segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8673: Outras Guerras (José Ferreira da Silva) (1): O Herói de Maiombe

1. Em mensagem do dia 12 de Agosto de 2011, o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta homenagem ao um bravo da guerra colonial que lutou nas longínquas terras de Maiombe (Cabinda / Angola):


OUTRAS GUERRAS

O herói do Maiombe

Quando o Quim da Ponte engravidou uma jovem conquista, sua vizinha, de nome Belinha, não imaginava a cruz que teria que carregar pela vida fora. Com 16 anos apenas, a Belinha era efectivamente muito jovem e, ao casar, iria ficar eternamente acriançada. Ele, o Quim, de 41 anos, com o cadastro de” D. Juan de aldeia”, viu-se obrigado a aceitar para sua mulher, aquela que ele menos esperava. Valeu-lhe o apoio da sogra, sua antiga namorada, nesses primeiros anos 40, que muito os apoiou. Apesar das privações próprias deste período da II Guerra Mundial, o fruto daquele “lapso amoroso”, foi criado com todo o mimo da jovem mãe, o apego da avó, que enviuvara e a… tolerância do pai.

Para a mãe e para a avó, o Joãozinho era o” brinquedinho” mais bonito e o mais inteligente do mundo. Tinham desculpas permanentes para as suas limitações e guloseimas contínuas a premiá-lo por tudo e por nada. Para o pai, ele foi sempre um miúdo exageradamente mimado, dolente, gorducho e atrasado.

Efectivamente, o Joãozinho, além de mau aluno, tornou-se rapidamente num “menino da mamã”, convencido e mentiroso. O insucesso escolar chegava a ser justificado pela própria mãe, como “inveja da professora, perante tanta inteligência”. Ela aparecia em todo o lado para defender o menino, até durante o período do recreio escolar. Por mais que o pai Quim tentasse interferir na educação do rapaz, era logo contrariado pela família. Esta promovia-o a reizinho, enquanto entre os jovens da sua idade, o baptizavam de João Bolachinha, João Morcão, João Cagarolas, Joãozinho Morte Lenta, etc.

O tempo corria rapidamente, contrariamente à evolução do Joãozinho. Sem nunca ter trabalhado, o rapaz foi à inspecção militar, apresentando-se como “Estudante” e dando, como habilitações literárias, a frequência no 1º Ciclo do Ensino Secundário (sendo, há três anos, repetente do 2º ano).

Caído na tropa, cedo se apercebeu que por lá andavam outros morcões, mesmo entre os graduados.

Também “inchou” quando verificou que a grande parte dos militares eram analfabetos e do mundo rural.

Nesses primeiros anos de terrorismo em África, os nossos militares eram muito acarinhados pela população. Eram autênticos heróis, considerados como os continuadores das lutas patrióticas de Afonso Henriques e de Nuno Alvares Pereira. Ainda hoje tenho presentes as imagens de admiração e veneração dos primeiros militares, participantes na guerra do ultramar.

O Joãozinho tirou a recruta em Espinho e foi para Gaia, de onde seguiu para o norte de Cabinda… defender a Pátria.

O norte de Cabinda, destacava-se pela intensa mata do Maiombe, de onde se extraíam madeiras valiosas e onde viviam Gorilas. Sim, Gorilas, aqueles enormes e temíveis primatas negros, de feições quase humanas.

Cabinda está, territorialmente, desligada de Angola. Foi no Tratado de Simulambuco que a população, representada pelo chefe legal do N´Goyo, Príncipes e demais personalidades ligadas ao poder, escolheu o protectorado de Portugal (1.Fev.1885). Trata-se, afinal, do chamado Congo Português, reconhecido na Conferência de Berlim, quando também atribuíram um Congo aos Belgas (Zaire), hoje República Democrática do Congo e o outro, o de Brazaville, aos Franceses (hoje Republica do Congo). Por isso os Cabindas não se consideram angolanos. Tiveram sempre um tratamento diferente (até Bispado próprio). Pode dizer-se que, talvez graças ao trabalho profícuo dos missionários, os seus nativos se evidenciavam, com nível superior à generalidade dos africanos. Tudo estaria bem não fora a cobiça resultante da descoberta dos fortes jazigos de petróleo, naquele pequeno território. Com a guerra dos movimentos de libertação de Angola (FNLA e MPLA e, mais tarde, a UNITA), nenhum desistiu de Cabinda, mesmo sabendo que já lá existia o movimento FLEC- Frente de Libertação do Enclave de Cabinda. Com os americanos lá posicionados em força, não havia terrorismo que preocupasse. Os americanos pagavam as parcas percentagens da extracção do petróleo ao governo português, mas também alimentavam e controlavam os movimentos de libertação. Porém, de vez em quando, alguém publicitava que estava em luta. Desta forma, valorizava a sua importância nas negociações (ou comparticipações) para a sua activa continuidade revolucionária.

Naquele tempo, era, assim, importante que se mantivesse uma certa fama de que em Cabinda eram muito importantes e perigosas quaisquer missões militares.

É neste ambiente de guerra quase fictícia, na zona de Buco-Zau, que o Joãozinho, agora conhecido por Morcãozinho, vê a possibilidade de se promover junto dos seus familiares e vizinhos. As suas cartas eram autênticos relatos de… bravura. A mãe contava a toda a gente, incluindo prolongadas descrições na tasca do Mário da Loja. Não havia carta em que não fizesse referência a centenas de terroristas mortos, aos quais lhes cortavam a cabeça, mãos, orelhas e dedos, para prolongarem o valor das suas façanhas e evitarem a consumação de possíveis vinganças. Também falava na caça às pacaças, leões, hienas, elefantes e gorilas. Coisas de heróis, já exibidas em cinema e em banda desenhada. Quando escreveu que também tinham apanhado dois chefes dos turras, logo a mãe fez constar que o seu filho tinha capturado mais de 20 Gungunhanas. Chegou a falar com o padre Inácio, sobre os possíveis benefícios divinos, alcançados naquelas lutas contra os” infiéis”.

 Panorâmica de Maiombe - Cabinda - Angola
Com a devida vénia a Pensar e Falar Angola

Embora o pai Quim da Ponte não estivesse muito entusiasmado, mulher e sogra encarregaram-se de organizar uma festa de recepção ao Joãozinho, o “Herói do Maiombe”. Reservada a matança do porco para a sua vinda, o Quim ainda alvitrou que deveria ser o filho a matá-lo, mas a Belinha, lembrando a conhecida sensibilidade do filho, optou por chamar o Pardal, das Vendas de Cima, um especialista nesta arte de matador. Até porque o Pardal andava sempre com necessidade de renovar o seu sangue, alcoolizado há vários anos. Bebia como uma esponja, mesmo antes da matança. E como, nesta tarefa, normalmente, havia sempre vinho em abundância, necessário para ser aplicado nas carnes do falecido bicho, ele não se escondia de “matar a sede” de forma continuada.

Por outro lado, o Heroi do Maiombe, ponto de referência de toda a gente na festa, alegou que seria um perigo ser ele a matar o porco, pois, caso avistasse sangue, poderia fazer saltar a sua descontrolada agressividade e bravura. Assim, optou por ajudar a segurar o animal, nas patas traseiras.

O Pardal teve que esfregar os olhos para ver onde devia apontar a faca. Todavia, fê-lo com tal maestria que o porco parou imediatamente de berrar. Todos os ajudantes e assistentes soltaram um OH!!! de admiração. E disseram:
- Parece que sufocou!

Agarrando na malga de vinho mais próxima, o Pardal passou a manga da camisa pelos bigodes e emborcou mais umas goladas e exclamou (apontando para o seu peito):
- Tenho pena de não matar terroristas como o Joãozinho, mas para matar porcos não há como o este senhor Pardal!

Estendido o animal no chão, colocaram caruma de pinheiro ao longo do corpo. Nessa altura, o Joãozinho lá se mostrou valente a incendiar o porco. Eis que este, sentindo o calor a queimar-lhe o lombo, arranca de repelão, a arder, roça pelas pernas do Joãozinho e vai esfregar-se numa meda de palha. Entre gritos de:
-É bruxedo, ele tem o diabo no corpo, acudam o fogo, chamem os bombeiros, etc.

O velho Quim da Ponte” agarrou numa bacia que estava cheia de água, e apagou o incêndio, enquanto o porco caía definitivamente.

A Belinha ainda agarrou num garrafão para ajudar a apagar o fogo, mas o Pardal, que estava atento, lançou mão ao “catraio”, gritando: - Esse não vai, caralho, porque não podemos morrer à sede.

Quando tudo voltou à normalidade, o Quim da Ponte não viu o filho e perguntou à Bélinha:
- Então, mulher, onde anda o nosso Heroi do Maiombe?

A mulher puxou-o de lado e segredou-lhe, ao ouvido:
- Ele foi mudar de calças. Coitadinho, borrou-se todo!

Silva da Cart 1689
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8617: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (20): Uma Grande Mulher (ou uma imagem de uma geração)

Guiné 63/74 - P8672: O Nosso Livro de Visitas (115): António Agreira (ex-Fur Mil Trms, CCAÇ 4544, Cafal Balanta, 1973/74)

1. Mensagem do nosso camarada António Agreira, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 4544/73, Cafal, 1973/74, com data de 8 de Agosto de 2011:

Em primeiro lugar os meus cordiais cumprimentos.

Chamo-me António Agreira e nasci a 16 de Maio de 1951 em Coimbra.

Camaradas, tive conhecimento da existência deste blogue pelo Manuel Moreira da CART 1746. Claro que na primeira oportunidade fiz uma visita!

Foi sem dúvida com alguma emoção que revivi alguns momentos passados em Cafal Balanta. Aproveito desde já para enviar um forte abraço ao Coronel Prata e ao Manuel Antunes, assim como a todos os camaradas da CCAÇ 4544.

Fui incorporado no Exército em Outubro de 1972 e fiz o Curso de Sargentos Milicianos. Fui Furriel de Infantaria com a Especialidade de Transmissões. Depois de passar por Caldas da Rainha, Tavira, Coimbra e Lisboa, em Outubro de 1973 juntei-me à CCAÇ 4544 em Tomar, e em Setembro lá abalamos.

Recordo algumas situações mais complicadas durante a estadia em terras de Cafal Balanta, onde rendemos a CCAÇ 3565. Aproveito para enviar aos camarada da 3365 um forte abraço.

No dia em que nos deixaram entregues a nossa sorte partiram-nos logo o bico, e foi forte! Já mais para o fim da guerra não esqueço que a noticia da Revolta dos Capitães chegou à CCAÇ 4544 através dos meus serviços, às primeiras horas do dia 25 de Abril de 1974.

Neste momento estou fora de Coimbra, por isso não posso enviar fotografias,  o que farei logo que possível.

Para um contacto mais directo poderão os camaradas usar o n.º de telefone 912 550 634.

António Agreira
antonioagreira@sapo.pt


Vista panorâmica de Cafal Balanta. Na foto o nosso camarada Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610.
Foto: © Manuel Maia (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


2. Comentário de CV:

Caro camarada Agreira, muito obrigado pelo teu contacto e pela tua intenção de te juntares a nós nesta já imensa Caserna Virtual.
Se explorares o conteúdo deste blogue, criado pelo nosso camarada Luís Graça, encontrarás muitas histórias e fotografias, espólio já considerável, que conta um pouco daquilo que uma geração teve como destino, a guerra.

Poderás também contribuir com a tua parte, dando forma de texto e/ou fotografias às tuas memórias. Manda que nós publicamos.

Esperamos então as tuas fotos da ordem e uma pequeno texto de apresentação.

Recebe um abraço da tertúlia
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8628: O Nosso Livro de Visitas (115): Arlinda Mártires, antiga leitora de português em Bissau (1993-98), poetisa, autora de Guynea

Guiné 63/74 - P8671: Álbum fotográfico de João Graça (11): 1º Festival Cultural de São Domingos, 18-20 de Dezembro de 2009 (II Parte): Homens que lavam o rosto do seu país...










Guiné-Bissau > Região do Cacheu > São Domingos > 18 de Dezembro de 2009 > 1º Festival Cultural de S. Domingos, sob o lema "Nô Laba Rostu di Nô Guiné". Actuação de diversos grupos de música e dança, balantas, felupes, etc.  

A organização foi da responsabilidade da ONGD AD - Acção para o Desenvolvimento, cujo director executivo, o Eng Agr Carlos Schwarz da Silva (Pepito),  aparece na 1º foto, a contar de cima. A iniciativa tem-se vindo a repetir todos os anos, em regiões diferentes. O objectivo é mostrar aos guineenses (e aos seus amigos) a grande riqueza multicultural da Guiné-Bissau e reforçar a sua identidade nacional. 

Fotos tirados pelo João Graça no penúltimo último dia da sua viagem à Guiné-Bissau (5-12 de Dezembro de 2009).


Fotos © João Graça (2009). Todos os direitos reservados

[ Selecção / edição / legendagem: L.G.]

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Nota do editor:

Ultimo poste da série > 14 de Agosto de 2011 >Guiné 63/74 - P8667: Álbum fotográfico de João Graça (10): 1º Festival Cultural de S. Domingos, 18-20 de Dezembro de 2009 (Parte I): Mulheres que lavam o rosto da sua terra...

domingo, 14 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8670: Blogoterapia (185): Ageism ou a discriminação face à idade? (José Martins)

1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 12 de Agosto de 2011:

Boa noite
Sexta-feira à noite com um fim de semana à porta, quem é que se lembra de "amandar" para a blogosfera trabalho para os editores? Quem?

Estive a rever o texto anexo e, como já "amadureceu" durante um mês, resolvi enviá-lo com desejos de bom fim de semana e um abraço
José Martins



Ageism ou discriminação face à idade?

Já não sei quando, o facto que aqui recordo ocorreu, mas já foi há dois ou três anos, mais provavelmente no segundo trimestre de 2008.
Inscrevi-me para uma formação da então CTOC (Câmara dos TOC’s, hoje Ordem) que deveria ter a duração de 12 horas, sendo de oito horas no primeiro dia e as restantes quatro no dia imediato.
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As acções de formação são “como que obrigatórias” já que por cada hora de formação é atribuído “um crédito”, créditos esses que terão de somar 70 em cada biénio, necessários para a continuidade do exercício da profissão.
Passada esta nota explicativa, entremos na história, que começa na cantina da Universidade Lusíada, à Junqueira/Lisboa.

Depois da credenciação e obtenção dos cadernos de apontamentos sobre os temas versados na formação, vários impostos provavelmente, estava a “fazer horas” tomando uma bica, quando se aproximou alguém que, trazendo numa mão uma chávena de café e na outra os cadernos distribuídos, me perguntou se se podia sentar na minha mesa.
Acedi, naturalmente, à solicitação do colega, apesar da sala apresentar muitas mesas vazias, tendo-se apresentado como sendo Gabriel.

Naturalmente entabulamos conversa mas, curiosamente, não foi sobre a matéria fiscal que ali nos levava.
Na aba do meu casaco ostentava o emblema da Liga dos Combatentes e, provavelmente, foi essa a razão pela qual fui procurado por esse colega que, a páginas tantas, me disse que também éramos “colegas de guerra”, ou melhor “camaradas de armas” lembrando que “colegas” eram as “outras senhoras”.
Realmente tinha reparado que coxeava um pouco e apertado por baixo do braço trazia uma bengala para apoio.

Falámos de banalidades, como se impunha, e disse que era do Algarve e, não tendo podido inscrever-se na acção que ia decorrer em Faro ou noutro local mais próximo onde a mesma decorresse, optara por deslocar-se a Lisboa para não perder a oportunidade de assistir à apresentação do tema.

A idade que apresentava e como depois vim a saber, era mais do que aquela que eu contava. Ele já estava no limiar dos 65 anos e tinha ido para o ultramar como Alferes Miliciano Atirador, onde viria a ser promovido a Tenente a meio da comissão, por ter sido mobilizado já com algum tempo de serviço na metrópole. Lá, como oficial subalterno mais antigo, tocou-lhe comandar uma coluna de reabastecimentos que, devido a uma manobra inopinada do condutor, a viatura fez detonar uma mina não detectada que originou que ficasse algumas horas “entalado” na viatura em que seguia, o que lhe valeu, além da fractura da perna nunca recuperada, passar aos serviços auxiliares até ao final da comissão.

Com a aproximação da hora de início da formação, aproximámo-nos da sala que nos estava destinada, a acção decorreria simultaneamente em várias salas, mas nós estávamos destinados à mesma, pelo que, apesar da atenção que tínhamos de dedicar ao formador, fez com que nos “aproximássemos” mais, para além da profissão e condição de combatentes.

Acabamos por procurar, no exterior das instalações da universidade, um local para almoçar, optando por uma daquelas tascas que por ali abundam e, pela concorrência natural entre todas, acabam por fornecer refeições aceitáveis e a preços convidativos.

Aqui, e noutros momentos que a seguir descriminaremos, fiz o papel de ouvinte. Era curiosa a história da sua vida. E, se a sua experiência militar não lhe trazia recordações agradáveis, pois apesar da deficiência não era considerado DFA (deficiente das forças armadas), nem lhe tinha sido atribuído qualquer grau de desvalorização mas, o que lhe trazia maior desgosto, era a forma como se considerava descriminado pela sociedade em geral, nomeadamente mais pela idade do que pela deficiência.

No dobrar do século XX para o século XXI, aconteceu-lhe aquilo que, a maioria da nossa geração tinha como “dado adquirido”: um emprego para a vida, com dez, quinze e mais anos de antiguidade, tendo apenas conhecido alguns empregos, de alguns meses, aquando do início da carreira profissional e antes de cumprir a tropa.

Estando no Algarve, foi fácil encontrar uma colocação num agente imobiliário que, além de proceder ao estudo e organização de empreendimentos, acabava na maior parte dos casos, em prestar serviço de gestão, assistência e manutenção nos edifícios, já que muitos dos proprietários eram estrangeiros.
Mas, sem que qualquer sinal tivesse sido sentido, a empresa acabou por fechar, com um passivo enorme, devido a transacções não reflectidas na contabilidade e falta de pagamentos ao Estado, ficando a totalidade dos empregados, nos quais o Gabriel se incluía, no desemprego, sem direito a qualquer indemnização, já que a empresa tinha elevadas dívidas, e os seus activos estavam quase todos hipotecados.

Foi nesta altura que, já que uma desgraça nunca vem só, a situação familiar acentuou-se, não só porque os rendimentos diminuíram substancialmente, mas a sua presença em casa, por inactividade profissional, levava ao inverso da situação anterior ao seu desemprego: agora era a esposa que saía antes do marido e, quando chegava a casa, ele já lá se encontrava.
A situação tornou-se intolerável para o Gabriel.

As discussões tornaram-se frequentes, com acusações mútuas, com a presença dos filhos que, já espigadotes, arranjaram um óptimo leitmotif para obterem certas benesses, muitas vezes com a opinião diferente do outro cônjuge, já que utilizavam a expressão “só falta tu estares de acordo. O pai, ou a mãe, já concordaram”.

Esta situação levou a que, para resolver os problemas que se avolumavam, já que encaravam a hipótese de divórcio, ao que os filhos se opunham, não por querer ver os pais juntos, mas porque esse situação levaria à venda da vivenda, ainda que pequena, em que viviam, perto do “mundo dos filhos”, porque estava perto da praia, perto da escola, perto dos amigos, perto das diversões. Nem pensar mudar de casa e, sobretudo, de estilo de vida. Mais lenha a fogueira, em que as labaredas cresciam cada vez mais alto.

Fizeram um acordo: A casa ficaria pertença da mulher, onde viveria com os filhos e ele iria ocupar um anexo nas traseiras, ao fundo do quintal, que dava para a rua paralela. Tudo ficaria resolvido. Tudo não, já que a ocupação do anexo, não permitia a vinda de amigos de fora, para lá passarem as férias. Do mal, o menor.

Estas “recordações” foram reveladas, melhor, foram desabafos desse meu colega, durante o almoço e parte final do dia, em que lhe dispensei algum do tempo que mediou entre o final das acções de formação e o jantar com a família, como se impunha. Ele iria jantar e passar a noite no quarto que tinha alugado numa residencial.

No dia seguinte, de que a formação só ocupava a parte da manhã, prometi-lhe que almoçaríamos e que disporia, caso o quisesse, da parte da tarde para o ouvir.

Já mais descontraídos pelo final da acção de formação, optamos por ir almoçar noutro lugar, mais calmo, junto do rio, uma vez que o tempo estava agradável. Acabamos numa esplanada junto a Belém.
Então, o Gabriel, meu colega de profissão e camarada de armas, deixou correr as suas venturas e desventuras, que eram mais desventuras que venturas.

Como “passou a viver” com do subsidio de desemprego, “emagrecido” por descontos não efectuados, já que parte do vencimento eram “extras e subsídios”, não pode aproveitar nenhum biscate que surgisse na sua área de saber, uma vez que teria de assinar, apesar de electronicamente, as declarações fiscais e, para tal, teria que se inscrever nas finanças como profissional liberal, perdendo o direito ao subsidio de desemprego.

Durante algum tempo conseguiu desenrascar-se, ajudando no gabinete de um colega, mas que pagava mal para o trabalho desempenhado. O Gabriel ia aceitando a situação, já que mais valia não perder a mão e sempre se ia inteirando, in loco, das alterações que iam surgindo na lei, porque até tinha deixado de ter acesso ao computador, como anteriormente.

Mas, se não há bem que sempre dure, não há mal que não acabe.

Como tinha informado a CTOC que poderia dar o seu contacto para qualquer pedido de alguma empresa que necessitasse dos serviços de um TOC, recebeu uma carta de uma empresa, a solicitar que entrasse em contacto com eles. Era uma empresa distribuidora de produtos alimentares.
Contactou-os, trocaram as impressões julgadas convenientes e entrou ao serviço dessa empresa, levando consigo a grata impressão de que o passado não era mais que passado. Todos os problemas tinham terminado e, agora, era o começar uma vida nova, até porque se sentia na plenitude das suas faculdades, para o desempenho da função.

A empresa que o contratou e onde ainda prestava serviço, era dirigida por um casal que, não me recordo se eram marido e mulher, se irmãos ou se primos. Recordo-me, isso sim, de que um deles, o que não tinha dirigido o processo de admissão, pretendia ter ascendente sobre o outro, o que conseguia “vetando”, ou melhor, tentando vetar todas as iniciativas do outro, arrogando-se para si próprio a total “infalibilidade”.

O Gabriel, meu colega, apercebeu-se que, durante a fase de recrutamento, havia outros candidatos mais novos. Provavelmente esses candidatos até tinham habilitações académicas superiores, já que este apenas tinha o Curso da Escola Técnica que depois completara com o Instituto Comercial, mas tinha a prática que, nesta como na maioria das profissões, marca a diferença.

Ajustadas as condições, e desta vez salvaguardando que toda a remuneração seria objecto dos descontos legais, há que prevenir o futuro com os erros do passado, apresentou-se na data acordada para iniciar a sua colaboração.

Do técnico anterior não recebeu qualquer indicação. Este já não estava no mundo dos vivos há já algum tempo, pelo que o Gabriel “herdou” uma “situação anómala”: registos atrasados, declarações fiscais em falta, pagamento não efectuados, muito papel e, sobretudo, muita confusão.

Quando chegou a altura de ser apresentado ao sócio gerente, que não conhecia e de quem apenas havia ouvido falar vagamente, ficou surpreendido pela forma fria, vaga e distante com que foi recebido. Mais: quando ia a sair do gabinete desse gerente não pode deixar de ouvir, e disso fez questão “esse patrão”, ao dizer aos sócio que, “apesar de tantos candidatos, logo foste escolher o velho”, enfatizando a palavra.

Como a vida tem de “ser tocada para a frente”, o Gabriel lá se dedicou à analise da situação fiscal e financeira da empresa, que era a área que poderia deixar “mais mossa” na empresa, inteirando-se da situação real, contactando as finanças e outros departamentos estatais, apresentando requerimentos para suspender processos já em curso e solicitando a prorrogação de prazos para satisfazer os compromissos estabelecidos por lei, alegando para tal a saída, por falecimento, do anterior TOC.

E as “coisas” foram retomando o seu curso normal. A contabilidade foi recuperada, tendo apenas um atraso considerado normal; as contas dos bancos foram controladas e deixou de haver a necessidade de efectuar depósitos imediatos, para restabelecer os saldos positivos nas contas; controlaram-se os créditos sobre os clientes e os débitos aos fornecedores, e os saldos das contas passaram a estar controlados; as obrigações fiscais e parafiscais, foram actualizadas e passaram a ser cumpridas atempadamente; até que, porque quando se julga que já se domina a situação, “aparece um esqueleto do armário”.

Quando, como dizíamos, tudo parecia ter regressado à normalidade, surgem junto do Gabriel, acenando histericamente um papel, perguntando como é que é possível que tenha descorado “aquele assunto”; como é que era possível um profissional, já que como tal o tinham contratado, cometesse uma enormidade daquelas.
Estupefacto perguntou do que é que se tratava, mas como resposta obtinha aquela velha expressão, de quem quer criar um caso seja qual for o motivo, perguntando mais alto “mas como é que é possível tal desatenção?”; como é que é possível “deixar passar um pagamento sem ter avisado para esse facto?”; quem estava a “tentar prejudicar quem?”.

Não foi possível saber, sequer tentar entender o que se passava, já que o papel, melhor, uma fotocópia, lhe foi atirado para a secretária, antes de sair batendo com a porta.
A sua experiência aconselhou-o a, com calma, tentar saber o que se passava.
A falta a que se referia a notificação fiscal, que mencionava um período de há cerca de dois anos atrás, era a falta de entrega da declaração e o competente pagamento de IVA, mas cujo apuramento estava devidamente lançado na contabilidade e o pagamento titulado por um cheque pessoal de um dos sócios, e, por isso, creditado na sua conta.

Os lançamentos contabilísticos estavam correctos, mas havia a falta de prova do pagamento, passando a “pesar sobre os ombros” do novo TOC a responsabilidade daquele processo já que, no entender desse gerente, “os erros de um contabilista, têm de ser pagos pelo que vier a seguir”.

Bem. Parece que deu trabalho, mas a verdade surgiu: Como era no seu gabinete que o anterior TOC tratava de “tudo”, indicava aos seus clientes qual o valor dos impostos que era necessário pagar ao Estado, recebia esses valores, que depositava, e efectuava uma transferência bancária, a partir da sua conta, para a regularização dos pagamentos.

Depois de “desembrulhada”, a situação era simples. Como um dos sócios estava ausente da empresa, para pagar o IVA foi emitido um cheque da conta pessoal de um dos gerentes, situação regularizada no dia seguinte. O contabilista procedeu ao registo da operação, mas, não só não depositou o cheque que recebera, como também não efectuou o pagamento do imposto, já que entretanto adoecera e perdera o controle da situação. Como a conta pessoal do sócio não era analisada pelo mesmo, já que o saldo existente “lhe dava algum conforto”, nem se apercebeu que o montante do cheque nunca foi abatido no seu saldo.

Com a situação esclarecida e verificado que o cheque nunca tinha sido descontado, aliás tinha sido recebido com os “papeis que vieram do gabinete da contabilidade” e ficado retido na “gerência”, foi pago o competente imposto e as coimas e custas do processo, mas ficou sempre como “uma nódoa no curriculum do Gabriel, o velho da contabilidade”, como era conhecido em surdina.

O tempo foi correndo e, talvez um ano depois, apareceu um dos sócios acompanhado por um rapaz, a rondar os trinta anos, que apresentou como seu afilhado, solicitando-lhe que, nas semanas seguintes, arranjasse algum serviço para o rapaz “se entreter e começar a saber o que era a vida “, já que tinha frequentado um curso de gestão na universidade e agora era preciso fazer o estágio.

O Gabriel “adoptou” o seu novo estagiário transmitindo-lhe aquilo que gostaria de ter transmitido aos seus filhos, caso tivessem escolhido a mesma profissão que ele abraçou. O rapaz, que era inteligente, aprendia com facilidade o que lhe era ensinado mas, sempre que podia, arranjava desculpas para não aparecer no escritório. Como não havia a obrigatoriedade da sua presença, apesar de ter “ordenado para fazer face às despesas de rapaz” além das despesas do almoço e do combustível do carro, esses assuntos deviam ser resolvidos a outro nível.

Um dia, em qualquer caso há sempre um dia, o gerente chamou o meu colega Gabriel para tratar de assuntos relativos à contabilidade e, quando este menos esperava, a conversa “virou-se” para a idade e, inesperada e inexplicavelmente, perguntaram-lhe:
- Quando é que se reforma? Já está na idade, não é? Ou pretende antecipar a idade da reforma, como na função pública?

- Não, não estou a contar pedir a reforma antecipadamente. Para ser sincero, nem tenho pensado nesse situação. Quando chegar a altura e se as condições assim o determinarem, será altura para pensar e decidir.

- É que nós estamos a contar entregar a contabilidade ao nosso afilhado. Ele tem aprendido bastante, não tem? Já está capaz de resolver o nosso problema. Tenho que o entusiasmar para se inscrever na vossa associação.

O Gabriel achou estranha esta atitude. Todos sabiam que o “estagiário” ainda tinha uma prova a ultrapassar: a inscrição na CTOC, hoje OTOC, mas mais estranhou o tema daquela conversa que, a todos os títulos, era desprovida de oportunidade, quando toda a atenção se devia concentrar no fecho de contas e apresentação das mesmas.

O almoço, já longo, tinha de acabar, já que o Gabriel ainda ia fazer o percurso até ao Algarve e, ainda, queria passar pelo escritório.
Despedimo-nos e desejando-nos mutuamente felicidades e êxitos pessoais e profissionais, cada um rumou o seu próprio destino.

Nunca mais pensei nesta história. Melhor: pensar, pensei, mas nunca senti o impulso de pegar no telefone e saber o que se passava com esse amigo. O dia a dia, o trabalho, a família, os amigos próximos e com interesses comuns, os novos desafios, e outras coisas mais, levam a que quando nos lembramos de algo, não estejamos no local certo ou à hora adequada para tentar um contacto telefónico.

Neste ano, que se aproxima a altura de chegarem os 65 anos, já que sou da “colheita de 46” e influenciado, talvez, pela leitura do livro “Discriminação da Terceira Idade” da psicóloga Sibila Marques, numa edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos [cuja leitura recomendo, vivamente], lembrei-me deste caso singular, mas que é fruto da tentativa que existe no ser humano de descartar, sempre que é possível, os mais idosos, desprezando a maior parte da vezes o seu “saber de experiência feito”, e, no mundo do trabalho, mesmo que se tenha um resultado de menor qualidade, opta-se por pagar menos, mantendo as novas gerações em situação de precariedade, sem poderem almejar novos voos, acenando-lhes com novos modos de vida mas retirando-lhes a possibilidade de os alcançarem sem recorrerem a créditos que, mais tarde e tarde demais, vêem que não podem manter.

Foi então que procurei o telemóvel do Gabriel e lhe telefonei. Em resposta ouvi uma gravação que, na sua voz impessoal, informava que “o número do telefone para o qual ligou, não está atribuído”.

Teria ligado mal. Enganei-me no número ou não o marquei na totalidade? Bem, nova chamada para esclarecer dúvidas. Não havia qualquer dúvida. Marquei, digito a digito, e a resposta foi a mesma: “o número do telefone para o qual ligou, não está atribuído”.

Pensei e melhor o fiz – passar à fase B: ligar para a empresa directamente.

Sabia o nome da empresa, a tal de distribuição de produtos alimentares, no Algarve, procurei o número de telefone na Internet e validei-o junto da telefónica, pelo que não restava dúvidas que era o número pretendido.

Escutei do outro lado da linha uma voz feminina, que me pareceu jovem, e pedi para me ligarem à contabilidade com o Sr. Gabriel, o Sr. Gabriel Anjos.

Em resposta disseram-me que não trabalhava lá nenhum Sr. Gabriel. Não seria engano no número de telefone?
Respondi que não, que o nome que tinha era Gabriel Anjos e a firma era aquela, e que tinha estado, há já algum tempo é certo, com o Gabriel e que me tinha falado da empresa.

- Não! Sou filha dos donos da empresa, que já existe há mais de quinze anos. Nunca cá trabalhou nenhum Senhor Gabriel e, a contabilidade, sempre foi feita no gabinete de contabilidade do meu avô.

Que se passou então naqueles dois dias, há alguns anos, junto a Belém? Será que foi um sonho que tive que, de tal forma ficou marcado no meu subconsciente, que me pareceu real?

Mas a empresa de distribuição, esse, existe. Falei com a filha dos proprietários, tem nome e número de telefone.

Quem é este GABRIEL?
Algum mensageiro que me quis alertar para o futuro?

José Marcelino Martins
12 de Julho de 2011
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 1 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8627: Patronos e Padroeiros (José Martins) (21): Mártir S. Sebastião, Padroeiro dos Arqueiros, da Infantaria e dos atletas (José Martins)

Vd. último poste da série de 10 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8537: Blogoterapia (184): Documentos perdidos, de muito atrás do tempo (José Martins)

Guiné 63/74 - P8669: Efemérides (75): 104.º aniversário de Miguel Torga (Felismina Costa)

1. Mensagem da nossa amiga e tertuliana Felismina Costa *, com data de 11 de Agosto de 2011:

Caro Editor e amigo Carlos Vinhal
Comemorando-se amanhã dia 12 de Agosto mais um aniversário de Miguel Torga, pensei prestar-lhe uma pequena homenagem, transcrevendo dele um pequeno texto e um poema, pois é mais um dos meus poetas preferidos.
Torga, é um dos Homens com quem gostava de ter falado!
Aos que possam não gostar peço desculpa, mas corremos sempre o risco de estarmos em desacordo.

Aceito seja qual for a sua decisão.

Um abraço para si e a toda a tertúlia.
Felismina Costa


Coimbra, 22 de Novembro

Dizia Torga, no seu Diário V, a páginas 59:

Não rezo. Mas, se rezasse, a minha prece seria esta: dai-me forças, Senhor, para continuar a ter a coragem da franqueza absoluta. Que não fique dentro de mim nenhuma palavra oculta por cobardia. Que a minha pena seja o meu coração a deixar no papel o gráfico de todas as suas pulsações. E que os meus livros me testemunhem como retratos sem nenhum retoque, fiéis e terríveis como a própria verdade:

Portugal

Avivo no teu rosto o rosto que me deste
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura,
Serás sempre o que sou.


E sou a liberdade de um perfil
Desenhado no mar.
Ondulo e permaneço.
Cavo, remo, imagino,
E descubro na bruma o meu destino
Que de antemão conheço:

Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às razões do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alta ainda do que no passado.

Miguel Torga, in ”Diário X”

************

Biografia

Adolfo Correia da Rocha nasceu em S. Martinho de Anta, concelho de Sabrosa (Vila Real), a 12 de Agosto de 1907 e faleceu em Coimbra, a 17 de Janeiro de 1995.

Adopta o pseudónimo de MIGUEL TORGA porque eu sou quem sou. Torga é uma planta transmontana, urze campestre, cor de vinho, com as raízes muito agarradas e duras, metidas entre as rochas. Assim como eu sou duro e tenho raízes em rochas duras, rígidas, Miguel Torga é um nome ibérico, característico da nossa península. Pesou também na escolha do pseudónimo a influência de dois grandes escritores espanhóis: Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno.

Depois de ter concluído a 4ª classe “com distinção”, o pai disse-lhe: tens de escolher ... aqui não te quero. Por isso resolve: ou o seminário de Lamego ou Brasil.
Daí a pouco tempo lá ia o rapaz rumo a Lamego: ia na frente, de fato preto, montado, a segurar o baú de roupa que levava diante de mim. Meu pai e minha mãe vinham atrás, a pé, ele com os ferros da cama às costas e ela de colchão e cobertores à cabeça", contará mais tarde em A Criação do Mundo. Aí permanece um ano. Durante as férias, e para grande satisfação da mãe, apoia a realização de eucaristias. Mas a sua decisão era outra. O Brasil passa a ser a única saída e para lá parte em 1920. Ficou em casa de uma tia que lhe impôs como obrigação, em todos os dias, carregar o moinho, mungir as vacas que davam leite para a casa, tratar dos porcos, prender as crias das vacas, curar bicheiros e procurar pelos matagais as porcas e as reses paridas. Um ano depois estava de regresso a Portugal.

O tio do Brasil prontificara-se a fazer dele um médico, custeando-lhe os estudos em Coimbra. Licencia-se em Medicina, aos 24 anos, especializando-se em Otorrinolaringologia. Começa por exercer clínica geral na sua aldeia mas a experiência foi negativa. Segue-se Leiria, uma cidade que gostava, mas, por causa das tipografias, optou por voltar a Coimbra.
O material que manda para a tipografia leva vários remendos colados uns sobre os outros. Chegam a ter umas sete e oito colagens. Por causa de uma vírgula é capaz de passar uma noite sem dormir...
Casou com a belga André Cabrée, professora universitária em Coimbra: vou tentar ser bom marido, cumpridor. Mas quero que saibas, enquanto é tempo, que em todas as circunstâncias te troco por um verso, confessará, em A Criação do Mundo V.
Foi na cidade de Coimbra, onde viveu e exerceu, durante largos anos, a sua actividade clínica – situação em que usava sempre o mesmo ritual: uma bata branca – a par de uma intensa e contínua produção literária, que o escritor se afirmou, quer em Portugal, quer no estrangeiro, como um dos grandes cultores da língua portuguesa.
Chega a ser preso pela PIDE, tendo algumas vezes vontade de sair do país: Mas abandonar a Pátria com um saco às costas? Para poder partir teria de meter no bornal o Marão, o Douro, o Mondego, a luz de Coimbra, a biblioteca e as vogais da língua. Sou um prisioneiro irremediável numa penitenciária de valores tão entranhados na minha fisiologia que, longe deles, seria um cadáver a respirar.

Nunca se filiou em partido algum: o meu partido é o mapa de Portugal.

OBS: - Retirado do site da Câmara Municipal de Coimbra, com a devida vénia.
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 2 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8630: Blogpoesia (155): Pôr-do-sol alentejano (Felismina Costa)

Vd. último poste da série de 4 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8637: Efemérides (53): O malfadado mês de Agosto de 1964 (António Bastos)

Guiné 63/74 - P8668: O Nosso Livro de Estilo (3): Sou um pira no blogue, mas penso que captei o seu espírito (J. Pardete Ferreira)

1. Comentário, com data de 25 de Julho último, assinado pelo nosso camarada J. Paderte Ferreira ao poste P8582:
 
Não fazia tenção de me meter nesta "guerrinha" inútil. No entanto, tendo escrito no meu [livro] Os Paparratos que a perda do poder aéreo condicionada pelos mísseis terra-ar russos tinha desequilibrado a luta, fui contrariada, no decurso de um almoço da Turma do Gil, com o Pedroso de Almeida, ao tempo dos mísseis Major Piloto Aviador e Oficial de Operações da Esquadrilha de Fiats, comandada pelo extinto Tenente Coronel Brito, que conhecera durante a minha Comissão com o posto e a função que o Pedroso de Almeida tinha desde que começou a haver turbulência aérea, associado ao Comentário supra do Camarigo António Graça Abreu, sou obrigado a dar a mão à palmatória.

Com efeito, desde o aparecimento dos primeiros incidentes com os mísseis, a FAP, após um curto período de surpresa (?) ou procura de soluções, estabeleceu um Plano de Contingência para contrariar a acção dos mísseis, tanto mais que eles se autodestruiam ao fim de 16 segundos, se não me engano, caso não atingissem o alvo.

Não estou a par de todo esse Plano, mas sei que passou pela utilização de um tipo diferente de munições, algumas restantes da segunda Guerra Mundial e pela tal forma de voar diferente do Graça Abreu, com Fiats aos pares e a altitudes diferentes e, sobretudo, a proibição absoluta de fazer uma segunda passagem pelo objectivo. O desrespeito desta norma custou a vida ao Tenente Coronel Brito.

Bem, penso que já me alonguei mas vou concluir: procuramos no blogue, penso, sobretudo factos, por nós vividos ou ouvidos de fonte credível; cada um tem o direito de fazer as suas impressões pessoais, sem pretender ser o único senhor da verdade, impressões essas que têm de ser respeitadas; excepcionalmente, podem surgir apenas bocas que não devem ser levadas muito a sério.

Sou um Piriquito no Blogue mas penso que captei o seu espírito.

Alfa Beta a todos.

José Pardete Ferreira 


[Revisão / fixação de texto / bold a cor / título: L.G.]
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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de Agosto de 2011 >Guiné 63/74 - P8662: O Nosso Livro de Estilo (2): Comentar (nem sempre) é fácil...


Guiné 63/74 - P8667: Álbum fotográfico de João Graça (10): 1º Festival Cultural de S. Domingos, 18-20 de Dezembro de 2009 (Parte I): Mulheres que lavam o rosto da sua terra...


Guiné-Bissau > Região do Cacheu > São Domingos > 18 de Dezembro de 2009 > 1º Festival Cultural de S. Domingos, sob o lema "Nô Laba Rostu di Nô Guiné".













Guiné-Bissau > Região do Cacheu > São Domingos > 18 de Dezembro de 2009 > 1º Festival Cultural de S. Domingos, sob o lema "Nô Laba Rostu di Nô Guiné". Mulheres... Fotos tirados pelo João Graça no penúltimo último dia da sua viagem à Guiné-Bissau (5-12 de Dezembro de 2009)

Fotos © João Graça (2009). Todos os direitos reservados

[ Selecção / edição / legendagem: L.G.]

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Nota do editor:

Último poste da série > 1 de Agosto de 2011 >Guiné 63/74 - P8626: Álbum fotográfico de João Graça (9): Os djubis (putos) de Bissau (II e última parte)

sábado, 13 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8666: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (3): O último susto


O Regresso dos Heróis*

Por

Domingos Gonçalves
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)


DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887



III - O ÚLTIMO SUSTO

Dia 13
Pelas doze horas o Alfange atracou em Binta. De imediato, desembarcou a Companhia de “Periquitos” e as respectivas bagagens. Depois, a minha Companhia embarcou. Pouco depois das duas horas, acenando um adeus às terras de Binta, subíamos o Cacheu até Farim. Nunca percebi muito bem esta programação da viagem. Com efeito, a lógica que na tropa não tem lugar, apontaria para que embarcássemos apenas quando o barco descesse o rio. Mas, como gostam muito de nós e estão satisfeitos com o nosso trabalho e com a guerra que fizemos ao longo de todos estes meses, os que mandam em nós quiseram que fizéssemos turismo, durante mais umas horas, viajando por este rio maravilhoso, em condições de excepcional conforto.

 LDG Alfange - Foto de autor desconhecido. Com a devida vénia

Em Farim entraram no Barco a Companhia N.º 1548 e a Companhia de Comando e Serviços e, já de noite, iniciou-se a viagem para Bissau, com uma ligeira paragem de novo em Binta, donde se partiu quando a noite já ia bastante alta.

A partir de Binta, a barcaça que nos transportava seguiu viagem, escoltada por um barco de Guerra, que navegava à nossa frente escassas dezenas de metros.

Pouco passava das 21 horas. Rio abaixo tudo parecia normal. Na penumbra da noite apenas se escutava o ligeiro ruído provocado pelo deslizar sereno do barco sobre as águas do Cacheu, e o barulho surdo dos motores da embarcação que nos transportava.

A escuridão da noite, o céu sem estrelas e um horizonte que morria ali muito perto, na penumbra das margens, emprestavam à viagem um ambiente sinistro feito de mistério e receio. Fora da barcaça, que navegava com as luzes apagadas, apenas se vislumbrava a sombra da floresta que, nas margens, se casa com o rio, e um pouco à frente, embora pouco perceptível, a sombra do barco que nos escoltava. Aquele era um ambiente de mistério, sinistro e tristonho, a que, aliás, durante outras viagens pelo rio já nos tínhamos habituado.

Não muito longe de Binta, a escassas centenas de metros, numa curva do rio, começámos a ser alvejados por tiros de bazooka, ou de canhão sem recuo. E um calafrio enorme apossou-se de mim, e também, por certo, de todos os que viajavam a meu lado. Eram eles, os turras, que nos estavam a atacar ali, no meio do rio, quando pensávamos que a guerra para nós já não existia, e já nem tínhamos uma reles G3 para varrer com algumas rajadas as margens do rio. Era efectivamente a guerra que continuava a perseguir-nos!

E o barco de guerra que seguia à nossa frente, e nos escoltava, foi atingido lateralmente por algumas granadas, que lhe causaram bastantes estragos, tendo a tripulação sofrido um morto e alguns feridos. Viveram-se momentos de pavor, mas não houve pânico.**

Guiné > Bissau > A LFG Lira, já atracada em Bissau, ao lado da Orion, sendo bem visíveis, na ponte, os estragos provocados pelo rebentamento da granada de RPG, em chapa balística de 0.25.

Guiné > Bissau > A LGF Lira > Os danos no convés, no rufo da casa das máquinas e nos botes de borracha dos FZ .
Fotos: © Manuel Lema Santos (2007). Direitos reservados.

Entretanto, um grupo de fuzileiros que seguia na nossa barcaça, em missão de segurança, abriu fogo sobre as margens do rio, para a zona donde teria partido o ataque. Ao mesmo tempo, o barco de guerra que nos escoltava seguia, a grande velocidade, para Bissau. E a barcaça que nos transportava recebeu ordens para regressar a Binta, onde chegou pelas vinte e duas horas.

E todos nós, cerca de 500 homens, passámos a noite em frente a Binta, a bordo da embarcação.

Foi uma noite difícil de passar. A barcaça não tinha espaço para transportar, com o mínimo de condições, uma centena de pessoas, e estávamos lá dento três Companhias com as respectivas bagagens.
Os soldados quase não tinham espaço para se mexer.

Mais uma vez, tivemos muita sorte. Se os gajos em vez de acertar no barco de guerra que nos dava escolta, tivessem disparado e acertado no nosso, com tanta gente dentro, poderia ter acontecido mais um grande desastre. Bastaria apenas a confusão gerada por uma granada que acertasse em cheio no barco, aliada à escuridão da noite, para que houvesse uma tragédia de consequências imprevisíveis.

Apesar de tudo, o azar quase que não o foi. Os nossos homens, para além do incómodo do atraso da viagem e da noite passada no meio do rio, sem um agasalho que os protegesse da humidade, nada mais sofreram.

Mas não deixou de ser para todos nós mais um grande susto com o qual já ninguém estava a contar. E ali tão perto de Binta não havia memória de que os barcos de guerra tivessem sido alguma vez atacados.

(Continua)
____________

Notas de CV:

(*) O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), edição de autor.

(**) Vd. poste de 16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1665: Operação Larga Agora, Tancroal, Cacheu, local maldito para a Marinha (Parte I) (Lema Santos)

Em 13 de Janeiro de 1968, a LFG Lira que escoltava a LDG Alfange, depois de ter transportado 3 companhias de FT de S. Vicente para Binta, foi violentamente atacada no Tancroal com RPG, sendo atindida na ponte e no rufo (cobertura) da casa das máquinas. O resultado, além dos estragos materiais, foi dramático: 1 morto e 8 feridos, alguns deles em estado grave, sendo 2 evacuados de helicóptero e 3 de Dornier.

Vd. último poste da série de 10 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8657: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (2): Guiné, 1968

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8665: (Ex)citações (148): Licenciamento e desmobilização dos Comandos Africanos (Joaquim Sabido)

1. Mensagem de Joaquim Sabido (ex-Alf Mil Art, 3.ª Cart/Bart 6520/73 e CCaç 4641/73, Jemberém, Mansoa e Bissau, 1974), com data de 11 de Agosto de 2010:

Caríssimo Camarigo Carlos Vinhal;
Em anexo envio um relato de duas situações vividas já no pós 25 de Abril.
Se o meu Camarigo vir que este escrito pode conter algum interesse para conhecimento e informação aos demais Camarigos, podes "postá-lo".

Porque não juntei fotografia com a farda militar quando me apresentei à Tabanca, e porque, posteriormente, por ti tal me foi solicitado, seguem duas fotografias do tempo da vida militar, uma tirada cá e outra na Guiné, que foi batida após o regresso de uma patrulha, talvez em Jemberém, ou em qualquer outro local, sinceramente não me recordo.

Com um Abraço Camarigo, do
Joaquim Sabido
Évora


Licenciamento/desmobilização dos Comandos Africanos

Meus Caros Camaradas e Amigos;
Recebemos, há dias, remetido pelo nosso sensato e ponderado Camarigo Carlos Vinhal, um e-mail com a entrevista que o Senhor Coronel Fabião deu, há alguns anos atrás, à Senhora jornalista Maria João Avilez.

Confesso que nunca tinha lido esta entrevista, mas nela verifico a existência de, pelo menos, algumas omissões, designadamente, quanto à questão do licenciamento da Tropa Africana e do consequente assassínio de alguns desses militares que foram nossos Camaradas de armas. Assim, por ter tido conhecimento directo dessa fase, em virtude de me encontrar de serviço dia sim, dia não, tendo como incumbência a guarda ao Palácio, vi, ouvi e vivi algumas coisas. Para conhecimento e eventuais reflexões dos meus Camarigos, nomeadamente, para a “velhice” que já regressara com a missão cumprida, relato sucintamente o seguinte:

1 – Relativamente ao licenciamento/desmobilização dos Comandos Africanos, que então foi levada a efeito, omitiu o então Sr. Governador:

Quando da primeira vez que o Senhor Governador se deslocou ao quartel dos Comandos Africanos das NT, com a proposta para que eles voluntariamente e sem qualquer contrapartida, entregassem as armas e as munições que tinham em seu poder – era essa a questão fundamental para o alegado licenciamento – tal foi peremptoriamente negado pelos elementos dos Comandos Africanos. Como o Senhor Governador insistia na necessidade da entrega das armas, nesse dia, teve que de lá “fugir” – é esta a palavra correcta – entrando no carro à pressa, sob vaias, tendo, inclusivamente, apanhado alguns “calduços” e umas quantas “palmadas”, tendo outros sido distribuídos, democraticamente, pelo seu ajudante de campo o então Senhor Capitão da Força Aérea, Faria Paulino.

Então, regressaram ao Palácio em marcha acelerada, tendo eu, de imediato, sido chamado ao gabinete do Senhor Ajudante de Campo, de quem recebi instruções no sentido de reforçar a guarda para essa noite, já que o Senhor Governador esperava um eventual ataque ao Palácio. Mais me tendo sido ordenado que, batesse e arrasasse, com o armamento que havia disponível no Palácio, o Bairro do Pilão, porque era de lá que o esperado ataque partiria.

Na verdade, aqui fiquei com muitas e sérias dúvidas quanto à disponibilidade que, quer eu, quer o restante pessoal que integrava a guarda ao Palácio - que era composto por dois pelotões da CCaç 4641 -, teríamos para começar a fazer fogo sobre um Bairro onde residia inúmera população civil: crianças, mulheres e homens. Mas a ordem era mesmo essa e todos nós ficámos inquietos (por outro lado, pensávamos: - Não nos “lixámos” na mata, “lixamo-nos” em Bissau?) é a verdade. Conversei então com o nosso Capitão Miliciano Amâncio Fernandes, Comandante da 4641, que estivera em Mansoa, tendo-me ele aconselhado calma e ponderação e que aguardássemos pelo evoluir da situação durante o decurso da noite.

Chegou o novo dia e, felizmente, nada de grave aconteceu, para além dos habituais “tirinhos” que sempre se faziam ouvir naquele emblemático Bairro de Bissau.

Certo é que, ainda hoje me questiono e até agora não encontrei resposta, como é que teríamos respondido perante uma situação em que evoluísse um possível e então pelo Senhor Governador esperado ataque ao Palácio, provindo e com “pavio” naquele Bairro? Certamente que nos teríamos que proteger e defender, mas daí até dar cumprimento à ordem que verbalmente me fora transmitida, para arrasar com o Bairro, ia e vai uma grande distância.

Então como é que o Senhor Governador conseguiu serenar o pessoal e proceder ao almejado licenciamento/desarmamento? De uma forma simples, levou uma mala com notas de “peso” e pagou uma determinada verba por cada uma das armas entregue pelos elementos dos Comandos Africanos, a verba a que cada um deles teria direito foi encontrada em função do posto que os militares ocupavam na hierarquia militar e dos anos de serviço prestado. Se a memória não me falha, os menos graduados, os soldados com menos tempo de serviço receberam mil pesos cada um para entregarem as armas, inicialmente, fora ponderado o pagamento da quantia de 500 pesos, como valor base. Tal não aconteceu com as milícias nem com outros elementos que estiveram entre e com as NT, conforme o Camarigo C. Martins já aqui referiu, já que quando saíram de Gadamael, tiveram que ser elementos do PAIGC a dar-lhes protecção, devido ao nosso abandono à sua sorte dos elementos que integraram a Milícia.

E foi desta forma, que se processou o tão propalado desarmamento/licenciamento dos militares dos Comandos Africanos. Sendo certo que eles não pretendiam entregar as armas nem as respectivas munições, porque estavam certos do desígnio que os esperava.


2 – Conforme decorre da entrevista, ao Senhor Governador Carlos Fabião foi, pelos elementos do PAIGC que vieram para Bissau, garantido que nenhuma retaliação sob qualquer forma ou pretexto seria exercida sobre os nossos Camaradas. Mas, afinal, conforme consta e do que se tem conhecimento, tal “promessa” não foi cumprida pelo PAIGC.

O que mais me espanta na entrevista, é que o triste final destinado aos nossos Camaradas, já estava anunciado e era do conhecimento de todos em Bissau, pelo menos, sabia-se, isto é, era voz corrente na Cidade, entre os Militares Africanos do Exército Português que nos afirmavam: - Vocês vão embora e nós vamos no Morés e corta cabeça.

Parece que o Senhor Governador apenas ouviu uma parte e satisfez-se com a palavra dessa parte. Será que nunca procurou, ou não quis ouvir aquilo de que todos falavam?

Por outro lado, na entrevista, disse o Senhor Coronel Carlos Fabião que os Militares Africanos do Exército Português lhe terão dito que não pretendiam vir para Portugal, pois ficavam lá, na sua terra porque ali ninguém lhes faria mal. Não referindo, no entanto, quem lhe terá dito tal, pois todos, mas todos os Militares com quem tive oportunidade de conversar, me manifestavam a sua pretensão em vir para Portugal, atendendo ao que os esperava, ou seja, a morte já anunciada e por isso de todos era conhecida.


A este pretexto, e para confirmar o que digo, posso referir pelo menos duas situações:

i) - A primeira ocorreu no final de um dia, já ao anoitecer, em que fui chamado pelo meu Camarada que se encontrava no posto de sentinela junto à porta principal do Palácio, ao cimo da escadaria, devido ao facto de cá em baixo se encontrar um indivíduo que se locomovia em cadeira de rodas e que dizia estar armado e que iria rebentar com a frontaria do Palácio.

Ali acorri, abordei o indivíduo e, após algum tempo de conversa, ele mostrou-me o que trazia sob a manta que lhe cobria as pernas e que eram, umas quatro ou cinco granadas de mão, para além da pistola e mais não me disse, pois era sua pretensão falar com o Senhor Governador. Então, fui ter com o Cap. Faria Paulino, que comigo se dirigiu para junto do indivíduo e foi apenas perante o Capitão é que o indivíduo se apresentou: - era 1.º Sargento Comando, encontrava-se paraplégico devido a ferimentos que sofrera em combate e, já que ninguém queria saber da sorte dele(s), pretendia, pelo menos, que o Senhor Governador lhe garantisse por escrito, que a mulher e os filhos, após ele ser levado para o Morés e lhe cortarem a cabeça, continuariam a receber do Estado Português uma verba a título de pensão. Se assim não fosse, ele morreria já ali, mas pelo menos rebentaria com a fachada principal do Palácio. Após cerca de duas intermináveis horas de conversa com o nosso Primeiro, o Cap. Faria Paulino conseguiu convencê-lo de que lhe agendaria uma reunião, num outro dia, com o Senhor Governador porque nesse dia e a essa hora, ele não se encontrava no Palácio, tinha saído de helicóptero e como já era quase noite não iria regressar.

ii) - Num outro dia, em que não me encontrava de serviço, passeava em Bissau com o então Capitão Pára Valente dos Santos, mais conhecido na “guerra” como o “Astérix”, e encontrámos um grupo de cinco elementos, trajando já civilmente e que ao encontro dele/nós vieram. Eram Militares que pertenciam ao Grupo de Combate do então Capitão Marcelino da Mata - que então já se encontrava em Portugal. Todos eles, sem excepção, manifestaram ao Cap. Valente dos Santos, que com eles estivera e combatera em muitas Operações, o perfeito conhecimento que tinham do que lhes iria acontecer. Rogaram o favor de que o Capitão intercedesse junto de quem tivesse competência para lhes conceder a necessária autorização no sentido de conseguirem vir para Portugal.

A resposta que o Capitão Valente dos Santos lhes deu, foi a seguinte: Estivera presente em reuniões com o Senhor Governador, com o Comandante-Chefe (o então Senhor Brigadeiro Figueiredo) e com os representantes do MFA na Guiné, e as instruções que havia eram no sentido de que, apenas beneficiavam de autorização de transporte para Portugal, os Oficiais das Tropas Africanas.

Tive oportunidade de, logo após o encontro supra descrito, conversar com o “Astérix” e questionei-o do porquê de não se possibilitar a ida dos Camaradas que quisessem ir para Portugal, independentemente do posto que tinham na hierarquia militar, tendo-me ele respondido, que eram ordens recebidas dos Comandantes do MFA, no Continente, com as quais, fiquei certo, ele próprio não concordava, devido ao facto de ser, também ele, conhecedor do que o futuro reservava a esses nossos Dignos Camaradas.

Não posso deixar de dizer que, com estes relatos, não é minha intenção desprestigiar a boa imagem que o Senhor Coronel Fabião tenha deixado, nem, muito menos, beliscar sequer, a memória do último Governador da Guiné, pois aprendi a respeitá-lo quer como Militar, quer como Homem, durante aquele período de tempo em que desempenhei funções na guarda ao Palácio e, depois, já em Portugal, devido a algumas posições que ele assumiu no desempenho das altas funções que lhe foram cometidas. Quanto refiro, faço-o sempre com o devido respeito.

Com a Camariga saudação e um fraterno Abraço, do
Joaquim Sabido
Évora
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8574: Os nossos médicos (41): Por fim, e não menos importantes, os nossos anestesistas (C. Martins / Joaquim Sabido / J. Pardete Ferreira)

Vd. último poste da série de 12 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8663: (Ex)citações (147): Guidaje – 1973. Esclarecimentos (José Manuel Pechorro)

Guiné 63/74 - P8664: Notas de leitura (264): A Guerra de África 1961 - 1964, por José Freire Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Julho de 2011:

Queridos amigos,
Aqui vai o que parece de mais relevante deste terceiro volume do livro publicado em 1994 e 1995, e agora reeditado pelo Círculo de Leitores, ocorre perguntar se o blogue não se podia lançar na empreitada de dar voz e escrita aos protagonistas da Guiné, nos mesmos moldes em que José Freire Antunes trabalhou com a sua equipa. Seria tudo uma questão de esquematização, atendendo à cronologia dos acontecimentos, incitando os protagonistas disponíveis a reflectirem em função da documentação conhecida, do que experimentaram e da leitura que esta distância permite.
Aqui fica a sugestão para um volumoso mas exaltante trabalho de casa.

Um abraço do
Mário


A Guerra de África, 1961-1974, III volume, por José Freire Antunes

Beja Santos

A reedição de uma das mais impressionantes e abrangentes recolhas de testemunhos de personalidades ligadas à guerra colonial merece ser saudada pela sua incontestável importância para quem quer aprofundar conhecimentos acerca dos três teatros de operações, motivações, evolução e desfecho de todo o processo político-militar (A Guerra de África, 1961-1974 III volume, Círculo de Leitores, 2011).

Compreensivelmente, aqui, o destaque vai para aqueles que têm uma ligação inquestionável com a Guiné.

O primeiro testemunho vem de Lemos Ferreira, general da Força Aérea que serviu na Guiné entre 1971 e 1974. Diz ele: “Quando fui para a Guiné os meios aéreos que lá existiam eram extremamente limitados. Havia uma desproporção do dispositivo militar terrestre: cerca de 40 mil homens, entre milícias locais, forças locais e forças metropolitanas. E, para um território com a dimensão do Alentejo, 40 mil homens era muita gente. A parte aérea envolvia 50 a 60 pilotos. Tínhamos assim, por um lado, 40 mil homens que suportavam as agruras que tinham que suportar. Por outro lado, os 50 ou 60 pilotos, 70 pilotos no máximo. Eles tinham o chamado risco diário e a todas as horas, porque tudo estava pendurado neles, de uma maneira ou de outra.

Era preciso transportar pessoas, ia o DO. Era preciso levar o correio ia o DO. Era preciso fazer uma evacuação sanitária, ia o Allouette-3. Era preciso fazer uma evacuação e iam uns quantos helicópteros, um DO, dois DO, mais um Nordatlas ou dois, um Dakota, e mais não sei quê, e mais não sei quantos Fiat (…) Havia já uma desagregação pela repentina alteração das ideias. No consulado de Salazar, bem ou mal, sabia-se o que queria. Mas depois já não era assim. Éramos nós, os responsáveis directos, que estávamos nos locais, que íamos explicar às pessoas a situação. E acontece que tão depressa me diziam que eu estava numa operação de guerrilha como diziam que o país está em guerra, como diziam que se estava numa operação de polícia. Eu via-me na contingência de ter que explicar às pessoas qual era exactamente o meu papel – era eu polícia, antiguerrilheiro, militar, o que é que eu era. Tudo se passa muito rapidamente quando as coisas entram em desagregação. Nessa altura, a convicção do PAIGC era a de que seria possível uma vitória militar e então arriscou e fez o contrário da guerrilha, que era aparecer no terreno com forças relativamente vultosas. Eles consideravam que o que faria a diferença seria a parte aérea. Isto foi perfeitamente claro e apareceram os mísseis Strella (…) Tivemos que ser inventivos: se a ideia do adversário era de que a Força Aérea estava de gatas, havia que provar o contrário. E provar o contrário como? Com a utilização muito mais intensa da arma aérea. Eu nunca fiz tantos bombardeamentos na vida, nunca fiz tantos disparos, como nessa altura”.

O segundo testemunho vem do brigadeiro Martins Marquilhas que serviu na Guiné entre 1966 e 1968.

Depois de expor a situação de Angola, que ele considera que em 25 de Abril estava 90% controlada, tece o seguinte comentário: “O mesmo não acontecia na Guiné. Eu só me senti na guiné um bocado em balso quando estive a fazer uma operação de 5 dias, a armadilhagem das passagens do rio Corubal, porque havia infiltrações através daqueles sítios onde a vegetação não permitiam a ninguém entrar, mas onde havia locais por onde uma canoa entrava. Eu estava a 20 dias de me vir embora. Só levei para lá parte da minha tropa e depois deram-me de reforço uma série de companhias e tive de fazer esta operação de 5 dias em terreno sob controlo deles, em Madina do Boé, era zona nitidamente controlada por eles. Nós só íamos a Madina do Boé, onde tínhamos tropas, ou a Béli, para reabastecimento, e eu fiquei 5 dias sem qualquer ligação, a sentir que à medida íamos avançando, eles iam na nossa peugada. Tivemos confrontos violentos. Houve tiroteio, tive três feridos sem gravidade. Fomos evacuados, não tínhamos ligação. Deixámos armadilhas lá postas, mas a maior parte delas funcionava era com caça. Eles para o fim, na Guiné, tinham armamento mais sofisticado do que nós. O inimigo da Guiné era mais aguerrido. Não estou a falar das elites, as elites da Guiné eram iguais às de Angola ou às de Moçambique. O magala da Guiné, que era dos fulas, era mais evoluído”.

O terceiro testemunho compete a Almeida Bruno, um colaborador dedicado de Spínola e depois comandante do batalhão de Comandos Africanos. Falando de 1968, Bruno considera que a situação militar se caracterizava assim: “as forças portuguesas tinham perdido iniciativa, estavam remetidas a uma situação meramente defensiva e a liberdade dos movimentos no teatro de operações era exclusivamente das forças especiais. Havia a ideia de se garantir a soberania com a ocupação e cobertura de área, o que implicou a disseminação da tropa ao longo de todo o teatro de operações, perdendo-se capacidade de intervenção e iniciativa na acção… A noção que tenho é que as nossas unidades não saiam dos quartéis. Estávamos empatados com o PAIGC. Spínola renovou o dispositivo, não se podia jogar à defesa, impôs a concentração de meios, reformaram-se as forças especiais que passaram para o comando directo do comandante-chefe. Passou-se à ofensiva porque, dizia Spínola não se negoceia em situação de inferioridade. Bruno cola-se às doutrinas de Spínola: “Aquele tipo de guerra só se resolvia politicamente. Por isso é que eu sempre defendi o marechal dizendo que o conceito da “Guiné melhor” é dele. Salazar viu em Spínola um tenente-coronel em tronco nu, de monóculo e pingalim. Mas enganou-se, porque quando o chamou ele era outro homem (…) O desaparecimento de Salazar abriu perspectivas a Spínola. Nós estávamos em boas condições operacionais em 1969-1970. Tínhamos retomado a iniciativa, estava a avançar o plano de reordenamento, o Carlos Fabião dominava a grande força político-militar da Guiné que eram as milícias (…) Nós tínhamos a ideia da independência dos territórios não como foi feita mas por fases. E o nosso projecto foi escrito e entregue a Marcello Caetano (…) Acho que foi uma pena não termos conseguido pôr de pé o nosso projecto que era, quanto a mim, o melhor para os africanos e para nós também”. Almeida Bruno espraia-se sobre as operações que coordenou, os acontecimentos do chão manjaco que culminaram com o massacre de três majores e um alferes em 20 de Abril de 1970, as iniciativas de conversação com Senghor que Caetano proibiu. Trata-se de um longo depoimento em que Bruno contesta a primazia de ocupação do território pelo PAIGC. Contesta que até Julho de 1973 se pudesse considerar que a Guiné estivesse à beira de uma derrocada. E termina assim: “Na Guiné não havia condições para ser criado um Dien Bien Phu. Um Dien Bien Phu tinha que ser Bissau e Bissau, porque está encostada ao mar, nunca o poderia ser, a menos que o PAIGC aparecesse com uma marinha de guerra superior à nossa. Eu perdi o meu gosto pela Guiné a partir do momento em que vi que a nossa solução política estava perdida, porque os políticos de Lisboa não tinham entendido a nossa mensagem. Quando percebi que tinha perdido essa batalha, só vi uma hipótese: derrubar o regime.

O quarto testemunho é dado por Manuel dos Santos, o operacional do PAIGC que tinha a seu cargo a responsabilidade dos misseis Strella. Explica como aderiu ao PAIGC, destaca as diferenças da governação entre Schulz e Spínola, opina sobre a invasão de Conacri e a cedência em 1972 dos mísseis Strella pela URSS, dando conta do abalo que este novo armamento provocou nas tropas portuguesas. E emite o seu juízo sobre o desfecho da guerra: “Penso que o Governo português encarou a perda da Guiné como uma eventualidade possível. O Bethencourt Rodrigues chegou lá quando já estava praticamente tudo acabado. Lembro-me que a chegada do Bethencourt Rodrigues foi saudada com uma operação, talvez a última operação ofensiva que os portugueses fizeram. Foi uma operação no chão manjaco com duas companhias de comandos que se infiltraram ali de helicóptero mas que os helicópteros já não puderam ir buscar por causa dos mísseis terra-ar. Essas duas companhias foi perfeitamente destruídas e até capturado o comandante de uma delas”.

Este terceiro volume inclui ainda depoimentos de grande interesse como os de Ferrand d’Almeida, o papel desempenhado pelas enfermeiras pára-quedistas, a opinião de várias governantes sobre a situação económica e financeira dos últimos anos do regime e um ensaio do brigadeiro Lemos Pires sobre doutrina e prática na guerra de África.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8652: Notas de leitura (263): Guinéus, de Alexandre Barbosa (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P8663: (Ex)citações (147): Guidaje – 1973. Esclarecimentos (José Manuel Pechorro)

1. O nosso Camarada José Manuel Pechorro, (ex- 1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 19 - Guidaje -, 1971/73) enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas,

Tentei introduzir uma resposta no poste P8658: (Ex)citações (146): Guidaje - 1973, um comentário e algumas interrogações (José Manuel Pechorro / Juvenal Amado), em seguimento ao meu comentário no P8644, mas como o texto é extenso não consegui.

Assim, agradeço a publicação do texto e 2 fotos anexas sobre Guidage, no blogue, tentando responder às duas perguntas do Juvenal.

Amigo camarada Juvenal:

Estive com o Sr. Cap Cav Salgueiro Maia em Santarém, estagiei no Centro Cripto, na Escola Prática de Cavalaria.

No dia 29 chegou a 6ª coluna auto a Guidage, comandada pelo Sr. Cap Jorge Rodrigues (Cmdt da CCaç 14), onde vinham integradas a 38ª CCmds, parte da CCaç 4512, CCaç 3414 - Cumeré, Gr esp  mil 342 – Olossato, Gr Esp Mil - Farim (?) e CCav 3420.

Segundo conversas que ouvi, foi a 38ª CCmds que teve o principal embate com a guerrilha, durante o percurso…

Dei pelo aproximar do Cap Cav Salgueiro Maia ao posto de comando, onde estava próximo o Sr. Ten Cor Cav Correia de Campos, não dando mostra de esgotamento e vinha dizendo, já próximo e repetindo: "tenho ("8") homens que querem desertar para o Senegal", na presença de soldados do quartel e do Comandante de Guidage. Os soldados da CCav 3420 chegaram fortemente armados e muito cansados; reconheci um moço de Santarém.

Não li o livro deste oficial, que escreveu sobre o cerco, mas baseado em pequenos relatos que li neste blog, em:

Guiné 63/74 - P5774: Notas de leitura (63): Salgueiro Maia (2): Guidaje numa descrição digna do Apocalypse Now (Beja Santos), Sábado, 6 de Fevereiro de 2010:

"O chão estava lavrado por granadas, as casas, todas atingidas, pare-ciam ruínas, os homens viviam em buracos, luz e água não havia... como que para nos cumprimentar, pelas 21 horas somos flagelados por um morteiro de 82, com as granadas a cair em grupos de cinco e, para cúmulo, granadas nossas de 81 mm, das capturadas na coluna de reabastecimentos, agora disparadas contra nós. No dia seguinte, pouco depois do alvorecer, inicia-se a coluna de regresso com o pessoal que, até à data, tinha sobrevivido e que, para além dos sofrimentos de que já padecia, deitado sobre colchões velhos, saltava como pipocas cada vez que a Berliet passava num buraco".

E a descrição que ele faz de Guidage é perfeitamente dantesca:

"A enfermaria e o depósito de géneros tinham sido praticamente des-truídos; como assistência sanitária, tínhamos um sargento enfermeiro e alguns maqueiros. O pessoal dormia e vivia em valas abertas ao redor do quartel. Esporadicamente, errava-se por lanços por entre os edifí-cios ou o que deles restava. Como dormir no chão não é muito agradável, na primeira oportunidade passei revista aos escombros e tive sorte: descobri dentro de um armário que tinha pertencido a um alferes madeirense que ficou sem uma perna uma farda nº 3, o que me permitiu lavar o camuflado e, como prenda máxima, um bolo de mel e uma garrafa de vinho da madeira quase cheia e inteira no meio de tudo partido. Com isto fiz uma pequena festa com três ou quatro homens, porque era perigoso juntar mais gente. Nesta altura pensei em, depois de regressar a Bissau ir ao HM 241 saber quem era o alferes para lhe agradecer tão opíparo banquete, mas tal não foi possível e ainda hoje tenho esse peso na consciência.

Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo da artilharia, onde houvera quatro mortos e três feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de morteiro 82 com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com cibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito - consistia numa poça de sangue seco, cor castanha com 2 a 3 mm de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os col-chões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão. Depois dar volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala, onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado que, sem esforço, ganhou um colchão, e sem saber de onde ele tinha vindo".

Noutra parte, que não recordo onde li, talvez no blog, seguindo a mesma lógica,  afirmou, salvo erro:

- "Dos cerca de 40 ou 50 ataques do mês anterior (Abril), em Maio Guidage sofreu 167!":
Em Abril sofremos um ataque com armas ligeiras no dia 6, o dia dos mísseis Strela e do abate das duas DO27 e do T6,e uma flagelação no dia 28.
Durante o mês de Maio fomos atacados e flagelados 45 vezes; sendo a última a do dia 29 pelas 21 horas. 36,foram antes do dia 19...

- “Em Guidage os mortos foram enterrados na parada!”

As campas foram abertas entre a vala e o arame farpado, próximo da caserna abrigo do 1º pelotão.
. . . . 0 . . . .

Trata-se de uma versão adaptada, de Guidage… Parece descrever uma batalha, de zona habitacional francesa, próxima das trincheiras da 1ª Guerra Mundial, tudo arrasado e destruído!

Fomos flagelados com granadas de mort 81 (1 ou 2 não explodiram) e deduzimos tratar-se das granadas que vinham nas viaturas da coluna Binta-Guidage, do dia 8 de Maio, acidentada com mina anti-carro e fortemente atacada durante a noite e madrugada do dia 9, foram abandonadas, sendo destruídas de imediato pela nossa aviação… Mas estas granadas apareceram 3 ou 4 dias depois da coluna, não a 29…

As moranças (casas da tabanca), edifícios do quartel e abrigos, em parte atingidos, não ficaram destruídos ao ponto de não continuarem a ser utilizados...


Foto adquirida ao 1º Cabo Radiotelegrafista Janeiro (alentejano). Ao lado o espaldão do morteiro 81, vê-se o bloco de comando a casa do gerador e mota-bomba da água, o depósito, as viaturas e a porta da cantina de bebidas… Avistam-se embalagens das granadas do morteiro 81. O aspecto do terreno era este, as granadas de mort 82 e canhão s/ recuo quase não se notavam nesta terra dura… Os edifícios atingidos mostravam o que o tecto do comando mostra…

A enfermaria tinha placa em betão armado, atingida “duas ou três” vezes, aguentou e continuou a ser frequentada e utilizada.

Fotos adquiridas ao 1º Cabo Radiotelegrafista Janeiro (alentejano). Enfermaria depois de atingida 2 ou 3 vezes, por flagelação de morteiro de 82 mm. Tinha placa de betão armado a protegê-la…

A descrição do abrigo alvejado, na madrugada do dia 25, não corresponde... Faço ver o que aconteceu na P5479 de 16/12/2009. A granada de morteiro caiu e explodiu, no canto da placa, em cima da parede do abrigo. Devido á explosão os estilhaços do próprio tecto causaram as baixas sofridas... Só o canto do tecto de troncos de palmeira, enfraquecido pelo tempo ficou destruído. Os que estavam próximos do canto e do tecto foram atingidos. Um alferes madeirense (o Alf Mil Inf Luciano Dinis, da CCaç 19), ficou ferido com certa gravidade no abrigo, mas ficou inteiro... Não soube de Alferes que tivesse ficado sem uma perna, naquelas condições teria falecido… O pavimento do abrigo, tinha vestígios de sangue, mas não como está descrito... Eu vi logo que se fez dia. Este sim deixou de ser utilizado.

Havia um depósito de água, um gerador eléctrico e moto-bomba que tirava a água de um furo:

No quartel não faltou a água e nem a electricidade, embora houvesse cortes: Aguardávamos nas valas, e sem luz de propósito… segundo informações, teríamos um forte ataque de vingança (algumas deram a entender que o IN estava a abandonar a zona, depois do dia 19). Houve noites escuríssimas e também de luar que parecia dia.

Desligou-se o gerador, a certa hora, para poupar combustível, devido ao falhanço de 2 colunas que não passaram...

Chegamos a ter 800 homens juntos no aquartelamento, se levavam comida, retidos alguns dias, consumiam o que levavam, tinha que haver uma diminuição na quantidade e na qualidade. A vida degradou-se… Fui sempre comer as refeições ao refeitório, mas, algumas vezes fugi para o local de abrigo mais próximo…

As granadas de mort 82 não danificavam muito o terreno… Falo em flagelações com morteiro 120, a ter acontecido, só foi entre 22 e 25 de Maio... O Sr. Ten Cor Cav Correia de Campos afirmou tratar-se de mort 82... Mas as que explodiam no quartel, notava-se mais o local da explosão no chão endurecido.

O quartel de Guidage recebeu instalações novas, cobertas com chapa de zinco, feitas pela BEng em 71/72. Não havendo ataques ou flagelações, com retretes com chuveiro de água canalizada e luz do gerador, onde ia a avioneta do sector, “estávamos na cidade”…

Cobertas as valas interiores e demolidos a maior parte dos abrigos, restaram as 4 casernas abrigos dos 4 pelotões e se não erro 5 pequenos abrigos espalhados… O aquartelamento pequeno e superlotado, teve as suas consequências…

O Sr. Cap Cav Salgueiro Maia (e a CCav 3420), salvo lapso, abandonou Guidage, na coluna auto em 12/6/1973 onde foi o Sr. Ten Cor Cav António Valadares Correia de Campos. Substituído no terreno pelo futuro Cmdt do COP 3 Sr. Maj. Inf. Carlos Alberto Wahon da Costa Campos. Os 3 já morreram.

Com calma e serenidade, os que lá estiveram, cercados, numa batalha dura e cruel, vivendo a guerra! Concordará que a realidade não foi como está descrita pelo Ex. Sr. Cap Maia...

Quanto ao abandono de Guilege:


- Em Guidage recebemos mais "duas" flagelações em Junho: No dia 1 e a 17.

Não tenho a certeza se foram três, é provável que tenha sido mais uma no dia 11, que aconteceu o que descrevo: Ao chegar a coluna, cerca das 18,15 h, com mort 82. Durante 10 ou 15 m. Além dos estrondos, foram nítidos os clarões... Caíram na parada perto do comando e da enfermaria, local de maior aglomeração de soldados... A rapidez como desapareceram! Por milagre não tivemos baixas.

O Sr. Ten Cor Cav Correia de Campos estava no canto exterior do edifício do comando e não nos acompanhou em corrida para o refúgio do posto de rádio; apareceu e lá se meteu, foi das poucas vezes que o vi procurar abrigo. Fechamos a porta.

O suposto ataque de vingança, pelo nosso ataque a Cumbamory e a sua quase total destruição, tinha por fim reter as nossas forças operacionais no norte? Não chegando socorro a Guileje ou Gadamael nas devidas condições.

- Não quero julgar ninguém. Cada quartel teve a sua cruz... Não sou a pessoa habilitada para o fazer:

Em Bissau e o PAIGCV, certamente esperavam maior resistência em Guilege e se esta tem acontecido, não daria tempo para o socorro aparecer?

Um abraço a todos,
José Pechorro
1º Cabo Op Cripto da CCaç 19
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

11 de Agosto de 2011 >Guiné 63/74 - P8658: (Ex)citações (146): Guidaje - 1973, um comentário e algumas interrogações (José Manuel Pechorro / Juvenal Amado)