quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8655: História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74): Ilustrações (Parte II) (Jorge Canhão)




Mais três Ilustrações retiradas da História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74), unidade que foi rendida pelo BCAÇ 4612/74 (Mansoa, 1974)... (Sobre esta aparente confusão de dois batalhões com o mesmo número, ler o poste do nosso camarada Agostinho Gaspar, P7414, de 10 de Dezembro de 2010).

Um exemplar da história desta unidade, o BCAÇ 4612/72,  foi-nos oferecido em tempos  pelo nosso camarigo Jorge Canhão (ex-Fur Mil 3ª C/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74).  O Jorge há havia aqui publicado uma série de postes com a história do batalhão... (se bem que incompleta, segundo julgo crer). 

Como já foi referido em poste anterior (*), este documento tem cerca de uma dúzia de interessantes (e raras) ilustrações, feitas por um ilustre desconhecido (toca a descobrir o autor, nminha genete!), a estilete sobre "stencil"... 
 
Na minha opinião,  têm qualidade suficiente para merecerem também vir à luz do dia, pelo menos algumas que, na fotocópia, apresentação melhor resolução. 

Possivelmente depois das férias, retomaremos alguns aspectos da actividade operacional deste batalhão que foi rendido já depois do 25 de Abril de 1974 pelo BCAÇ 4612/74 (unidade a que pertenceu o nosso co-editor Eduardo Magalhães Ribero).

Imagens: Cortesia de  Jorge Canhão (2011).
 
[ Selecção / edição / legendadem: L.G.]

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Nota do editor:

(*) Vd., poste anterior da série > 5 de Agosto de 2011 >Guiné 63/74 - P8640: História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74): Ilustrações (Parte I) (Jorge Canhão)



Guiné 63/74 - P8654: Parabéns a você (299): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 e Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CCAÇ 4745


Com um abraço do camarada Miguel Pessoa, Tertúlia e Editores
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Notas de CV:

- Alberto Nascimento foi Soldado Condutor Auto na CCAÇ 84 que esteve em Bambadinca nos anos de 1961 a 1963

- Tomás Carneiro foi 1.º Cabo Condutor Auto na CCAÇ 4745 - "Águias de Binta" que esteve em Binta, Cumeré e Farim nos anos de 1973 a 1974

Vd. último poste da série de 9 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8649: Parabéns a você (298): Anselmo Garvoa, ex-Fur Mil da CCAÇ 2315/BCAÇ 2835

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8653: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (38): O Sétima Dia


1. O nosso Camarada José Eduardo Oliveira - JERO -, (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), enviou-nos a seguinte mensagem:

O SÉTIMO DIA

A vida militar cria laços difíceis de explicar para quem “não andou por lá…”
Depois, já na vida civil, com o correr dos anos esses “laços” estreitam-se $em relação a alguns camaradas. O contrário também por vezes acontece quando, com o decorrer do tempo, conhecemos um pouco melhor com quem lidámos quando éramos jovens de vinte e poucos anos.
Os encontros anuais dos ex-militares aumentavam ou diminuíam o "valor acrescentado” do que conhecíamos ou julgávamos conhecer em relação aos nossos antigos camaradas de armas. Nalguns casos foram precisos anos para perceber melhor com quem tínhamos lidado durante esses anos da guerra do Ultramar.
Apesar de tudo não tivemos muitas surpresas porque os maus bocados de uma comissão de dois anos definem o carácter e a maneira de ser de cada um… sem grandes margens de erro.

O mais irreverente dos Alferes da C.Caç. 675, que serviu na Guiné dos idos de 1964-66, Artur Mendonça de seu nome, nado e criado em Felgueiras, só voltou a aparecer anos depois dos primeiros encontros anuais da Companhia.
Na foto o Capitão Tomé Pinto e o Alferes Mendonça em Binta-Guiné (1965).
Era então já engenheiro têxtil, com sinais evidentes de estar bem na vida. Era um homem de sucesso que já tinha trabalhado mundo fora e que continuava brincalhão .Era um “gozão” nato.
Ao longo dos anos sempre que nos encontrávamos contemplava-me de imediato com a recitação de uns versos ingénuos que tinha escrito e publicado num “jornal de parede” da Companhia, no Natal de 1964.
«…Lá fora não se ouvem os sinos/repicando numa harmonia jubilosa…/mas debaixo de cada “camuflado/no coração de cada soldado/ rejubila uma alma nova.»
O Mendonça tinha uma memória prodigiosa…
Tivemos que aguentar esta piada ao longo dos anos, embora por vezes não nos faltasse vontade de mandar o nosso Alferes “abaixo de Braga”. Mas como o Mendonça já vivia em Felgueiras…
Há uns dois ou três anos soube pelo Belmiro Tavares - outro Alferes da C.Caç. 675 – que o Mendonça estava bastante doente . Tinha feito quimioterapia e já sabe que a partir daí a vida sofre grandes mudanças.
O Tavares, que tem as suas raízes familiares em Sever do Vouga, visitava-o de vez em quando.
Uma semana atrás o telemóvel tocou e vimos que do outro lado estava o Tavares: - Então Kamarada tudo bem?
Nem acabámos a brincadeira habitual entre nós – Kamarada mas com “K” – porque pelo tom de voz do Tavares percebemos que ele não estava bem.
Entre soluços e poucas palavras disse-nos que estava em Felgueiras e que o Mendonça tinha morrido. O seu corpo já estava na Igreja e o funeral ia ser dentro de meia hora. Desligou de seguida sem nos dar tempo de dizer nada.
Havia que deixar passar algum tempo e foi o que fizemos.
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No passado dia 4 de Agosto viajámos para Felgueiras. O Tavares veio de Lisboa e nós apanhamos a sua boleia na estação de serviço da Nazaré, na A-8.
Tínhamos entretanto combinado telefonicamente que uma representação da “675” deveria estar presente na Missa de 7º.Dia.
Connosco viajou também o Moreira, ex-Furriel Atirador da nossa Companhia.
Durante o tempo de viagem – mais de duas horas – recordámos entre risos inúmeras “estórias” do menino “Arturinho”, como mais tarde viemos a saber que era conhecido na sua terra natal . Rimos com gosto convencidos de que seria daquela maneira que o nosso Alferes gostaria de ser recordado pelos seus pares.
Viveu a vida militar sempre a “gozar com a tropa”no limite do admissível para não ser punido. Assumia que não seria voluntário para nada mas que cumpriria os “mínimos”, pois também não lhe interessava levar uma “porrada”.
No final da comissão ,na ausência do Capitão, desempenhou por alguns dias as funções de Comandante de Companhia Interino. Aproveitou o tempo para louvar os maiores “cromos” da Companhia. Quando dizemos “cromos” queremos dizer os militares que só teriam sido exemplo em “nabices”…
Por volta das 19H00 estávamos junto da mansão do menino “Arturinho” onde viemos a conhecer a sua viúva, dois filhos e um dos seus netos.
A família estava conformada com a partida do seu ente querido. Tinham durante cerca de três anos feito tudo o que era possível para o ajudar na sua luta contra a doença e estavam convencidos que o seu familiar tinha partido sem sofrimento.
A Igreja e o Cemitério eram a poucas dezenas de metros da casa do Artur Mendonça.

Um seu neto de 7 anos, com ar de esperto que nem um rato, andava de bicicleta à nossa volta com à vontade e destreza.
Tinha sido um dos grandes amigos dos últimos tempos de vida do seu Avô, a quem ensinava com paciência como gravar programas da televisão e outras habilidades informáticas.
Seguiu-se a missa do 7º. Dia, celebrada por um sacerdote despachado.
Vinte sete minutos mais tarde estávamos fora da Capela da Pedreira.
Visitámos o cemitério, com a surpresa de ver o nosso amigo sepultado num jazigo pouco vulgar.

«…Lá fora não se ouvem os sinos/repicando numa harmonia jubilosa…/mas debaixo de cada “camuflado/no coração de cada soldado/ rejubila uma alma nova.»
Depois foi o tempo do regresso.
Viajámos até Sever do Vouga onde pernoitámos numa das casas do Belmiro Tavares.
Na noite longa que se seguiu dormi mal, muito mal e pensei longamente no menino “Arturinho”.
Julguei perceber finalmente a sua maneira de ser e a irreverência congénita de que fazia alarde.
Tinha sido criado em berço de ouro -o seu Pai tinha sido um respeitado médico da região de Felgueiras - e atingiu os diversos patamares da vida sem grandes dificuldades porque alem de ser esperto era “filho de família”…
O que, quer se queira quer não, dá sempre jeito.
Quando chegou à vida militar percebeu rapidamente os pontos fortes e fracos da vida castrense.
E gozou sempre que pôde com a tropa. Na boa…
«…Lá fora não se ouvem os sinos/repicando numa harmonia jubilosa…/mas debaixo de cada “camuflado/no coração de cada soldado/ rejubila uma alma
nova.»
Até sempre, menino Arturinho.
Até sempre, meu Alferes Mendonça.
JERO
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Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:

3 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8208: Histórias do Jero (37): 3 de Maio de 1966, o dia D de desembarque em Lisboa (José Eduardo Oliveira)

Guiné 63/74 - P8652: Notas de leitura (263): Guinéus, de Alexandre Barbosa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2011:

Queridos amigos,
É só para recordar que este livro se vendia nas tabacarias da Guiné, ouvi mesmo comentários mordazes acerca de relatos que pareciam ficcionados, Alexandre Barbosa descreve incursões em áreas que a guerra tornou improváveis. Só que tudo quanto ele descreveu foi anterior à guerra. Impressiona, mais do que a qualidade da prosa, a autenticidade da sua devoção pelas pessoas e a natureza, a exaltação da caça com as suas preliminares e por vezes o seu trágico desfecho com a morte do caçador.
Uma Guiné de nostalgia que apetece reler, pois pesa a estima e a devoção por aquele cantinho africano que guardamos no coração.

Um abraço do
Mário


Guinéus: contos, narrativas, crónicas

Beja Santos

“Guinéus”, de Alexandre Barbosa, foi publicado pela Agência-Geral do Ultramar em 1967. O livro tinha sido distinguido com o Prémio Literário Fernão Mendes Pinto, modalidade de novelística, em 1963. A crítica aplaudiu, considerando que versava belos testemunhos de humanidade, com um poderoso recorte de personagens guineenses, uma mistura equilibrada entre o etnográfico. O autor viveu na Guiné durante 18 anos, provavelmente antes da eclosão da guerra, uma boa parte das suas narrativas venatórias passa-se na região Sul, em localidades profundamente afectadas após 1963. Alexandre Barbosa faz parte daquele leque de autores ainda da literatura colonial cujo discurso narrativo mistura uma atitude cosmopolita com o fascínio africano.

Falando dos bijagós, exalta o carácter identitário do povo, a criatividade da sua escultura e os aspectos por vezes desconcertantes das suas práticas animistas; um povo em que a mulher decide abertamente com quem casa, dá sinais da sua opção afectiva. Apaixonado pelos segredos das matas, Barbosa deixou-nos textos eloquentes de quem captou pacientemente, apaixonadamente, sons, cores, cheiros, basta este exemplo: “Do seu esconderijo escuta enlevado os ruídos estranhos do mato e o fascínio do canto dos pássaros de plumagem policroma. Segue com enternecimento as exuberantes correrias dos pequenos antílopes; o ar embevecido de uma gazela pintada que vigia as primeiras traquinices do filhote; labor admirável de uma colónia de abelhas silvestres; o vaivém dos pássaros tecelões levando nos bicos filamentos de capim para entretecerem os ninhos baloiçantes nos pilões, ou o galanteio quixotesco dum fritambá em redor da fêmea confundida e hesitante. Continua vigilante para ver a astúcia de um civete que espreita uma ave desprevenida, a jibóia que avança subtilmente para o roedor hirto de espanto, petrificado; o grupo de urubus, atraídos pelo odor da morte, a banquetearem-se com os restos de animal abatido, ou o curioso trabalho de equipa de uma legião de formigas pretas a transportar insectos mortos ou restos de carne das vítimas dos felinos. Uma vez por outra cai um tronco, com fragor, corroído pela baga baga; drapeja um ramo por golpes de brisa ou brincadeira de macacos ou desprendem-se mais folhas secas e encarquilhadas para se apodrecerem no solo húmido e ubérrimo”. Exemplo que vale por si: um domínio perfeito do que é possível ver, ouvir e cheirar, dito em língua portuguesa, alguém que se rende à exuberância de uma floresta tropical.

São histórias de dor, há mesmo crítica velada, ao trato colonial dominador, relatos de admiração do labor mandinga quando faz os seus diques para aproveitamento dos recursos do solo. Também admiração pelas artes cénicas dos lutadores felupes, combatendo agilmente ao som do bombolom, agradecendo sempre o talento dos caçadores nativos, não terá sido por acaso que ele lançou a seguinte dedicatória, no arranque da obra: “Aos nativos mancanhas Nicolau e Armando e ao fula Mamadú Djaló, meus fiéis pisteiros e ideais companheiros durante centenas de digressões venatórias através do mato guineense sob o sol acutilante, o cacimbo envolvente, a rija chuva e a fúria dos tornados, cenário de tantos momentos de satisfação, de desalento e, por vezes, de perigo, que sucederam para marcar os motivos mais saudosos que vivi em terras guineenses”. Alexandre Barbosa descreve como os caçadores untam o corpo com sucos vegetais para ludibriar o olfacto dos animais, munem-se de mezinhas e amuletos, guardas-do-corpo, tudo tem a sua função miraculosa: para que não suceda qualquer desastre de caça, para que haja poder de concentração no instante em que se procura abater o hipopótamo ou a onça.

Por vezes o autor deixa-se embalar pela toada a que a cultura o vincula, vai desinsofrido na encenação da escrita, o pretexto é um cenário africano, naturalista, como se exemplifica: “No penhasco onde assenta o farol não há rebentação de mar e neste lado, na ilha irmã, o quase imperceptível ondulado das águas estira-se preguiçosamente sobre o lodo reconquistado com pezinhos de lã, o terreno deixado antes no fadário rotativista das marés (…) O ambiente de quietude claustral cede vez a outro, este aspecto de chocalhante debate em hospício de alienados (…) Uma canoa gentílica demanda bolama. Ex-tronco que caiu ante a violência dos golpes de terçado e que milhentas de tasquinhadelas de machete tornou concavo e navegável.”

É uma prosa naturalista, épica, de comunhão lírica, de glorificação pelo korá, tambor, dança frenética, de sentido respeito pelo trabalhador africano que desbravou e dominou a terra. O seu empolgamento precede tudo quanto a guerra veio deixar para trás, só assim se explica como proponha entusiasmado o turismo nas regiões do Corubal, as visitas à lagoa de Cufada ou à mata de Cantanhez.

“Guinéus” foi dado à estampa profusamente ilustrado, tem fotografias do maior interesse: dançarino bijagó antes de iniciar a dança do “peixe-verga”, vemos ninhos de pássaro-tecelão, exóticos penteados balantas, cerimónias islâmicas, pescadores mandingas da ilha de Bolama, cenas de alpendre, entre outras. Para ler, recordar e até comparar com tudo aquilo que nós vivemos, naquele nosso tempo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8642: Notas de leitura (262): Marcello e Spínola: A Missão do Fim (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P8651: Blogpoesia (157): Não sei qual é mais feio: / se o meu joanete, se a minha alma, se o mundo... (Luís Graça)


Lourinhã, entre a Praia da Areia Branca e a Praia de Vale de Frades > Agosto de 2011 > Pedras do meu caminho...

Foto (e texto): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados


Dedicatória:

Em homenagem aos nossos médicos, que passaram pelo TO da Guiné (1961/74), em geral; e ao meu ortopedista, o Dr. Francisco Silva, em particular...  E a cima de tudo, a todos os caminhantes que, como eu, precisam das patas, das duas patas,  a da esquerda e ada direita, para caminhar... e aprender que o caminho se faz... caminhando, como dizia o poeta. (LG)

Não sei qual é mais feio:
se o meu joanete, se a minha alma, se o mundo…


Fui fazer um raio X
à pata, esquerda.
É tão feio o esqueleto, assim descarnado.
Uma merda, dirá o poeta, desbocado,
pondo os pontos nos ii.
Mesmo que não seja o esqueleto, inteiriço,
que seja apenas uma pata,
até mesmo só a pata esquerda,
la gamba sinistra,
como dizem os italianos,
a pata que em todo o caso
já calçou muita bota
cambada, cardada,
civil e militar.
Tanto a esquerda como a direita, pois claro,
que ambas aprenderam
a andar a toque de caixa...
- Esquerda, direita, esquerda! -
e já levaram muita pisadela nos calos.

- É uma merda, doutor, o esqueleto
visto  ao negatoscópio.
Nem sequer no livro de anatomia,
eu gosto de te ver, ó esqueleto meu!
 O ortopedista não concorda:
Afinal, é onde ele põe a mão
e ganha o pão nosso de cada dia.
P'ra mim, desculpem-me a franqueza,
todos os meus amigos hipocráticos,
e todos os meus camaradas, medalhados ou não,
é feio o esqueleto, assim radiografado.
Nu.
Sem pêlo.
Sem chicha.
Sem embrulho.
Sem a farda.
Sem os galões.
Sem as medalhas.
Sem os tendões.
Sem os ligamentos.
Sem o papel celofane.
Sem a epiderme.
Sem o nervo à flor da pele.

É peremptório o relatório, médico:
Tenho o dedo grande do pé todo torto.
Dois dedos encavalitados.
Um joanete.
Um trambolho.
Sequelas, quiçá, da vida,
das tropelias da vida,
das pedras das vielas e calçadas,
dos trambolhões da tropa, da Guiné, eu sei lá!,
das marchas a mata-cavalos.
das cambanças
por lalas e bolanhas,
por rios e tarrafos.
- Faca com ele, o joanete!-,
diz o ortopedista,
franzindo o sobrolho.

Fui fazer um ressonância magnética.
À alma.
Translúcida como uma alforreca,
espalmada como um linguado do estuário do Tejo.
- É feia a alma -,
diz-me o imagiologista,
quebrando o dever de reserva da intimidade
e de sigilo profissional.
Mas eu não posso deixar de concordar:
É feia, a alma, sem carne nem osso.
- Tens um diabrete a atormentá-la,
um irã mau -,
diz-me o Doc, curandeiro, balanta,
do Largo de São Domingos,
na baixa lisboeta,
cais de náufragos do império.
Sequelas porventura do tempo, diz ele,
em que fui o guardião de Nhabijões
onde o bulldozer deitou abaixo todos os sagrados poilões,
porque reordenar era preciso…

- Opero ou não opero,
eis a minha questão existencial -,
segrega-me ao ouvido
o meu cirurgião da alma,
com a maior calma,
diga-se, deste mundo.

Faço uma tomografia axial computorizada
ao mundo.
Ao meu planeta outrora azul.
Entre o tá-tá-tá e o pum-pum-pum do aparelho,
passo em revista o meu mundo,
descubro-o medonho, pavoroso, cavernoso.
Mais feio que o meu joanete,
Mais lúgubre que a minha alma.
Tem um cancro, generalizado,
local, regional, global.
Com metástases por todo o corpo,
da crosta ao coração,
ao mais fundo do fundo,
do osso até ao tutano.

Fui, com o meu planeta outrora azul,
à Oncologia,
baixaram a cabeça,
em sinal de impotência e negação:
- Em boa verdade,
não sei como extirpá-lo,
não há ciência e tecnologia médicas
para tamanha patologia,
diz-me o cirurgião do mundo…

Explicou-me,
em traços largos,
com um desenho
na irrisória capa de uma revista cor de rosa,
o prognóstico, reservado:
- Não há mais mundo, meu caro…
Muito menos azul ou rosa, verde ou vermelho.
Não há mais mundo à volta da carne,
do osso, da pata, do joanete, da alma…

Resta-me,
impávido e sereno,
o verídico do Dr. Francisco Silva,
meu amigo e camarada da Guiné,
irã bom do poilão da minha tabanca,
que tem encontro marcado com o meu pé, esquerdo.
A partir do dia 1 de Setembro.
- Depois das férias,
vamos começar por tratar desse joanete…

(E eu tenho a secreta esperança,
confesso,
de que,  se a minha pata ficar mais bonita,
a minha alma também fica mais jeitosa…
e quiçá o mundo melhore um bocadinho!)

Luis Graça
Caminhante, entre o Vale de Frades e o Paimogo,
muitas vezes sem rede...

Lourinhã, Agosto de 2011


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Nota do editor:

Último poste da série > 5 de Agosto de 2011 >
Guiné 63/74 - P8641: Blogpoesia (156): O Sonho e a Realidade ou a angústia de uma sentinela (Juvenal Amado)

Guiné 63/74 - P8650: Recortes de imprensa (45): Guiné: Uma diligência interrompida. Porquê? Da autoria de António Vaz Antunes (Coronel de Infantaria)


1. Publica-se hoje, para quem ainda não conhece, mais um documento que faz parte da história da guerra na Guiné (mencionado no poste P8644 e matéria com o mesmo relacionada). É um reprodução integral da narrativa original que a direcção da revista “Combatente” entendeu resumir, nas páginas 47-49 da s/edição Nº 346, publicada em 12Dez2008 – já o autor - Sr. Cor. António Vaz Antunes (21JUN1921 a 14OUT1998) havia falecido, com a simples indicação «síntese de documento enviado à LC». Na dita revista foram omissos o título original do documento bem como a data em que o mesmo foi enviado à direcção-central da Liga dos Combatentes. Também por omissas foram dadas as funções militares que o autor então desempenhava na Guiné [comandante do BCAÇ 4512/72 - RI15, Farim 13Jan73-29Ago74], e a data do seu falecimento.




Guiné: uma diligência interrompida. Porquê?
António Vaz Antunes
(Coronel de Infantaria)
Mafra, Abril de 1987



Depois da Operação Guidaje, em Maio de 1973, para apoio e reabastecimento àquela guarnição, sucederam-se vários movimentos de colunas, de ida e volta, todas com ponto de passagem em Farim, cujo sector era, por isso, muito empenhado em picar itinerários, montar seguranças, alimentar e prestar toda a ordem de apoios ao pessoal de passagem. Isto provocava um enorme desgaste nos elementos dos órgãos de comando do sector que, durante vários dias, não puderam contar com um horário normal de actividade. Dormir o indispensável era nas horas mais variadas, de dia ou de noite, nos curtos intervalos de acalmia.

Foi assim que recebi com alguma satisfação a ordem do Comando-Chefe para montar um comando avançado do sector em Cuntima. A mensagem rádio acrescentava laconicamente, como justificativo, que as informações do Quartel General davam como muito provável uma acção inimiga sobre aquela guarnição que ficava a escassas centenas de metros da fronteira com o Senegal.Relacionei esta ordem com as notícias que referiam a presença de carros de combate na Guiné-Conackry perto da fronteira entre o Senegal e a Guiné Portuguesa, ao que constava destinados a um ataque a Cuntima. Porém as informações recolhidas nesta guarnição continuavam a confirmar que o Senegal não autorizava a passagem pelo seu território.


O comandante da companhia Capitão Miliciano Vasco Vale, ao ver-me chegar imprevistamente, não escondeu a sua surpresa nem tão pouco a sua preocupação por deduzir, após a explicação da minha presença, que se punha em dúvida a sua capacidade para enfrentar a situação.

Tranquilizei-o, afirmando-lhe que não ia interferir no seu comando, confiava no seu serviço de informações (que não previa nenhum agravamento da situação a curto prazo) e que ia aproveitar para descansar. Aliás, com o mesmo intuito, levava comigo o oficial de operações (1) e o oficial de transmissões (2) que eram os mais desgastados com a Operação Guidaje e os problemas de coordenação que se seguiram com as já referidas colunas.

Distribuídos os alojamentos, depois da troca de impressões sobre a situação no subsector, os três demos de imediato cumprimento ao nosso programa: pôr o sono em dia.

A descontracção que propositadamente vivia apenas era importunada pelo clima que, em Junho, a preceder o período das chuvas, era ainda mais incómodo.

As manhãs eram agradáveis, pelo bulício resultante da chegada de senegaleses que, a partir das nove horas, acorriam ao nosso Posto Médico.

Os homens da Companhia Eventual também ali sediada, constituída por Fulas, todos voluntários, e sem quadros (3), quando estavam presentes aproveitavam para se abeirar das vistosas senegalesas todas enfeitadas, e faziam-lhes a corte à sua maneira: era a hora do ronco dos namorados.

O Capitão Vale entretanto colhia habilmente as notícias que lhe interessavam. Nada de novo.

No dia 29 de Junho, sábado, surgiu o inesperado: três helicópteros são detectados em aproximação à pista (4) e simultaneamente uma mensagem faz saber que está a chegar [era] o General Spínola [a chegar].

Havia já vários meses que nenhum meio aéreo tinha sido visto em Cuntima, excepto para raras acções de evacuação consequência das medidas preventivas contra a utilização do míssil terra-ar pelo PAIGC. Com efeito junto à fronteira não podia arriscar-se sem as adequadas medidas de segurança por ser sempre possível um lançamento partindo do Senegal.

A aterragem dos helicópteros foi festa.

Por mim encarei com certa apreensão a visita do Comandante-Chefe. A Operação Guidaje, embora tivesse dado já origem a referências especiais e muito elogiosas, não estava para mim terminada. Aguardava a oportunidade para explicações e não me tinha preparado para a discussão que previa fosse muito dura.

Eis senão quando o Comandante-Chefe desembarca sorridente, não quis fazer o questionário que lhe era habitual nas visitas aos comandos operacionais, adiantou que confiava nas medidas tornadas pelo sector e, depois de uma breve exposição do Capitão Vale sobre a situação na sua área, pediu apenas para ficarmos a sós no Gabinete do Comandante da Companhia.

Quando supunha que iríamos entrar no caso Guidaje o General nem se lhe referiu. No tom mais cordial que imaginar se possa contou-me o que tinha sido a sua acção desde que chegara à Guiné, nos contactos com o Presidente Senghor, os contactos com os comandos do PAIGC nos tempos de Amílcar Cabral e as suas diligências na interferência da escolha do próximo Secretário Geral do PAIGC cuja eleição ia ocorrer dentro de dias.

Tudo eu ouvi com um misto de surpresa e curiosidade. Muita novidade para mim e ao mesmo tempo muitas interrogações íntimas, permanentes, mas contidas: porquê esta abertura? Porquê esta abordagem de temas tão secretos, comigo que não pertenço a tal círculo? Será só para desvanecer a minha animosidade por causa dos precedentes da Operação Guidaje? Virá aí alguma missão especial? Porquê esta conversa longa, pormenorizada, esta exposição da situação de áreas tão confidenciais?

Fiquei meio atónito quando o General, que continuava [sempre] bem-humorado, se despediu de todos e regressou a Bissau.

Sempre tive a preocupação de respeitar o segredo e habituara-me a controlar a curiosidade. Sempre considerei que, em matérias classificadas, não se deve fazer pressões nem usar habilidades para conhecer mais que aquilo que o superior entenda poder e dever dizer. Por isso não fiz perguntas, limitei-me a ouvir e apenas pretendi deduzir, mas não encontrava fácil explicação para esta visita nem resposta para as perguntas que a mim próprio punha. A dúvida mantinha-se no meu espírito.

Também os meus subordinados estranhavam o modo como tudo decorreu, tão fora do que era hábito em visitas do Comando-Chefe às unidades operacionais.

Mas eis que no dia seguinte, 30 de Junho de 1973, domingo, cerca do meio-dia, me procura um indivíduo fula, não guinéu, que eu conhecia desde que assumira o comando do sector por contactos estabelecidos em Farim. Era um agente de informações com o nome de código “Padre”, ao que se sabia pertencente ao “Front” da Guiné-Conackry e com especial aceitação no Comando-Chefe.

Nunca lhe perguntei o que fazia, mas facilmente se deduzia pelos apoios que lhe eram concedidos: era obsequiado em Farim pelo agente da DGS, vinha de Bissau, em regra, em avião militar e no sector havia instruções para lhe ser facultado transporte sempre que o pedisse. Dirigia-se a Cuntima e, dali, em regra ao Senegal.

Havíamos passado alguns serões em Farim falando em generalidades e, quando ele entendia, em problemas da guerra. Tinha formação de curso superior e falava apenas em francês e fula. Era bastante culto e muito correcto no trato. Talvez por nunca o ter importunado com perguntas incómodas, em obediência ao meu princípio de respeito pelo serviço de informações, fui, a pouco e pouco, ganhando a sua confiança e até a sua amizade.

Foi por força desta mútua confiança que ele agora me procurou e pediu que fizesse uma mensagem relâmpago para Bissau solicitando a presença do General Spínola nesse dia, ali em Cuntima, para um contacto com alguns [altos] dirigentes do PAIGC (5).

Pareceu-me, agora, perceber o que se passara na véspera.

Acedi ao pedido, redigi a mensagem, retroverti-lha [traduzi-a] para francês para verificação e fi-la seguir. Por volta das 14:00 horas é recebida a resposta de Bissau. Pretendia o Comandante-Chefe explicações de pormenor. O agente estranhou tal pedido uma vez que o General sabia do que se estava a passar e o seu retardamento podia prejudicar o resultado de todo um trabalho de meses.

Fez-se, no entanto, rapidamente novo texto, um pouco mais explícito. [e] Cerca das 16:00 horas vem a resposta à segunda mensagem: àquela hora já não se podia fazer a deslocação porque o regresso não era possível antes da noite e os helicópteros não estavam preparados para isso.

Foi um balde de água fria para o agente que, mal tomou conhecimento da mensagem saiu, desesperado; era, segundo dizia, todo o esforço perdido, o seu crédito junto do PAIGC abalado e, provavelmente, a impossibilidade de preparar outro encontro.

Não escondia a sua angústia.

Passado algum tempo regressa e procura-me. Trazia agora uma conversa com pouco nexo contrariamente ao seu habitual, e exteriorizava nervosismo. Pedia-me que o ajudasse, na circunstância, mas não concretizava a ajuda que queria.

Em dada altura, e perante o seu embaraço, pretendi acalmá-lo e fazer com que reflectisse friamente na situação: a reunião não podia fazer-se sem o General e ele não vinha, “ou acha que eu posso substituir o General” - perguntei em tom jocoso por supor que não tinha sentido resposta afirmativa. Mas eis que os olhos do meu interlocutor adquirem um brilho especial e ele me retorquiu:

- Mas o Coronel vai? É que eu não me atrevia a pedir, mas é mesmo essa a única hipótese de salvar a situação criada pela recusa do General Spínola.

Depois de argumentar que não estava credenciado para tal missão e de uma troca de impressões sobre o que ele pretendia, acabei por dizer-lhe:

- Nós estamos proibidos de contactos deste género mas porque confio em si aceito ir.

Eram cerca das 18:00 horas. O pessoal presente no aquartelamento preparava-se já para a 3ª refeição servida em quatro refeitórios separados, por razões de segurança. Chamei o Capitão Vale e expus-lhe resumidamente o que se passava. Precisava que ele, com toda a discrição, no final do jantar enviasse dois grupos de combate para os lados da fronteira na missão habitual de segurança afastada, que todos os dias era montada ao anoitecer em direcções diferentes; recomendei-lhe que desse a tudo o ar mais natural, mas esta missão tinha por finalidade actuar contra qualquer emboscada de que eu viesse a ser vítima e, se necessário, desenvolver uma acção de retaliação.

O Capitão Vale, homem já experiente na vida e com sentido prático muito refinado, bom caçador, entendeu rapidamente, perguntou-me apenas se o autorizava a acompanhar-me (disse-lhe que sim) e saiu de imediato a tomar as disposições requeridas.

Simulando ir à caça, montámos numa viatura e seguimos pela estrada cerca de 800 metros. Depois apeámos e dirigimo-nos ao marco nº 104 da fronteira. Ali chegados o agente estranhou que ainda não estivessem [lá] os interlocutores e não escondeu uma certa apreensão. No entanto aguardamos. Passados uns minutos vem alguém do outro lado, de bicicleta. Vem informar que o interlocutor está dentro do Senegal, receia vir até nós (terá dado conta do movimento das nossas tropas?) e solicita que nos desloquemos nós.

Recusei.

O agente insiste, pretende que eu me disfarce com um albornoz, mas não aceitei porque o disfarce não atenuava aquilo que eu considerava indisciplina: entrar em território estrangeiro. Ele porém pedia-me agora com todo o empenho que não desistisse de prosseguir na decisão tomada de não deixar gorar esta oportunidade única.

A argumentação convenceu-me e fui.

A noite estava cerrada. Na nossa frente viam-se as luzes de uma povoação senegalesa, já próxima. Caminhávamos em silêncio. Chegávamos ao local indicado pelo mensageiro da bicicleta, cerca de um quilómetro dentro do Senegal, quando se notou a aproximação de um automóvel que parou a duas centenas de metros, do qual saíram dois indivíduos que se dirigiram a pé para nós [a pé].

Era o [nosso] interlocutor.

O agente fez as apresentações e eu estendi-lhe a mão - o que, segundo soube mais tarde, o sensibilizou muito. Tratava-se do [ele era o] representante pessoal do Comandante Geral das forças do PAIGC.

Não podíamos demorar-nos porque era imperioso evitar qualquer detecção quer por parte de elementos das forças de segurança senegalesas quer por parte de elementos do PAIGC não envolvidos nesta diligência, e por isso o interlocutor foi directo:

- Não venho tratar de assunto pessoal nem de grupo restrito. Trata-se sim de problema[s] que diz[em] respeito a todos os combatentes do PAIGC. Andamos há já [há] dez anos nesta luta. Somos agora menos do que quando começámos. Actualmente não nos entendemos com o escalão político: eles são caboverdeanos e comunistas; e nós somos guinéus, combatentes e não comunistas. Desejamos apenas uma Guiné melhor. Já chegámos à conclusão de que, sozinhos, não somos capazes de a fazer, mas sê-lo-emos convosco. A nossa proposta é muito simples: em dia e hora que se combine acaba a guerra, nós seremos integrados nas forças da Guiné, sem recriminação nem vingança; e depois, juntos, faremos a Guiné melhor. Tudo isto tem que ser combinado em curto espaço de tempo e com o maior segredo, porque se fôr descoberto antes do tal dia e hora terei a mesma sorte que outros companheiros meus já tiveram.

Isto dito assim de chofre deixou-me um pouco perplexo e retorqui apenas:

- Do que propõe, eu, que não sou [o] Comandante-Chefe mas apenas um comandante de sector, somente posso dar como aceite com toda a certeza, já, que recriminações ou vinganças da nossa parte nunca haverá: temos todos instruções severas nesse sentido. Quanto a rapidez, amanhã mesmo vou pessoalmente dar conhecimento da sua proposta. No que se refere à segurança dos elementos que eventualmente venham a participar em conversações futuras, no caso do [se o] General comandante [chefe] concordar com a continuação dos contactos também posso garantir que os podemos recolher em qualquer ponto à vossa escolha e voltar a colocar onde desejarem.

- Eu compreendo que não pode adiantar mais do que isso, e eu próprio também apenas posso transmitir o que já disse. Não tenho poder de decisão. Mas agradeço-lhe ter vindo a este encontro e peço apenas um sinal para autenticar ou selar esta conversa.

- O sinal de autenticação que nós usamos, em conversa, é a palavra de honra. E eu dou a minha palavra de honra de que vou transmitir o que ouvi e que são verdadeiras as afirmações que fiz.

- Nós não usamos a palavra de honra, costumamos jurar perante Deus.

- Pois estamos aí à vontade: não teremos a mesma religião, mas certamente acreditamos no mesmo Deus Único, e Criador. Por mim, quando dou a palavra de honra faço-o sempre em termos de juramento perante Deus.

- Certo, mas se pudéssemos ter um sinal deste compromisso era bom.

- Pois eu julgo que já dei sinal de boa vontade: vim até aqui confiado apenas na honestidade do nosso intermediário.

Nisto o homem parece ter-se sentido atingido e interrompeu-me dando-me como que um abraço.

- Desculpe, desculpe. O senhor fez mais do que eu pois veio aqui enquanto que eu tive medo de ir ao lugar combinado.

Impunha-se que não demorássemos mais o diálogo. Fazem-se as despedidas rapidamente. Quando me apertava a mão (era o dobro da minha) dizia-me:

- Estou muito feliz. Desde há dez anos é a primeira vez que estou em conversa agradável e a primeira vez que estou desarmado.

De novo repetiu o seu agradecimento.

Regressamos alvoroçados. Teríamos nós o privilégio de ser os intermediários e os primeiros intervenientes num processo que levaria a um próximo fim da guerra com honra para ambas as partes?

Mal dormi, ansioso pela madrugada, pelo regresso a Farim, pelo avião dessa 2ª feira que me levaria a Bissau, pelo encontro com o General Spínola.

Eram 18:50 horas do dia 1 de Julho de 1973 quando cheguei ao Palácio do Governo em Bissau. O Capitão Ayala, ajudante do Governador e Comandante-Chefe atendeu-me.

Disse-lhe que tinha urgência em falar com o General Spínola.

- Não me diga que é por causa do contacto de Cuntima.

- Precisamente.

- O nosso general não o poderá receber agora porque tem o briefing às 19:00 horas no Quartel-General e vai já para lá.

- Diga-lhe que estou aqui, que não o demoro com o que tenho a dizer-lhe e que é do maior interesse não atrasar; os minutos contam.

O General recebeu-me de imediato.

- Então hoje já aqui?

- É verdade meu general. No sábado estivemos em Cuntima, não contava nada com esta vinda, para a qual nem pedi autorização, mas como fui ao contacto que estava preparado para V.Exª...

- Então o senhor não sabe que proibi todos os contactos; não sabe o que aconteceu aos três majores? Atalhou o general, irritado, levantando-se e crescendo para mim.

Mantive-me sentado, cruzei as pernas e retorqui:

- Sei e até era muito amigo de dois deles, mas entendi que era meu dever ir, e fui.

- Espere lá, mas afinal você está aqui; conte lá.

E sentou-se de novo para ouvir o resumo que lhe fiz da conversa e das propostas do interlocutor do PAIGC.

O General voltou a levantar-se, agora com entusiasmo, abraça-me ao mesmo tempo que [e] diz:

- Mal sabe o alto serviço que acaba de prestar à Nação!

- Ainda bem. Estou feliz por isso.

Dirige-se ao telefone liga para Lisboa e ouvi-lhe o seguinte:

- Allas? (era o chefe da DGS em Bissau) Está bem? Tome o avião amanhã e venha aqui.

- Pois, sei bem que foi ontem de licença... É pena não poder vir ainda hoje, pois temos aqui coisa importante que requer já a sua presença.

- Está bem, mas tenha paciência. Espero-o amanhã. Um abraço!

O General agradeceu-me de novo. Vai a sair para a reunião mas faz questão que o acompanhe a jantar no Palácio.

Era a terceira vez que me convidava para jantar na sua residência.

Não falámos mais sobre este caso. Ficou acordado que se manteria total segredo e que seria pessoalmente contactado para qualquer interferência futura se fosse necessário.

Os curiosos de Bissau bem tentaram saber da razão da minha presença ali tão imprevista. Fui escapando como pude do cerco de perguntas.

Na 3ª feira regressei a Farim onde poucos dias depois pude observar, por duas vezes, a passagem dos helicópteros que transportavam interlocutores que deviam dar continuação aos contactos de Cuntima.

O sector passou a conhecer uma tranquilidade esperançosa.

Em Agosto entrei de licença. Na metrópole soube da substituição do General Spínola pelo General Bettencourt Rodrigues. Fui à tomada de posse deste último. Ouvi os discursos e pareceu-me que estavam em dessintonia com tudo o relatado, o que muito me surpreendeu. Preso como estava à promessa de segredo não perguntei nada. Já em Bissau pedi audiência ao novo Comandante-Chefe. Abordei o caso e tive a resposta que me surpreendeu: não sabia de nada.

O agente que tinha preparado o encontro em Cuntima, manifestou-me, em Farim, o seu desgosto por se aperceber de que tudo voltara ao princípio. Não entendíamos o porquê da viragem, que era notória.

Um dia, no bar do Estado Maior do Exército, já em 1976, contava o caso [este episódio] a uns camaradas, dado que a manutenção do segredo já não tinha razão de ser.

O então Major Monge estava ao lado e certamente ouvindo o meu relato, porque a dada altura interrompeu-me e diz:

- Afinal foi o meu coronel quem provocou o 25 de Abril.

Fiquei atónito. Mas imediatamente me veio à memória que tinha lido dias antes, uma informação do Chefe do Estado Maior General da Forças Armadas (o então General Costa Gomes) para o Governo (do Dr. Marcelo Caetano) segundo a qual para Portugal era preferível na Guiné um desastre militar a uma solução negociada...

Porquê?

(1) Capitão Beato
(2) Alferes Miliciano Costa
(3) O comandante da companhia em operações era o Cabo Sitafá
(4) Já uns dias antes tentada mas sem concretização por causa de forte trovoada
(5) Contacto que, segundo me disse, «vinha preparando havia alguns meses»
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Nota de M.R.:

Vd. também o poste relacionado com esta matéria em:

6 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8644: Recortes de imprensa (43): O pacto secreto de NINO com a PIDE, jornal TAL & QUAL, 14 Maio 1999 (Magalhães Ribeiro/Manuel Marinho)

Vd. último poste desta série em:

7 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8645: Recortes de imprensa (44): Jornal Açoriano Oriental noticía em 1961 a partida para a Guiné da Companhia de Caçadores Especiais 274 (Durval Faria)

Guiné 63/74 - P8649: Parabéns a você (298): Anselmo Garvoa, ex-Fur Mil da CCAÇ 2315/BCAÇ 2835

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Notas de CV:

Anselmo Garvoa foi Fur Mil na CCAÇ 2315/BCAÇ 2835, Mansoa e esteve na Guiné de Janeiro de 1968 até ser ferido em combate em 30/9/1968, e evacuado para o HMP

Vd. último poste da série de 8 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8647: Parabéns a você (297): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor Auto da CART 3521

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8648: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (1): Muitos anos depois



O Regresso dos Heróis*

Por

Domingos Gonçalves**
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)


DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887



I - MUITOS ANOS DEPOIS

Agora já só resta o sonho.
A aldeia acorda, cada manhã, envolta num lençol de paz, e eu deixo-me penetrar da calma que domina as coisas que, tranquilamente, descansam à minha volta.

Pelo dia além, muito leve, a aragem sopra do pinhal e traz para junto de mim um cheiro agradável, cheio de serenidade e de saúde.
De quando em quando os pardais esvoaçam em frente da minha janela, muito alegres e pequenos, curiosos, talvez, de saber em que estou a pensar. E o Sol ilumina-lhes a penugem escura, enquanto se movem no espaço.
Todavia, este ambiente tranquilo que num passado cada vez mais distante tanto desejei, ainda me não parece verdadeiro. O meu sono é perturbado ainda muitas vezes por sinistras recordações de um passado não de todo esquecido, imagens quase vivas de tantas situações macabras em que me encontrei.

Depois, quando acordo, não posso deixar de sorrir das imagens balofas do meu sonho. E porque compreendo as causas mais profundas desse sonhar, continuo sossegado... Consigo mesmo adormecer de novo tranquilamente...
Eu sei muito bem que, agora, já só resta mesmo o sonho.
Eu sei que essa realidade passou por mim, qual sombra fugidia, se deteve à minha frente durante breves momentos, só para que eu a contemplasse, e foi depois, despedaçar-se, ingloriamente, nos abismos pedregosos do passado, desse passado amargo e doloroso, mas, apesar de tudo, feito de muita saudade.

Hoje eu posso dizer que todo o sofrimento humano é passageiro. Posso, até, afirmar que me dá uma certa alegria o facto de poder recordar alguns desses momentos passados no meio da ansiedade e do perigo.
Ainda bem que tudo assim aconteceu... Amanhã talvez consiga sonhar tranquilamente.
Foram tortuosos e difíceis, é certo, os caminhos então trilhados.

Eu, e aqueles que lutaram a meu lado, fazemos parte de uma geração sacrificada no altar da guerra colonial, para uns, profano e iníquo, para outros, algo de sagrado, quase divino e transcendente.

O sangue dos que morreram, ou o sacrifício dos que tiveram a sorte de regressar, em qualquer dos casos, nada mais representam do que a inutilidade. Sim, porque a guerra foi uma realidade inútil. Ela não serviu os interesses de ninguém, muito menos os de uma população que sofreu, e contínua ainda a sofrer, embora de formas distintas, as suas tenebrosas consequências.
Mas, apesar de tudo, os que a viveram, acabam por recordá-la com saudade. Os humanos somos assim... Até do sofrimento, quando ultrapassado sem traumas e sem mágoas, acabamos por ter saudade... Tudo o que passa nos deixa sempre pena... Às vezes mesmo muita pena.


E hoje, a Guiné permanece muito longe de nós, lá na distância do esquecimento, entregue ao seu atraso e à sua pobreza, lembrando talvez uma guerra que não lhe deu nada, e uma paz que lhe roubou quase tudo.
Mas a Guiné permanece, também, muito perto de nós, no mais íntimo de nós mesmos, porque representa um pouco das nossas vidas e do nosso sofrimento. E o mais sagrado que nós temos são as nossas vidas, feitas da lembrança do ontem e do hoje, e da esperança no amanhã.

Todos nós, os que fizemos a guerra, assim como não esqueceremos as nossas vidas, também não esqueceremos, por fazer parte delas, a Guiné.
E essa lembrança vai continuar, para além de nós próprios, no imaginário colectivo das gerações que nos sucederem.

Hoje, mergulhada na suave neblina do atraso social, no esquecimento a que os pobres, sejam eles pessoas ou países são votados, a Guiné, onde tanto se lutou e sofreu, é uma nação de que ninguém fala, e de que nenhum país, pelo menos dos mais ricos, cobiça seja o que for.
É que ninguém faz nada, muito menos uma guerra durante tão longos anos, por causa de uma terra pobre. Nós, portugueses, fomos a excepção.

Hoje, por incrível que pareça, o país quase se envergonha dos seus mortos, dos mortos que tombaram numa guerra quase sem fim, que ele, país, numa fase menos iluminada da sua história recente, quis fazer.
Existe mesmo uma certa vergonha em assumir um passado onde, por uma causa que, naquele espaço temporal, já não tinha razão de ser, foram sacrificadas muitas vidas em honra de um deus em que já ninguém acreditava. Mas, toda essa percepção deturpada, todo esse aparente esquecimento, que não passa de uma quase cobardia colectiva, será um sentimento transitório, que o tempo se encarregará de corrigir.

Todo esse passado, na crueza da sua realidade e na força que o sofrimento humano empresta à vida, permanece indelével no inconsciente do país real, que não se compadece com hiatos na sua história, que sempre soube assumir, e ressurgirá com naturalidade e sem traumas, quando a história se fizer, a da nação que lutou, e a da nação que, envergonhada, finge esquecer o sangue dos mortos e o sofrimento de muitos vivos.
E então, tudo será reposto no respectivo lugar.

É que, o sangue dos tantos mortos, ou o sofrimento dos muitos que ainda estão vivos, nada teve a ver, na sua quase totalidade, com o erro dos políticos que, ignorando ostensivamente as mudanças sociais e políticas que o mundo da época atravessava, não souberam tomar as decisões mais acertadas que a evolução do país, e das colónias, aconselhavam que se tomassem.
Mas nada disso justifica esta vergonha, que parece haver, desse passado recente, como que se estivéssemos perante algo que teve a ver com outro povo e se viveu num outro mundo.
O nosso passado teve a cor que teve. Serão, por isso, infrutíferas, todas as tentativas de o pintar de qualquer outra cor.

Os gestos que se façam para lhe mudar a tonalidade, para além de inúteis, serão quixotescos e ridículos. O passado foi o que foi. Ninguém o pode mudar, ou alterar.
Mas o passado é nosso. Pertence-nos. Não o podemos dar, ou alienar, seja a que pretexto, ou a que preço for.
Resta-nos, pois, e apenas, assumi-lo com toda a dignidade.

“O esquecimento é o fim da capacidade de sonhar e o reverso da vida.” Por isso, mesmo que às vezes ele seja escuro, não devemos deixar que se apague o nosso passado. O passado das pessoas apaga-se quando elas se apagam. O passado de um país só se apaga quando ele se apagar.

Este pequeno livro pretende ser uma promoção da memória, um pequeno contributo na luta contra o esquecimento intencional, ou não, de uma pequena parte do nosso passado de país e de povo.

O passado das pessoas é, quase sempre, construído de luzes e de sombras. Tem coisas boas e coisas más.
Com o passado dos países e das nações acontece algo de semelhante.
Mas, assim como as pessoas não se podem desfazer das sombras que lhes enfeitam o passado, também os países, por mais que o tentem fazer, não conseguirão apagar as tonalidades mais escuras, ou mais claras, que serviram para dar cor ao seu passado, seja ele recente ou distante.

Um dia virá em que o país, finalmente, se reconciliará com o seu passado e com a sua história, com dignidade e sem complexos de culpa. Sim, porque hoje, existe ainda um certo inconsciente colectivo, doentio e com laivos de frustração, onde predomina uma cultura de intolerância, incapaz de ao menos admitir que se entenda a história, muito embora reprovando alguns dos que foram seus actores. Mesmo sendo construídas com o sacrifício de milhares de escravos, as grandes obras da humanidade não deixaram de ter a beleza que todos hoje admiramos. E a história é, de longe e no seu todo, a mais bela de todas as obras que a humanidade construiu.

Hoje, as pessoas de bom senso todas reconhecem que a guerra foi um erro. Mas esse erro só foi possível porque a existência do regime político então vigente foi um erro muito maior. Mas, que se olhe, enfim, para o passado, mesmo que ainda bastante próximo, sem complexos e sem traumas.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), edição de autor, que hoje começamos a publicar no nosso Blogue por sua gentileza.

(**) Vd. poste de 3 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8633: Tabanca Grande (295): Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887 (Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68)

Guiné 63/74 - P8647: Parabéns a você (297): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor Auto da CART 3521

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Notas de CV:

Henrique Martins de Castro foi Soldado Condutor Auto na CART 3521 que esteve em  Piche, Bafatá e Safim nos anos de 1971 a 1974

Vd. último poste da série de 4 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8634: Parabéns a você (296): José Nunes, ex-1.º Cabo Mec Elect do BENG 447 e Rui Alexandrino Ferreira, Coronel Reformado

domingo, 7 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8646: (Ex)citações (145): Uma afirmação, um desabafo, uma pacificação (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/Ranger da CART 3492/BART 3873, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 5 de Agosto de 2011:

Meus camarigos editores
Envio-vos um texto, que como sempre fica ao vosso dispor publicar ou não.

Faço aqui uma ressalva, neste "intróito", pelo que, se o texto for publicado, agradeço que também seja publicado este "naco de prosa".

E essa ressalva é a seguinte: Não responderei a provocações, nem "lugares comuns" e muito menos a idiotices.

Gosto de respeitar todos, o que significa, obviamente, uma reciprocidade.

Um abraço forte e camarigo para todos do
Joaquim Mexia Alves


UMA AFIRMAÇÃO, UM DESABAFO, UMA PACIFICAÇÃO

Sou um homem de direita!

Poderia tentar explicar o que é ser de direita para mim, mas isso seria fazer neste espaço o oposto daquilo que eu acho este espaço deve ser e repetidamente tenho afirmado, ou seja, um espaço que não deve servir para debater política.

Tive na minha adolescência pensamentos e atitudes daquilo que se poderá chamar de esquerda, mas não vingaram em mim, isto apenas para que se saiba que não sou propriamente um ignorante na “coisa” política.

Desenganem-se os que pensam que vou aqui escrever um texto político, ou de elegia de um qualquer lado em detracção do outro!
Não o vou fazer, porque como acima digo este não é o espaço para tal, e também porque penso e vivo de modo a que, lá por eu pensar de uma determinada maneira, não quer dizer que outros não possam pensar de maneira diferente, ou seja, assumo ou tento assumir que eu posso não ser o detentor da verdade, mas que com a verdade dos outros e a minha, talvez se encontre a verdade, isto falando das “coisas do mundo”, porque para mim, como todos sabem, a Verdade é só uma, e é essa que eu tento todos os dias encontrar e viver.

Mas vamos ao que interessa, ou pelo menos, ao que me interessa.

Têm surgido uns comentários, (sobretudo quando há recensões de livros sobre Amílcar Cabral ou o PAIGC), em que se pretende arrogar um pretenso patriotismo, que só existiria perante um pensamento imutável, de que o passado teria de ser o presente, chegando ao cúmulo de colocar em causa o “Juramento de Bandeira” de alguns que não pensem de tal modo.

Comentários que se arrogam o direito de colocar em causa a motivação daqueles que combateram na Guiné, ou seja onde for, por causa de se exprimirem no sentido de que a guerra de África, ou as suas motivações, não seriam correctas e estariam erradas atendendo à história do mundo.

Depois outros comentários, tentando rebater estes, vêm invocar passados, lidos à luz do presente, como se fosse possível aferir pelo mesmo padrão de hoje, a escravatura, ou as barbaridades, (aos olhos de hoje), cometidas pelos colonizadores, dos quais nós Portugueses, seriamos os últimos, pelos vistos.
Esquecemo-nos do Tibete, por exemplo, e de outros “Tibetes” pelo mundo fora, ontem, hoje e amanhã.
Esquecemo-nos, por exemplo, que segundo rezam alguns livros da história da Guiné, os Balantas seriam escravos de outras etnias.

Mas enfim, não é isso que está em causa, mas sim a afirmação que coloco no inicio: Sou um homem de direita!

E repito esta afirmação para dizer que considero Amílcar Cabral um pensador e um homem digno de grande estatura, que lutou pelo seu povo e pelos seus ideais.
Ao que sabemos, tentou fazê-lo primeiro pela via pacífica, e, depois, nada conseguindo, enveredou pela luta armada.
Merece todo o meu respeito, e não me custa nada reconhecê-lo!

Mas se reconheço o seu direito a lutar pelos seus ideais, reconheço também o direito de Portugal, naquele tempo, lutar por aquilo que considerava seu.
Se Portugal naquele tempo estava enganado, pelos vistos a história, (não a do 25 de Abril, mas a história do mundo), veio mostrar que sim, que os ventos eram outros, mais valia ter resolvido pacificamente o problema, do que ter morrido nem que fosse um só homem.

Mas isso não invalida em nada o esforço, a coragem, a entrega de todos aqueles que combateram a guerra de África, isso não permite de modo algum que alguém venha dizer que não cumpriram a sua missão de Portugueses!
E tanto o fizeram aqueles que acreditavam que estavam a lutar por uma causa justa, como aqueles que tinham dúvidas, ou como aqueles até, que estavam contra, mas decidiram combater como a Pátria lhes exigia.
E destas três formas de estar na guerra, surgiram heróis, surgiram referências, surgiram Portugueses que em nada negaram a história do seu País, com tudo o que à mesma pertence.

Sou um homem de direita, como tal sou um humanista, e na génese do ser Português, (como se costuma dizer), vive o meu coração, a minha alma, cristã e católica.
Como poderia eu então não respeitar o meu inimigo, perdoar-lhe, esperando ser perdoado, e acolhê-lo, se ele quiser ser acolhido?

Com a mesma vontade com que combati, com o mesmo empenho em que me coloquei ao serviço de Portugal, tento agora perdoar, acolher, perceber, e sobretudo encontrar a paz.

E isso não me diminui em nada, mesmo nada, nem eu admito que alguém, seja quem for, me venha dizer que eu sou menos Português, ou que não combati como os Portugueses combateram desde o tempo de Afonso Henriques.

Claro, não concordo, nem nunca concordarei, que se faça o elogio do inimigo em detrimento de nós Portugueses, (como alguns infelizmente se empenham em fazer por vezes neste espaço), mas não é isso que me faz sair de um “ponto de encontro” onde encontrei amigos, ou melhor, camarigos, que falam a mesma linguagem que eu, e que, embora alguns tantas vezes nas antípodas politicamente, (será que estaremos realmente tão separados politicamente?), encontramos razões para estarmos juntos, conversarmos e sobretudo fazermos um pouco de história cimentada na amizade.

Como também não concordo que se anatematize o antigo inimigo, ou aqueles que não pensam como eu, com ideias antigas ou novas, porque entre ambos, como entre aqueles que pensam como eu, há gente boa e digna, e há, (permitem-me que o diga), gente que não merece sequer uma linha de comentário.

É que o mundo não é preto e branco apenas!
O mundo tem mais cores, e são essas cores que acabam por dar graça ao preto e ao branco, e por favor, não me venham dizer o que o preto e o branco não são cores, porque não é disso que se trata.
Se apenas virmos o mundo a preto e branco, vemos apenas o mundo que queremos ver, e não o mundo como ele é realmente, com o preto e o branco, mas carregado de outras cores que lhe dão a beleza, mesmo quando a violência da natureza nos mete medo, como por exemplo numa erupção vulcânica.

Há anos atrás, o António Mourão, fartou-se de cantar “Oh tempo volta para trás”!
Cantou, cantou e há gente que ainda canta, mas o tempo não voltou, não volta e nunca vai voltar para trás.

Olhemos para o passado, para o presente e até para o futuro, como olhamos para o mundo.
Há preto e branco em tudo, mas em tudo há também outras cores!
Nem tudo foi mau no passado, nem tudo é bom agora, e no futuro teremos sem dúvida do mau e do bom.

Não sei se toda esta escrita serviu ou serve para alguma coisa, mas pelo menos a mim serviu-me para desabafar, para afirmar, para ficar mais em paz comigo mesmo e julgo que com os outros, com aqueles que querem realmente ficar em paz.

Um abraço forte e sempre camarigo para todos.
Joaquim Mexia Alves
Monte Real, 5 de Agosto de 2011
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8595: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (32): Hoje almocei com o Joaquim Gaspar (Joaquim Mexia Alves)

Vd. último poste da série de 27 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8609: (Ex)citações (144): O Google Maps é agora quem mais ordena ? A confusão de topónimos: A Bissorã do nosso tempo chama-se agora Califórnia ?!... Piada de mau gosto, erro técnico, distracção, estupidez etnocêntrica... ? (Manuel Joaquim, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã, Mansabá, 1965/1967)

Guiné 63/74 - P8645: Recortes de imprensa (44): Jornal Açoriano Oriental noticía em 1961 a partida para a Guiné da Companhia de Caçadores Especiais 274 (Durval Faria)

1. Mensagem do nosso camarada Durval Faria (ex-Fur Mil da CCAÇ 274, Fulacunda, 1962/64), com data de 31 de Julho de 2011:

Caro camarada
Junto envio texto do jornal Açoriano Oriental do ano de 1961, aquando da partida da Companhia de Caçadores Especiais 274.

Um grande abraço
Durval Carlos Simas Faria



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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 21 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8583: Facebook...ando (11): Partidas e chegadas... (Durval Faria, ex-Fur Mil, CCAÇ 274, Fulacunda, 1962/64)

Vd. último poste da série de 6 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8644: Recortes de imprensa (43): O pacto secreto de NINO com a PIDE, jornal TAL & QUAL, 14 Maio 1999 (Magalhães Ribeiro/Manuel Marinho)