domingo, 10 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5624: Dossiê Guileje / Gadamael (19): Esclarecimentos sobre a retirada, em 22 de Maio de 1973: Parte I (Coutinho e Lima)


I. Mensagem do nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima (*), com data de 6 do corrente, em resposta ao meu pedido para nos enviar, de novo, cópia do seu texto de resposta o Poste P4634, que entretanto se havido extraviado:

Caro Luis, Junto envio, novamente, em anexo, a minha resposta ao Constantino Costa (CC) - 1ª. e 2ª. Partes. A 1ª edição do meu livro [A Retirada de Guileje, 22 de Maio 1973: A Verdade dos Factos, edição de autor, 2008] foi de 500 Exemplares; a 2ª. de 200; a 3ª. também de 200 Exemplares está em distribuição. Podes publicar estes dados.

Espero que agora a resposta ao CC seja publicada rapidamente. Um abraço. Alexandre



II. Comentário de L.G.:

Uma das provas de maturidade do nosso blogue  é o respeito pela liberdade de pensamento e de expressão de cada um dos seus membros, dentro dos limites do nosso estatuto editorial.  O texto (I Parte) que se agora se publica, já deveria  ter sido publicado, no nosso blogue, há muito mais tempo, nomeadamente depois das férias de verão. Ao Coutinho e Lima apresentamos as nossas desculpas. O texto andou perdido pelas nossas várias caixas de correio. De qualquer modo, não perde qualquer actualidade. O nosso dossiê Guileje / Gadamael vê-se assim enriquecido com estes novos esclarecimentos.

 A escasso dias de se inaugurar, na Guiné-Bissau, o Núcleo Museológico "Memória de Guiledje", faço meus os votos de um antigo combatente do PAIGC que para possamos, finalmente, depois de "estabelecidas as pontes emocionais entre aqueles que, em lados opostos da barricada, viveram,  com o seu ser,  momentos de sangue, de sofrimento e de destruição, e que hoje se dão as mãos na construção de um mundo feito de compreensão, amizade e respeito mútuo, a história comum pode ser escrita com objectividade, como legado às gerações vindouras".  (citado em documento inserido na página oficial da Ad - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau).


III.  Resposta ao P 4634: Dossier Guileje/Gadamael 1973 (13): A desonra da CCAV 8350 ou o direito à minha versão... (Constantino Costa) (**)

Texto de Coutinho e Lima

1ª. PARTE

O documento referido merece-me a seguinte resposta.

Começo por discordar do termo "versão", empregue pelo articulista; não há várias versões dos acontecimentos de Guileje; o que se passou, na realidade, foi o que consta no meu livro A RETIRADA DE GUILEJE". O que o Constantino Costa [, aqui na foto, à direita, em Guileje, em 1973, ] entendeu divulgar é a sua opinião e interpretação daqueles acontecimentos.

O  texto, no seu início, refere:  "foram omitidos factos importantes que, em meu entender, provocaram a fuga de Guileje".

Desde já devo salientar a palavra "fuga"; quer o Constantino quer queira quer não queira, o que aconteceu foi uma retirada, sob pressão do Inimigo; a retirada é uma manobra militar, não faltando exemplos de retiradas em diversos conflitos. Se em Guileje houve uma "fuga", como classifica o Constantino o que se passou em Gadamael, na sequência das flagelações do Inimigo (In) dos dias 31 MAI 73 e 1 JUN 73?

Afirma também que "a actividade operacional se limitou, portanto, no interior do aquartelamento ,registando-se apenas algumas saídas esporádica."

Omitiu que havia um patrulhamento diário para reabastecimento de água e que se realizaram, desde meados de Abril, as seguintes colunas de reabastecimento:

ABR – dias 14, 21 e 25.

MAI – dias 1,4,7,11 14 e 16.

Estas colunas constam de documento elaborada pelo Chefe da 4ª Repartição do CTIG (Comando territorial Independente da Guiné, isto é, o Comando do Exército), que foi junto ao processo que me foi instaurado, a meu pedido (pág. 408 do meu livro).

Não admira que o Constantino tenha omitido a realização das colunas referidas, pois que, a própria Repartição de Operações do Comando-Chefe (REPOPER), na sua apreciação semanal da actividade operacional das Unidades, também não as considerou. Devo referir que as colunas de reabastecimento eram verdadeiras operações, hipotecando todos os meios operacionais e logísticos das duas guarnições (Gadamael e Guileje) e estavam sujeitas à acção do In, que sabia da nossa necessidade de as executar, utilizando a única "estrada" existente.

Ainda relativamente à actividade operacional, enviei em 28 ABR 73, uma mensagem para a REPOPER, solicitando autorização para reduzir ao mínimo a actividade da CCAV 8350 (Guileje), a partir de 30 ABR 73, devido à proximidade da época das chuvas e ao grande atraso das obras em Guileje, por motivos alheios ao Comando do COP 5 (Comando Operacional nº 5, em Guileje). Esta mensagem foi respondida, em 30 ABR, autorizando o solicitado devendo, na medida do possível, "continuar a abertura da estrada de Mejo". Esta actividade continuou, tanto que, nos primeiros dias de MAI, o Alferes Lourenço (especialista de Minas e Armadilhas), foi vítima mortal, quando procedia ao levantamento de um engenho explosivo, implantado pelo In, na referida estrada; em 12 MAI, sucedeu o mesmo a 2 Chefes de Secção de Milícia, ao tentarem levantar uma mina anti-carro, na mesma estrada.

A afirmação do Constantino de que procedia à elaboração de relatórios de patrulhamentos não efectuados, sugere-me a formulação das seguintes perguntas:

- Quem teve a iniciativa (não foi com certeza sua) e quando começou a "prática" de viciar os relatórios dos patrulhamentos?

- Este "procedimento" teve lugar apenas em Guileje ou continuou em Gadamael e nas outras localidades em que esteve a CCAV 8350?

- Na actividade do seu Grupo de Combate (GC), em que tomou parte, verificou que os locais patrulhados não foram os que tinham sido determinados e como é que conhecia estes?

- Na actividade dos outros GC, quem o informou o que afirma, isto é, os relatórios não correspondiam aos patrulhamentos efectuados?

Não digo que a afirmação, sobre este assunto, não corresponde á verdade. No entanto, terá que haver provas concludentes do que é afirmado: indicação de testemunhas que confirmem tal "prática", apresentação de algum desses relatórios, etc. E isto porque as observações dos ex-Alferes Reis e Seabra contrariam o afirmado e não tenho outros elementos favoráveis à afirmação do Constantino. Embora não estivéssemos em guerra (o Governo Português nunca declarou este estado), a viciação dos relatórios de actividade operacional era um procedimento muito grave que, a confirmar-se, esse sim, "desonraria" a CCAV 8350.

Se a situação fosse de guerra declarada, a alteração dos relatórios estaria no âmbito de crime militar; pode o Constantino ter a certeza de que, se em Guileje, eu tivesse tido conhecimento destes factos, iniciaria, de imediato, as averiguações indispensáveis, no sentido de apurar a verdade, ao mesmo tempo que faria a respectiva comunicação ao Comando-Chefe; o Constantino seria, seguramente, incluído nos infractores, no mínimo, como conivente.

Tendo estado presente nos convívios efectuados em Condeixa, Santa Maria da Feira e Pombal, porque não apresentou as críticas que agora incluiu no blogue, especialmente o facto da viciação dos relatórios? Não obstante não comparecerem, nesses convívios, mais de 50% da CCCAV 8350 (afirmações suas), tinha sido uma boa oportunidade para debater este assunto, bem como outras questões.

A certa altura afirma que, quando algumas mulheres africanas se deslocaram à bolanha para se abastecerem de água, …"tendo o major de se colocar à frente dos nossos camaradas para que lhe fosse prestado o devido auxílio". Isto é absolutamente falso, porque este episódio passou-se na tarde de 21 MAI (segundo os depoimentos de testemunhas no processo) e, nessa altura, deslocava-me eu, de Gadamael para Guileje, em coluna apeada, não me encontrando em Guileje.

Afirma também que …"os abrigos estavam praticamente intactos", o que corresponde à verdade e ninguém afirmou o contrário; mais á frente, referirei as instalações atingidas pelas flagelações.

Parece haver outro equívoco na pergunta: "Quem se recusou a efectuar a protecção do major, quando este pretendia deslocar-se de Guileje para Gadamael?"

Naquele período, a minha deslocação de Guileje para Gadamael, foi na manhã de 19 MAI, comandando a coluna de evacuação de feridos, resultantes da emboscada da véspera (e também com a finalidade de contactar os Delegados de Bissau, que solicitei que fossem a Guileje e não apareceram); a evacuação fez-se em coluna auto até ao Rio Afiá (onde também seria feito o reabastecimento de água) e depois, via fluvial até Cacine; tanto quanto seja do meu conhecimento, ninguém se recusou a fazer a respectiva protecção.

Pergunta ainda porque é que não falaram do que se passou "durante a reunião de oficiais na véspera da fuga"; porque é que o Constantino também não falou?

Após a minha chegada a Guileje, no final da tarde do dia 21 MAI, fiz uma visita rápida ao quartel e, de seguida, ouvi o relato do Capitão Quintas, Comandante da Companhia, do que se passara na minha ausência; depois de ter reflectido algum tempo, comuniquei aos presentes (além dos Oficiais, estavam alguns Furrieis e outros elementos), a decisão de retirar no dia seguinte – 22 MAI, logo que a claridade o permitisse.

Nesta altura, importa salientar outras omissões do Constantino, bem como as providências que tomei, desde a emboscada In do dia 18 MAI, até à tomada de decisão de efectuar a retirada.

A primeira omissão diz respeito à última visita do General Comandante-Chefe a Guileje, em 11 MAI 73;perante formatura geral, o General Spínola afirmou que se esperava um agravamento A da situação, que a Força Aérea não podia executar as missões como até há pouco fazia, mas que, apoiaria as Nossas Tropas (NT)., voando mais alto e utilizando bombas mais potentes; afirmou ainda que, no caso de haver feridos graves, seria feita a sua evacuação, não a partir do mato, mas sim de Guileje.

Na emboscada In de 18 MAI, resultaram para as NT, 1 Morto (Comandante do Pelotão de Milícia), 7 Feridos graves e u Feridos ligeiros; pedida a evacuação dos feridos, a mesma não foi efectuada e passadas umas 3-4 horas, um dos feridos graves (Cabo metropolitano), acabou por morrer; enviei então para a REPOPER, a seguinte mensagem:

-"NÃO SATISFAÇÃO…EVACUAÇÕES, CAUSOU GRANDE MAL ESTARENTRE TODO PESSOAL POIS ÚLTIMA VISITA SEXA GENERAL ESTE DISSE MESMAS SERIAM EFECTUADAS QUANDO NT SITUAÇÃO DIFÍCIL".

A afirmação do Comandante-Chefe sobre a satisfação das evacuações, consta não só das minhas declarações, no processo, como no depoimento de várias testemunhas; para confirmar, se isso fosse necessário, basta ler o 5º. Parágrafo da Promoção de Justiça (pág. 438 do livro):

"…tanto mais que dias antes, perante uma formatura geral…Sua Excelência o General Comandante-Chefe…assim como, no caso de haver feridos graves, faria a sua evacuação para Bissau."

Se isso não correspondesse á verdade, não seria incluído, seguramente, no documento citado.

Após a emboscada de 18 MAI, que inviabilizou a realização da coluna de reabastecimento (foi a primeira vez que tal acontecera, por acção do In), apercebi-me da gravidade da situação; enviei uma mensagem para a REPOPER, solicitando a vinda a Guileje de um seu delegado e outro do COAT (Centro de Operações Aero-Tácticas, da Força Aérea), para expor a situação; nessa altura, estava certo que isso seria possível e só constatei o contrário quando as evacuações não foram feitas.

Entretanto decidi evacuar os feridos, por via fluvial, na manhã do dia seguinte, porque nesse dia a maré não o permitia; informei a REPOPER que me deslocava para Cacine, onde esperava encontrar os delegados. A REPOPER comunicou-me que devia expor a situação, por mensagem, o que apenas fiz no dia 20 MAI, às 03H20, hora a que tive conhecimento do pedido da REPOPER, porque esta enviou a mensagem somente para Guileje (onde eu já não estava) e daqui foi retransmitida para Cacine.

"…CMDT COP 5… INFORMA NECESSITA UMA COMPANHIA TROPA ESPECIAL REFORÇO TEMPORÁRIO FIM EFECTUAR REABASTECIMENTO GUILEJE: NECESSÁRIO TAMBÉM REFORÇO VIATS E ESTIVADORES".

A REPOPER, do meu ponto de vista, não reagiu, de forma atempada, à situação; se houvesse intenção de enviar os delegados (e, manifestamente, não foi o caso), estes poderiam ter aproveitado os helicópteros que fizeram as evacuações de Cacine, na manhã do dia 19 MAI; se isso tivesse acontecido, eu poderia regressar, nesse mesmo dia, a Guileje.

Outra omissão do Constantino, diz respeito ao facto de, na tarde do dia 18 MAI, o GC encarregado de proceder ao reabastecimento de água, se ter recusado a fazê-lo, enquanto não fosse esclarecido o problema das evacuações; mandei formar o GC e após lhes ter falado, eu próprio comandei essa operação de reabastecimento de água; devo esclarecer que, contrariamente ao que o Constantino afirmou que, nesses reabastecimentos, apenas alguns homens iam armados (mais uma afirmação que carece ser devidamente confirmada), neste verifiquei que todos os militares, como não podia deixar de ser, apresentaram-se devidamente armados e equipados.

Estive em Cacine até ao fim do dia 20 MAI, enviando mensagens a insistir com a comparência dos delegados ou a minha ida a Bissau, regressando, de imediato. Na tarde de 20 MAI, fui transportado de helicóptero a Bissau, onde expus a situação ao General Comandante-Chefe, no final do "briefing" diário; o General Spínola, disse que não me concedia qualquer reforço, sem nenhuma explicação, que devia regressar a Guileje no dia seguinte e que ia nomear o Coronel Pára-quedista Rafael Durão para comandar o COP 5, passando eu a 2º. Comandante. Importa referir que o Coronel Durão se encontrava em Mansoa e que, se o General Comandante-Chefe entendesse, teria sido possível um encontro comigo, nessa noite e, inclusivamente, poderíamos seguir juntos para Guileje; assim não foi entendido, o que, em minha opinião teria toda a lógica e ganhar-se-ia um tempo precioso.

Na manhã do dia 21 MAI, fui transportado, de helicóptero, para Cacine, donde segui de "sintex" para Gadamael. No dia seguinte, 22, o Coronel Durão foi transportado, de helicóptero, directamente para Gadamael, certamente porque a sua ida era uma emergência, mas não a minha (de acordo com informação da REPOPER, a Força Aérea só ia a Gadamael em emergência); se tivesse sucedido o mesmo comigo, teria tido oportunidade de chegar a Guileje muito mais cedo (só lá cheguei ao fim do dia 21 MAI); com as comunicações ainda funcionais, teria exposto a situação, por mensagem, à REPOPER.

Entretanto, durante todo o período, Guileje continuou a ser atacada pelo fogo In; as flagelações começaram às 20 horas do dia 18 MAI e até às 4 horas do dia 22 MAI, a guarnição de Guileje foi sujeita a 37 flagelações.

Cheguei a Guileje no final de 21 MAI, escoltado por 2 GC da CCAÇ 3520 (Gadamael); o percurso Gadamael/Guileje foi efectuado, em coluna apeada, por um trilho que até então era apenas utilizado pela população. Durante o percurso, ouvimos a flagelação do In a Guileje (das 14H30 até às 16H30).

A situação que encontrei, em Guileje, foi a seguinte:

- Destruição total do Centro de Comunicações, incluindo todas asa antenas, o que impedia a ligação rádio, com quem quer que fosse.

- Na flagelação dessa tarde, um Furriel tinha sido morto, por ter sido atingido pelo rebentamento de uma granada, num abrigo de fraca protecção.

- Estavam destruídas, em consequência das flagelações inimigas:

. dois depósitos de géneros;

. depósito de artigos de cantina;

. cozinha;

. forno;

. celeiros de arroz da população (ainda a arder);

. grande parte das moranças da população.

- Vários abrigos tinham sido atingidos, sem consequências para as NT ou população.

- Muitos impactos de granadas nas valas.

- Falta de água potável; o último reabastecimento tinha sido feito no dia 19 MAI, de manhã.

- Escassez de munições de Artilharia.

- Escassez de alguns medicamentos e material de primeiros socorros.

- Tinha sido verificada, nessa tarde, a presença do In nas proximidades do quartel (do lado de Mejo), tendo flagelado elementos da população, que tinham ido tentar abastecer-se de água.

- Todo o pessoal estava arrasadíssimo, quer física, quer psicologicamente, ao fim de 3 dias e 3 noites consecutivas de flagelações.

- A vida no interior dos abrigos (onde, desde início, se recolhera toda a população) era pouco menos que insuportável; com a superlotação dos mesmos abrigos, o calor e cheiro nauseabundo, a situação era muitíssimo difícil, além de que a presença dos civis limitava grandemente os movimentos dos militares.

- Garantia de não evacuação de feridos; este facto era de extraordinária importância, contrariamente à opinião do Constantino; se houvesse feridos graves, estes ficariam entregues à sua sorte, cujo desfecho poderia ser a morte, como já tinha acontecido com um deles, na manhã de 18 MAI.

Todo o pessoal tinha muita esperança que a minha ida a Bissau fosse bem sucedida, com a atribuição de reforços.

Depois de me inteirar do que havia sucedido na minha ausência (embora, através das mensagens, soubesse o que se ia passando), fiz uma reunião informal com o Comandante da CCAV 8350 e outros Oficiais, estando também presentes outros elementos.

Os factores que considerei, para tomar uma decisão, foram os seguintes:

1. Forte pressão do In, que não abrandava; pelo contrário, a flagelação dessa tarde tinha sido a maior; a Repartição de Informações enviara, às 19 horas do dia 20 MAI, informando que o 3º. Corpo de Exército estava nas matas de Mejo, admitindo a pos- sibilidade de vir a actuar sobre Guileje; isto era a confirmação de que o In continuava a reforçar o seu dispositivo, à volta de Guileje.

2. Não atribuição de reforços.

3. Não evacuação de feridos; a evacuação, via fluvial, como fora feita em 19 MAI, não mais era possível, porque os barcos ficaram em Cacine, em virtude da falta de segurança, do seu regresso, pela mesma via, a Guileje.

4. Escassez de munições, especialmente de Artilharia; o seu reabastecimento só podia ser feito por estrada e não mais era possível, com os meios do COP 5, pela acção do In, que já tinha impedido a realização da coluna do dia 18 MAI.

5. Falta de água potável no aquartelamento e impossibilidade \de fazer o seu reabastecimento, pois o In, instalado nas matas do Mejo, não o permitiria.

6. Defesa da população

Na Missão do COP 5, constava:

…(5) Assegura a defesa eficiente dos aglomerados populacionais ocupados pelas NT.

Nas condições existentes, não podia garantir essa defesa.

7. Destruição do Centro de Comunicações

Como poderia eu ou o novo Comandante, Coronel Durão,  exercer a acção de Comando sem comunicações?

8. Novo Comandante do COP 5

Além de não saber quando o Coronel Durão chegaria a Guileje, considerei que não iria resolver a situação, porque:

- Não viria acompanhado dos reforços necessários; estes, ser-lhe-iam atribuídos, mas demorariam a chegar a Gadamael, no mínimo, uns dois dias, após a decisão de os enviar, que só seria depois de o novo Comandante do COP 5, os solicitar; seguir-se-ia a deslocação para a região de Guileje; esta guarnição não estava em condições de lhes prestar qualquer espécie de apoio, nem tão pouco proporcionar nenhum descanso, no intervalo da actividade operacional; além disso, iriam actuar em condições particularmente difíceis, no que respeita à evacuação dos possíveis/muito prováveis feridos, que teriam que ser transportados para Gadamael, pela própria força e só a partir dali poderiam ser evacuados.

- Sem comunicações, como poderia exercer a sua acção de Comando?

- Não solucionaria o problema do reabastecimento de água.

- Não estava em condições de fazer chegar a Guileje, enquanto não chegassem os reforços, munições de Artilharia e outros artigos críticos.

- Não garantiria a evacuação de feridos, a partir de Guileje.

9. Previsão do futuro, a curto prazo

A pressão do In não abrandava, pelo contrário recrudescia e as NT não estavam em condições de aguentar, pelos motivos apontados, até à chegada de reforços, que certamente seriam atribuídos ao novo Comandante e que a mim tinham sido negados.

10. Existência de um Morto

Naquele momento existia, infelizmente, um Morto, provocado pela flagelação dessa tarde de 21 MAI. Considerei que era exequível o transporte do cadáver; se houvesse meia dúzia de baixas, isso seria impeditivo de poder retirar, por impossibilidade do seu transporte, em coluna apeada.

11. Efeito de surpresa

Tendo eu chegado a Guileje ao fim desse dia 21 MAI, sem ter sido detectado pelo IN, este não teria possibilidades, durante a noite, de verificar a utilização, pelas NT, do trilho da população, utilizado no regresso a Guileje.

Ponderados os factores apontados, considerei que não havia condições de aguentar a posição, decidindo pela retirada que, do meu ponto de vista, deveria ser efectuada o mais cedo possível, isto é, no dia seguinte, logo que as condições de visibilidade o permitissem, aproveitando principalmente o efeito de surpresa.

A finalidade da retirada foi, prioritariamente, evitar que as NT e a população ficassem à mercê do In, retirando-lhe a possibilidade de completar o cerco e causar mais baixas que, naquelas circunstâncias, seriam baixas não justificáveis; a vida humana não tem preço e a sua perda deve ser minimizada.

O objectivo primeiro de uma guerra é impor a nossa vontade ao Inimigo, infligindo-lhe a derrota. Neste caso concreto, a desproporção de meios humanos e, nomeadamente de meios materiais, com relevância para o armamento pesado, era de tal maneira favorável ao PAIGC que a nossa vitória, na minha avaliação, não era possível.

Nas condições concretas, naquele momento em Guileje, não podia assegurar a segurança eficiente da população, como estava na minha Missão.

A decisão de retirar foi tomada de forma consciente e comunicada aos presentes, na reunião informal que efectuei, não havendo nenhuma discordância.

Lamento que o Constantino, não tenha apresentado a sua não concordância com a decisão, logo que dela teve conhecimento; perdeu uma boa oportunidade de marcar a sua posição; agora, passados 36 anos sobre os acontecimentos, é bem mais fácil argumentar contra a decisão.

Logo que tomei a decisão, tive a convicção que a mesma não iria ser aceite pelo Comando Superior, tendo declarado aos presentes, que a minha vida militar poderia ter chegado ao fim.

O cenário descrito foi resultante das informações que eram recebidas do Comando-Chefe, nomeadamente da Repartição de Informações, no que dizia respeito à actividade do In.

No processo que me foi instaurado, em consequência da decisão de retirar de Guileje, tomei conhecimento de outros documentos. A primeira referência à preparação de um ataque em força sobre Guileje, consta do extracto de relatório, com data de 27 DEZ 72 (isto é, antes da criação do COP 5) – pág. 410 do meu livro.

Desse relatório transcrevo:

" Intenções do IN

…a. NA FRONTEIRA -Refere que o In pretende fazer um ataque com bastante força a GUILEJE, porque pretende obter uma maior liberdade de movimentos logísticos e de pessoal no Corredor de Guileje. Para isso, ficaram em KANDIAFATRA alguns elementos que vieram recentemente dum estágio de Artª. na Rússia, para fazerem reconhecimentos na área de GUILEJE e preparar essa acção…

………MODO DE ACTUAÇÃO

Os chefes sabem que as flagelações aos aquartelamentos não têm obtido resultados compensadores e por isso resolveram mandar vários elementos ao estrangeiro receber uma instrução mais adiantada de Artilharia

…Estes elementos ficarão normalmente em observadores avançados durante as flagelações, ligados por telefone às bases de fogos, dirigindo a acção e regulação de tiro…"

No Jornal PÚBLICO de 20 JUL 04, foi publicado um artigo, com o título Amílcar Cabral "Se o quartel de Guileje cair, cai tudo à volta".

O artigo é da autoria de Osvaldo Lopes da Silva (OLS), antigo Comandante do PAIGC, está transcrito, integralmente, no meu livro (pág. 358 a 365) e reporta-se a um outro artigo, inserido no PÚBLLICO de 16 MAI 04.

Desse artigo, transcreve-se:

"…É na qualidade de protagonista importante que fui na preparação e condução da Operação Amílcar Cabral, que determinou a queda de Guiledje, que trago informações e comentários que podem completar o quadro apresentado no artigo em referência.

Foi em Agosto ou Setembro de 1972, num momento de muita tensão no seio do PAIGC em CONAKRY, que Cabral me confiou a tarefa de preparar as condições para um ataque força a Guiledje…

Cabral terminou a sua exposição com este desabafo: "Se este quartel cai, tudo à volta também cai". Calou-se, olhou para mim à espera da minha resposta. E eu, com convicção, disse; "Posso destruir o quartel, só preciso de tempo para preparar os dados de fogo e os meios"….

Cabral deu logo instruções no sentido de serem colocados à minha disposição os meios necessários. Para começar, uns 30 homens, guineenses e cabo-verdianos, para o meu grupo especial de reconhecimento, com o que fosse necessário para a missão…

O que finalmente resultou foi o levantamento topográfico, ligando posições distantes do quartel entre 4 e 12 kms, de acordo com os alcances das peças de artilharia que iríamos utilizar…

Feito o levantamento topográfico, procedemos a vários flagelamentos com morteiros 82, tendo em vista provocar a resposta do inimigo e podermos assim determinar…o azimute do quartel…

Destinámos uma posição a 12 kms para canhões que teriam a missão de desgastar psicologicamente o inimigo com um disparo com intervalos de meia ou uma hora; uma a 4 kms ara morteiros 120 com missão de destruir os abrigos com fogo de saturação sobre eles concentrado e, finalmente, uma posição para GRAD ("catiucha") …entre 6 e 7 kms…A posição de GRAD só foi utilizada em finais de Março de 1973, com o lançamento de 2 ou 3 foguetes, numa operação que se destinava a testar o comportamento das nossas tropas a ataques prolongados, de dia, e a reacção da aviação. Esta veio, tendo sido abatidos 3 aviões com foguetes terra-ar Strela.

A Operação Amílcar Cabral pôs em evidência a grande supremacia das forças do PAIGC (infantaria, artilharia, logística); supremacia de tal ordem que me permito dizer que as acções eram em sentido único e que prosseguir na resistência seria uma loucura que só poderia ter como epílogo o esmagamento do contingente cercado em Guiledje pelas nossas forças, pela mata e pelas minas que pretendiam protegê-lo. A nossa supremacia em meios (quantitativa e sobretudo qualitativa) e em homens era reforçada pelo minucioso conhecimento que tínhamos do dispositivo contrário, conseguido ao fim de vários meses de reconhecimento. Desencadeada a operação, não houve necessidade de correcção do fogo de artilharia…

Nem a artilharia apontada para Kandiafara, nem a aviação, nos causava mossa. A aviação, particularmente os Fiat, passavam por cima das nossas cabeças sem nos desviar do que estivéssemos a fazer. O mesmo não direi dos helicópteros e das minas que tínhamos que ter sempre em conta".

Das transcrições do artigo referido, verifica-se que a Operação em força sobre Guileje, foi preparada minuciosamente, com reconhecimentos ao longo de vários meses, devidamente acompanhada da preparação de especialistas, especialmente de Artilharia.

A referência ao abate de 3 aviões não é correcta; o incidente verificou-se em 25 MAR 73 e foi abatido 1 Avião FIAT, pilotado pelo Tenente Piloto Aviador Miguel Pessoa, que conseguiu ejectar-se e foi recuperado no dia seguinte.

Posso confirmar a afirmação do Lopes da Silva, quando afirma que "não houve necessidade de correcção de fogo de artilharia", de facto, desde o início das flagelações, verificaram-se muitos rebentamentos dentro do quartel.

O Comando-Chefe e, em especial a sua Repartição de Informações, teve conhecimento da preparação que o PAIGC estava a fazer, tendo em vista uma acção em força sobre Guileje, pelo menos desde DEZ 72, conforme extracto de relatório referido atrás.

Para fazer face à intenção do PAIGC, relativamente a Guileje, o Comando-Chefe criou o COP 5 (22 JAN 73), para o qual me nomeou Comandante, sem atribuição de qualquer reforço; até essa altura, todos os Comandos Operacionais criados tinham recebido reforços; é caso para perguntar porque é que o COP 5, logo na sua criação, não foi reforçado, sabendo-se que o In tinha intenção de actuar em força sobre aquele aquartelamento.

Reportando-me ainda ao artigo de OLS, saliento a afirmação da "grande supremacia das forças do PAIGC".

Relativamente aos efectivos empregues pelo PAIGC na acção em força sobre Guileje, o Chefe da Repartição de Informações, no seu depoimento, quando ouvido no âmbito do processo que me foi instaurou, afirmou que eram da ordem de 300 a 350 homens, incluindo o 3º. Corpo de Exército. Esta estimativa parece-me avaliada por defeito. Com efeito, no livro GUERRA COLONIAL, da autoria de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes (pág. 513 a 515), pode ler-se:

"No total, o PAIGC concentrou na zona de Guileje, um corpo de exército (3º. CE), no Mejo, dez bigrupos em reforço do sector de fronteira e uma bateria de artilharia, com um grupo de reconhecimento, Ao todo, considerando a base numérica de cada unidade do PAIGC utilizada pelos serviços militares portugueses, seria de 650 homens, efectivo idêntico ao que foi concentrado em Guidage."

No que se refere a outros meios utilizados, pode também ler-se, no mesmo livro:

" Para o início da operação, o PAIGC concentrou em redor de Guileje, a bateria de artilharia de KANDIAFARA, com morteiros de 82 e 120 mm, canhões sem recuo de 85 e de 130 mm, um grupo de reconhecimento e observação e cinco bigrupos do sector de fronteira. Deslocou o 3º. Corpo de Exército do Unal para a mata de Mejo e transferiu três bigrupos da região do Boé e dois bigrupos do 2º. Corpo de Exército, no Tombali, para reforço do sector de fronteira".

Os meios das NT em Guileje eram:

- CCAV 8350, Pelotão de milícia e Secção de auto-metralhadora Fox – cerca de 200 homens.

- Armamento pesado:

. 2 Obuses de 14 cm;

. 1 Morteiro de 10,7 cm;

. 2 Morteiros de 81 mm,

O número de 650 homens, estimado por Aniceto Afonso e Matos Gomes, no seu livro, parece-me mais realista, porque foi calculado a partir da base numérica das unidades do PAIGC, do que o de 300/350, referido pelo Chefe da Rep  Info, não esclarecendo este como chegou à sua estimativa.

O efectivo de 650 homens do PAIGC, diz respeito a pessoal combatente; acrescentando todo o pessoal de apoio logístico, carregadores e outro, o número total não terá andado longe de 1 000 homens, número indicado por Nino Vieira, quando lhe fiz a pergunta sobre este assunto.

Através do processo que me foi instaurado, tomei conhecimento do que se passou em Guidage, onde o PAIGC desencadeou uma acção em força semelhante à de Guileje, num documento elaborado pelo Chefe da REPOPER (pág. 87 e 88 do meu livro).

Nesse documento verifica-se que a acção do In se iniciou, no dia 8 MAI 73, de maneira idêntica à de Guileje, com uma emboscada a uma coluna que tinha partido de Farim; a coluna foi retida pelo accionamento de mina anti-carro, obrigando o pessoal a pernoitar no local, tendo sofrido um forte ataque, durante a noite. A coluna regressou a Binta, deixando no local 4 viaturas que, foram destruídas pela força Aérea; as NT sofreram 4 Mortos e 30 Feridos; o In teve 13 Mortos e outras baixas prováveis.

No dia 10 MAI 73, foi realizada uma nova coluna de reabastecimento Binta-Guidage.

Foram executadas, no total, 7 colunas, das quais 5 chegaram a Guidage; as NT sofreram 22 Mortos e 70 Feridos.

Em 29 MAI 73, foi feita uma operação de abertura de um novo itinerário Binta-Guidage, envolvendo efectivos, entre outros, a 38ª. Companhia de Comandos, a Companhia de Pára-quedistas 121 e os Destacamentos de Fuzileiros 1 e 4.

De 17 a 21 MAI 73, o Batalhão de Comandos Africanos realizou a Operação Ametista Real, com forte apoio da Força Aérea, que nela emprenhou praticamente todos os seus meios; a missão dessa operação era aniquilar ou, no mínimo, desarticular o In na zona, atacando a sua base de CUMBAMORY (Rep. do Senegal). Os resultados da operação foram: o In teve 67 Mortos e bastantes baixas prováveis; destruída uma quantidade enorme de material e capturado diverso armamento; As NT sofreram 10 Mortos, 22 feridos graves e 3 Desaparecidos.

Pelo depoimento do Chefe da REPOPER; no processo, fiquei a saber que:

- as flagelações a Guidage se iniciaram em 8 MAI 73;

- as flagelações terminaram em 1 JUN, não tendo havido flagelações nos dias 20, 24, 26, 30 e 31 MAI;

- chegaram colunas de reabastecimento, a Guidage, em 10, 12, 15 e 29 MAI;

- a guarnição de Guidage foi reforçada, por iniciativa do Comandante do COP 3 (a que pertencia), em 8 MAI, com 2 Grupos de Combate (GC) da CCAÇ 3 e, em 12 MAI, com mais um GC da CCAÇ 3 e os Destacamentos de Fuzileiros Especiais 1 e 4;

- os reforços atribuídos a Guidage foram:

. 12 MAI (coluna de reabastecimento): 5 GC do Batalhão de Caçadores 4512 (Farim), 1 bigrupo da 38ª. Companhia de Comandos e 1 Secção do Pelotão de Morteiros 4274, até às 06H40 do dia 13 MAI;

. 15 MAI (coluna de reabastecimento): 2 GC do Comando de Bissau, 1 GC da Companhia Eventual Africana e 1 Grupo de Milícias de Jemberem, até às 10h30 de 16 MAI;

. 23 a 30 MAI: Companhia de Caçadores Pára-quedistas 121;

. Pelotões de Caçadores (tropa nativa) 56 e 65, em data não indicada, para suprir as baixas da CCAÇ 19 (Guidage);

. após 29 MAI, outras forças, não discriminadas;

. as flagelações a Guidage causaram às NT, 7 Mortos, 17 Feridos graves e 13 Feridos ligeiros.

Em 8 MAI 73, a guarnição de Guidage era constituída pela CCAÇ 19 (Tropa nativa) e pelo 24º. Pelotão de Artilharia.

Refere-se ainda que em 8 MAI, por solicitação do Comandante do COP 3 (sede em Bigene, tendo-se deslocado para Guidage em 11 MAI), foi feito um reabastecimento de emergência de munições de Morteiro 81, Obus \10,5 e Espingarda G3, por 5 helicópteros para Bigene e um avião Nord Atlas para Farim.

Nos dois documentos referidos (relatório do  Chefe da REPOPER e seu depoimento), verifica-se que Guidage foi fortemente reforçado, desde o 1º. dia do ataque In.

Tais documentos permitem comparar a actuação do Comando-Chefe nas duas situações: Guidage foi objecto do reforço adequado e imediato, sendo de destacar a Operação Ametista Real do Batalhão de Comandos Africanos, sobre a base do PAIGC em Cumbamory (Rep. do Senegal).

Guidage pôde ser socorrido por tropas de Farim, tendo o próprio Comandante de Batalhão comandado a coluna de reabastecimento de 12 MAI; recebeu também reforços de Binta e Bigene.

Guileje estava ainda numa situação mais difícil, relativamente a possíveis reforços locais, pois a única ligação terrestre era com Gadamael e esta foi cortada pelo In, pela emboscada de 18 MAI.

Durante o Simpósio Internacional de Guileje, realizado em Bissau, em MAR 08, tomei conhecimento, através de elementos do PAIGC, que estava planeado que as acções contra Guidage e Guileje se realizassem simultaneamente; devido ao facto de as forças do PAIGC terem sido detectadas, durante a montagem do dispositivo, em Guidage, a acção sobre esta guarnição foi desencadeada em 8 MAI, mantendo-se a data prevista em Guileje – 18 MAI.

Tenho a firme convicção que, se os dois ataques tivessem sido simultâneos, o Comando-Chefe teria repartido os reforços pelas duas guarnições – Guidage e Guileje.

Ao hipotecar praticamente todos os seus reforços em Guidage, o Comando-Chefe e o seu Estado Maior falhou a previsão dos acontecimentos em Guileje, onde sabia que o In iria actuar em força, como aconteceu.

Se Guileje tivesse sido reforçado, como o foi Guidage, não teria eu ficado com toda a responsabilidade da situação e, seguramente, não teria decidido retirar.

E não se argumente que o Comando-Chefe não tinha reservas disponíveis; se assim fosse, isso em nada abonaria a favor de um Comando responsável, empregando os seus reforços numa área do teatro de operações, estando outras sob forte ameaça.

Na verdade estava, em Cacine, um Destacamento de Fuzileiros Especiais, que poderia, de imediato, reforçar o COP 5; em Cufar (Sector do COP 4) encontravam-se as Companhias de Pára-quedistas 122 e 123; em Bissau, estava a Companhia de Paraquedistas 123, em descanso, desde 20 ABR 73; esta foi também reforçar Guidage.

Ao abordar o problema da retirada de Guileje, de uma forma séria, não pode deixar de se comparar com o que se passou em Guidage.

O procedimento do Comando-Chefe, em duas situações semelhantes, foi profundamente diferente: Guidage foi reforçado com a maioria das suas reservas, destacando-se a Operação Ametista Real, sobre a base do PAIGC, em Cumbamory; a Guileje não foi atribuído nenhum reforço.

Devo esclarecer o Constantino que não pretendi "sacudir a água do capote", nem "agi como Pilatos". Assumi inteiramente a responsabilidade da situação, decidi efectuar a retirada, por considerar que era a maneira de evitar um grande número de baixas (militares e população) e a tomada de prisioneiros, pelo In.

A certa altura, o Constantino afirma que eu nunca fui "ilibado, mas sim amnistiado", o que é verdade. Devo esclarecer que, se tivesse sido sujeito a julgamento (e este só não se realizou, por virtude do 25 de Abril de 1974), certamente que o Chefe da REPOPER teria sido chamado a depor, como testemunha e seria interrogado sobre a maneira como resolveria o problema de Guileje, o que não aconteceu quando foi ouvido, no âmbito do processo, em que não lhe foi feita nenhuma pergunta acerca de Guileje.

Será que o Constantino concorda que, num processo sobre a retirada de Guileje, destinado a averiguar a verdade dos factos, o Chefe da REPOPER, primeiro responsável pela conduta das Operações, não tenha sido instado a pronunciar-se sobre o objecto dos autos?

E, no julgamento, o Comandante-Chefe também seria, eventualmente, posto perante os factos e solicitado a pronunciar-se sobre os mesmos.

O Constantino afirma que eu, como militar, não cumpri. É a sua opinião, que vale o que vale; para mim vale muito pouco, porque considero que não tem conhecimentos militares nem capacidade para me julgar.

Pede-me que, "sensatamente", me "remeta ao silêncio". Pois terá que me ler, se quiser, porque não prescindo do meu direito de resposta e defesa.

Pergunta ainda porque é que noutras zonas, "os militares altamente massacrados pelo In, não abandonaram as suas instalações"; só me posso pronunciar sobre Guidage e Gadamael; no primeiro caso, foram apresentadas atrás os avultados reforços que lhe foram atribuídos; Gadamael, não obstante ter sido pedida a sua evacuação, pelo então Capitão Manuel Monge, não aceite pelo Comando-Chefe e foi reforçado com o Batalhão de Caçadores Pára-quedistas nº.12 (3 Companhias).

Outra afirmação é que os Obuses de 14 cm não faziam fogo para não denunciarem as suas posições; isto não corresponde minimamente à verdade; nas declarações dos Senhores Oficiais presentes em Guileje, no âmbito do processo, todos foram unânimes em afirmar que, a reacção pelo fogo às flagelações inimigas, era feita também pelos Obuses de 14 cm. O Alferes Pinto dos Santos, Comandante do 15º. Pelotão de Artilharia, em Guileje, declarou que "executei cerca de 70 tiros…, em reacção à emboscada de 18 MAI"; o mesmo Oficial afirma que, no início do período, havia cerca de 400 munições completas; na noite de 21/22 MAI, depois de ter decidido retirar, dei-lhe ordem para, em reacção às flagelações (foram 3), gastar todas as munições completas existentes, o que aconteceu.

Desde o início das flagelações (dia 18 MAI às 20H00), houve a preocupação de "poupar" as munições de Artilharia, porque sabíamos que não seríamos reabastecidos; o reabastecimento de munições de emergência, como aconteceu no apoio a Guidage, no primeiro dia do ataque (8 MAI), não era viável em Guileje, porque nenhum meio aéreo o faria.

O Constantino diz que "o Major Coutinho e Lima infringiu gravemente regulamentos militares de então….é facto que desobedeceu a uma ordem legítima do Comandante-Chefe do CTIG".

Não é de admirar que confunda Comando-Chefe e CTIG, que são duas entidades distintas: o Comando-Chefe, comandava os 3 Ramos das Forças Armadas: o CTIG era o Comandante do Exército; Comandante-Chefe do CTIG não só não existia, como não faz nenhum sentido.

Esclareço que na Missão do COP 5, não constava a "defesa a todo o custo", missão que, no limite, há que aguentar até ao último homem; se tal estivesse expressamente na minha Missão, não poderia ter decidido e efectuado a retirada.

No despacho do Comandante-Chefe, que manda instaurar auto de corpo de delito contra mim (pág.414 do meu livro), é referido que ordenei a retirada, "sem que para tal estivesse autorizado"; porque o Centro de Comunicações foi totalmente destruído, foi impossível solicitar autorização.

[Itálicos e negritos do autor]
(Continua)

[Revisão / fixação de texto / título: L.G]
__________

Notas de L.G.:

(*) 21 de Setembro de 2009  >  Guiné 63/74 - P4986: Parabéns a você (27): O veterano Coutinho e Lima, Cor Art Ref, Gadamael (1963/65), Bissau (1968/70), COP 5 (1972/73)

(**) Vd. poste de 3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4634: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (13): A desonra da CCAV 8350 ou o direito a contar a minha versão... (Constantino Costa)

Guiné 63/74 - P5625: Memória dos lugares (67): Mais notícias da Cart 2410 (3) (Luís Guerreiro)



1. O nosso Camarada Luís Guerreiro, ex-Fur Mil do 4.º Gr Comb da CART 2410 e mais tarde do Pel Caç Nat 65, Ganturé, 1968/70, e que desde 1971 reside em Montreal, no Canadá, enviou-nos mais uma mensagem acompanhada de magníficas fotos de Guileje e Gadamael:


Camaradas,


Hoje trago-vos mais notícias da CArt 2410 e do tempo passado em Guileje.Muito se tem dito sobre Guileje, por isso não vou comentar nada sobre a retirada embora tenha a minha opinião formada.


Durante a nossa estadia tivemos 44 ataques (do mais pequeno ao maior), tendo estado várias horas debaixo de fogo.


Era normal, nessas flagelações, serem referenciados cerca de 300 rebentamentos.Não tivemos baixas nestes ataques e a nossa moral esteve sempre em alta.


Penso que o tempo lá passado foi bastante positivo.Nas saídas e nas colunas, que se fizeram de Gadamael para Guileje, neste período, nunca houve contacto com o inimigo, salvo algumas minas que foram detectadas e levantadas.


Envio algumas fotos, uma delas (especialmente para o amigo Pepito) mostrando as garrafas no arame farpado.Para a próxima vou falar um pouco do Pel Caç Nat 65.



01- Vista aérea de Guileje (Janeiro/70)



Um abraço,
Luis Guerreiro
Fur Mil da CART 2410 e Pel Caç Nat 65

Fotos e legendas: © Luís Guerreiro (2009). Direitos reservados.
____________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

26 de Dezembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5541: Memória dos lugares (61): Mais notícias da Cart 2410 (2) (Luís Guerreiro)


02 - Construção das casernas abrigo (Julho/69)



03 - Uma das casernas abrigo já terminada (Novembro/69)



04 - Outra caserna abrigo (Novembro/69)



05 – O sistema de valas (Novembro/69)



06 – Os efeitos de um ataque



07 - Ataque em 11 Setembro/69 (tabanca atingida)



08 - Abrigo atingido em 11 Setembro/69 (dois mortos e um ferido grave, ambos assalariados nativos da engenharia)



09 - Coluna de Gadamael: Alf. Mil. Jerónimo, Fur. Mil Mourato e eu (Agosto/69)



10 - Uma mina levantada na coluna de Gadamael



11 - Chegada da coluna a Guileje na época das chuvas, terreno difícil (Agosto/69)



12 - Chegada da coluna a Guileje na época das chuvas, terreno díficil (Agosto/69)



13 - Uma das peças 11.4 cm



14 - O reabastecimento de água era garantido por um grupo de combate (duas secções faziam a protecção e uma enchia os bidões)

15 - A terceira secção do quarto grupo de combate


16 - A equipa de furriéis (Cart.2410 – Pel Caç 51- Pel Art - Engenharia)


17 - Cortando o capim (vêm-se perfeitamente algumas garrafas presas no arame)



18 - Mais garrafas presas no arame



19 – A messe dos sargentos



20 – O bar dos sargentos



21 - Cerimónia do fanado

Guiné 63/74 – P5623: PAIGC: A metralhadora ligeira Dectyarev RDP (Salvador Nogueira/Luís Dias)





1. No poste P5583, editado em 3 de Janeiro de 2010, o nosso Camarada Luís Graça legendou assim a seguinte foto do Fernando Costa:





Aldeia Formosa > CCS/BCAÇ 4513 (1973/74) > Agosto de 1974 > No dia da entrega do aquartelamento ao PAIGC... O Fernando Costa (*), entre dois guerrilheiros, posando para a fotografia com uma metralhadora ligeira que me parece ser uma PSSH, mais conhecida por "costureirinha"... (LG).
Foto: © Fernando Costa (2009). Direitos reservados.

2. Atentos ao desenrolar da vida do blogue estão, felizmente, muitos Amigos e Camaradas, como é o caso de Salvador Nogueira que, face ao texto da legenda, em 6 de Janeiro, adicionou um comentário no dito poste a esclarecer o seguinte:

“('Degtiarôv' é a pronúncia do nome russo, visto que se escreve com ë (iô) porém, o trema é modernamente apagado na grafia impressa.

Lá na Guiné, toda a gente dizia 'Degtiarév' e bem, e toda a gente passava a usá-la em vez da merda-da-HK, e bem, assim que lhe deitava a mão mas numa perspectiva de presúria, não de reconhecimento da 'qualidade inimiga'.)

SNogueira

Metralhadora ligeira Dectyarev RDP (Foto Wikipédia, Enciclopédia livre )

3. Também o nosso Camarada Luís Dias, postou um comentário, no mesmo dia, acrescentando mais alguns pormenores interessantes sobre a arma em questão:

Caro Fernando Costa,

O S. Nogueira tem razão a arma é um met. lig. Dectyarev RDP, que só fazia fogo automático e era uma belíssima arma. No entanto discordo do que ele diz que a HK-21 era uma m... !

De facto, com fita de elos desintegráveis era uma máquina, mas com a fita normal encravava muito. Além de que, em termos de balística a munição 7,62 mm Nato era mais equilibrada no fogo automático do que a 7,62 mm M43 soviética, usado na RDP.

Um abraço,
Luís Dias

2 Met. lig. Dectyarev RDP capturadas na ZO de Mansoa em 1972
(Foto: © Augusto Borges (2009). Direitos reservados.)

4. Ainda em 6 de Janeiro, o Salvador Nogueira complementava a sua intervenção inicial, assim:

Caro Luís Dias,

A sua opinião terá fundamento, mas parece-me que a questão balística só se colocaria em termos do 'poder da arma', em precisão, em distâncias longas ou com ventos fortes; ou, então, em tiros de caça com armas de repetição, que não era o caso das metralhadoras ligeiras Degtyarev e HK21, no quadro da nossa acção na Guiné.

O projéctil 7.62 x 54 mm, da HK, tem mais massa (149 g) o que, visto do uso que dele fazíamos, se torna imperceptível relativamente ao 7.62 x 39 mm, 123 g) da RPD; é um preciosismo balístico que não nos afectava.

O que nos afectava e fazia a diferença entre as duas armas era o peso da HK, cerca de 8 kg vs. os cerca de 7 kg com empunhamento mais equilibrado da RPD na qual, apenas como factor de conforto adicional, a reacção ao disparo, o "recuo", parecia mais linear.

O tambor-carregador da RPD garantia, por sua vez, melhor preservação das condições de transporte e uso das fitas de munições, obviando maus funcionamentos. Além disto, a RPD também parecia! Mais leve, embora lhe faltasse o factor de 'confiança induzida' que o ruído da HK proporcionava.

SNogueira

Guiné 63/74 - P5622: Notas de leitura (52): Os Anos da Guerra, de João de Melo (6): J. M. Garcia, S. M. Ferreira e Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

1.Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Já devorei a antologia de João de Melo.
Espero começar agora toda a obra do Armor Pires da Mota.
E ficam para ler algumas das obras-primas de Teixeira da Mota, livros raros que depois serão oferecidos ao blogue.

Saúde para todos,
Mário


OS ANOS DA GUERRA:
ALGUNS OLHARES SOBRE A LITERATURA DA GUERRA DA GUINÉ (6)


Beja Santos

Recordatória

Em “Os Anos da Guerra”, o escritor João de Melo procedeu a um levantamento da literatura da Guerra Colonial, referente a obras publicadas nos anos 60, 70, 80 e 90. Ele próprio refere que se trata de uma escolha arbitrária, por definição tem carácter subjectivo, refere mesmo nomes como o de Cristóvão de Aguiar, que não foi incluído na antologia (no final do texto, far-se-á uma chamada para o seu livro “Braço Tatuado”, cuja primeira versão surgiu em 1985). A série de textos que dedicámos aos escritores relacionados com a Guiné finda hoje com referências a José Martins Garcia e Sérgio Matos Ferreira. Não hesito em colocar o nome de José Martins Garcia como referência incontornável da literatura de guerra, sobretudo dos anos 70, pela sua originalidade, veia dramática e satírica. Sérgio Matos Ferreira é a voz do combatente que assistiu à independência da Guiné.


As suspeitas de um bravo capitão

“No começo da guerra, em 1963, ordens e contra-ordens haviam produzido em Catió desusados movimentos de ida e volta. Um estratega iluminado decidira-se pela ocupação minuciosa das redondezas, fragmentando o batalhão, dispersando as companhias, fragmentando companhias, dispersando os pelotões, fragmentando pelotões, dispersando as secções. O resultado fora desastroso, pois todas as ligações se mostravam extremamente complicadas, tanto por via rádio, como por via terrestre ou marítima, sucedendo-se às minas as emboscadas e às emboscadas as flagelações, com abundantes morteiradas alta noite. Confirmada a inoperância do iluminado estratega, logo lhe sucedeu um comandante de ideias diametralmente opostas, o qual, para demonstrar que a união faz a força, mandou recolher a Catió, com armas e bagagens, o batalhão que o antecessor havia disseminado. Assim se concentraram momentaneamente na vilória quatro companhias, sem muita estratégia e com escassíssima logística, à espera do reabastecimento europeu, via Bissau... Para aboletar todo este pessoal belicoso, o quartel expandiu-se pelo povoado. Os militares ocuparem tudo o que possuísse tecto, desde casas meio arruinadas até às moradias de comerciantes que, alertados pelos primeiros rumores do invencível terrorismo, rapidamente se haviam transferido para regiões de mais densa população, nomeadamente Bissau e Bafatá”

“Foi quando chegou a Catió, em escala para Bissau, o doente capitão Lourenço, ex-comandante efectivo da companhia do Cachil. As suas faces chupadas não excluíam de forma alguma a hipótese de doença ruim. Magro, alto, louro, arrastando uma tosse que parecia humilhá-lo, batia os tacões e ruminava lembranças épicas quando encarava aquela “tropa fandanga”, aqueles soldados mal enjorcados, sempre de chinelos e sem barrete, desaprumados, gingões, clandestinos jogadores de montinho e lerpa.

O comandante Galvão apressou-se a enviar para Bissau o hóspede impertinente, “para ele se curar”. Do Cachil não vinham nem bons ventos nem bons hóspedes, nem sequer boas notícias. A última irregularidade cometida por essas bandas rezava da alquimia operada no interior de um barril, cujo conteúdo vínico se revelara água, diante dos olhos crédulos e incrédulos. O comandante Galvão abominava as pequenas trapaças tão frequentes na carreira que escolhera. E, por pensar em reabastecimentos, fez-lhe espécie, pela primeira vez, o facto de o capitão Clemente, oficial de cavalaria, se ter enconchado na manutenção, superintendendo na batata, no vinho, no arroz, no bacalhau, como se fosse um desses da administração, um “padeiro”. Relacionando este absurdo com a filiação do Clemente, bateu com a palma da mão na testa e encontrou: “A cunha!” E ainda por cima o fulaninho, anafado e untuoso, botava pequenos discursos nacionalistas...

O capitão Clemente empalideceu quando soube da decisão do tenente-coronel Galvão: mandá-lo para o Cachil, na qualidade de comandante interino da companhia, encarregando-o, ao mesmo tempo, muito honrosamente, de apurar a verdade acerca da transformação do vinho em água, alquimia tanto mais escandalosa quanto invertia a regra dos Evangelhos”.

José Martins Garcia, em “Morrer devagar”, 1979


Vlatinessência

“Sob a hélice gigante dos indefinidos dias, sob o trovão enorme da estação chuvosa, sentindo de longe em longe um rodopio na memória, Pierre Avince dormiu uma inteira eternidade. Mais tarde recordaria os vultos esbranquiçados dos enfermeiros, as seringas cheias de líquido vermelho ou branco, os boiões de várias drageias, as injecções apercebidas por uma irritante sensação de calor espalhando-se da garganta até às unhas dos pés.

Um dia abriu os olhos e verificou que estava cercado por vários mortos. A bátega caía rija contra a vidraça mas, sobreponde-se ao rumor da chuva, a hélice do helicóptero remoinhava. Saltou para o jipe, entrou no túmulo, ouviu uma explosão. Todos mortos, sob a hélice de um helicóptero. Sem inferno, sem purgatório, sem paraíso, balelas inventadas pelos feiticeiros de todo o mundo.

Alguns anos depois, diante da página em branco, lembrar-se-ia da falsidade até da morte, da radical incompatibilidade entre ausência e consciência. E inventaria a palavra VLATINESSÊNCIA, a qual, por deficiência do significado, em breve lhe parecia um produto de beleza, ou seja, a cultura ao serviço da mutilação”

José Martins Garcia, em “Lugar de Massacre”, 1975

José Martins Garcia
Nasceu na Ilha do Pico em 1941 e faleceu em Ponta Delgada em 2002. Licenciou-se Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde leccionou entre 1971 e 1977. Cumpriu o serviço militar na Guiné entre 1966 e 1968, experiência que se projectara literariamente nas suas primeiras obras como “Katafaraum é uma nação” e “Lugar de massacre”, na década de 70. Trata-se de uma experiência que, como escreveu Urbano Bettencourt, acabará por pontuar, sob variadas formas e indiferentes circunstâncias a sua obra literária. Entre 1969 e 1971 foi leitor de Português na Universidade Católica de Pais e 1979 rumaria para os EUA como professor da Brown University, em Providence. Na Universidade dos Açores introduziu a cadeira de Literatura e Cultura Açorianas e doutorou-se com uma tese sobre Fernando Pessoa. A sua obra é muito eclética, abarca o ensaísmo, a poesia, o romance, o conto e a crítica jornalística.


Os anjos da guerrilha

“Num murmurejar crescente, a população deu aviso de entrada dessas palmeiras gigantes com óleo castigado por luas de guerrilha. Vinham esplendidamente erguidos, enfiados no camuflado do tempo, imensa pedra com dentes de luta. Dos lábios rebentavam nuvens brancas, claras, cheias de determinação – Ah, esse dia com sabor a entrega, com sabor a princípio, com um gosto inesquecível. Ah, meu país, meu ventre – e na parada gulosa de surpresas lá estávamos, sempre na espera, encavalitados de sobrolho desassossegado, barulhento, e numa calma enfurecida o silêncio baixou, espetou expectativa em todos os militares e povo. O momento grave, solene, e os homens do PAIGC perfilados, erectos, e os discursos a ferrarem na carne realidade, bela como o sol que nos ensurdecia de fogo e sede e liberdade, e um tenente-coronel a abarrotar de gordura estoirou a abertura da cerimónia com um dó dorido a patinar suor numa cara encarniçada, balofa...”

“A bandeira arpoada num falo direito, rijo, dedilhava palavras surdas auxiliada por um sorriso fraco de vento, que acordado em sobressaltos estrebuchava soluços de pano bicolor, murcho, à espera da estocada final. Num berro sem esforço, o clarim tocou firme e um pulsar de cascata segredou no sangue que o colonialismo se dissolvia, o sopro final de metal continuou pleno de satisfação, vibrando nas lâminas quentes do dia o tom do sentido, e sentimos na mais escondida célula que a salada da guerra se fechava na caixa da memória. A bandeira escorregava lentamente pelo fio da história em pequenas convulsões, hesitando, agarrando-se em jeito de lapa à madeira inchada e sem resistência poisou suavemente numas mãos esburacadas, ansiosas por remendar essa prisão de mato com a sombra do seu país... Agora África subiu sem dificuldade pelo poste, de braços abertos, hélice de espigas doiradas a cuspirem sementes, catana vigorosa de carne a cortar o último nó do cordão umbilical.
És independente, meu nervo. Guiné de todos”

Sérgio Matos Ferreira, em “O descascar da pele”, 1982

Sérgio Matos Ferreira foi mobilizado para a Guiné em 1973, com o posto de furriel miliciano e a especialidade de artilharia de campanha. Esteve em Dara, e depois em Buruntuma até Setembro de 1974, tendo assistido e participado na entrega do território ao PAIGC.


Cristóvão de Aguiar, convém não esquecer

Cristóvão de Aguiar acaba de reeditar em nova versão “Braço Tatuado” que apareceu inicialmente no livro Ciclone de Setembro, editado em 1985 (“Braço Tatuado, Retalhos da Guerra Colonial, por Cristóvão de Aguiar, Publicações Dom Quixote, 2008).

É hoje apreciável o número de títulos disponíveis, só da responsabilidade de escritores, sobre a sua experiência na Guerra Colonial. Basta referir os primeiros livros de Lobo Antunes, alguma poesia e prosa de Manuel Alegre, romances de Lídia Jorge e João de Melo, contos e novelas de Álvaro Guerra, o teatro de Fernando Dacosta e quanto aos escritores africanos Luandino Vieira e Pepetela.

Continua por dar resposta a esta questão cultura indispensável: durante treze anos, a Guerra Colonial envolveu centenas de milhares de militares e afectou directamente milhões de civis. A que se deve, a despeito de um número já considerável de testemunhos, incluindo os de recorte literário, o silêncio desses protagonistas? Há quem procure justificar a falta de estantes cheias de títulos sobre a Guerra Colonial devido ao facto dos diferentes heroísmos não se poderem traduzir numa voz colectiva, isto é, o que se passou em três frentes de combate teve diferentes identidades e resultados militares díspares. Além disso, tendo a Guerra Colonial terminado com o 25 de Abril e a independência das colónias, terá parecido a muitos protagonistas que os seus testemunhos estavam deslocados, precisavam da temperança de um silêncio entre gerações para não serem tomados como pura nostalgia ou ressabiamento ideológico. Acresce, com a má sorte que tem vindo a acontecer na vida das ex-colónias, num sofrimento que passa pela fome, guerras civis, destruição e corrupção económicas, e se saldam na degradação das condições de vida, parece haver pouco espaço para voltar aos cenários de horror desses conflitos armados ou cantar a voz da liberdade que acompanhou a independência desses povos.

Seja qual for a resposta consistente que se vier a dar a esta questão cultural incómoda (que por ora ninguém parece querer afoitar-se a responder), os protagonistas passam o papel os seus testemunhos.

Cristóvão de Aguiar combateu na Guiné entre 1965-1967.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5617: Notas de leitura (51): Os Anos da Guerra, de João de Melo (5): Carta número... e, Uma granada sob o coração (Beja Santos)

Guiné 63/74 – P5621: Histórias do Eduardo Campos (5): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério, Cadique/Cantanhez (Parte 5): Destino Nhacra


1. O nosso camarada Eduardo Ferreira Campos, ex-1º Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74, enviou-nos a 5ª fracção da história da sua Companhia, em 9 de Janeiro de 2010:

CAÇ 4540 – 72/74
"SOMOS UM CASO SÉRIO"

PARTE 5

CADIQUE/CANTANHEZ

Com um nome de guerra tão pomposo, a minha Companhia teria de ter direito a um desertor.

De vez em quando chegavam a Cadique, camaradas vindos de outras paragens, era um “prémio” que as suas chefias militares lhes davam, por eventuais comportamentos menos felizes.

Um deles (cujo nome não interessa mencionar), saía e regressava do aquartelamento quando lhe apetecia e, por vezes, até trazia uma arma ou algumas granadas.

O capitão começou a ficar preocupado com tal comportamento e tratou de o enviar para Cufar, onde esteve uns dias no COP 4 e foi interrogado.

Depois de apanhar umas bofetadas e algo mais, para falar do seu estranho comportamento, voltou para Cadique, porque aí é que era o local apropriado para “despachar” os meninos maus.

O nosso camarada não aguentou a pressão (penso eu) e, no dia seguinte, disse adeus a Cadique, e desapareceu, levando a sua arma, ao encontro do inimigo.

Após o 25 de Abril, voltei a ter notícias do referido camarada (creio que no Jornal República), através de uma sua entrevista, dizendo que se encontrava, nessa altura, na Suécia.

Note-se que eu tenho em meu poder um manuscrito retirado de uma entrevista, que o mesmo deu á rádio de Brazzaville, em que fazia referência à sua fuga e pelos locais por onde tinha passado, e, como já se vinha tornando moda, impregnada de exagerados rasgos de determinado tipo de propaganda política, pouco abonatório para nós, ex-Combatentes. De quem veio tais afirmações, também não seria de esperar outra coisa.

Por falar em fugas, a guerra em que todos nós participamos tinha coisas espantosas, a ver um caso:

De vez em quando apanhávamos um homem africano “suspeito”. Se fosse velho ainda se safava, mas se fosse jovem era logo apelidado de turra e era enviado para Bissau. Andava por lá uns tempos, regressava de novo com ar satisfeito e um rádio nas mãos e era incorporado nas milícias. Davam-lhe uma farda e uma arma e, passados uns dias, o homem desaparecia no meio do mato. Espantoso não é?

Em 20/06/73, desembarcou em Cadique a CCS/BCaç 4514 e, a partir dessa data, iria constituir ali a sede do seu batalhão e dar continuidade aos trabalhos já iniciados e desenvolvidos pelas anteriores unidades na zona.

Não sei se houve acordo entre os “senhores da guerra”, mas em 19/07/73, arranjou-se tempo para organizar uma grande festa em Cadique.

Se fosse hoje, eu diria que iriam decorrer ali, em breve, eleições, já que foram feitas várias inaugurações: o Posto Sanitário, a Escola, o Monumento de Homenagem aos Reordenamentos do Cantanhez e foram descerradas duas Lápides de Homenagem ao Comandante Araújo e Sá e aos mortos do Cantanhez. Também se aproveitou a festa, para inaugurar duas ruas a que se deu os nomes do 1º e 2º chefes da POP de Cadique Imbitina, Banan, Nadum e Nanqueca Nandefa.

Tudo me leva a crer, que nosso amigo e Camarada António Carvalho (da CArt 6250, Mampatá), andou por lá perto e foi mesmo nessas bandas que aprendeu a fazer as suas brilhantes campanhas eleitorais (?).

Esteve presente o Comandante do CAOP 1, o Coronel Pára-quedista Curado Leitão. Quem sabe se o nosso amigo António Graça Abreu também lá esteve?

E a paróquia de Cadique estava representada pelo Comandante do Batalhão 4514, Tenente-coronel Sousa Teles, muitos militares, inúmeros população e muito provavelmente, misturados na multidão, vários guerrilheiros do PAIGC.

O almoço nesse dia foi mesmo de “ronco” e ainda deu tempo para “estragar” uma bola de futebol, num desafio a rigor entre a CCS do BCaç 4514 e da CCaç 4540.

A 22/07/73: Desembarcou em Cadique a 1º Companhia do BCaç 4514, que veio substituir a CCaç 4540.

Quase um mês depois, mais precisamente em 17/08/73, a CCaç 4540 disse adeus a Cadique, a bordo mais uma vez, da LDG Bombarda, tendo chegado a Bissau no dia seguinte e sendo conduzida para o D.A., em Brá, onde ficou instalada.

Nessa altura já não me encontrava em Cadique, pois tinha sido chamado para uma “missão” já programada há algum tempo (35 dias de férias na Metrópole). Apanhei um helicóptero (coisa rara nessa altura) e voei para Bissau.

Neste preciso momento, tentei imaginar o que teria sentido na despedida de Cadique, conjuntamente com a minha Companhia, e, a única coisa que me ocorria, nessa data, era pensar: “A merd. do barco nunca mais sai daqui.”

Se fosse hoje, creio bem sério, pensaria: “Foi com certa nostalgia e saudade que deixei para trás aquelas paragens, que, com sacrifício sem conta, ajudei a desenvolver e prosperar ficando ligado para sempre a Cadique.”

Depois de ter gozado as merecidas férias, regressei a Bissau em 31/08/73 e, quando entrei nos Adidos, deparei com muitas viaturas na parada prontas para saírem. Foi nessa altura que tomei conhecimento que a minha Companhia se encontrava ali, ao ver camaradas meus em cima das mencionadas viaturas.

Na recruta, o aspirante do meu pelotão, dizia com alguma frequência que existiam duas formas de ultrapassar os obstáculos que a vida militar nos opunha:

Primeira: Tentar passar o mais despercebido possível daquilo que nos rodeava, não dando nas vistas;

Segunda: Nunca se armar em herói, já que os cemitérios estavam cheios deles.

Eu, ao entrar nos Adidos, quando tomei conhecimento que o pessoal e as viaturas, que eu vira momentos antes, iriam escoltar uma coluna que se deslocaria de Bissau para Farim, cometi precisamente o primeiro erro “não passar despercebido”, e reconheço que terei cometido uma imprevidência, “mandando umas bocas foleiras”.

O nosso capitão ao ver quem era o “artista” das “bocas” (que mais parecia desfilar numa passerelle, para trás e para a frente), deve ter pensado lá para ele: “Tens a mania que és fino, então toma lá”, pois virou-se para mim e disse:

- Ó Campos larga o saco e sobe para cima de uma viatura!

- Eu meu Capitão? – perguntei.

- Não a tua prima.

- Mas eu nem sequer tenho uma arma – exclamei.

- Nem precisas, os turras sabendo que vais na coluna não nos atacam. Logo não precisas de arma nenhuma!

E lá fomos até Farim. A partir de Mansoa vi imensos vestígios arrepiantes e desagradáveis de emboscadas, ainda por cima sob uma chuva copiosa, durante toda a viagem de ida e de volta, que jamais esquecerei.

Nesse tempo, quase todas as colunas que faziam esse percurso, eram surpreendidas com emboscadas, das quais, infelizmente, resultaram muitas mortes de Camaradas nossos. Alguns dos corpos ainda se encontravam nos Adidos a aguardar embarque de regresso ao Continente.

O capitão teve razão, ia na coluna um militar que “impunha muito respeito” ao IN e de facto não aconteceu nada em toda o percurso e devo acrescentar, que, em quase vinte quatro meses de Guiné, nunca tive distribuída uma arma e nem um tiro disparei. É verdade, nem aos pombos!

No entanto fui ferido várias vezes e também tive o meu momento de glória.

Os ferimentos (várias escoriações), foram fruto das “aterragens” mal feitas nas valas. Umas vezes mal calculadas e outras porque entrava de bruços, cabeça, etc.

Por favor não se riam porque muitos de vós também as fizeram.

Quanto ao acto de grande de heroísmo, tudo se passou durante um ataque do PAIGC, com armas ligeiras ao nosso aquartelamento. O meu camarada de serviço foi para o abrigo, não tendo levado o rádio como lhe competia e nada nem ninguém o demoveu, para o ir buscar.

Eu, com uma calma que não me era habitual, saí do abrigo e fui buscar o rádio, regressando ao brigo com toda a calma deste mundo. A justificação para tal feito, só a encontro num bom copo de whisky que emborcara momentos antes.

Para surpresa minha, não surgiu nenhuma proposta para o prémio Governador ou mesmo um simples louvor. Senti-me deveras injustiçado pela atitude das minhas chefias militares.

Em 08/09/73, saímos do Depósito de Adidos, com destino a Nhacra, onde iríamos substituir a CCaç 3477 – “Os Gringos de Guileje”.

A partir de 19/09/73, a Companhia passou a ter á sua responsabilidade o sector de Nhacra, sob as ordens do COP 8, instalado no local.

Meus amigos, para mim e para a minha Companhia a guerra tinha terminado, iria ter cerca de um ano de férias e ainda foram remuneradas.

Duas notas finais:

- Aproveito para saudar, todos os ex-Combatentes e, em particular, os Açorianos, pois foram muitos os que por passaram na Guiné. Encontrei-os em Bigene, Cufar e Nhacra.

- Em primeira mão e em exclusivo, informo o pessoal tertuliano, que fruto de mexer em papéis antigos e de dizer umas ”asneiritas” no blogue, sobre a minha Companhia, não resisti à nostalgia que se tem vindo a apoderar de mim e, em Abril próximo, vou retornar à Guiné.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cacine > Cadique > Junho de 2007 > Pedras que falam da CCAÇ 4540 - Somos um Caso Sério -que esteve aqui, em Cadique, em pleno coração do Cantanhez, na margem esquerda do Rio Cumbijã, de 12 de Dezembro de 1972 a 17 de Agosto de 1973. Foto: Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados.

Um abraço Amigo,
Eduardo Campos
1º Cabo Telegrafista da CCaç 4540

Fotos 31, 32 e 33: © Eduardo Campos (2009). Direitos reservados.
_____________
Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em: