terça-feira, 6 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6682: Convívios (259): Convívio anual de "Os Sobreviventes" - CCAÇ 3490, Saltinho, 1971/74 (Mário Migueis)

1. Mensagem de Mário Migueis da Silva* (ex-Fur Mil de Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), com data de 21 de Junho de 2010:

Caro Carlos:
Votos sinceros de muita saúde e boa disposição.

A pedido dos organizadores do último encontro de ex-combatentes da CCaç 3490 (a da emboscada do Quirafo), na mira da captação de novos convivas para os próximos, estou a remeter-te uma pequena notícia sobre o mesmo, bem como algumas fotos que a ilustram.

Considerando que, recentemente, comprei uma peruca branquinha e troquei os óculos por lentes de contacto, junto ainda uma nova foto tipo passe, onde é patente o meu novo visual. Se puderes passar a fazer uso dela na apresentação da minha prosa (e não só) futura, agradecia.

Um grande abraço
Mário Migueis


Convívio anual da CCaç 3490 - Saltinho 1971/74

“Os sobreviventes”


Quando, pouco depois do meio-dia do passado domingo, dia 13, entrei na sala do restaurante Milho-Rei, em Penafiel, onde já se comia e bebia sem cerimónia, dei comigo a exclamar mentalmente: “ora, cá estão, finalmente, os sobreviventes da desgraçada 3490!”. Na verdade, não os via desde Outubro de 1972, andando a tentar localizá-los há, pelo menos, uns cinco anos. Aliás, meses atrás, cheguei a apelar nesse sentido neste nosso santo blogue, que tantos milagres tem operado em casos congéneres. Mas, nem assim: do outro lado, nada, ninguém respondeu. Mas, como quem porfia sempre alcança, não desisti e, através do “Luís Graça e camaradas da Guiné”, cheguei ao blogue “Histórias da Guiné 71-74…”, que me havia de dar a grande pista: um artigo do Luís Dias, seu fundador e nosso camarada de tertúlia - ex-alferes de uma das outras companhias do batalhão em Galomaro e Dulombi - tinha merecido um comentário que a minha perspicácia de homem das informações – modéstia à parte – não deixou passar. E, na verdade, quem assim comentava não era gago nem um qualquer, era tão só e simplesmente o Agostinho Barbosa, um dos dois organizadores de todos os convívios já efectuados, os quais, viria a saber, vinham acontecendo nos últimos seis anos sem interrupção. Ao e-mail que lhe dirigi, respondeu prontamente com uma simpatia quase comovente. Depois, foi só esperar que decorressem os dois mesitos que nos separavam da data prevista para o encontro.

De todos os presentes, que, com os familiares que os acompanhavam, ultrapassariam a centena e meia, apenas reconheci imediatamente os ex-furriéis Aguinaldo Silva (Ponte do Lima) e Carlos Raimundo (Faro). Mas, curiosamente, embora disfarçado com barba e cabelo branco, fui imediatamente reconhecido pelo Carvalho, 1.º Cabo Cripto da Companhia, por sinal, senhor – na altura - de uma voz melodiosa, que interpretava alguns fados castiços de Lisboa de uma forma tão arrepiante e especial que nos levava invariavelmente às lágrimas. Nunca mais esqueci algumas das bonitas letras do seu reportório!

Após quinze minutos de animadas conversas e múltiplas reapresentações, já tinha o nome de cada um na ponta da língua e toda a gente sabia que “aquele da barba branca” era o Furriel das Informações. Pena que, como é natural neste género de encontros de pessoas espalhadas por todo o país e não só, se tenham registado algumas ausências, designadamente a do Comandante da Companhia, capitão miliciano Dário Lourenço, que, por razões de ordem profissional, tivera que se ausentar para o estrangeiro dias antes. Quem também não vi por lá – gostava muito de o rever, embora tenha estado com ele há relativamente pouco tempo na Tabanca de Matosinhos – foi o nosso querido camarada de tertúlia António Batista, que, na sua qualidade de morto-vivo, é uma imagem de marca da unidade em questão.

Mas, que foi uma festa bonita, lá isso foi. A concentração iniciou-se manhã cedo, seguindo-se, na Igreja do Calvário, no centro da cidade, uma missa sufragada por todos os camaradas já falecidos. Por volta do meio-dia, foi tempo de seguir para o restaurante Milho-Rei, situado a cerca de seis de quilómetros de distância, junto à estrada para Entre-os-Rios. Para além dos comes e bebes em quantidade e qualidade, não faltaram os discursos, os brindes, as brincadeiras e um bailarico abrilhantado por uma mini-banda ao vivo. Confesso que, de todos os encontros em que já participei, este foi, sem dúvida, o mais animado, com todos os participantes imbuídos num ambiente de euforia, dando mostras do seu contentamento por estarem de novo reunidos, afastadas que foram as sombras de um passado de dor e sofrimento, que a fraternidade que os ligava ajudou a esbater. Estão, pois, de parabéns o Agostinho Barbosa (Penafiel) e o Justino Sousa (Paredes), não só organizadores de mais este convívio, mas, eles próprios, também, os idealizadores, mentores e fautores do tocar a reunir as tropas, decorridas que eram já três décadas desde o regresso da Guiné. E o que estes grandes entusiastas gostariam agora era que, nos próximos encontros, mais malta da Companhia comparecesse, para que todos pudessem sentir e fazer sentir o doce sabor da camaradagem, que permanece viva e inalterável no coração de cada um. Para tal, solicitam àqueles que ainda não tiveram oportunidade de estar presentes em nenhum dos convívios anteriores que facultem desde já à Organização (agostinhorochabarbosapenafiel@gmail.com) os respectivos contactos, possibilitando assim a sua oportuna convocação para o encontro do próximo ano que, em princípio, terá lugar de novo em Penafiel durante o mês de Junho.

Outros dizem que cada vez somos menos. Cá os nossos homens da Organização preferem que se diga que cada vez seremos mais, bastando para isso que tu, caro camarada da CCaç 3490, marques a tua presença nos próximos encontros.

Até lá!

Esposende, 15 de Junho de 2010
Mário Migueis da Silva


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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 – P6245: Estórias avulsas (84): O lírico, ou com a ditadura não se brinca (Mário Migueis)

Vd. último poste da série de 29 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6655: Convívios (173): 10 de Junho de 2010 (Arménio Estorninho)

Guiné 63/74 - P6681: Recordações do Hoss (sold Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) (3): Conclusão

1. Conclusão da publicação das memórias do Sílvio Faguntes Abrantes, membro da nossa Tabanca Grande, conhecido na Guiné como o Hoss. Pertenceu à CCP 121 / BCP 12.

Hoss e o Folhas


Uma dum colega ferido no dia 16 de Junho, com soro



16 de Junho de 1970

Conclusão


Conforme mencionei na 1.ª parte, houve um oficial que na emboscada saltou da viatura sem a G3 e pediu ao Folhas que lhe desse a dele, ao que este rejeitou. O oficial fez a vida negra ao Folhas o resto da comissão.

Passados uns meses e já em plena época das chuvas, fomos para um aldeamento na fronteira com o Senegal onde só havia um pelotão de obus.

Nós, soldados, dormíamos debaixo de panos de tenda, onde a água entrava por todos os lados, os oficiais e sargentos instalados numa antiga escola. O nosso acampamento mais parecia um acampamento do índios dum filme de cowboys do que de soldados prontos para a guerra e dar a vida pelo Pátria.

Um dia saímos de manhã fazer uma operação de reconhecimento, chegámos todos molhados. À noite fomos em auxílio dum quartel do exército que estava a ser atacado, chegámos todo molhados. Na manhã seguinte o dito oficial manda formar a companhia de camuflado. Camuflado significa botas. Nós só tínhamos dois pares de botas e dois camuflados que estavam todos molhados. Então resolvemos formar em fato de treino uns, e outros de calções, a única coisa que tínhamos enxuto para vestir. Ao ver tal situação o dito oficial manda o Folhas sair da formatura, entra em discussão com ele e deu-lhe cobardemente duas bofetadas.

O Folhas passa-se da cabeça, e não era para menos, vai buscar a G3 com um carregador enfiado, pronta a disparar, corre atrás do oficial que se refugia na escola. Então eu e outros colegas fomos acalmar o Folhas, o que não foi nada fácil e conseguimos que nos desse a G3.

Passados poucos minutos reuniram-se alguns velhinhos da companhia e de cabeça quente ditamos a sentença ao nosso oficial. Decidimos que, se o dito oficial participasse do Folhas, deixaria de contar a 100% no efectivo das tropas Pára-quedistas, ou seja hoje não estaria no reino dos viventes. Por sorte não houve participação.

Mas digo com toda a honestidade, se fosse comigo não lhe perdoava. Ainda hoje pergunto o que é que me segurou em não concretizar a sentença, algumas vezes o tive na mira. O meu pai nunca me bateu.

Seria mais um morto em combate.

Esse grupo era composto por 3 MG, 2 Hk, 1 Degtariev e várias G3.

Porque é que este senhor não se meteu comigo ou com outro colega meu? Porque teve de ser com o Folhas?

Há 2 ou 3 anos encontro, numa festa da companhia, em Tancos, um outro oficial, hoje coronel na reforma que me perguntou pelo Folhas, ao que eu respondi que não sabia nada dele. Então contou um outro triste episódio passado entre ele e o Folhas. Não vale a pena estar aqui a recordar, pois eu já não estava na Guiné. Pergunta o coronel porque é que o Folhas era um revoltado. Então eu e o meu amigo Vicente, outro enfermeiro, contámos a passagem da G3. O nosso homem nem queria acreditar no que ouvia.

- Não é possível que um oficial faça uma coisa destas, nunca imaginei tal coisa. Se encontrasse aqui o Folhas, pedia-lhe desculpa agora mesmo.

Atitude digna dum Homem.

Junto envio duas fotos. Uma dum colega ferido no dia 16 de Junho, com soro e a outra, eu o Folhas. O colega que segura o soro, se a memória não me falha, é um bravo açoriano.

Hoss
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Nota de CV:

Vd. postes de:

20 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6195: Recordações do Hoss (Sold Pára Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/1971) (1): Quando a minha MG 42 ficou engatada no banco da viatura e sofremos uma tremenda emboscada a 3km do Pelundo
e
14 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6387: Recordações do Hoss (sold Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) (2): o ataque à coluna Bissau-Teixeira Pinto, em 16 de Junho de 1970 (II Parte)

Guiné 63/74 - P6680: O Nosso Livro de Visitas (91): A. Branco, CCAÇ 16, Bachile, chão manjaco, 1971

1. Mensagem do nosso camarada José Romão [, foto à esquerda], com data de 30 de Junho último:

Assunto:  Bachile, CCAÇ 16


Amigos e camaradas Magalhães Ribeiro e António Graça Abreu


Aqui vos mando uma mensagem enviada pelo camarada Branco que também prestou serviço militar no Bachile.


Um grande abraço. Romão


2. Mensagem do A. Branco, com data de 29 de Junho passado, para o Zé Romão:

Assunto -  Bachile,  CCAÇ 16

Caro Romão

Acabo de fazer mais uma das minhas habituais visitas ao blogue do Luis Graça e rapidamente me apercebi do texto e das imagens da CCAÇ 16.

Tal como referes, e ao contrário da opinião do António Graça Abreu, o Bachile nessa altura era efectivamente tal qual o descreves e sublinhas com fotos.

A confusão do António Graça Abreu, deve ter a ver com o que eu algures já li,  noutros sítios,  em que o Bachile antes da conclusão da estrada até ao Cacheu não tinha nem por sombras  aquelas condições, até porque a CCAÇ 16 só foi organizada em Fevereiro de 1970,  conforme nota descretiva que a seguir envio.

Esclarecida esta situação, queria-te pedir que me autorizasses a copiar para o meu album pessoal as imagens do quartel e nomeadamente da minha secção, a arrecadação, já que as que eu tenho não têm a mesma qualidade.

Por agora um abraço e vou continuando atento a tudo o que surja referente à nossa companhia e ao Bachile.

A. Branco
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Notas sobre a Companhia de Caçadores nº 16, compiladas por José Martins (Vd. poste P4347, de 14 de Maio de 2009)


(i) Subunidade do recrutamento local, foi organizada no CIM de Bolama, em 4 de Fevereiro de 1970;

(ii) À semelhança de outras, da chamada "nova força afriacna", por quadros (oficiais, sargentos e praças especialistas) de origem metropolitana e por praças guineenses, de etnia manjaca;

(iii) Colocada em Teixeira Pinto, em 4 de Março de 1970, destacou dois pelotões para Bachile, passando a estar integrada no dispositivo do BCAV nº 1905, e substituindo a CCAÇ nº 2658, que se encontrava em reforço no sector;

(iv) Em 30 de Abril de 1970, já com o quadro orgânico de pessoal completo,  passa a ser a unidade de quadrícula de Bachile;
(v) Em 28 de Janeiro de 1971 passa a depender do CAOP 1 (com sede em Teixeira Pinto);

(vi) A partir de 1 de Fevereiro de 1973, fica na dependência do o BCAÇ nº 3863 e do BCAÇ nº 4615/73, que assumiram, a seu tempo, a responsabilidade do sector em que aquela subunidade estava integrada;

(vii) Destacou forças para colaborar nos trabalhos de reordenamento de Churobrique;

(viii) Em 26 de Agosto de 1974, desactivou e entregou o quartel de Bachile ao PAIGC, recolhendo a Teixeira Pinto, onde foi extinta a 31 de Agosto desse ano.

(ix) Assumiram o comando desta subunidade, os seguintes oficiais:

Cap Inf Rolando Xavier de Castro Guimarães
Cap Inf Luciano Ferreira Duarte
Cap Mil Inf  José Maria Teixeira de Gouveia
Cap QEO [Quadro Especial de Oficiais] José Mendes Fernandes Martins
Cap Inf Abílio Dias Afonso
Cap Mil Art  Luís Carlos Queiroz da Silva Fonseca
Cap Mil Inf Manuel Lopes Martins

(x) Esta subunidade não tem História da Unidade: existem  apenas alguns registos,  muito incompletos, relativo aos períodos de 1 de Janeiro a 31 de Setembro de 1972 e de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de 1973 (Vd. Arquivo Histórico Militar, caixa nº 130 – 2ª Divisão/4ª Secção).

3. Comentário de L.G.:

Agradeço ao Romão e ao Branco (bem como ao nosso infatigável colaborador, amigo e camarada José Martins) estas preciosas notas sobre o historial da CCAÇ 16, da qual não temos falado muito no nosso blogue, a não ser mais recentemente.

O Branco, que é nosso leitor regular, fica deste já convidado a integrar a nossa Tabanca Grande, se assim o desejar. Basta-lhe mandar-nos duas imagens, digitalizadas, uma actual e outra do tempo da tropa. Diz-nos também qual foi o teu percurso na tropa, onde moras e, ainda, se quiseres, o que fazes ou fazias na vida activa, além do dia do teu aniversário. Tens aqui um batalhão de gente à tua espera. E que desejarão saber mais coisas sobre Bachile, a CCAÇ 16 e os teus manjacos. Até á volta do correio. (*)
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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 5 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6674: O Nosso Livro de Visitas (91): Hélio Matias, ex-Alf Mil Cav, comandante do Pel Rec Daimler 805 (Nova Lamego, 1964/66), que conheceu o Triângulo do Boé (José Martins)

Guiné 63/74 - P6679: Controvérsias (92): A ficção e a guerra (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 5 de Julho de 2010:

Meus caros camarigos editores
Escrevi hoje um texto sobre esta "conversa" à volta da ficção e da realidade, suscitada pelo texto do Mário Cláudio.

Como sempre publicarão se assim o entenderem, mas se me é permitida uma sugestão, a publicar seria agora, visto que depois deixará de ter sentido.

Mas vós é que sabeis "da poda"!

Um abraço forte e camarigo para todos do
Joaquim



A FICÇÃO E A GUERRA


Li com atenção todos os textos publicados na Tabanca Grande, bem como os comentários e, salvo melhor opinião, julgo haver um consenso que nos remete para que a publicação deste tipo de textos de ficção, deve ser perfeitamente identificada como tal, para que não haja confusões com a realidade, como tentarei explicar mais adiante.

Já foram publicados vários textos, (chamemos-lhe de ficção), neste nosso espaço, entre eles alguns meus e todos foram, ao que me lembro, perfeitamente identificados como tal, não fosse eu um dia ser confrontado com alguém que me dissesse na cara que eu tinha a mania de ter sido um qualquer “rambo”, ao lerem um texto meu que pretendia retratar humoristicamente algumas bravatas causadas pela imaginação.

Mas há também opiniões, com as quais eu comungo inteiramente, que afinal a ficção portuguesa sobre a guerra apenas retrata o lado negro da guerra, como se esse lado negro fosse uma realidade sempre presente e constante da actuação das Forças Armadas Portuguesas, o que não pode estar mais longe da realidade.

Os nossos camarigos que procedem com empenho à compilação de dados estatísticos sobre a guerra saberão com certeza quantas centenas de milhar de Portugueses combateram ao longo de treze anos nas três frentes de guerra.
Pergunto eu então, a quantas dezenas, (não se contarão com os dedos das duas mãos?), se podem definitivamente assacar tais práticas de barbárie em teatro de guerra?

Quero eu com isto dizer que não se deve falar do assunto?

Com certeza que sim, que se deve falar de tal assunto por muito que ele doa!
Os factos aconteceram, (embora talvez nem tantos porque se percebe que muitos são de “ouvir dizer”), mas ao representar a guerra apenas com estes episódios, insisto que se ofende a memória de tantos e tantos milhares, que obrigados ou de livre vontade, lutaram corajosamente, com a dignidade humana que é possível numa guerra desta natureza, ou em qualquer uma, claro.

E repito ainda que aqueles das gerações mais novas, (talvez nossos filhos, talvez nossos netos, talvez amigos de uns e outros), que possam ler estes textos sem uma perfeita noção de que são ficcionados, poderão ter uma imagem dos seus pais e dos seus avós que não corresponde minimamente à realidade, ainda por cima muitas vezes “ajudada” pela forma deficiente como esta parte da história é ensinada, e pelo labéu que em determinada altura a “política” lançou sobre os combatentes desta guerra.

E viram fotografias e reportagens em revistas estrangeiras, e ouviram dizer, e citam nomes, e logicamente acredito que aconteceram tais factos, mas porque é que raio também essas mesmas revistas, ou essas mesmas fotografias, não mostram o outro lado da guerra?

Porque é que a ficção há-de tratar exaustivamente tal assunto, e não retrata, insisto o outro lado da guerra?
Onde estão as fotografias, e as reportagens dos soldados, cabos, furriéis, alferes, capitães, (se calhar até os chamados oficiais superiores), se dedicaram no meio da guerra a ensinarem as letras, a ensinarem a escrever, a melhorarem as condições de vida das populações?

Não serão eles muitos mais do que os que praticaram os tais actos de barbárie?

Onde estão as fotografias, e as reportagens sobre os enfermeiros e médicos “militares” que empenhadamente vacinaram, trataram, fizeram partos, ensinaram regras básicas de higiene a toda uma população, melhorando as condições de saúde e o acesso à mesma?

Não serão eles muitos mais do que os que praticaram os tais actos de barbárie?

E onde estão as fotografias, e as reportagens sobre os militares que fizeram e protegeram colunas, apenas para levar arroz e outros mantimentos a Tabancas que deles precisavam, que fizeram poços e reconstruíram casas, que deram enfim do seu melhor, para dar uma vida melhor a essas populações?

Não serão eles muitos mais do que os que praticaram os tais actos de barbárie?

Não serão estes temas, (e apenas para citar estes), uma realidade também da guerra e por isso não mereciam também um tratamento literário de ficção que os retratasse?
Pois, provavelmente não teriam muita venda, e não serviriam determinados propósitos.

É verdade, meus camarigos, querer transformar a guerra de África que vivemos num repositório de atrocidades, sejam elas ficcionadas ou verdadeiras, não é mais do que querer dar dum todo uma imagem distorcida, que está muito longe de corresponder à realidade.
Já não é a primeira vez que se fala por aqui de “hitleres” e outros quejandos?
Então e não havia também os “stalines” de um lado e do outro?
Eu, por mim, estou tão longe de uns como dos outros, e “hitleres” e “stalines” sempre os haverá, mas não representam minimamente a humanidade, representarão sim a desumanidade que infelizmente também faz parte da humanidade.

Meus camarigos, este escrito já vai longo, mas quero que fique bem claro que não faço a apologia da guerra, (como cristão, condição indissociável de mim, sou totalmente contra a guerra), e que não afirmo que tudo correu maravilhosamente sem terríveis atitudes de parte a parte, mas afirmo, isso sim, que no cômputo geral as forças em presença, quer de um lado quer do outro, se portaram bem mais dignamente que as forças armadas dos países que se pretendiam “donos do mundo” no século XX, quer da “direita”, quer da “esquerda”, e que afinal não foram exemplo para ninguém.

Reafirmo ainda para terminar, que a minha questão não tem a ver comigo próprio, (tenho a consciência tranquila sobre o modo como me comportei na Guiné), mas com aqueles que olham para mim, para nós, como uma referência para as suas vidas, porque somos pais, avós, amigos ou simplesmente mais velhos.

A todos o meu forte e camarigo abraço
Joaquim

Monte Real, 6 de Julho de 2010
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6615: 20 Anos depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (6): Sem Título 3

Vd. poste de 6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6678: Controvérsias (91): Mário Cláudio e o debate, Açordas! (José Brás)

Guiné 63/74 - P6678: Controvérsias (91): Mário Cláudio e o debate, Açordas! (José Brás)

1. Mensagem do nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 5 de Julho de 2010:

Carlos, meu amigo
Podes editar ou não, sendo que é grande para comentário

Um abraço
José Brás


Mário Cláudio e o debate:

Açordas!


Isto é que vai aqui uma açorda!

E começando assim, repetindo uma comezinha fala de "malucos do riso" e de um personagem popularizado (ou popularunchizado?) por actor de mais recursos do que, alcandorados em balofa erudição, alguns pensavam, começando assim, corro o risco de também popularuncho, ou de gato escondido com rabo de fora.

Mas lembrei-me do dito e pareceu-me bom como bengala, disso pedindo desculpa a eruditos e não eruditos, pelo abuso.

E para que preciso eu de bengala, afinal?

E antes ainda, e antes ainda pergunto a mim próprio porque diabo hei-de eu, em vez de me deixar quieto no meu canto, estar a meter colher em tal açorda, deitando mesmo a mão à bengala, seguramente porque sinta que dela necessito na circunstância, nem que seja para encontrar espaço e tempo de entrada no testo de barro, no alho, muito, nos coentros e outras ervas.

De Mário Cláudio, nem sei bem porquê, posso dizer quase, que nunca li nada, se disser que nada é o muito pouco e atravessado, lido mais com os olhos do que com a alma (quando leio, leio mais com a alma, o que é muito perigoso).

E é muito mau que assim seja, para mim, claro, porque indiciador de ligeirezas minhas e incapacidades de entender grandezas.

Li agora o texto que deu tempero a este luxo de debate e, peço desculpa a quem fala de densidades, porque digo que tal não achei e, sim, um texto limpo e claro, pronto a ser consumido sem grandes exigências de entendimento, ficção sobre um real muito conhecido, tivesse sido ou não, esse real, já em si, muito ficção. Marcado, certamente, e contra isso não haverá nada a dizer senão contrastar com outras marcas.

Quer dizer. A ficção escorre aqui, a meu ver, apenas pela forma como se juntam as palavras e se criam as imagens, apenas pelo estilo narrativo, naturalmente a milhas dos códigos do relatório a que nos habituámos muito.

Quase posso garantir que conheci o personagem em Tavira, mítico, cara de menino perdido, parecendo sempre longe dali, duro com seus instruendos, não mais que outros que por lá campeavam, amigos da pinga, violentos, sonhando heroísmos em África, confessadamente, alguns, admiradores de Hitler, fazendo pagar à maralha o preço de tão azarenta data de nascimento.

E reencontrei-o também na Guiné, onde, que me conste, não teve oportunidade de fazer das suas, se é que as fez realmente quilómetros mais abaixo no mapa de África. Aliás, nem ele, nem outros supostos heróis que nos haviam feito a vida negra no Algarve, alegadamente para nos endurecer e preparar na perspectiva do que nos esperaria.

Do que diz Mário Cláudio, e de como o diz, acabou por parecer que não falava da andorinha mas da Primavera.

E o clamor se elevou! Como é hábito, salutar, acho eu.

Com ou sem razão? Com ou sem razões (que não é a mesma coisa)?

Pessoalmente, desculpem-me a palavra honrada, tendo em conta o que somos como grupo (e somos, naturalmente, um pouco do que fomos), apesar da heterogenidade que compõe o ramalhete, só poderia dar bernarda.

Alguns dos comentários, em minha opinião, indo mais longe do que provavelmente Mário Cláudio quis ir, acrescentaram a pimenta.

De facto, pese embora a ocorrência de casos extremos e desvairados, do que sei, do exército português não se poderá dizer que se excedeu em desumanidades para além daquelas inevitáveis em guerras. Aceito que, provavelmente, ocupado com a realidade isolada de Medjo e do Corredor, sei muito menos do que um jurista em Bissau. E a melhor prova disso foi e é a possibilidade do abraço, acabada a guerra; são as declarações dos do outro lado sobre a bravura combatente e a moderação do gesto da tropa portuguesa, quando no acto de aprisionar.

Creio ser insuspeito, dizendo o que digo aqui, ou, pelo menos, não mais suspeito que todos os que abrem a boca para falar disto. Eu perguntaria se conhecem outra guerra deste tipo, com outros intervenientes, que na ressaca das independências, tenha sido possível juntar os dois lados sem ódios nem raivas, como aconteceu connosco e ainda acontece hoje, alguns achando que exageradamente, até.

Excessiva foi a postura do regime que se fechou à apropriada leitura da história e alongou o conflito, criando impossibilidades aos que lutavam dos dois lados. E nisso nos diferenciamos claramente de outras experiências, porque também os intelectuais portugueses não esperaram tempos para se pronunciarem contra a guerra, contra a guerra tendo estado sempre e o disseram abertamente, talvez que com isso se lhes enublando a visão sobre os que lutavam e aguentavam bravamente na crença de dar tempo a políticos para resolverem politicando, talvez olhando uma árvore e achando que era bosque.

Uma coisa não se pode negar. Este texto desatou uma boa e elevada discussão, quer do ponto de vista da afirmação de posições, quer do ponto de vista, mesmo, da construção da comunicação, e eu me espanto que se considere isso negativo.

Quanto ao fazer-se ou não ficção na Tabanca, quem é contra que invoque o artigo que nos estatutos o definem, claramente mostrando entender diferenças entre ficção e realidade.

E pronto, tenho dito!
Abraços
José Brás
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6436: Bibliografia de uma guerra (56): Vindimas no Capim, de José Brás - Maneira mais cómoda para obter esta obra

Vd. último poste da série de 5 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6677: Controvérsias (90): Guerra colonial: os Garcez que (nunca) existiram (Belarmino Sardinha)

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6677: Controvérsias (90): Guerra colonial: os Garcez que (nunca) existiram (Belarmino Sardinha)

1. Mail de hoje, do Belarmino Sardinha (que, para quem não sabe,  trabalhou na Sociedade Portuguesa de Autores, instituição onde se presume tenha conhecido o Mário Cláudio):
 
Carlos,
Envio-te este texto por achar grande demais para comentário, se não for esse o entendimento dos editores, faz-me o favor de o remeteres para os comentários ou pura e simplesmente ignorá-lo.

Um abraço,
BSardinha



2. O ESCRITO QUE NÃO QUERIA TER ESCRITO
 

por Belarmino Sardinha

Vi no blogue, li e ponderei a leitura do belo texto apresentado por um amigo do escritor Mário Cláudio (*) e assinado por este, e é sobre esse texto que quero pronunciar-me.

Tenho pelo escritor Mário Cláudio uma forte admiração e reconheço-lhe a importância na vida de todos nós, trazida pela arte da palavra escrita ou dita através das representações teatrais das peças de que é autor.

Tenho pela pessoa de Rui Barbot Costa o respeito e admiração do ser humano que sempre me pareceu existir na pessoa com quem falei, poucas vezes, mas as suficientes para me aperceber da pessoa que tinha na minha frente. Nunca abordámos o serviço militar obrigatório ou a guerra, desconhecia mesmo que tivesse estado na Guiné.

Porém, o facto de o admirar enquanto escritor e ser humano, leva-me a não deixar passar a sua narrativa (de ficção), não despida de um sentimento generalizado de acontecimentos praticados, ou mandados praticar por um hipotético militar, não só por achar que não corresponde inteiramente à verdade -estando eu enganado e sendo real a sua dimensão carecem de uma melhor fundamentação-, mas por nos tornarem a todos indirectamente culpados.

Vi fotografias publicitadas pelo regime, tinha eu 11 ou 12 anos, onde as coisas aconteciam de forma generalizada mas em sentido contrário. Eram fotografias de interesse do regime para levarem à indignação e possibilitarem alimentar a guerra durante os anos que se seguiram, mas diziam respeito apenas e só a Angola. Não vi fotografias dessas vindas de Moçambique ou Guiné, antes ou durante os anos de guerra nestes locais.

Temos no blogue o relato de um ex-militar que serviu na Guiné, mas viu matarem-lhe um irmão deficiente e o pai. Voltamos a falar de Angola.

Existem fotografias com cabeças cortadas e espetadas em paus, tiradas por um ex-militar fotógrafo, em Angola, estão publicadas em livro e foram alvo de um artigo de imprensa.

O contrário também aconteceu, é certo, em menor número se não mesmo pontual ou selectivamente, mas uma vez mais em Angola. Embora não possa afirmar não ter havido, não conheço nenhuma referência a Moçambique ou Guiné, com excepção de um texto publicado no blogue onde foi descrito a morte dos guias. Não pondo em duvida, ninguém mais se pronunciou ou corroborou esta situação.

Estou em crer que o texto de ficção do escritor Mário Cláudio mais não pretende que alertar e a salientar os excessos que acontecem em qualquer guerra, quando o descontrole emocional e humano ressaltam em situações nem sempre possíveis de controlar, não quero acreditar que está a dar relevância a actos condenáveis cometidos por pessoas de má índole, não só porque é dar-lhes uma importância que não merecem como, uma vez mais, não foram/são, felizmente, a generalidade.

Não podemos ignorar que alimentámos uma ou três guerras durante 13 anos e que estas situações aconteceram nos anos iniciais. Após isso, pugnámos por um princípio generalizado de respeito, se é que existe respeito quando se prende, interroga, tortura e humilha fruto da guerra. Este aspecto dava para muitas outras extrapolações mesmo sem guerra.

Acredito que a narrativa ficcionada do escritor Mário Cláudio em nada faz eco com aqueles que, sem qualquer vivência ou conhecimento de causa não se coíbem de se pronunciarem apelidando de assassinos todos os que foram para a guerra cujo objectivo era só o de matarem e cortarem as cabeças aos pretos.

É bom separarmos as águas. O texto apresentado a frio, sem um conhecimento de quem o escreveu, a razão porque o escreveu ou o tipo de obra a que se destina pode levar a interpretações desajustadas.

Não me compete, nem é esse o meu propósito, fazer a defesa do autor que dela não necessita para nada, mas o meu conhecimento da pessoa custa-me compará-lo a um qualquer político de vão de escada em angariação de votos para uma qualquer eleição, muito mais quando ele próprio, em Bissau ou em outro qualquer lugar da Guiné fez também parte da guerra.


Este é mesmo o escrito que não queria ter escrito, mas de acordo com as disposições e interesses do blogue "Luís Graça e Camaradas da Guiné", devemos contar as nossas vivências e dar a nossa opinião, para memória futura, deixando aos historiadores a recolha do que interessa efectivamente para que possam dar-lhe forma, corpo e vida.

Um abraço
Belarmino Sardinha


[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.] (**)
___________________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de  4 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6672: Para o livro de ouro do Capitão Garcez, um inédito de Mário Cláudio

(...) Chega-me a mensagem de um que andou com o Capitão Garcez nas lutas africanas, e transcrevo dele este bocado, “Há muitíssima confusão, o que favoreceu o mito. Vamos pensar. Mas eu não pretendo branquear-lhe a memória, muita atenção, o tipo era um homicida que descobriu, na guerra colonial, a sua coutada, e que se realizou na tortura, no massacre e na matança. A prova está em que nenhum de nós confraternizava com ele, e havia um como que acordo tácito, entre a malta, nesse sentido. Estou a avistá-lo, ainda, sempre isolado, absorvido nas bolinhas de fumo, que atirava para o ar, com aquele rosto de querubim, mas que, se analisado à lupa, apresentava-se destituído de qualquer sentimento. Por que haveria eu de o desculpar? Mas o que ninguém negará é que as cabeçorras dos pretos, espetadas nos paus, a bordejar a picada, funcionavam como um truque da psico, para demonstrar aos rebeldes, convencidos, pelas igrejas evangélicas, de que Deus os conservava invulneráveis às balas, que não beneficiavam do dom da imortalidade e que não eram menos mortais do que nós. Se isto não escusa as atrocidades, é natural que lhes dê, no entanto, uma certa razão, e uma razão patriótica, que constituia aquilo que, na circunstância, se desejava do sujeito. Quem se adiantaria, se não o Garcez, para executar o trabalho sujo, desempenhado sem luvas, e a que não se furtava, por o considerar imprescindível, talvez, e não tanto porque lhe apetecesse?” (...)

Guiné 63/74 - P6676: V Convívio da Tabanca Grande (15): Caras Novas (Parte IV ): O JERO, aquele rapaz de Alcobaça e de Binta, lembram-se dele ? (Luís Graça)


From: Nhabijoes | 4 de Julho de 2010 | 2 visualizações


Monte Real, Palace Hotel, 26 de Junho de 2010. V Encontro Nacional do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. O Jero, ao lado do Joaquim Mexia Alves, faz entrega ao Luís Graça de uma lembrança do evento: uma bonita peça de cristal de Alcobaça, sua terra querida... Dizeres: V Convívio da Tabanca Grande, Mapa da Guiné-Bissau, Luís Graça. Neste vídeo, segundo eu percebo (há um grande ruído de fundo), ele confessa que o nosso blogue, liderado discretamente por mim, mudou a sua vida... Só espero que para melhor. A confissão, vinda de um amigo, tem que passar pelo sistema de triagem... A lembrança (mesmo que o gravador tenha trocado a Tabanca Grande por Palanca Grande) merece as minhas mais enternecidas palavras de agradecimento e reconhecimento... (LG)


Vídeo (1' 25''): Luís Graça(2010). Alojado em You Tube > Nhabijoes



O JERO ou José Eduardo Oliveira é um dos mais produtivos membros do nosso blogue (já com mais de 60 referências ou marcadores), para o qual entrou há menos de um ano...


Natural de Alcobaça, bancário reformado, director adjunto do jornal local, ofereceu-se de imediato para organizar o V Encontro Nacional da Tabanca Grande. Acabámos por optar por Monte Real, e associá-lo à Comissão Organizadora (de que fizeram parte, além dele, o Carlos Vinhal, o Joaquim Mexia Alves, o Miguel Pessoa e o Belarmino Sardinha).


O JERO é daqueles camaradas que, uma vez apresentados, se tornam,  ao fim de cinco minutos, velhos conhecidos, que a gente se apressa a pôr na lista dos amigos favoritos... Ele é a gentileza em pessoa, uma doçura como os licores e doces da abadia à sombra da qual nasceu e cresceu a sua terra. E tem uma qualidade que é rara entre os primatas: pratica a amizade, é gentil, é prestável, é leal, sem quaisquer pretensões de protagonismo, sem intriga, lisonja ou má-língua... 


Cara nova ? Sim, é a primeira vez que ele vem a um Encontro Nacional da Tabanca Grande. Razão por que merece este destaque.




Dedicatória do então Cap Inf Tomé Pinto, comandante da CCAÇ 675, oferecendo ao autor (Fur Mil Enf Oliveira) o livro que ele (JERO) escreveu e o capitão editou, em 1965... Uma edição limitada, rodeada de cautelas próprias da época: afinal, tratava-se de um diário com material classificado e que, como tal, não podia ser manuseado por qualquer pessoa...  A Nação estava em guerra, mas era bom que pouco ou quase transpirasse para a rua... Havia, na época, o entendimento de que a segurança (não apenas nacional, mas dos homens que combatiam em África) estava em primeiro lugar... Terá sido uma tragédia, para este país, a conspiração do silêncio à volta de um guerra que a censura (política e militar) só muito tardiamente chegasse a ser posta na agenda política e social dos portugueses... A palavra de ordem era, então, "A Pátria Não Se Discute" (Salazar).








Capa (original) do livro, "Comp CCAÇ 675, Nunca Cederá", da autoria do JERO. Edição do Comandante da Companhia, Tomé Pinto, em 1965 (hoje, Ten Gen Ref; julgo que foi também padrinho de casamento do JERO e da 


Exemplar nº 10. Dedicatória, manuscrita, do autor, Fur Mil Enf José Eduardo Oliveira: "*Para os meus queridos Pais, Avó e Irmã: A história de um ano de Guiné que eu não vos contei nas minhas cartas.  Vosso, José Eduardo. Binta, 1 Out 65".







Imagens digitalizadas por L.G., a partir de um exemplar, original, gentilmente cedido por (e já devolvido, em Monte Real, no dia 26 de Junho passado,  a) o JERO, aquela jóia de moço de Alcobaça e de Farim, que insiste em tratar-me, para grande constrangimento meu, por comandante... Por fim, publicidade é devida à marca LineCrystal, da empresa Alcoplas, Lda, com sede em Alcobaça. 


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 Nota de L. G.:


  3 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6670: V Convívio da Tabanca Grande (12): Caras novas (Parte III): O João Barge, da CCAÇ 2317, que foi meu actor em A Cantora Careca, com o Rui Barbot/Mário Claúdio... (Carlos Nery)

Guiné 63/74 – P6675: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (XI): O escritor, o teatrólogo e o atrevido escrevinhador

1. Mensagem de Vasco da Gama* (ex-Cap Mil da CCAV 8351, Os Tigres de Cumbijã, Cumbijã, 1972/74) , com data de 5 de Julho de 2010:

Comecei por escrever um comentário ao poste do Nery e fui andando, andando até ao anexo que publicarão se assim o entenderem....

Um abraço amigo.
Vasco da Gama


BANALIDADES DA FOZ DO MONDEGO - XI

O ESCRITOR, O TEATRÓLOGO E O ATREVIDO ESCREVINHADOR


Camaradas e Amigos,
Por motivos que me ultrapassam, mas com quase toda a certeza ligados à minha nabice informática, não consegui colocar um comentário ao texto referenciado no P6672**, publicado pelo nosso camarada Carlos Nery, penso que a pedido do Mário Cláudio, conceituado escritor com uma vastíssima obra da qual possuímos, a minha mulher e eu, alguns livros. Não entendo a razão porque não foi o próprio a enviá-lo, pois parece-me que é membro da nossa Tabanca Grande, faltando-lhe apenas o envio das fotografias actuais para que a sua entrada seja devidamente “formalizada”.

Confesso a minha iliteracia “Claudiana,” pois ainda não li qualquer obra de um escritor premiado com o prémio Fernando Pessoa e com o prémio Vergílio Ferreira, entre outros, o que constitui uma “falha” que prometo colmatar se a minha cabecinha, cada vez menos pensadora, não me trair nessa intenção.

Como grande parte dos meus camaradas sabe sou pessoa ligada ao teatro amador no meu querido Grupo Caras Direitas, fundado há mais de uma centena de anos, onde colaboro na escolha, encenação e produção de algumas peças que vamos apresentando aqui e acolá, tendo neste momento prontas a apresentar em qualquer lado “A Gota de Mel”, de Leon Chancerel, “Perguntem aos Vossos Gatos e aos Vossos Cães” do Manuel António Pina e ainda uma peça mais ligeira, a única das três que vai dando escasso retorno, chamada “Só Cenas”, que é um conjunto de vários quadros mais ou menos revisteiros, mas que tocam alguns assuntos como a pedofilia, a má governação, crítica social local, misturados com danças e canções mais ou menos popularuchas.

Vem isto a propósito da peça “Cantora Careca” que terá sido levada à cena em Bissau…, em tempo de guerra. Como sabem a Cantora Careca do Ionesco enquadra-se naquilo que se designa por anti-teatro ou teatro do absurdo.

Muito resumidamente o texto mostra como um casal “desconhecido” após dialogar de uma forma não muito fácil de ser entendida por todo o público, chega à conclusão que mora na mesma rua, habita na mesma casa e dorme, pasme-se, na mesma cama.

Em Bissau, em tempo de guerra, demonstra alguma coragem levá-la à cena, a não ser que tivesse sido apresentada para a elite militar e suas esposas…

Torci pois o meu nariz ao ver estas notas, que no entanto me despertaram a curiosidade para ler e reler o texto do Mário Cláudio.

Como disse, li e reli e queridos camaradas sem qualquer pretensão em armar-me em crítico literário, a minha senilidade ainda não chegou aí, gostei do texto são e escorreito, mas perdoem-me o atrevimento, não tem rigorosamente nada a ver com o nosso Blogue, em minha opinião, obviamente.

O texto é um panfleto contra a presença da tropa na Guiné e é apenas e só pura literatura.

O Blogue diz respeito ao somatório de opiniões de combatentes que expressam as suas experiências nessa guerra colonial, onde alguns se bateram por convicção e outros foram obrigados a combater no mato em condições infra humanas, que os senhores do ar condicionado de Bissau ou de outras metrópoles, milicianos ou profissionais, jamais poderão imaginar.

No meu Blogue interessam-me os escritos dos camaradas da Guiné e as suas experiências dolorosas, contadas por gente com estatuto de escritor, ou por outros que mal sabem escrever.

Literatura e opinião política, leio-a noutro lado.

Já agora e relativamente ao texto parece-me que ficar-se apenas pelo “mata” é curto; na guerra também se morre. Não aceito estes unilateralismos, para não dizer que os abomino.

A guerra não é só o que está descrito no texto; não é só o mata e se erros houve foram de parte a parte.

Fui andando, andando e agora, meus pacientes editores, publiquem ou não.

Do meu Buarcos lindo, passada que foi a meia noite e com um cheirinho a maresia a invadir o meu “castelo”, envio um abraço fraterno para todos os meus camarigos.

Vasco Augusto Rodrigues da Gama
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 16 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6399: Parabéns a você (114): Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAÇ 8351, Cumbijã, 1972/74 (Carlos Vinhal / Belarmino Sardinha / Giselda e Miguel Pessoa / JERO / Manuel Maia)

(**) Vd. poste de 4 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6672: Para o livro de ouro do Capitão Garcez, um inédito de Mário Cláudio

Vd. último poste da série de 5 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 – P6321: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (X): As minhas (in)Congruências ou as minhas (in)Coerências?

Guiné 63/74 - P6674: O Nosso Livro de Visitas (91): Hélio Matias, ex-Alf Mil Cav, comandante do Pel Rec Daimler 805 (Nova Lamego, 1964/66), que conheceu o Triângulo do Boé (José Martins)

1. Recebemos, através do nosso camarada e colaborador José Martins [, foto actual à esquerda], a seguinte mensagem, assinada por Hélio Matias.

Boa tarde.

Segui com interesse o que escreveu sobre os intervenientes e histórias da zona do Gabu.

Fui o Alferes Miliciano que comandou o Pelotão de Reconhecimento Daimler 805, e que se deslocou para Nova Lamego com o Batalhão de Caçadores 512, transitando depois para o de Cavalaria 705 e finalmente o de Caçadores 1856.

Atravessámos o Cheche inúmeras vezes, apoiámos todo o sector de Madina do Boé (penso ter sido dos últimos a lá ir somente com o comandante do Batalhão no seu jeep e motorista), percorremos Béli, estivemos em Piche com a 727, fomos a Canquelifá e Buruntuma em situações complicadas, etc.

Se achar de interesse, poderei fazer-lhe chegar um texto mais pormenorizado e melhor elaborado do que este que fiz ao correr da memória, até porque tenho documentação escrita e fotográfica.

Cumprimentos e bem-haja.

Hélio Matias.


2. Resposta do José Martins:

Data: 15 de Maio de 2010
Assunto: Re: Madina do Boé

Caro Hélio Matias

Agradeço as palavras amáveis acerca do meu trabalho sobre o Triângulo do Boé. Foi durante a elaboração do mesmo que tomei conhecimento de que tinha sido a antecessora da minha unidade - a 3ª Companhia de Caçadores Indígenas, posteriormente Companhia de Caçadores nº 5 - que instalou os aquartelamentos de Madina do Boé e Beli.

Eu próprio estive na evecuação das mesmas,  em Junho de 68 e Fevereiro de 69.

Constato, em breve pesquisa, que se trata de um combatente que esteve na Guiné entre Outubro de 64 e Agosto de 66, depois de consttituir unidade em Cavalaria 6, no Porto.

Quanto à oferta de colocar à minha disposição material escrito e fotografico, é uma honra. Mas proponho o seguinte:

Existe o blogueforanadaevaotres.bloguespot.com, que agrega mais de 400 antigos combatentes da Guiné que, dentro das possibilidades e saber de cada um, vai escrevendo os seus textos que, ao serem fixados e colocados na Internet,  constituirão um documento de inegável valor para as gerações vindouras. É de notar que alguns académicos já beberam, no blogue, as informações de que necessitavam. Assim proponho que adira ao blogue e, na primeira pessoa, possa transmitir a todos nós as experiências e vivências que troxemos da Guiné, para mim considerada como uma segunda pátria.

A Tabanca Grande, assim também designada, reune-se em convívio uma vez por ano (esta ano [foi] no dia 26 de Junho, em Monte Real), além de já haver outras, espalhadas por várias regiões do país, que se vão emcontrando para um simples café ou para uma confraternização à volta da mesa, como portugueses que somos.

Fico a guardar a entrada de mais um camarada da Guiné na Tabanca Grande.

Este mail segue com conhecimento aos editores do blogue.

Um fraterno abraço e até breve, já que a linha está aberta.


José Martins

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Nota de L.G.:

Vd. último poste desta série > 4 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6530: O Nosso Livro de Visitas (90): O Alenquer, condutor, Pel Rec Fox 42 (Aldeia Formosa, Guileje, Ganturé, Sangonhá, Cacoca, 1962/64)

domingo, 4 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6673: Controvérsias (89): Ainda e sempre Guileje, Gadamael, Guidaje... "A vida é curta, a arte é longa, a ocasião fugitiva, a experiência enganadora, o juizo difícil",como diria o Hipócrates (Aforismos, Séc. IV/V a.C.) (Luís Paiva)



1. Comentário, com data de 1 do corrente, do Luís Paiva ao poste P3689, de 3 de Janeiro de 2009 (*):

Sobre "A Retirada de Guileje", de que fui um dos vários protagonistas, não valerá a pena - penso eu- reiterar o que já antes afirmei em publicação anterior.

O livro com o mesmo título, da autoria do Cor Alexandre Coutinho e Lima, com toda a documentação que o autor lhe anexou, retrata fielmente no essencial os acontecimentos ocorridos no que foi um dos teatros de guerra no final do conflito colonial na Guiné.

É minha firme convicção que ao então Major Coutinho e Lima, Comandante do COP 5, os que nos encontrávamos estacionados no aquartelamento de Guileje, ficámos a dever-lhe a vida. Não me parece razoável comparar as situações de Guileje com Guidaje quanto mais não seja porque a este último aquartelamento foi prestado um apoio militar por forças especiais de que Guileje - por motivos que não importa discutir aqui e agora - não usufruíu.

Mesmo o apoio aéreo a Guileje passou a ser reduzido e pouco eficaz após o abate do Fiat ocorrido naquela zona algum tempo antes. Recordo que eu vivi todos esses acontecimentos dado ali ter permanecido com duas Companhias, inicialmente até finais de 1972 afecto à CCAÇ 3477 (G
ringos de Guileje) e posteriormente com a CCAV 8350 (Piratas de Guileje).

A troca de ideias é salutar desde que se faça com o respeito mútuo; obviamente que se admite - como agora "soe dizer-se" - o contraditório, mas - isso é muito importante, penso eu - que o assunto seja debatido acaloradamente por quem não viveu no terreno os acontecimentos, pode tornar-se insultuoso para os que ali viveram dias tão dramáticos.

No que respeita a Gadamael a situação foi ainda mais trágica porquanto aquele aquartelamento não dispunha das infra-estruturas militares de Guileje, designadamente abrigos subterrâneos, e dos acontecimentos que se seguiram (e que não era preciso ser-se estratego militar para adivinhar) advieram várias baixas de camaradas pelo que uma discussão não fundamentada representa uma profunda falta de respeito pelas vítimas que ali tombaram.

O assunto parece continuar a envolver muita controvérsia, parte significativa da mesma desencadeada por quem não viveu directamente os acontecimentos pelo que seria desejável alguma contenção e decoro, e não só pelas vítimas já referidas como pelos muitos intervenientes que já não se encontram entre nós por terem falecido ao longo dos últimos anos.

A vida é demasiado curta pelo que a devemos aproveitar para uma sã concórdia pois à medida que o tempo vai decorrendo a nossa inexorável condição humana conduzir-nos-á ao final dos nossos dias. Saudações cordiais a todos os leitores deste texto.

Luís Paiva
Ex-Fur Mil Art.ª, 15.º Pel Art
(Guileje e Gadamael, 1972/73) 


Guiné 63/74 - P6672: Para o livro de ouro do Capitão Garcez, um inédito de Mário Cláudio


Guiné > Zona Leste >  Sector L1   > Bambadinca > CCS/ BART 2917 (1970/72) > Jovem mãe fula, com o seu filho. Não há qualquer relação, espácio-temporal,  entre a foto, do Benjamim Durães, e o texto (que é de ficção literária) a seguir reproduzido, da autoria de um dos grandes escritores portugueses da actualidade, Mário Cláudio, Prémio Pessoa 2004, e um dos recentes membros do nosso blogue. 
Foto:  ©  Benjamim Durães (2010). Direitos reservados


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > Em bicha-de-pirilau... A solidão dos combatentes, na hora mortal da madrugada... Um imagem, recuperada de um "slide" do meu amigo e camarada Arlindo Roda, editada (e reeditada) por mim (com a devida vénia...).
 

 
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > ... E a solidariedade dos combatentes... Dois soldados do 3º Grupo de Combate, do Alf Mil Abel Rodrigues, aparam o 1º Cabo Carlos Alberto Alves Galvão, metropolitano (vive hoje na Covilhã: Um Alfa Bravo, Camarada!), comandante da 1ª secção, o homem que cometeu a proeza de ser ferido duas vezes o decurso da mesma operação (Op Boga Destemida, Fevereiro de 1970). Estes dois camaradas guineneenses podem ser alguns dos seguintes que compunham a 1ª secção: Soldado Arvorado 82108769 Totala Baldé (Fula); Sold 82108569 Sambel Baldé (F); Sold 82108969 Mauro Baldé (Ap LGFog 8,9) (F); Sold 82110369 Jamalu Baldé (Mun LGFog 8,9) (F); Sold 82109169 Malan Baldé (F); Sold 82109569 Iéro Jau (Ap Dilagrama) (F); Sold 82110969 Samba Baldé (Ap Metr Lig HK 21) (F); Sold 82109969 Malan Nanqui (Mandinga). "Slide" do Fur Mil Arlindo T. Roda, comandante da 2ª secção.  Imagem editada por L.G.

Fotos: © Arlindo T. Roda  (2010). Direitos reservados



Para o Livro de Ouro do Capitão Garcez

 por  Mário Cláudio [, foto à direita] (*)

Convoco o banalíssimo rosto do Capitão Garcez, emergido da noite em que se me deparou. Um esfregão parece ter passado por ele, reduzindo-o à suprema inexpressão, despido do fulgor da violência que lhe imputam. Ali está, solitariamente sentado a uma mesa do Clube Militar, atento ao zumbido das ventoinhas do tecto, e ao súbito remexer dos ramos das bananeiras que anuncia um desses tornados da estação das chuvas. À sua frente a minha presunção de virtual escritor implanta uma grande bandeja, repleta de cabeças de guerrilheiros, cortadas numa tarde de assalto a um aldeamento por entre a aguardente emborcada, e o suor empapante dos camuflados. E um outro texto descerra-se diante de mim, já não o que o tenebroso oficial pressupõe, mas o que se estampa na cara dos degolados, contemplando num último lampejo do medo, ou do ódio, o embondeiro distante, a cuja sombra as mulheres se abrigam na amamentação dos filhos.

O bancário aposentado tira os óculos que ficam pendentes de um cordão, e confronta-me como se não quisesse ver-me com demasiada nitidez. “Não creio que tenha muito para lhe contar”, declara ele, e justifica-se, “já lá vão bastantes anos, e aquilo que nesse tempo nos parecia interessantíssimo acabou por não valer um caracol.” Encontramo-nos na salinha sobreaquecida, e a luz do candeeiro de pé reflecte-se no vidro da janela, compensando pelo halo de intimidade que desenha o desolado cinzento do Inverno lá de fora. “Afinal vivíamos praticamente em família”, discorre ele, e eu lanço uma mirada às prateleiras à minha direita, atafulhadas de edições do Círculo de Leitores, inseridas por detrás de uma tralha de lembranças de viagem, dominadas pelas três estatuetas africanas que ocupam o plano mais de cima. O meu informador abre uma gaveta na parte de baixo da estante, retira uma caixa de cartão arrombada, destapa-a com delicadeza, e vasculha na desordem de fotografias de várias dimensões. Descobre a que procura, e entrega-ma com um “aqui tem” apressado. Lá se distingue ele, facilmente identificável pelas orelhas de abano, de calções de caqui, entre dois camaradas, também de barba por fazer, e formando um grupo ligeiramente apartado do indígena bronco, de ombros descaídos, que espeta o olhar na câmara com a vigilância de um cão fiel. “O que está à minha esquerda”, explica num sussurro, “é o Garcez.” Solta uma risadinha como se lhe tivesse sobrevindo a recordação de um episódio pícaro, e remata, “O Garcez era um ponto, não havia outro igual.”


O percurso do Capitão Garcez a custo se acha nesses dilapidados calhamaços, inventariadores dos sucessos dos que serviram nas forças armadas, e que terminaram os seus dias a pedir esmola, a desempenhar o cargo de porteiro de algum condomínio fechado, ou a projectar o futuro na base da jantarada que anualmente reúne o pessoal decrépito da sua unidade. E os jornais do seu tempo, tanta vez apodrecendo no bolor de um sótão de província, permanecem inatingíveis pela falta de paciência de quem pretende estudar os passos dos bravos em desgraça. Terão porventura circulado aerogramas, a descrever-lhe as impetuosas proezas, subscritas pela admiração inescondível, e não raro pela calada repugnância, mas bem sabemos que destino levariam esses documentos, ora despachados para o contentor com o lixo reunido antes de se mudar para a casa nova, ora incinerados por um antigo soldado que nas vésperas do casamento resolveu com a noiva desfazer-se da correspondência de namoro. O Capitão Garcez vai assim perdendo o tal rosto, aquele mesmo que se esparrinhou com o sangue da jugular no instante da catanada, imobilizando-se a seguir na massa fosca das noitadas de whisky do remoto destacamento no mato.

Continuo a observar a foto dos idos da campanha, não tanto porque dela espere obter mais do que aquilo que deduzi já, o apagado facies do Capitão Garcez, alferes na altura, debaixo do cabelo liso e ruço claro, e na palidez que o distingue dos companheiros. Vou meditando no que o meu informador depreende do jogo fisionómico que lhe proponho, tão relevante para ele como o dele para mim, e de idêntica forma à mercê de suspeitas e traições. Apercebe-se da curiosidade com que lhe persigo o desvio da vista, e da minúcia com que lhe inventario os bibelots expostos na biblioteca, babushkas alinhadas em progressão aritmética, e miniaturas de teares e caldeiras, óbvios mementos das peregrinações a Leste, promovidas pelo partido da esquerda bem-comportada de que foi militante. E não deixará de reparar ainda no modo como lhe espio o gesto de selecção dos clichés da caixinha, futurando que será meu objectivo, e a mais do que a simples escrita de uma história, comprometê-lo por desmandos que, não transcendendo todavia a sua inicial responsabilidade, lhe pesam hoje como infames nas madrugadas de insónia. Ao devolver-lhe o retrato amachucado do quarteto com uma palhota atrás, terá porventura entendido o meu sorriso, não como aceno cortês de gratidão, mas como cínica ameaça, resultante do facto de conhecer eu muita, muita coisa que ele preferiria manter em silêncio. Desce a escuridão para além da vidraça, e o clarão da lâmpada denuncia com acrescida clareza quanto guardamos, ele e eu, nas algibeiras mais secretas das intenções que nos movem.

A peça televisiva, sobrevivente num preto e branco que as décadas foram zurzindo, oferece a deslocação lenta, um pouco rígida, do Capitão Garcez, subindo os degraus da tribuna no Terreiro do Paço, erguida para as comemorações do 10 de Junho. Transporta o rosto anódino de sempre, indeciso entre a melancolia e a austeridade, o que redunda na absoluta ausência de emoções. Avança para o Presidente do Conselho que lhe impõe a Torre e Espada, e que o abraça com a finura sinuosa de quem restringiu a paixão a um cálice, um cálice apenas, de porto tawny. Soletra-se entretanto o que se adivinha, a dor das duas viúvas que irão arrecadar a condecoração a título póstumo, o espanto do menino órfão no seu fatinho de piqué, tudo o que a comissão dos festejos imperativamente recomendou. O choro ostensivo que se proibiu, e que se crispa em engolidos soluços, esvai-se na brisa que sopra do Tejo, e que faz esvoaçar o véu de luto do duo das inconsoláveis esposas, e o vestido estampado das senhoras que assistem à cerimónia, e que ficarão lindamente no banquete que fecha o ritual. O nosso Capitão Garcez, e leia-se isto com um misto de pudor e asco, regressa à fileira donde saiu, cravando no vazio do céu azul a vista com que abarcou páginas e páginas de uma crónica heróica, as cabeças em espeques que lhe engalanavam o jeep, os ventres das grávidas rasgados à baioneta, e donde desliza no capim o feto banhado em sangue borbulhante, e o crânio do petiz que, ao esborrachar-se num poste, produziu o ruído das carochas esmagadas pela bota.

No rosto do Capitão Garcez aprendo a alvura que se situa para além da morte, a dos dentes das nativas que vertem a cólera das lágrimas no corpo estraçalhado das crias, a do leite que dolorosamente se retém nas suas mamas, a da esclerótica dos cadáveres que não baixam por completo as pálpebras, a da cal com que se pinta a parede para que não dure na morança o espírito do executado, a do pânico do régulo que cospe em Portugal a cegueira a que o reduziram com o sol a pino, a do esperma do terrorista enforcado que não se veda no meio minuto do estertor, a do manto da Senhora de Fátima a que se abrigam as virgens cristianizadas, a do lenço embainhado do menino de sua mãe que não encarna a coragem de cortar a garganta da impúbere, a dos cornos do boi que alui para alimentar com a sua carne os homens do pelotão, a da manhã de canícula que enrola os defuntos num sudário tão delicado como o linho, a do sabugo das unhas arrancadas ao capturado que se recusa a falar, a do cogumelo de espuma nos beiços do rapaz manietado que se puxa do poço, a do bando de garças que levanta voo a cada rebentamento da granada inserida nas calças de um pobre diabo, a da máscara do feiticeiro que conclui a pantomima, a dos lírios calcados pela sola do Capitão Garcez.
Se o oficial agraciado, tendo volvido ao seu lugar, me avistasse então, conforme me posiciono agora, acomodado defronte do televisor, talvez traduzisse em mim o nojo que lhe suscitaria o seguinte, “E que tem o marmanjo com os actos que pratiquei, ou não pratiquei, estávamos em guerra, na guerra mata-se, e quem poderá acusar-me de celebrar a morte, a fim de a assumir em pleno, com insígnias que eu escolhia, um colar de orelhas enfiadas num arame, postas à volta do pescoço, como se desembarcasse para umas férias no Havai, um bracelete de dedos calejados, colhidos ainda em vida dos anjinhos que despachara, e que me dera na moina enviar à última puta que fodera em Lisboa? Nenhuma destas alegrias curava a tristeza que me assediava, e que provinha de compreender que não existe no Mundo festarola que não seja a que inventamos, e em que ninguém acredita, e deitava-me a dormir, e antes de tombar no sono contava os dentes que se tinham soltado, apegados a lascas de gengiva, do maxilar que eu estourara com a coronha da G-3, ou procurava reproduzir em surdina, muito em surdina, os berros da gaja agarrada ao miúdo, o que tem você mesmo com isso, seu cobardola de merda?”

Na alma do Capitão Garcez colho o vermelho que explode no paroxismo da agonia, o do fio que escorre do buraco da bala na nuca, o do globo ocular que o sabre extirpa como uma ostra, o da papa em que se converte o detido que se ata a uma mina, o dos restos na bocarra do morteiro a que o chefe de posto é amarrado, o da diarreia do velhote que arrastam pelo chão, o da massa dos pulmões à mostra pelo lanho que rasga o peito do comandante deles, o do inchaço das partes que se penduram numa cana, o do vómito do recém-nascido que se arremessa contra o tronco da acácia, o do vinho acre que se bebe na volta à camarata, o da bandeira que se iça para presidir à farra, o da glória dos heróis que sepultam a honra debaixo do lodo, debaixo da lama, e debaixo da trampa.

Chega-me a mensagem de um que andou com o Capitão Garcez nas lutas africanas, e transcrevo dele este bocado, “Há muitíssima confusão, o que favoreceu o mito. Vamos pensar. Mas eu não pretendo branquear-lhe a memória, muita atenção, o tipo era um homicida que descobriu, na guerra colonial, a sua coutada, e que se realizou na tortura, no massacre e na matança. A prova está em que nenhum de nós confraternizava com ele, e havia um como que acordo tácito, entre a malta, nesse sentido. Estou a avistá-lo, ainda, sempre isolado, absorvido nas bolinhas de fumo, que atirava para o ar, com aquele rosto de querubim, mas que, se analisado à lupa, apresentava-se destituído de qualquer sentimento. Por que haveria eu de o desculpar? Mas o que ninguém negará é que as cabeçorras dos pretos, espetadas nos paus, a bordejar a picada, funcionavam como um truque da psico, para demonstrar aos rebeldes, convencidos, pelas igrejas evangélicas, de que Deus os conservava invulneráveis às balas, que não beneficiavam do dom da imortalidade e que não eram menos mortais do que nós. Se isto não escusa as atrocidades, é natural que lhes dê, no entanto, uma certa razão, e uma razão patriótica, que constituia aquilo que, na circunstância, se desejava do sujeito. Quem se adiantaria, se não o Garcez, para executar o trabalho sujo, desempenhado sem luvas, e a que não se furtava, por o considerar imprescindível, talvez, e não tanto porque lhe apetecesse?”

Este rosto que se fixa no meu, devolvido pelo espelho quadrangular que veio da casa dos avós, foi sendo devastado ao longo das quase cinco décadas. Junto a mim pousa a grande jarra de gerberas, arauta da Primavera que desponta, a projectar aquele macerado amarelo, tão característico dos que retornam dos trópicos. A verdade é que, há muito, muito tempo, me não assalta o organismo de pretérito miliciano essa coloração dos surtos palúdicos, precipitando-me em convulsos pesadelos, atrelados a outros experimentados já. Serenamente afastaram-se de mim aqueles transes inexplicáveis, vividos por um soldado sonâmbulo que devagar conduz o Unimog através da povoação em labaredas, cruzada pelo balido das cabras espavoridas, e pelo guincho das fêmeas e crianças que ardem numa habitação esbarrondada. Apagado pela ventania que espanta o incêndio, o rosto do Capitão cristaliza em mim numa neutralidade de cera, de órbitas vazadas, tão frágil e tão efémero como a paisagem que o circunda. E só a minha cara permanece, e nela a intrigada movimentação dos lábios magnetizados pela figura no espelho suspenso perante mim, balbuciando no extremo desespero, “Como te chamas? Como te chamas? Maltez? Calapez? Montez? Garcez! É isso, é isso, Garcez!”

O homem continua acolá, de pés virados para o lume da lareira. Amenizou-se-lhe o clima, respirado pelos netos traquinas que gosta de instalar sobre os joelhos, e pelo gato angorá que langorosamente curva o dorso sob as carícias do dono. E o noticiário da TV relata uma toada de guerras exóticas, empreendidas por mercenários que ganham o bastante para edificar a vivenda dos seus sonhos, descrita à namorada em cartas onde se alude ao cio arrasante, devorador das entranhas. O vetusto Capitão Garcez, admiravelmente robusto para os seus quase setenta, levanta-se da poltrona, e as imensas asas negras, rompendo-lhe das espáduas, batem numa vibração, desplumam-se na treva, e desfazem-se em pó.

Texto: © Mário Cláudio (2010). Direitos reservados

[Foto de Mário Claúdio. Autor: Gaspar de Jesus. Digitalização: Carlos Nery. Fonte:  livro de contos, autografado, oferta do autor, "Itinerários", 1993... Com a devida vénia ao autor e editor...]
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Notas de L.G.:

(*) Mário Cláudio é o pseudónimo literário de Rui Manuel Pinto Barbot Costa, natural do Porto, que esteve na Guiné, como Alferes Miliciano, colocado na Secção de Justiça do Quartel General (1968/70), juntamente o hoje conhecido constitucionalista Gomes Canotilho. Foi nessa altura que conheceu o Carlos Nery (**) e o João Bagre, com quem fez a peça de teatro A Cantora Careca, de Ionesco.

(**) Foi o Carlos Nery que nos enviou, em 18 de Junho, este texto (que se presume seja inédito), remetido pelo escritor Mário Cláudio, na sequência da sua entrada para a nossa Tabanca Grande (onde está registado como Mário Cláudio / Rui Barbot:

Amigos, enviei-vos ontem o primeiro texto que o Barbot me remeteu para ser colocado no blogue. Quando vos remeti o meu "Noite Longa" tive o cuidado de o converter da reprodução do papel impresso para a forma digitalizada. Não sei como isso se chama... Mas fiquei surpreendido com a facilidade como meu filho fez essa conversão. O que vocês receberam parecia ter sido "batido" aqui no teclado mas fora um programa informático quem tinha efectuado o equivalente a esse trabalho a partir de um texto impresso em papel. Confesso que nem sabia que isso já era possível... Trabalhei na Organização e Métodos do Banco de Portugal e lembro-me de, aqui há já alguns anos, ter feito uma consulta ao mercado para saber se havia algum dispositivo que fizesse tal coisa. Não havia. O meu espanto foi ver que, agora, num computador pessoal, isso se faz em minutos...

Mas tanta conversa para quê? Para dizer que, se vocês quiserem, eu me posso encarregar dessa tarefa relativamente ao "Livro de Ouro"...

Uma coisa: o Barbot, não obstante a minha insistência, não me remeteu foto sua actual (***). O homem tem mil afazeres, obrigações e prazos a cumprir, não o quero chatear muito... Temos que entendê-lo... Penso que, se isso for muito importante, é sempre possível encontrar uma foto actual.

Enviei uma foto dele na "Cantora Careca" (juntei-a eu ao material enviado). É uma foto que tenciono usar quando estiver pronto o Poste sobre essa realização teatral. Pode ser ou não usada agora. Mas como falei da sua performance teatral, na altura, pareceu-me não ser descabido essa divulgação, agora, até pelo seu ineditismo...

Abraços CNery

(***) Mail de 17 de Junho do Mário Cláudio / Rui Barbot

Meu Caro Carlos Nery, aqui segue o que lhe prometi. O que não constar dos anexos seguirá depois, ou irá ter-lhe às mãos por via postal. Grande abraço amigo do Rui Barbot.

Vd. poste de 23 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6630: Tabanca Grande (227): Rui Barbot / Mário Cláudio, ex-Alf Mil, Secção de Justiça do QG, Bissau (1968/70).