

A descontracção, um pouco libertina com o meu amigo e amigos dele, coisas de mocidade, mas nada demais, foi salutar, foram pequenos nadas mas muito tonificantes e reconfortantes para o meu ego, deram-me um certo alento e ânimo, os pólos das baterias ficaram desequilibrados. No organismo vivo, tem que haver desequilíbrio para haver reacção química. Equilíbrio é morte, é parar. Assim, o meu sistema nervoso, para-simpático e simpático anuíram em assinaram um armistício. O conflito não levava a nada estava-me a descompensar e depauperar.

Dia 3 de Junho 1969, informaram-me que tinha sido colocado na CCaç 5 em Canjadude e nesse dia deixei Bissau, estrada rio Geba, rumo Bambadinca numa LDG, onde iam militares e civis como sardinha em lata. Além da massa humana, havia muita mercadoria e os civis levavam de tudo, desde alfaias agrícolas, produtos alimentares, pilões, gaiolas com galinhas e pintos, todo o tipo de animais, que confusão, até cabras iam. Sol abrasador, sombra ou lugar para sentar não havia, isto tornou-se fatigante, se ao menos houvesse um mínimo de conforto, para quem gosta de Natureza como eu, isto era um mimo, pois a paisagem parecia-me deslumbrante, só que nestas condições maçantes, não havia serenidade e predisposição para apreciar e desfrutar o meio circundante. O Geba era bastante largo e o barco deslocava-se na parte central. As margens estavam praticamente ladeadas, em toda a sua extensão, por arvoredo compacto, pareciam ser matas virgens encantadoras, eram, para mim, matas onde a pata do homem nunca tinha posto a mão, familiar, para os meus olhos, só as palmeiras, de espaço a espaço viam-se habitações.

Numa altura do percurso, começo a notar uma movimentação algo precipitada nos militares de protecção e segurança da LDG, posicionam-se em locais estratégicos, com armas apontadas para as margens, o rio era mais estreito e sinuoso. Eu conversava com o meu imaginário e o olho de soslaio, sempre atento a divisar onde me poderia escudar, não fosse o diabo tece-las, e, ia pensando:

- Será que vou ser já baptizado sem me darem a oportunidade de aprender a saltar nos galhos, pois sou periquito, tenham dó de mim, porra… deixem-me debicar alguma mancarra.

O meu pensamento, em turbilhão, viajava pelo etéreo e comecei a magicar tácticas de guerrilha e a compreender o quão fácil seria para a tropa inimiga disparar um roquete das margens e provocar uma tragédia, ou quiçá afundar isto tudo, caso tivessem a sorte para eles e azar para nós, de acertar num ponto crítico mais fragilizado; não era guerra de guerrilha?! Felizmente cheguei a Bambadinca sem que nada de maior acontecesse.

Estive dois dias em Bambadinca, (nunca mais lá passei) tive que dormir no chão, ainda não estava habituado, tinha que zelar pelos meus haveres, não viesse algum abutre mais atrevido e pensasse que aquilo estava abandonado, foi tarefa complicada, não estava integrado em nenhuma estrutura. Como alimentação, quando cheguei, deram-me uma ração de combate sem pão, no dia seguinte o comer pouco melhorou, não havia comércio onde comprar, tive que passar fome. Um militar, não sei posto, devia estar aquartelado em Bambadinca, só sei que se chamava, Azevedo, repartiu alimento do pouco que tinha comigo.


Uma das necessidades primárias dos seres vivos é a manutenção

Ao longo de toda a comissão na Guiné, o dilema e busílis da questão, para mim, foi sempre a alimentação, o meu físico ressentiu-se, tive momentos delicados, ainda que me empenhasse para minimizar o problema sem que os outros percebessem; não sentia apelativo pelo comer militar! Confesso que sou adepto da teoria comer para viver e não viver para comer, porém, aprecio os comeres mais simples, não sou esquisito nem difícil com alimentação, sou exigente sim na higiene e estado de conservação, não há um alimento que eu possa dizer não gosto, sou omnívoro completo, não me repugna por exemplo comer carne de equídeo crua, sem sal, mas temperada com vinho ou limão e alho. Já o fiz muitas vezes, na minha juventude, quando os guardas-fiscais, na minha terra, matavam algum cavalo ao perseguirem os contrabandistas. Não encontro pois, razão para toda esta repugnância à alimentação militar à época. Continua a ser intrigante, quando faço viagens ao passado e psico-analiso esse período e me vem à mente esse passado, difícil, em que existia um conflito, entre o meu psíquico e somático, com o comer militar, pondo em risco a minha manutenção, desafiando uma das necessidades primárias dos seres vivos. Tinha alimento na mesa, precisava do comer, mas não conseguia comer. Sei que são muito complexas as sinapses, nos canais infindáveis, do subconsciente com o consciente mas eu tentava compensar através da sugestão, mas os resultados foram pouco palpáveis. Acho que o comer, não era bom, mas não seria assim tão mau, pois os outros militares comiam!?

Dia 5 de Junho, saí de Bambadinca em coluna militar rumo a Bafatá, é dia de Corpo Deus, logo, Quinta-feira e feriado nacional. Durante a viagem foi sempre a cair água da grossa, a cântaros, até os cães bebiam em pé, cheguei a Bafatá, parecia um pinto, todo repassado e encharcado, até ao tutano dos ossinhos, felizmente está calor. Mais uma ração de combate, só que aqui, há onde comer fora e lá me orientei, dormir, mais uma noite no chão e ao relento.

De manhã, por volta das 6.00 horas, dia 6 de Junho 1969, sem me darem nada para comer deixei Bafatá (não voltei aqui mais) em coluna militar, rumo Nova Lamego “Gabu”. Chegado a Nova Lamego apresentei-me e encaminharam-me para uma Delegação da CCAÇ 5, onde fui recebido pelo 1.º cabo Camilo Amaro (Natural de Murça), boa pessoa, que representa a Companhia em Nova Lamego e disse-me, que em Bissau também há uma Delegação da Companhia, com um furriel e um condutor, para tratar de assuntos da mesma, mormente dos frescos alimentícios. As instalações da Delegação aqui, são simpáticas e funcionais, são fora do quartel, separados por uma rua, é uma vivenda integrada no conjunto das outras habitações, não se pode, dentro do contexto, exigir mais. A habitação, dá acesso, pelo seu interior ou por um corredor lateral exterior, a um quintal a tardoz, onde há muitas lagartixas, que sobretudo quando está calor, o sol incide nos seus corpos e o sangue aquece, digladiam-se afincada e competitivamente para alcançar a presa, essencialmente insectos ou alguma migalha que esteja ao alcance; já os machos, distinguem-se das fêmeas, pela diferença melânica (pigmento na pele, melanina), envolvem-se em confrontos e lutas fratricidas pelas conquistas das fêmeas e domínio territorial.

Para todos um Abraço.
José Corceiro

(continua)
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5592: Memória dos lugares (64): Civis e militares em Canjadude (José Corceiro)