sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9321: As minhas memórias (Fernandino Vigário) (1): Um Alferes Capelão que queria ensinar o Pai-Nosso ao Vigário

1. Mensagem do nosso camarada Fernandino Vigário* (ex-Soldado Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 1911, Teixeira Pinto, Pelundo, Có e Jolmete, 1967/69), com data de 2 de Janeiro de 2012:

Caro amigo Carlos Vinhal , uma boa noite.
Recebi hoje teu E-mail que fala das dúvidas do Carlos Pinheiro e sobre esse assunto eu já disse o que sei.

Aproveito para enviar uma história passada comigo e um Alferes Capelão que, creio, estava no QG, não sei o seu nome nem o conhecia. Entre missas e funerais eu conheci vários, havia um que, se não estou em erro, com o posto de Tenente,  corpo franzino mas espírito de oficial militar, não dava grande confiança aos soldados.

Vai também duas fotos, uma sou eu no jipe, a outra sou eu mais três amigos e vizinhos que estavam no QG. O outro elemento não faço a mínima ideia quem seja.

Um forte abraço
Fernandino Vigário



AS MINHAS MEMÓRIAS - 1

Um Alferes Capelão que queria ensinar o Pai-Nosso ao Vigário

Caro amigo Carlos Vinhal.
Olá amigos e camaradas.
Estou de volta, e às voltas com a minha memória: como não tenho nada escrito vou tentar reconstituir uma história passada comigo e um alferes Capelão. Hesitei se a devo contar ou não, mas resolvi contar nem que seja para ficar em arquivo.

Eu, Fernandino Vigário,  ex-Soldado Condutor,  estava em Bissau no quartel conhecido por "600". Já no fim da comissão, numa manhã de Domingo (não me recorda a data, mas deve ter sido num dos primeiros meses de 1969), fui escalado para transportar um Alferes Capelão,  ainda bastante jovem a três ou quatro destacamentos limítrofes de Bissau, Safim e outros, onde estavam destacados Pelotões de Companhias do meu Batalhão 1911.

Transportar um Capelão,  para ir celebrar a Eucaristia aos ditos destacamentos, foi serviço que eu fiz várias vezes, e nem sempre foi o mesmo. O que aconteceu nesse Domingo com um bastante jovem, devia ter a minha idade ou pouco mais, que eu não o conhecia, nem nunca soube o nome porque só fiz um único serviço com ele.

Neste Domingo de manhã, depois de darmos os bons dias e trocarmos algumas palavras de circunstância, iniciámos a viagem que nos iria levar aos ditos destacamentos. O Capelão.  além de jovem era simpático e extrovertido, falava pelos cotovelos, e para espanto meu, ainda na estrada de Sª. Luzia ao cruzarmos com uma mulher ainda jovem, cabo-verdiana, por sinal bem jeitosa, atira a seguinte frase:
- Ena pá! Que gaja boa. Uff, que brasa!

Percorridas mais umas dezenas de metros, e de novo ao avistar outra mulher cabo-verdiana,  repete os comentários. Eu,  perante este cenário e vindo de um Padre, olhei-o de soslaio, meio petrificado e a pensar no que é que viria a seguir. Seria aquilo verdade?

Como eu falava pouco, na verdade sou um pouco introvertido e reservado, havia também a hierarquia, alferes e soldado,  a separar-nos, o Capelão resolve puxar por mim.
- Então, condutor, não dizes nada, o gato comeu-te a língua... pra começar diz-me lá o teu nome?
- Fernandino Vigário, meu Capelão, mas todos me tratam por Vigário.
- Vigário? Oh pá, mas és Vigário ou és vigarista?

Hesitei um pouco, mas logo respondi:
- Meu Capelão, eu sou Vigário de nome, mas sei que há por aí uns Vigários com obras feitas. Olhe, alguns até vieram parar a Bissau.
- Pois é, condutor, para quem falava pouco já estás a falar de mais, eu vou ter que te ensinar o Pai-Nosso.

Tive que me fazer um pouco palonço, não senti a rigidez militar e respondi:
- Meu Capelão, não é necessário! Eu na minha parvónia aprendi a Doutrina toda, foi o meu pai que me ensinou. Até fiz a comunhão solene!
- O teu pai ensinou-te a Doutrina mas foi às avessas, agora quem te vai ensinar sou eu.
- Meu Capelão, peço desculpa se o ofendi, mas não vejo onde o tenha feito, e longe de mim ofender quem quer que seja.
-Bem condutor, aceito as tuas desculpas e não se fala mais nisso, afinal hoje é Domingo, é o dia do Senhor, e de ouvir a Santa missa.

PS - Sou católico praticante, e nada me move contra a igreja e os Padres, antes pelo contrário, porque sempre os respeitei e ao contar esta história não pretendo denegrir nem esta, nem os padres, e estou convicto que aquele jovem Capelão tenha dado um bom padre, para mim aqueles comentários sobre mulheres eram fruto da sua juventude.

Um forte abraço para toda a Tabanca.


Malta amiga, maiatos, num Café de Bissau > A partir da esquerda: 1.º Cabo Op Cripto/QG Domingos,  Sousa da CCAÇ 1743, (?), 1.º Cabo Escriturário/QG e eu Fernandino Vigário
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9229: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (40): Comprei um computador pequeno e lentamente fui aprendendo a navegar na Net (Fernandino Vigário)

Guiné 63/74 - P9320: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (7): Fragmentos Genuínos - 5

FRAGMENTOS GENUÍNOS - 5

Por Carlos Rios, 
Ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66

A minha curiosidade e ânsia de aprendizagem e o imutável espírito popularucho que sempre fez o meu tipo, contribuiu para que em todo o tempo e locais por onde passei, me interligasse com toda a facilidade com as populações e estas me aceitassem quase sem reserva.
Aqui em Fulacunda e através do Soleimane Djaló e do Salu, milícias que trabalhavam comigo observei e participei em algumas actividades que a população realizava.

Mais que uma vez o Soleimane acompanhado com diversos elementos em que se incluíam mulheres me veio ao quartel chamar para ir à pesca com eles.
O meu amigo pedia-me para levar duas granadas, o que eu fiz embora de pé atrás, desconfiado, levando também à cintura ma pistola Walter e a minha acompanhante, a Formosa (G3); saí a sorrelfa do arame farpado (nunca na Companhia ninguém soube) o aparecer armado, mereceu alguma critica, – não tem perigo Rios, dizia o Soleimane, quando me juntei ao grupo já na tabanca e onde muitos demonstraram o seu desagrado, mas depois de algumas explicações em que transmiti a minha insegurança, não fosse aparecer algum inimigo, etc… lá aceitaram relutantemente e partimos pela picada por 4/5 Km até ao porto no Geba.

Este grupo era constituído por todo o tipo de população em que se incluíam mulheres e crianças e transportava imensos cestos, esteiras e catanas.
De notar que eu era sempre o ultimo da fila; alguma insegurança, sei lá?

Chegados ao local, estava a maré vazia, o pessoal espalhou as esteiras pelo chão e pôs-se na beira da rio com os cestos e as catanas, após o que o Soleimane me disse para lançar as granadas para dentro de água .
Poucos momentos passados um imenso cardume de todo o tipo de peixes, vogava à superfície e foi recolhido em grande quantidade com os cestos principalmente utilizados pelas mulheres, enquanto os homens aos pares junto do tarrafo apanhavam ostras às centenas, enquanto um aparava com um cesto, o outro com a catana raspava aí para dentro as grandes quantidade ali presas.

As mulheres espalhavam o peixe nas esteiras, escolhiam os que entendiam e logo ali na beira do rio os arranjavam e escalavam para depois de preparados, salpicavam-nos com sal e qualquer outro ingrediente que nunca soube o que era, para serem postos ao sol nas coberturas dos tabancas.

Depois do regresso e após um retemperador banho de agua fria, o regresso era sempre muito cansativo e ensolarado dirigia-me à cantina onde se comentava que de certeza ao “turras” tinham bombardeado algum barco patrulha da marinha lá para os lados do porto porque se ouviram bem os rebentamentos. Pela minha parte moita carrasco!

Grandes petiscadas de ostras, peixe seco, etc..etc… fiz no seio da tabanca! Só o diabo dos picantes e bebidas é que eram fogo.
Só muitos anos mais tarde tive oportunidade de entender o porquê daquela preparação do peixe, quando em Sesimbra vi um sistema de tratamento e secagem do bacalhau.

Passados mais alguns dias de momentos e vivências num meio hostil, agreste em que a par de milhões de mosquitos e toda a espécie de insectos, também o barulho ensurdecedor do gerador, e a natural ansiedade e sobressalto pouco nos deixavam descansar, apresentou-se a Companhia 1423, comandada pelo então Capitão P. A., sendo que no dia seguinte saímos em conjunto para uma operação, dita pelos chefes, de grande importância, seguindo então através do capim dado que a estrada se encontrava cheia de abatizes e o caminho por aí nos tornar mais vulneráveis. Perto de Nova Sintra onde à posteriori veio e ser construído um destacamento nosso no entroncamento com a estrada que levava à Ponta de Maasa, já no litoral do rio Geba, o Comandante da Operação mandou avançar ao encontro da estrada decidindo que o nosso Pelotão devia formar três colunas de frente, sendo que após o a realização desta actividade retornaríamos àquele lugar que era o de encontro, o que foi feito, ficando o Vasco à direita eu no centro e o Monteiro na esquerda.

Assim que entrámos na picada aconteceu aquilo que se pode considerar o nosso baptismo de fogo. Fomos confrontados com uma imensa fuzilaria a partir do interior da mata do outro lado da estrada. Coibidos de nos movimentarmos e disparar ou actuar sem pôr em risco os nossos camaradas que se encontravam a par connosco, conforme a desbragada técnica que engendrou o Comandante da operação, e com receio e na iminência de ficarmos imobilizados, avancei de supetão, acompanhado por todo o Pelotão, impulsiva e obstinadamente, sendo nesta altura que toda a coluna se partiu, porquanto o resto das Companhias recuou para o local de encontro já esfrangalhado em grupos, vindo o nosso pelotão e ficar segmentado em três, cada uma das secções laterais tomado a sua direcção e conseguido os meus rapazes obrigar à fuga dos elementos do IN tendo dois destes sido feridos deixando no terreno uma metralhadora PPSH, uma das primeiras a ser capturada na Guiné-Bissau.

Dramático veio a tornar-se este nosso baptismo de fogo, porque seis dos elementos do grupo que estava à minha direita e em que estava incluído o meu amigo e conterrâneo Alferes Miliciano Vasco Sousa Cardoso, curiosamente sobrinho do na altura Governador Geral de Angola, General Silva Tavares, o que pôs em polvorosa as cabeças pensantes daquele Sector, veio a perder-se e infiltrar-se em zona onde proliferavam forças do IN que lhe moveram implacável perseguição durante dois dias, onde passaram provações tremendas acabando depois de um deles se ter suicidado com um tiro na cabeça, já depois de um outro se ter deixado arrastar pela corrente do rio, acabando o Vasco por ser abatido e tendo o Leiró por ultimo sido capturado. Foi por este elemento que foi depois evacuado a partir da Guiné-Conacri, creio que depois de três anos de cativeiro através da Suíça para Portugal. Apenas viemos a tomar conhecimento destes dolorosos momentos, já que uma aura de incompreensão e mistério nos acompanhou, nada jamais nos foi transmitido, já nos anos noventa por nos ter chamado a atenção um artigo numa das revistas da época, e nos deslocámos a Marrases-Leiria (aquilo a que auto-chamo a confraria sempre presente) - o Rui, o Malaca dos Santos, o Monteiro, o Bastos, o Cabral e o Rios, enfim a nata da Companhia. Ah..ah…ah…! Os corpos destes infelizes jovens filhos de Portugal nascidos numa época madrasta para a juventude, exceptuando os filhos e afilhados de figuras de proa e os que fugiam, por lá ficaram a servir de pasto nas miseráveis condições atmosféricas, aos predadores que por lá existiam – esta é a ditosa pátria minha amada!!!

A par da actividade normal e tímida desenvolvida pela desmotivada Companhia, algumas peripécias verdadeiramente rocambolescas iam servindo como motivadoras de uma maior aproximação e conhecimento do pessoal. Num dos dias, entendeu o inaudito Capitão C. que se devia abater uma vaca que tínhamos capturado e trazido para o aquartelamento de um dos patrulhamentos que tínhamos realizado nas redondezas, e munindo-se de uma pistola disparou dois tiros no bicho, ele mais não fez que soltar débeis mugidos mantendo-se placidamente de pé, ai o azougado Silva, condutor auto-rodas, que já não conduzia pois que tinha entrado directamente com o jipe, dentro do buraco junto da messe de Sargentos que o Cap. C. tinha mandado abrir igual ao que também mandara fazer, colado a messe de Oficiais e destinados a abrigos de protecção, pegou numa segunda-feira (marreta de cinco quilos) e pum…, deu uma pancada brutal e certeira na cabeça da vaca e ei-la como fulminada virada de pantanas, ganhou de imediato o cognome de mata-vacas que ainda hoje nas nossas reuniões de confraternização o acompanha; veio a ser um precioso auxiliar do Jaime, o cozinheiro da nossa messe. Nestes buracos que nunca serviram para nada, o da messe de Oficiais foi ainda palco de uma das mais hilariantes cenas a que assistimos: Num violentíssimo ataque ao aquartelamento em que caíram dentro deste dezenas de granadas de morteiro que provocaram imensos estragos, felizmente, sem acidentes pessoais porquanto na maioria nos metemos dentro dos abrigos desmoronou-se para dentro do abortado pré-abrigo a parede lateral da messe e que correspondia ao quarto dos Capitães C. e P. A., pelo que aquele ainda não completamente refeito do ataque, chamou o pessoal, para retirar os escombros e procurar a sua estimada máquina fotográfica, sendo que um dos rapazes ao encontrar uma máquina se apressou a entregá-la ao nervoso e ansioso Caria que de imediato respondeu: - Esse caixote é do P. A., a minha é uma Kodak genuína. Foi o efeito descompressor da tensão daqueles rapazes e o motivo de imensa gargalhada geral.

Com este conjunto de acontecimentos vividos na área de intervenção da Companhia na solidão e isolamento deste local cercado de uma imensidão de mata verde luxuriante que deveria aparentar paz e tranquilidade, mas que era em nosso entendimento, propiciadora dos maiores receios, ansiedades e perigos que se vieram a confirmar; houve ainda oportunidade para as peripécias o mais caricatas possíveis. A messe de Sargentos era mensalmente gerida por um dos comensais, tendo nesta ocasião calhado ao inaudito trovador, Ernesto Fernandes (parece que ainda o estou a ver onde passava a maior parte do tempo; placidamente deitado a simultaneamente, fumar umas cigarrilhas de cheiro horroroso (Negritas), a ler e a beber latas de leite com chocolate; raramente tomava uma refeição como nós entendemos como normal. O Ernesto (bela voz que acompanhava à guitarra, é de origem indiana o que se nota acentuadamente), resolveu um dia presentear-nos com um almoço VIP, com dois pratos.

Estupefactos, quando nos sentamos à mesa, estava com a respectiva chave, dentro de cada prato, uma lata de atum ou sardinha em conserva por abrir. Quem quisesse podia trocar, eram dois pratos dizia o cómico sacripanta. Foi uma paródia pegada para a malta, apenas um pretensioso, isolado complexado Sargento da Companhia barafustou. Como nota curiosa relembro-me do ênfase com que esta codiciosa criatura salientava o facto de já aqui ter feito, em Fulacunda, uma comissão como Furriel Miliciano, mas curioso é que nas diversas conversas com as nossas conselheiras na tabanca, nenhuma delas o conhecia.

Ainda traumatizados e rejeitando sub-conscientemente, a perca do Vasco Cardoso e dos seus companheiros, acreditando que os mesmos ainda poderiam aparecer, ficamos ainda surpreendidos ao tomar conhecimento da ida do Cap. C. para o Hospital de Bissau, para tentar, o que conseguiu, a evacuação para a Metrópole, invocando o agravamento na inócua deslocação a Uaná Porto, que deu origem a sua épica frase “Rumo a Fulacunda”, que utilizava a todo o momento nas parcas curtas incursões que fez fora do Aquartelamento.

Foram feitas alterações na Companhia de tal modo que de quatro passámos a três Pelotões passando o Serigado que era o comandante do segundo pelotão e com o desaparecimento do Vasco a livrar-se das saídas para o mato, passando acolitado pelo inefável Dr. D. N., a comandar interinamente a Companhia.

O Serigado para além de ser o introvertido que já tínhamos detectado desde o início da formação da Companhia ainda em Abrantes, veio a revelar-se um individuo calado, distante e frio, alentejano complexado e desconfiado, que ao assumir o Comando da Companhia, criou um clima de difícil relacionamento porquanto eram visíveis e intoleráveis para nós os tiques de sobranceria e displicência que ostentava despudoradamente, inadequados quanto a nós para um miliciano e poucas vezes encontrado nas nossas andanças e contactos com diversos Oficiais do Q.P. de patente superior.

Nestas alterações e durante um pequeno período ficou o nosso grupo sem comandante de pelotão.

(Continua)
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Nota de CV.

Vd. último poste da série de 4 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9310: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (6): Fragmentos Genuínos - 4

Guiné 63/74 - P9319: Notas de leitura (320): Anjos na Guerra, de Susana Torrão (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Dezembro de 2011:

Queridos amigos,
Já dispomos de muita informação sobre as nossas enfermeiras pára-quedistas, onde o livro de Susana Torrão faz a diferença é escutar estas ditosas profissionais de saúde à volta do seu próprio bilhete de identidade: como tudo começou, qual o cúmulo da sua realização, o que valeu a pena e como aquela experiência as transformou.
Cinco das 46 pára-quedistas contam a aventura do passado para o presente. Temos que ter orgulho no orgulho que elas guardam do que fizeram, do seu próprio medo, do desvelo em momentos de um sofrimento alucinante como conta Céu Pedro Esteves: “Eram dois homens que tinham perdido as duas mãos e ambos os olhos. Durante a viagem dizia-lhes: tenho aqui esta comida – e descrevia o que tinha no prato – como é que lhes sabe melhor? Também fazíamos isto. Dávamos o melhor de nós próprios”.
Com este depoimento fica tudo dito.

Um abraço do
Mário


Anjos na guerra:
Saber um pouco mais sobre as nossas enfermeiras pára-quedistas

Beja Santos

A historiografia da guerra não tem ignorado o trabalho das enfermeiras pára-quedistas; e se há desempenho que nunca foi contestado ou desvelo que tenha sido alvo de reparos, então as enfermeiras pára-quedistas gozam de uma posição intocável. Elas estão no pódio da abnegação e solicitude.

Em “Anjos na Guerra”, Susana Torrão retoma este filão de coragem e saudade, dá voz a um punhado de testemunhos e obtém relatos comoventes (Oficina do Livro, 2011). Como é sabido este Corpo de Enfermeiras foi criado em Maio de 1961, elas receberam o brevê em Agosto desse ano e a sua extinção ocorreu já na década de 80. O livro reconstitui o percurso desse grupo a partir das histórias de Céu Pedro Esteves, Ercília Pedro, Manuela Flores França, Rosa Serra e Francis Matias, 5 das 46 enfermeiras pára-quedistas. Cada um dos relatos, diz a autora, traça uma perspectiva diferente e dá a conhecer as várias facetas do quotidiano destas mulheres, num arco onde cabem os pequenos milagres de enfermagem, os preconceitos que tiveram de vencer, os testemunhos do sofrimento do combatente.

Tudo começou com Isabel Bandeira de Mello que nos anos 50 lançou a ideia e criou as bases para a formação das enfermeiras dos ares; complementarmente, os instrutores, outra peça-chave para a existência deste corpo de pioneiras, dão também a sua interpretação dos acontecimentos. Isabel Bandeira de Mello foi a primeira pára-quedista portuguesa e em 1956, depois de contactar com as pára-quedistas da Cruz Vermelha Francesa, lançou a ideia de formar um Corpo de Enfermeiras Pára-quedistas. Kaúlza de Arriaga, ao tempo Subsecretário da Aeronáutica, apoiou o projecto. Encontrou dificuldades mas conseguiu convencer Salazar, a Força Aérea e as escolas de enfermagem. Assim surgiram as primeiras mulheres nas Forças Armadas. Às candidatas pedia-se que tivessem “boa formação moral, profissional e religiosa, ser obrigatoriamente solteiras ou viúvas sem filhos e não ter cadastro.

A legislação que criou oficialmente as primeiras vagas surgiu em Maio de 1961 e foram aprovadas 11 candidatas. Fizeram o curso em Tancos com a duração de 9 semanas, receberam instrução de ordem unida, fizeram-se altos, familiarizam-se com o armamento, transmissões ou topografia, por exemplo. Em Agosto desse ano terminou o curso com a imposição das boinas às primeiras 5 enfermeiras. Partiram imediatamente duas enfermeiras para Angola, Maria Arminda Lopes Pereira e Maria Ivone Quintino dos Reis.

Céu Pedro Esteves é o que se pode chamar uma veterana de guerra, foi a enfermeira que mais tempo passou em África e nas três frentes de combate, três comissões em Angola, duas na Guiné e uma em Moçambique. A Guiné tem um papel privilegiado no seu depoimento. Viu um piloto desorientado a aterrar no Senegal, conseguiu orientá-lo e assim saíram da encrenca. Houve gente quente que lhe morreu nos braços. Estava uma vez na base, em Bissau, entrou por ali um casal novo aos gritos com o filho morto nos braços: “Eu olhei para a criança – que devia ter uns dois anos -, tirei-lha dos braços e fui com ela para o posto de socorros. Comecei a fazer a ressuscitação: massagem cardíaca, respiração boca a boca, a insistir… e o miúdo começou a fazer a expiração. Disse aos meus colegas para prepararem a medicação e lhe encontrarem uma veia. E chegou o momento em que o miúdo começou a respirar e a rir-se para mim. Eles não conseguiram apanhar a veia – como a criança estava em síncope, era difícil – até que eu lhe consegui apanhar uma veia na testa, pus-lhe o soro a correr e dei-lhe a medicação. Imagine a alegria daqueles pais quando lhes entreguei o filho vivo”. Olhando para trás, Céu Esteves não esconde o seu orgulho por tudo quanto lhe aconteceu como enfermeira de guerra: “Foi uma vida diferente. Valeu a pena!”.

Ercília Pedro trabalhou numa fábrica antes de ser enfermeira e tornou-se mulher de militar, a acompanhar o marido na Guiné. Aqui esteve dois anos como enfermeira pára-quedista, ficou sempre ligada a África, voltará várias vezes como voluntária. Falando da Guiné, assistiu às muitas tensões do hospital civil como responsável pela Urgência. Ercília e o marido viviam em Bissau, ela confessa que andava muitas vezes com o credo na boca e relata uma missão em que o marido participou e aquela força operacional esteve cercada pelos guerrilheiros, tendo morrido uma série de homens. Via chegar helicópteros, inquieta-se pela falta de notícias e foi a casa de outra enfermeira, a Manuela Flores França, esta respondeu-lhe laconicamente que o marido estava bem e que viria hoje. Ercília protestou com a secura da resposta o que obrigou a Manuela a um esclarecimento: “Ercília, eu só te quis dizer que o Pedro estava bem e que chegava hoje. Não querias que te dissesse sobre todos os que morreram e que eram da Companhia dele!... Tinhas tempo de saber cá”. Mesmo depois de ter abandonado a carreira de pára-quedista, continuou a dar apoio aos militares. Quando morria algum, acompanhava o corpo até à casa onde aguardavam o regresso a Portugal: “Sentia que representava a família”. E desabafa: “Um desses militares morreu no último dia antes de vir de férias a Portugal. Era do Pelotão do meu marido. Julgo que lhe tinha nascido um filho nessa altura. Estava muito feliz, e voltava dali a dias. Foram convocados para uma missão e o meu marido disse-lhe para ele não ir, uma vez que já estava substituído. Mas ele entendeu que devia ir, porque o substituto era novo e esta era a última operação dele. E foi. E ficou lá. O meu marido ficou de rastos, com peso na consciência, a achar que devia ter insistido mais. Mas eles tinham aquela ideia de que já tinham participado em tantas operações e que, por mais uma, não lhes iria acontecer mais nada”.

Maria Zulmira André foi a enfermeira que evacuou o capitão Pedro Peralta, do exército cubano, durante a “Operação Jove” em que participou o BCP 12 no corredor de Guileje. Ela recebera a seguinte incumbência: “Temos um ferido muito grave, que é necessário evacuar o mais rapidamente possível, e a Zulmira não o pode deixar morrer”.

Manuela Flores França é uma septuagenária activíssima, percorreu Angola, Guiné e Moçambique. Recorda a morte da enfermeira Celeste Ferreira Costa, apanhada pelo hélice de um avião. Com a passagem dos anos, começou a questionar a razão de ser daquela guerra e lembra-se muito bem de ouvir os soldados dizer na Guiné: “É para defender isto que vimos aqui dar a vida?”. Angola e Guiné-Bissau estão na lista das próximas viagens. Faz o balanço da sua vida: “Não estou nada arrependida. Voltaria a fazer o mesmo. Era daquela vida que eu precisava. Não tenho pesadelos, não tenho remorsos e acho que fiz o que devia. Dei tudo o que pude e o que eles precisavam. O nosso papel foi importantíssimo para as tropas portuguesas”.

Rosa Serra viveu em Mueda, que considera o pior sítio onde esteve. O seu primeiro destino foi a Guiné. A primeira evacuação que lhe coube foi uma menina que vinha com estilhaços: “Ela estava muito mais calma do que eu! A evacuação foi feita num DO e eu nunca tinha entrado num aviãozinho tão pequeno. Como a menina não precisava de vir deitada, peguei nela ao colo porque achei que ela fosse começar a chorar e a gritar. Veio ao meu colo nas calmas, olhava para baixo, para a mata, e ria-se para mim. Foi ela que me descontraiu”.

Estes anjos dos ares deram a mão a moribundos, procuraram acalmar militares em estado de choque, gente picada por abelhas, com o corpo desfeito, a gritar pela mãe. Salvaram vidas e impuseram-se no coração de todos os combatentes, por mérito próprio de quem tudo dá sem nada exigir.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9301: Notas de leitura (319): Milicianos, Os Peões das Nicas, de Rui Neves da Silva (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9318: Parabéns a você (363): Paulo Santiago, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 53 (Guiné, 1970/72)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9314: Parabéns a você (362): Ricardo Figueiredo, ex Fur Mil da 2.ª CART/BART 6523 (Guiné, 1973/74) e Valentim Oliveira, Soldado Condutor Auto da CCAV 489 (Guiné, 1963/65)

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9317: O último Chefe do Estado-Maior do CTIG, Cor Cav Henrique Gonçalves Vaz (Jan 1973/ Out 74) (Parte IV): Agosto de 1974: ainda o caso do BCAV 8320/72 (Bula, 1972/74) (Luís Gonçalves Vaz)

1. Do Luís Gonçalves Vaz em comentário ao poste P9190 (*), em resposta a um comentário (infelizmente anónimo, e que por essa razão foi eliminado, não só por ser anónimo como por pôr em causa a honorabilidade do Cor CEM Henrique Gonçalves Vaz, infelizmente já desaparecido):

Para que não fique nenhuma dúvida:

1º) Muitas das "..." [aspas e reticências] são originais e do próprio punho do já falecido, Coronel Henrique Gonçalves Vaz, Chefe do Estado-Maior do CTIG na altura;

2º) O estive é mesmo "ESTIVE", não duvide ...

3º) É claro que o coronel Henrique Vaz esteve "em contacto" com os elementos do Batalhão em questão, ao ponto de o Comandante do CTIG ter criticado a sua actuação, conforme se pode inferir pela nota pessoal (in: Agenda do Chefe do Estado-Maior do CTIG) do dia 23 de Agosto de 1974 (ainda inédita neste Blogue);

4º) Todas as Notas que existem, sobre este episódio, são as seguintes; como tal os caros leitores que tirem daí as suas conclusões;

Bissau, 22 de Agosto de 1974


"... História do Batalhão de Cavalaria nº 8320  do Tenente-Coronel Ferreira da Cunha, que se pôs a andar do CUMERÉ, depois da 3ª refeição, em direcção a Bissau, a pé, sob chuva inclemente. Minha actuação [...]. "

Coronel Henrique Gonçalves Vaz
(Chefe do Estado-Maior do CTIG)

Bissau, 23 de Agosto de 1974


"Como na noite anterior me deitei muito após as 2h, talvez 3 da manhã, levantei-me um pouco depois das 7.30H. A minha "actuação" foi criticada pelo Brigadeiro Cmdt nestes termos: "quem o mandou lá? Fazer concessões em meu nome?!"

Lá lhe expliquei os motivos do meu procedimento. Em vez de me felicitar, eis o que deu! Durante o dia, as "resistências" do Batalhão indisciplinado vieram ao de cima ... [reticências do próprio] e não teve remédio (o Comandante Militar) senão [...] ceder!, fazendo embarcar o pessoal amanhã à tarde! Eu não desisti e chamei sempre à atenção para a gravidade da situação. ..."

"... Reuni com a comissão que veio de Lisboa sobre os 'Planos de Retirada': Hipótese A e B. Mandei fazer a lista uma a uma para [...]."

Coronel Henrique Gonçalves Vaz
(Chefe do Estado-Maior do CTIG)

Bissau, 24 de Agosto de 1974


"... O UIGE com o Batalhão do Cunha, o 'famigerado' Batalhão de Cavalaria nº 8320 de Bula, partiu a princípio da madrugada para Lisboa. Estive [algum tempo ou atento?] no Cais a vê-los partir! Disseram-me que até hastearam uma bandeira vermelha com a foice e o martelo!..."

Coronel Henrique Gonçalves Vaz
(Chefe do Estado-Maior do CTIG)
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Nota1:


Espero ter esclarecido mais um pouco este episódio, mais não poderei dizer, pois já não estava na Guiné, na altura destes acontecimentos.

Nota2: 


O brigadeiro Comandante na altura, penso que seria o Brig Galvão de Figueiredo...

Nota3:

Não consigo ler bem,  na Nota do dia 24, a palavra a seguir a "Estive": será "algum tempo" ou "atento", já que na sua escrita o coronel Henrique Vaz utilizava muito as abreviaturas.

Nota final:


A análise crítica de causas e consequências deste episódio só poderá ser realizada pelos próprios intervenientes, e ainda vivos. Como tal fica aqui o desafio, mas serão importantes para "Memória Futura" e para a História da Descolonização, se o fizerem de uma forma "franca, transparente e construtiva", e sempre que possível de uma forma "não emocional"…

Abraços deste Tabanqueiro

Luís Gonçalves Vaz
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 13 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9190: O último Chefe do Estado-Maior do CTIG, Cor Cav Henrique Gonçalves Vaz (Jan 1973/ Out 74) (Parte II): Agosto de 1974: rebelião da CCAÇ 21 (Bambadinca) e do BCAV 8320/72 (Bula)

Guiné 63/74 - P9316: In Memoriam (102): Maria Manuela Flores França, ex-Cap Enf.ª Paraquedista, falecida a 26 de Dezembro de 2011

(Com a devida vénia ao autor)

Nota do Editor:
Os editores, em nome da tertúlia deste Blogue, apresentam à família da Enf.ª Paraquedista Maria Manuela Flores França os seus sentidos pêsames.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9248: In Memoriam (101): Faleceu o Capitão Eurico de Deus Corvacho (CART 1613, Guileje, 1966/68) (Eurico Corvacho, filho)

Guiné 63/74 - P9315: Memórias do Carlos Marques dos Santos (Mansambo, CART 2339, 1968/69) (2): Três emboscadas na fonte, em julho e setembro de 1968



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Abril de 2006 > "O caminho (frondoso e, outrora, perigoso) para a fonte" (AC).






Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Abril de 2006 > "A fonte de Mansambo, que continua a ser usada pela população local para abastecimento de água, higiene pessoal e lavagem da roupa" (AC)...






Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Abril de 2006 > "A fonte de Mansambo, quase 40 anos depois: aqui foi gravemente ferido, em emboscada montada pelos guerrilheiros do PAIGC, em 19 de Setembro de 1968, o Saagum, do 1º pelotão da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)... É o primeiro dos tugas a contar da esquerda" (AC). (*)




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Abril de 2006 > "Junto à fonte. A foto é elucidativa da tensão que vai principalmente no Almeida e Saagum, a sensação daquele momento só os próprios a podem descrever, e era giro que eles o fizessem, aqui fica o desafio para o António Almeida. Da esquerda para a direita: o José Clímaco Saagum, o António Almeida, o Manuel Costa, o Aguiar e o Casimiro" (AC). 





Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Abril de 2006 > "O Aguiar e o Casimiro na fonte de Mansambo". (AC)



Fotos:© Albano Costa / Hugo Costa (2006). Todos os direitos reservados

(Legendas do Albano Costa;  as fotos são do filho, Hugo Costa, que integrou esta expedição à Guiné-Bissau, em Abril de 2006; ambos são membros da nossa Tabanca Grande)


 




Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Mansambo > 1970 > Vista aérea do aquartelamento. Ao fundo, da esquerda para a direita, a estrada Bambadinca-Xitole.


Fotos do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Comentário de Carlos Marques dos Santos (CMS):

"Quanto à foto de Mansambo, a vista aérea – que é espectacular e que pessoalmente agradeço - gostava de saber de que ano é, se o Humberto tiver esses dados. A zona está totalmente nua, só com uma grande árvore ao fundo que se encontra à entrada do aquartelamento, pois vê-se a bifurcação para a estrada Bambadinca-Xitole (esquerda-direita. Falta ali uma árvore, a tal de referência para o IN, e que os nossos soldados chamavam a árvore dos 17 passarinhos, tal era a quantidade deles, que se situava na parte mais afastada da entrada. A mancha branca de maior dimensão seria o heliporto. Faltam os obuses, um de cada lado à esquerda e à direita. Ao lado dessa árvore ficava o depósito, que era uma palhota, de géneros e munições, que ardeu a 20 de Janeiro de 1969 (nesse dia chegaram os 2 Obuses 105 mm). Era véspera do aniversário da CART 2339.


"Ao fundo vê-se uma mancha à esquerda do trilho de entrada que era a tabanca dos picadores. À direita no triângulo de trilhos, ficava a nossa horta. A fonte ficava à direita da foto onde se vêem 3 trilhos, na mancha mais negra em baixo. Se confrontares com um mapa da zona vê-se aí uma linha de água".


Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados



Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Mansambo > Posição relativa de Mansambo, uma antiga pequena tabanca abandonada onde construído de raíz um aquartelamento pelo CART 2339 (1968/69).  A vermelho, a estrada a estrada que vinha de Bambadinca, a norte, para o Xitole e o Saltinho, a sul.  A fonte ficava a sudeste do aquartelamento, na direcção da ponte sobre o Rio Bantancunto.



Carta do Xime (1961) (Escala 1/25000) (Pormenor)


1. Mais duas notas pessoais no diário do Carlos Marques dos Santos (ex-Fur Mil da CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69; professor de educação física reformado, vive em Coimbra) (**):



11/7/1968

Chegou o novo furriel de transmissões. Fui a Bambadinca [, sede do BART 1904, e não do BCAÇ 1904...] saber se haveria transporte para Bissau para ir tratar dos dentes. Quininos e mais quininos destruiram o meu aparelho mastigador, mas convenhamos, seria mais uma tentativa de afastamento do cenário de guerra. Há que aproveitar.


Fui informado que, em Mansambo, tinha desaparecido um nosso soldado, na fonte, concerteza levado pelos turras. Logo de seguida a Companhia saíu para uma batida, na área e o Alferes de Mílicia de Moricanhe morreu com o rebentamento de uma mina A/P.

Na realidade, o que se passou ? A 11 de Julho de 1968,  o IN reteve um dos nossos elementos, na fonte, e na perseguição, em conjunto com as NT, o Cmdt do Pel Milícias 103 accionou uma mina A/P, tendo sucumbido aos ferimentos. Deste nosso camarada só houve notícias depois do 25 de Abril de 1974: era o Soldado Armas Pesadas Francisco M. Monteiro.


Continuo a aguardar transporte. Só a 19 de Julho de 1968 saí para Bissau, de barco - chamado Corubal... Rápido, pois demorou só 5 h e meia.

Dia 20 fui ao Hospital. Marcaram consulta para 22. Lá estava eu. O médico queria arrancar-me 5 dentes. Não concordei. Tive alta. Fui para a guerra outra vez.

Ainda, em Julho de 1968, a 24, morre em combate o 1.º Cabo Aux Enfermagem Fernando R. de Sousa. (**)

19/9/1968


Haverá uma outra emboscada  na fonte em que o Saagum ficou ferido: seria a 19/09/1968 e nessa altura não houve desaparecidos. Eis o meu registo:

Em 19 de Setembro de 1968, a CART 2339 sofre uma emboscada, vinda da copa das árvores, também na fonte, enquanto procedia ao abastecimento de água. 

07 h. Pequeno almoço. 8.30 h, rebentamentos na direcção da fonte. O 1.º Pelotão estava à água (o Saagum era do 1.º Pel). Ataque IN do cimo da copa das árvores. Reacção imediata do Pelotão, apesar do insólito.


Das árvores? Nunca tinha acontecido. Feridos! Antevê-se a tragédia. 1 morto e 11 feridos, 5 deles graves. O morto é o Soldado de Transmissões Humberto P. Vieira. Um dos feridos graves viria a falecer no Hospital Militar de Bissau (241),  a 25 desse mês. Era o 1.º Cabo Condutor João M. J. Figueiras. De entre os feridos graves, registe-se o José Clímaco Saagum que perdeu uma vista.

Evacuação urgente. Três helis evacuaram os feridos graves para Bissau e os menos graves para Bambadinca. Chegou coluna do Batalhão em ajuda. Reconhecimento da Zona. Trilhos, vestígios de sangue. Mau dia, este. (****)

Dia 20 [de Setembro de 1968]. Comandante em Chefe, Governador da Província - Spínola. Trouxe notícias dos feridos e conforto moral.

30/9/1968


Em 30 de Setembro, há uma nova emboscada na fonte a Pelotão de Milícia e uma mulher da Tabanca.


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Notas do editor:

 (*)
14 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCVIII: A emboscada na fonte de Mansambo (19 de Setembro de 1968) (Carlos Marques dos Santos)

(**) Último poste da série > 2 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9303: Memórias do Carlos Marques dos Santos (Mansambo, CART 2339, 1968/69) (1): Op Gavião: Abril de 1968, antes o fogo do IN que o ataque das abelhas



(***) Vd, poste de 9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DIX: As baixas da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) [Carlos Marques dos Santos]

(****) [Vd. também a evocação deste dia trágico, para  CART 2339, feita pelo Torcato Mendonça; passados meses, acrescenta ele, foi aberto um poço dentro de quartel; construíram-se duches e vieram dois obuses 10.5; segundo o prisioneiro Malan Mané, feito mais tarde, em Agosto de 1969, o grupo do PAIGC que emboscou as NT na fonte de Mansambo, em 19/7/1968, seria comandado ou enquadrado "por um ou mais cubanos"].

Guiné 63/74 - P9314: Parabéns a você (362): Ricardo Figueiredo, ex Fur Mil da 2.ª CART/BART 6523 (Guiné, 1973/74) e Valentim Oliveira, Soldado Condutor Auto da CCAV 489 (Guiné, 1963/65)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9300: Parabéns a você (361): Carlos Marques Santos, ex-Fur Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 – P9313: Memórias de Gabú (José Saúde) (20): Passagem de ano 1973/74



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.


PASSAGEM DE ANO 1973/74
O odor do mato

Pensei enviar esta mensagem em tempo considerado oportuno, ou seja, antes as badaladas do sino da igreja que nos indicavam a chegada do novo ano de 2012, porém repensei a minha decisão e fiquei com ela em carteira. Hoje, voltei a relê-la e entendi ser ainda oportuno traze-la à estampa uma vez que reconheço que a opinião relatada se enquadra com situações vividas por antigos camaradas que se depararam ao longo da sua comissão na Guiné com situações parecidas como aquela que descrevo. Num dos meus relatos sobre AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU sublinhei que um dia falaria sobre a única passagem de ano em território guineense. Uma promessa que ficou suspensa mas agora cumprida!


A passagem do ano 2011/2012 já lá vai. Passou. Fica para a história. Bebeu-se uma taça de champanhe, comeram-se as doze passas como manda a tradição e deu-se alvíssaras pelo tempo que se avizinha. Não vou, obviamente, cingir-me sobre o futuro que nos espera, respeito escrupulosamente as opiniões que cada um de nós partilha. O meu repto passa, sobretudo, por uma viagem no tempo, recuar 38 anos e trazer à estampa a minha passagem de ano de 1973 para 1974 na Guiné em tempo de guerra.

31 de Dezembro de 1973. Coube-me a missão comandar o grupo operacional cujo objectivo era  proteger os camaradas que entretanto ficavam no interior do arame farpado para, ao menos, contemplarem a entrada do novo ano de 1974 com alguma segurança. Lembro-me sair do Quartel ao final tarde e caminhar (mos) rumo a um objectivo indefinido. A noite esperava-nos. Claro que a situação considerada normal numa outra ocasião do ano apresentava-se, agora, descabida, tendo em conta a nossa ânsia em festejar a célebre data. Todavia o cumprimento do dever e o clima de guerra vivido, impunha restrições ao mais incauto militar.

Partimos então a caminho destas volúveis incumbências. Fez-se noite. Cerrada. Porém, recomendei, a dada altura, o fim da viagem. Toda gente ficou surpresa com a determinação. “Furriel, estamos ainda longe do local onde vamos ficar”, dizia-me o cabo Rodrigues já conhecedor destas andanças. “Não faz mal, pensei uma outra coisa. Talvez que esta noite não seja tão enfadonha como as outras”, atirei. “Porquê, furriel. Olhe, para mim é uma grande trampa. Pela primeira vez não festejo uma passagem de ano entre a família e os amigos”, respondeu o “nosso” cabo. “Tem calma que a nossa presença no breu da noite poderá ser hoje encurtada!”, respondi. “Não me diga que esta noite não haverá guerra com os mosquitos? Vamos mais cedo, não é verdade”, interpunha o homem do bigode farfalhudo e sempre astuto nas conversas. “Acertaste”, retorqui. 

Os ponteiros do relógio entretanto avançavam. Vieram as nove, dez, onze horas e o pessoal começou a procurar o melhor espaço para descansar. As conversas sobre o convívio da passagem do ano não paravam. “O ano passado já estava na tropa em Penafiel e tive licença para passar três dias em casa e agora passo o fim do ano no mato”, lembrava o soldado Antunes com a sua pronúncia do Norte. Um outro camarada, mentalizado com o destino que a vida lhe pregou, divagava nas suas aventuras, algumas amorosas, vividas em anteriores passagens de ano. Eu, claro, materializava excelentes recordações de uma vida passada ao rubro e longe do cenário por ora visualizado. Pensava nas noites electrizantes dançando ao som do twist-twist ou de melodiosos sons sul-americanos. Calmos. Aqueles que davam para um desejado enroscar de corpos ainda jovens. 

Lembro que as namoradas, à época, alindavam-se para uma noite divinal e nós, já quentes, a ferver, embeiçávamo-nos com o tornear dos seus esbeltos corpos.

Agarrado à minha camarada G3, companheira em momentos de aflições, meditava na revolta sentida e engendrei, aliás, já estava engendrada, uma solução para por fim ao sofrimento partilhado entre os meus companheiros.

Inesperadamente soltei um grito: “Meus amigos estamos todos no mesmo barco, arrumemos a tralha e toca andar a caminho do Quartel. Aconselho, porém, que a nossa entrada à porta de armas seja feita o mais silenciosamente possível e vamos festejar, também, o novo ano de 1974”. O regresso foi encarado euforicamente, recordo. Seguiu-se a entrada para o interior do arame, a festa e o ênfase, natural, que a madrugada declarava.

A estratégia de ficarmos próximo do Quartel suscitou, obviamente, uma réstia de esperança para aqueles homens entregues então à solidão de uma noite, para mim, e para eles, inesquecível.

Para a posterioridade ficou a certeza que numa noite de festa – 31 de Dezembro de 1973 para 1 de Janeiro de 1974 – em que partilhámos a inequívoca realidade do odor do mato!

Um abraço deste alentejano de gema,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523


Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados. 

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

31 DE DEZEMBRO DE 2011 > 
Guiné 63/74 – P9297: Memórias de Gabú (José Saúde) (19): Um poço no mato  

 

Guiné 63/74 - P9312: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (8): Foto do refeitório do destacamento fronteiriço de Sare Uale, disponibilizada pelo Aristides Gomes Teixeira, o nosso ex-padeiro



Guiné > Zona leste > A posição relativa do destacamento de Sare Uale, mesmo junto à fronteira com o Senegal, e que pertencia a Fajonquito, dentro do triângulo Cambaju, Sare Bacar e Contuboel.  Fajonquito fica na carta  de Colina do Norte (1956) (Escala 1/25000). Sare Uale fica já na carta  de Tendinto (que, por qualquer razão, não está disponível "on line", lapso a corrigir em breve).

Fonte: Carta da Provínica da Guiné (1961). Escala 1/500 000 (Pormenor)


1. Mensagem do nosso camarada José Cortes (ex-Fur Mil At Inf da CCAÇ 3549/BCAÇ 3884, Fajonquito, 1972/74), com data de 1 de Janeiro de 2012:


Caros amigos,

Desejo,  a toda a tertúlia, um Bom Ano de 2012.


A foto que vai em anexo, foi-me enviada pelo camarada Aristides Gomes Teixeira, que era padeiro e esteve neste destacamento de Sare Uale, durante toda a comissão, por opção própria.


Em fundo era o refeitório do pelotão, que estava aí destacado. Passaram por lá os quatro pelotões da companhia e o companheiro Aristides sempre no seu destacamento durante os 26 meses de comissão.


Um abraço,
José Cortes.


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Nota de CV:


(*) Vd. último poste da série de 2 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8983: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (7): Fotos enviadas a Cherno Abdulai Baldé - Chico de Fajonquito (2)

Guiné 63/74 - P9311: (Ex)citações (171): A propósito de citações e comentário do Mais Velho (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 3 de Janeiro de 2012:

Olá Carlos, boa noite,
Estive alguns dias a alentejanar, sem computador nem sinal de telemóvel, e ao chegar a casa tinha alguma curiosidade em ver o Blogue. Antes da minha partida já o Zé Brás tinha-me enviado uma nota sobre o que se propunha fazer, e acho que lhe transmiti entusiasmo. Também já o Joaquim tinha feito um poste de oposição, onde inseri um comentário. Faltava-me ver os restantes. Por isso, escrevo agora a propósito de um comentário do António Rosinha, que me parece susceptível de correcção, e talvez ajude à melhor compreensão do fenómeno colonial português, sobre a questão das concessões, e de truques para parecer o melhor dos mundos, sustentado em números de grande hipocrisia, onde o interesse particular primava sobre o público.
Se julgares que estas linhas podem corroborar os textos do Zé Brás, ficas à vontade para o fazer.


A propósito de CITAÇÕES, post 9286**, e comentário do ´"Mais Velho"

Desde meados do sec. XIX que se sabia do potencial económico sustentado na riqueza mineira de Angola, bem como do potencial económico que a agricultura poderia proporcionar. O estado facilitou a demarcação de terras para explorações agrícolas, e criou legislação que facilitava o recurso à mão de obra, sendo que, em alguns casos, mediante a corrupção ou subordinação de sobas e chefes tribais. Até àquela data Angola era um imenso território onde viviam tradicionalmente as tribos, sem qualquer organização político-administrativa (que se limitava às regiões próximas das cidades do litoral), para além do traçado das fronteiras.

A situação dos indígenas, que eram sujeitos a trabalhos quase-forçados, ou à condição de quase-escravos, está bastante documentada, e os resultados agrícolas causavam espanto na metrópole. Com a segunda nomeação de Norton de Matos para Alto-Comissário, o general exigiu condições que podem resumir-se pela "garantia de governar Angola durante, pelo menos cinco anos, e de lhe serem disponibilizados fundos necessários para desenvolver a colónia, ou deixarem que os arranjasse contraindo empréstimos". Entretanto, o Parlamento consagrou a autonomia administrativa e financeira das colónias. Tinha em mente grandes projectos de obras públicas, nos portos de mar e nos caminhos de ferro, pelo que tentou negociar empréstimos em Inglaterra. "Enquanto na Europa se tratava de assuntos da maior importância para o futuro do continente e do mundo, tentando Afonso Costa defender ao máximo os nossos interesses no âmbito da Sociedade das Nações, a deplorável situação política interna acarretava-nos o descrédito dos outros países, que consideravam Portugal ingovernável". Lançou um plano de obras públicas que ampliava a rede de caminhos-de-ferro, a construção e ampliação de portos de mar, a abertura de estradas, e uma rede de comunicações telegráficas. "O seu primeiro ano foi, assim, em grande parte dedicado a produzir o suporte administrativo e legal dos meios postos ao dispor do desenvolvimento da província". ... "Este quadro legislativo foi ainda completado com diplomas que atendiam a aspectos da educação, da posse da terra, da exploração dos recursos naturais e, finalmente, com os decretos sobre o trabalho e a protecção do indígena, que tão fundos dissabores acarretariam para o alto-comissário". Tornou-se por esta razão um homem a abater, e acabou antecipadamente destituído.

Digamos que, em Angola, a Administração andou colada aos interesses particulares, nomeadamente os das empresas que garantiam o progresso. Ora, como vimos antes, o Estado não reunia meios para o fomento da província, pelo que muitas infraestruturas eram garantidas por contratos de exploração com empresas de capitais migrados que, em contrapartida, conseguiam condições muito vantajosas para instalação e desenvolvimento dos seus negócios. Foi o que aconteceu com a Companhia de Diamantes de Angola, "um estado dentro do estado", no dizer popular, que construía barragens e fornecia electricidade para vastas regiões (embora os autóctones pouco ou nada beneficiassem dela), "garantia" a assistência médica e medicamentosa através de pequenos hospitais e dispensários (houve trabalhadores que diagnosticados de gripe exibiam nas suas fichas a resochina como tratamento, e outros sujeitos a cirurgias hediondas), que, no Cafunfo, chegou a contratar "snipers" para combater a "camanga", e uma grande parte dos vinte mil trabalhadores rurais que era oriunda das tribos do sul, atravessaram a pé o território angolano, devidamente enquadrados por guardas, e definitivamente separados das famílias.

Sobre o episódio entre Adriano Moreira e Venâncio Deslandes, em 1962: "ao provocar a demissão do General Deslandes após um processo de averiguações em que este terá sido acusado de se haver transformado em bandeira dos separatistas de Angola", estava lançado um período de desenvolvimento, e o governo viu-se obrigado a aumentar as autonomias das províncias.

Refere o meu estimado António Rosinha que todas as empresas de capitais estrangeiros a operar em Angola, portaram-se sempre dignamente para com o estado português. Não me parece que tenha sido assim, pelo menos no que respeita à exploração diamantífera. Já vimos como socialmente a Companhia deixou muito a desejar. Veremos agora como se processava o negócio e os efeitos decorrentes para a economia nacional:

Durante dezenas de anos a C.D.A. - Diamang teve o exclusivo para prospectar, definir as zonas de "claims", e explorar em todo o território de Angola. Era monopolista. Na composição do capital social o Estado detinha 51%, e o restante correspondia a participações de empresas estrangeiras que integravam o "trust" (capitais de confiança), que dirigia e controlava o negócio mundial (com insignificantes excepções).

A Diamang chegou a ostentar dezassete administradores, três executivos, e os restantes, em proporções parecidas, ora representavam o capital externo, ora representavam uma prateleira dourada de antigos governantes e pessoas gradas ao regime, e que parecia poderem defender o interesse nacional.

blá-blá, anos a fio. No que à cotação dos diamantes respeita, e qualquer pessoa pode saber pelas estórias dos camanguistas, deve ter-se em conta a qualidade superior das gemas angolanas, o principal factor de valorização, associado ao peso, grau de purificação e modelo de cristalização, e tentar perceber porque eram vendidos ao preço médio - cotação, tal e qual os diamantes russos ou liberianos. Pois é, o "trust" manipulava os preços. E Salazar saberia que era fácil de abater.

Não satisfeito ainda, no início da década de 70 começou a Condiama a prospectar em Angola. A empresa era constituída essencialmente por capitais do "trust". Falava-se em "abertura" do regime. Coisa para oligarquias! Quer dizer que a empresa tinha obtido acesso a zonas que eram exclusividade da Diamang. Mais curioso, porém, foi que os diamantes provenientes da prospecção efectuada pela Condiama, eram guardados no mesmo cofre da Diamang, na Estação Central de Escolha, em V. P. de Andrada, no que podemos considerar uma medida absurda e de promiscuidade, difícil de entender. Em 1972, o então director-técnico da C.D.A. manifestou oposição à actividade e às circunstâncias da Condiama, e ao prejuízo resultante para o interesse nacional, e foi promovido a uma prateleira dourada, sem intervenção significativa, pelo que se demitiu. "Seguiu a marinha". Os acontecimentos subsequentes (a independência) não o permitem confirmar, mas tudo indica que o "trust" era guloso e queria mais, e mais àvontade, pelo que, a prazo, a Diamang poderia tornar-se inviável face à relação custos/rendimento, enquanto a Condiama daria provas de "boa gestão e progresso". Ora estas manobras só eram possíveis com a conivência de gente muito bem instalada e acesso aos cordelinhos, sem enfermar do espírito patriótico que pode tolher as boas iniciativas.

Assim, desafio os historiadores e especialistas mais credenciados, a desenvolverem estudos comparativos, que, certamente, vão permitir verificar como a sociedade portuguesa foi altamente lesada, e o desenvolvimento angolano inibido de mais e melhores resultados, em lugar de a tudo e nada recorrerem para minimização do estudo do Zé Bràs, que só falhou pela nota de cansaço.

De Portugal, na época. pode dizer-se que comportou-se ingénua e teimosamente, como um país colonizador que, afinal, não passava de um instrumento útil à prossecução dos interesses das grandes fortunas, ontem e hoje, as verdadeiras colonizadoras. Mesmo assim, a guerra em Angola praticamente terminou por virtude do desenvolvimento sócio-económico.

Nota bibliográfica:
- Relatórios do Banco de Angola;
- Memórias de África , de Jorge Eduardo da Costa Oliveira;
- Norton de Matos - biografia, de José Norton;
- Salazar, vol V, Franco Nogueira
- Coisas do Tempo Presente, de Cunha Leal
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Dezembro de 2011 Guiné 63/74 - P9285: História da CCAÇ 2679 (45): Um aniversário em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

(**) Vd. poste de 29 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9286: (Ex)citações (170): As colónias portuguesas antes da Guerra (3): Guiné e Cabo Verde - Notas finais (José Brás)

Guiné 63/74 - P9310: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (6): Fragmentos Genuínos - 4

FRAGMENTOS GENUÍNOS - 4

Por Carlos Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66

Transportados para Fulacunda um dos lugares que se pretendia servir de tampão e dissuasor de pelo sul o IN chegar a Bissau, apenas tenho memória da viagem até ao porto no rio Geba que ficava a 4/5Km da localidade, de se avistar a perder de vista uma imensa e impenetrável floresta e da linguagem do inefável barbeiro da Companhia, o grande amigo Antonino Marques, já então como que de sobreaviso com as tropelias e prepotências que se vieram a verificar por parte do Alf. Serigado e do medroso Ferreira de Almeida, altamente vernácula e que se tornou paradigma nos considerandos e conversas que frequentemente mantínhamos.

Diversas vezes entrou em choque com o Serigado, nunca lhe perdoando; de tal modo que na primeira confraternização para a qual depois de já termos feito algumas, lá ter eu próprio convencido o Serigado a participar, tendo vindo acompanhado por um filho adolescente, e obrigando-me a tentar por em prática uma política de boas relações, o bom do Antonino quando nas despedidas o Serigado o pretendeu cumprimentar lhe disse na sua voz estentória: eu não conheço o senhor de lado nenhum, e assim ficou. É hoje este meu grande amigo o Barbeiro de Meruge – Oliveira do Hospital.

Aqui após o desembarque e posterior transporte por uma desesperante picada cheia de buracos e enlameada de tal modo que um dos unimogues que nos veio buscar se atolou, e em que um dos jovens desconhecedor como todos, das características da floresta bateu inadvertidamente com o corpo num arbusto ficando com uma comichão que o fez arrastar-se no chão para tentar suavizar o ardor; era, viemos a saber depois através dos velhinhos que íamos substituir o feijão-macaco. Chegados ao aquartelamento, um rectângulo rodeado de arame farpado e sem ligações com nada excepto este porto ou uma improvisada pista de aterragem, dentro do aquartelamento existiam algumas casas de antigos colonos e que serviam de messes enfermaria etc… e um refeitório e Bar, para além de já construídas duas casernas; no exterior havia uma tabanca e algumas casas abandonadas mas funcionando ainda um posto de correio, onde estava colocado um jovem cabo-verdiano que era o nosso companheiro de actividades e alinhando na fragilíssima equipa de futebol do sul, donde éramos meia dúzia e servíamos de batuta para o resto do pessoal. A nossa Companhia tinha como maior componente, pessoal oriundo das beiras.

Aqui começávamos a sentir a realidade de uma vivência em guerra cheia de agruras turbulências e peripécias algumas delas rocambolescas mas qualquer delas traumáticas e de inimaginável tensão; para além da tragédia da morte e desaparecimento de grandes amigos e camaradas. Na primeira noite ainda muito confiante e pouco avisado deixei-me adormecer numa cadeira tipo baloiço (de design militares das colónias - feitas com as tábuas dos barris do vinho), no alpendre das nossas instalações, só acordando por mor das milhentas picadelas de mosquitos que por ali pululavam aos milhões. Que banquete, eu já na altura era suficientemente anafadinho. Enfim fui o motivo para risada geral: os trastes hem!!!

Após poucos dias de estadia em Fulacunda e ainda sem uma completa adaptação ao meio, onde as noites eram passadas em sobressalto com os ruídos naturais tanto de algum movimento na Tabanca o natural rumorejar da floresta, e os guturais gritos dos macacos-cães, principalmente em dias de chuva e ventos, e que se tornavam verdadeiramente assustadores para estes neófitos e isolados guerreiros, saímos em patrulhamento no sentido de Uaná Porto. Esta tabanca ficava situada no terminus de um vale junto do rio Corubal e à beira duma mata intensa, sendo que por todo aquele vale/planície se via uma extensa plantação de arroz, vindo só junto ao rio a aparecer a povoação; era uma paisagem paraisidiaca, tendo nós assistido ao nascer do sol que era mesmo no sentido do Rio, é indescritível a beleza e sentido de paz que pairava etereamente no ar; no meio de um silêncio profundo, um camarada não se conteve, mandou às urtigas as recomendações de surpresa e disse em alta voz: “Oh meu Deus porque é que fazes guerras aqui”. A ansiedade era enorme, transformando-me numa autêntica pilha de nervos. Exceptuando uma rajada que um camarada nosso com menos auto-domínio executou e em que a espingarda logo encravou regressámos ao aquartelamento sem mais qualquer incidente. A sugestão do médico da Companhia, Dr. Dias Neves, do Montijo (era talvez o melhor atirador da Companhia; vi-o matar em pleno voo um pato bicanço), tinha pela sua maneira de ser um grande ascendente sobre o Cap. Caria e influenciava facilmente as decisões deste, toda a Companhia foi para a pista de aterragem fazer fogo para o mato a fim de testar as armas. Uma percentagem elevada estava inoperacional.

Hoje, por sobre o aquartelamento e redondezas desencadeou-se um tremendo temporal que faz desta noite um tempo de temores e sobressaltos, tal é a quantidade de água da chuva que mais parece uma catadupa permanente que se abate sobre tudo, acompanhada do mais rigoroso trovejar e com relâmpagos, com só vi na Guiné, e que são de tal modo que se vêem em sequência por centenas de metros iluminando tudo até para lá da pista de aterragem a ponto de se entreverem difusamente os contornos do início da floresta da Bianga.
Tudo se me afigura intimador e desconhecido. Entretanto já bastante tarde foi mandado chamar o nosso guia, Malam Sanhã. Era um homem já de idade (um Homem Grande) de porte altivo e forte presença, era muçulmano e usava os trajes condizentes, homem de poucas palavras, aceitava a missão de nos guiar e encaminhar para os locais onde pretendíamos agir sem o mínimo comentário; entendia-nos perfeitamente.

Reunida a Companhia, já transformada em três Pelotões, e mesmo em face aquelas inóspitas condições, lá tivemos que sair para o mato, sendo que apenas saímos com dois Grupos acompanhados dos sempre presentes elementos das milícias, com alguns dos quais estabeleci fortes laços de amizade, e alguns carregadores que sempre nos acompanhavam, (estes elementos eram recrutados entre a população e iam sem qualquer armamento levando em bolsas adaptadas as granadas de Bazooka e de morteiro e aos quais era pago uma quantia ridícula; desta vez tive, ao vir atrás trocar impressões com alguns camaradas, pois o meu lugar era como de costume o segundo, no caso logo atrás do Malan, a desdita de verificar que um destes pobres apresentava indícios de sofrer de poliomielite ou qualquer outra doença, pelo que lhe era bastante difícil caminhar; mas coitado pelos míseros pesos=escudos que iria receber lá ia sujeito a por ali ficar. Que desumanidades cometemos.


Lá avançámos a caminho do objectivo debaixo daquela tempestade do fim do Mundo, encaminhamo-nos, depois de atravessar a tenebrosa mata da Bianga, período durante o qual se afastou o temporal a que se seguiu um opressivo silêncio e escuridão de tal monta que tivemos de nos agarrar todos ao elemento da frente e onde amiudadas vezes caíamos ou batíamos com a cara na coronha da arma desse elemento, valeu-me nesta aflição ser o segundo logo atrás do Malan Sanha e as suas roupas serem mais claras. Aproximamo-nos do Rio Geba e ouviam-se nitidamente, para além de indecifráveis e misteriosos ruídos, uns estalos secos, que mais pareciam tiros à distância.

Questionei o Malan Sanha!
E este na sua superioridade cultural e calma placidez apenas disse: - É a mar… Rios, é a mar…

É verdade, os estalidos provinham do tarrafo que crescia a esmo à beira dos canais do Geba e em todas as enchentes de maré estalavam muitos e provocavam aqueles ruído seco.
Prosseguimos e ao alvor da madrugada entrámos no objectivo: afinal uma tabanca com todos os vestígios de ter sido abandonada recentemente e onde havia um imenso laranjal onde nos abastecemos, após o que regressámos sem incidentes e em menos de um quarto do tempo a Fulacunda.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9302: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (5): Fragmentos Genuínos - 3

Guiné 63/74 - P9309: Memória dos lugares (170): Regresso a Missirá em Janeiro de 1990 (Mário Beja Santos)


Aqui fica uma prova provada da revolução de costumes em Missirá: a discoteca. O Tangomau não teve coragem de perguntar nada sobre o horário de funcionamento e a natureza dos serviços prestados.



1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Dezembro de 2011:

Queridos amigos,
 
Espero que a lembrança vos dê satisfação. Aí a páginas 250 deste calvário que levo na escrita e que tenho que aprontar até ao fim de Fevereiro, reconstituo a visita que fiz a Missirá vinte anos depois de lá ter estado. Foi um encontro inolvidável, o mundo mudara mas aquela paixão pelo Cuor mantinha-se firme. Mantinha-se e mantêm-se.

Desejo-vos do coração um novo ano com a saúde em pleno e sinto-me grato pela vossa amizade,
MBS


O regresso a Missirá em Janeiro de 1990

Maria Leal Monteiro e o Tangomau iam comer regularmente à Pensão Central, na Avenida Amílcar Cabral, sempre superintendida por D. Berta de Oliveira Bento. Foi aqui que conheceram outro cooperante, o Dr. Francisco Médicis, que estava ligado a um projecto da segurança social. Suspirava-se, no fim de uma tarde de quinta-feira, para encontrar um transporte no fim-de-semana para ir até ao Cuor, era mesmo crucial fazer esta visita durante o fim-de-semana, pois estariam de regresso a Portugal na terça-feira seguinte. Com uma enorme candura, o Dr. Francisco Médicis assegurou-lhes que os levava ao Cuor no domingo, aquele domingo ficava por conta de alguém que sentia um enorme fascínio por aquele regulado que ele não conhecia nem nunca ouvira falar. Estava prometido, o Tangomau voltava ao seu chão.

Alvorecia em Bissau quando os três se puseram ao caminho numa carrinha de caixa aberta, de Bissau até Nhacra, antes de Mansoa tomaram a estrada em Jugudul, era a primeira vez que o Tangomau percorria caminhos outrora interditos; não se entrou em Porto Gole, a nova estrada alcatroada seguia por Malafo e passava perto do Enxalé. 

Nesta altura já o Tangomau estava alvorotado, via embevecido as culturas do arroz pam-pam, ao fundo nas lalas os majestosos tabás, os cipós, surpreendeu-se com as culturas do cajueiro, a grande novidade; do Enxalé para a frente, sentia a respiração entrecortada, os olhos suspensos no horizonte, à procura dos meandros do Geba, sentiu-se desnorteado, pois percebeu que o novo traçado da estrada se afastara do rio, era impossível ter perdido de vista aqueles formosos palmares nas vizinhanças de Mato de Cão; viu a indicação da povoação com este nome, muito depois de Saliquinhé, perguntou aos passantes onde estava o rio e todos disseram que estava longe, mais a mais o curso de água encontrava-se na vazante, era impossível aproximar-se daquele local mágico que visitara todos os dias, uma das razões porque se atirara ao caminho, vem pelos homens e vem pelos lugares, vem pelos cheiros, pela fauna e pela flora, está de regresso ao Cuor, que lhe pertence; conformou-se com a desfeita da natureza, mas não deu o tempo por perdido, nesse mesmo Mato de Cão foram mostrar-lhe o planalto, foi então que se apercebeu que por ali houvera um quartel exactamente no local onde pernoitara tantas vezes, que calcorreara em todas as direcções, agradeceu a recepção, a carrinha de caixa aberta, por indicação de outros passantes, mais adiante, em Gambana, inflectiu à esquerda e tomou o caminho da velha estrada do Geba, que ele tão bem conhecia, em dado ponto até exclamou que estava a ver Malandim, no lado direito e ao fundo a opulenta, a luxuriante bolanha de Finete.

É um dia de Janeiro sem uma aragem e escorre pelos corpos um calor fervente, o caminho é acidentado, predomina a zanguizarra dos grilos, aqui e acolá começam a despontar terrenos cultivados, o Tangomau entra em transe, já se avista a curva de Canturé, a carrinha vai sempre em frente, mesmo aos tombos em tantos buracos, disseram em Bissau que é preciso ter muito cuidado pois há muitas estradas alagadas, são os resquícios da época das chuvas, o Dr. Francisco Médicis prefere a segurança deste empedrado que muito mais adiante, de acordo com a carta e a percepção do Tangomau, irá desembocar em Cancumba.

 Agora está um calor de enlouquecer, vê-se uma indicação de Maná, a carrinha prossegue imperturbável, e quão curioso vai o antigo alferes de Missirá, Maná é um percurso de antanho, prenhe de memórias, por ali há um túmulo de um régulo do Cuor, um nome inesquecível de um Soncó; dentro da viatura não se ouve um comentário, tripulante e passageiros levam frequentemente à boca a garrafa de água; o terreno agora é mais escalavrado, o Tangomau tem um arrepio, recordou à esquerda a entrada para Mato Madeira, num ponto alto do alcantilado avista-se uma tabanca à direita, pelas informações que dispõe trata-se de Sansão, foi recriada no fim da guerra, estão pertíssimo de Missirá; agora a estrada alarga-se, melhor dito é a natureza liberta da floresta, temos ali as palmeiras de Cancumba, a carrinha inflecte numa picada, alguém, a caminho das hortas, confirma que é preciso tornear a nova tabanca para chegar a Missirá; o estradão está de facto pejado de hortas, o Tangomau reconhece os altos poilões e o mar de cajueiros, Missirá está em frente, quando a viatura franqueia a entrada ouve-se o gralhar das crianças, começam a sair os adultos das moranças e naquele espaço que fora a parada do quartel a viatura sossega, os viajantes põem-se em terra.

Sempre que descrevia o acontecimento, o Tangomau comentava: entrei e saí de Missirá a soluçar, é uma experiência inenarrável, 20 anos depois sentir a atmosfera, ver alguém que se aproxima e logo se reconhece, é Lamine Mané, a criança tornou-se num homem robusto, guarda a inocência no sorriso, pega o Tangomau pelos ombros e dá-lhe as boas-vindas dentro de um abraço caloroso. Explode a gritaria, o Baké regressara, claudicando aparece Quebá Soncó, depois dos cumprimentos efusivos dá instruções para se juntarem os bancos, vai começar o cerimonial das conversações, mas o Tangomau está frenético, procura as mulheres grandes, encontra duas, partem mantenha, elas fazem a reverência, perguntam pela família, pedem cola; se já vinha desnorteado, dentro de Missirá perdeu a bússola, está tudo modificado, a única referência a que se agarra é ao edifício dos abastecimentos, não o demoliram; o cerco estreita-se, ele tem pela frente alguém que lhe estende os braços e que o ampara, vibrante, é Bacari Soncó, o seu irmão, o Tangomau já não pode mais, soluça encostado a uma estaca de querentim, sente a cabeça à volta parece o dia da ressurreição dos vivos, que andavam tão distantes. Quebá Soncó sente-se na obrigação de pôr ordem, há autoridades do PAIGC que pedem explicações para esta explosão de alegria, trocam-se cumprimentos, as autoridades falam em crioulo e Quebá traduz: nosso alfero é muito bem-vindo.

Cumpre-se o protocolo dos cumprimentos, Quebá perora em mandinga, Maria Leal Monteiro e o Dr. Francisco Médicis estão manifestamente siderados com o cerimonial, olham para a pequena multidão silenciosa, o povo aguarda o ritual dos cumprimentos, parece que voltámos aos tempos bíblicos. A assembleia posiciona-se: no extremo de um longo U um banco para os visitantes, estes já receberam pratos de papaia e copos de água fresca; em frente, sentado numa cadeira de vime, pontifica Quebá, compete-lhe a batuta de toda a conversa; logo atrás todos os homens grandes, estão ali festivos nas suas fatiotas multicoloridas, vêem-se ali os Soncó, os Sani e os Mané; aos lados, temos os jovens adultos e os blufos, a maior parte mantém-se de pé, são obrigados ao respeito, compete-lhes ouvir a confirmação de uma história que já ocupou muitas noites da vida de Missirá, o Baké existe, é um Soncó que regressou nesta visita meteórica, mas existe, não é lenda nem tem a forma de um Deus; ao fundo estão todas as mulheres e as crianças, só as mais velhas estão sentadas, elas tiveram o privilégio de conviver com o branco da família, que não pára de chorar, coisa inconcebível de se mostrar em público, ele deve ter um amor muito entranhado, deve ter vindo amarfanhado pelas saudades para quebrar os deveres da honra, um homem não chora, mais a mais ele é o guerreiro que nenhuma bala pode derrubar.

É longo o discurso de Quebá e mal se faz silêncio um homem jovem, vestido à europeia, começa a traduzir para português, fraseia e articula sem mácula, o Tangomau está intrigado e pede explicações e Quebá prontamente responde: é o nosso irmão mais novo, Abudurramane Serifo Soncó, é professor, está de férias, tinha sete anos quando houve o grande ataque que destruiu Missirá, em 1969. Feita a saudação inicial, levanta-se imponente Aladje, o ancião dos Soncó, lança uma oração de graças, o Deus misericordioso nunca falta ao apelo dos seus crentes, é bom este regresso de alguém que jamais foi e será esquecido, chegou o momento do ilustre visitante falar com a família. O Tangomau, para sua própria surpresa, tem o coração oprimido mas discursa sem nenhuma congestão narrativa, recorda todos os seus amigos, as idas ao médico e os trabalhos do abastecimento em arroz, naquele preciso momento sentia grande comoção em recordar Mussá Mané, praticamente todos os dias o chefe de tabanca lhe vinha suplicar uma coluna extraordinária para suprir carências de toda a espécie, recordou o régulo Malã e aquele dia de despedida em que ele se transformara num Soncó. Aqui a sua voz tremelicou, resolveu abreviar, que ninguém duvidasse que ele nunca esquecera Missirá e Finete, as belezas indizíveis do Cuor, o regulado mais belo do mundo, que vinha para colaborar com a Guiné-Bissau e que sentia uma grande alegria por este reencontro e que pedia licença para ir rezar com os homens grandes à mesquita, dar hossanas e desejar as maiores venturas a quem ali vivia.

O que se passou nas horas seguintes ainda hoje permanece confuso, veio o novo régulo, um Soncó que vivia no Senegal, no tempo da guerra, de nome Mamadi; furtiva ou abertamente, entregavam-lhe bilhetes, trouxe dezenas deles, pedindo equipamentos de futebol, livros, chapa ondulada, bancos para a escola; percorria Missirá de uma ponta a outra quando foi sacudido pela emoção maior: sempre discreto e estendendo-lhe as mãos ali estava Cherno Suane, que tanto sofrera na prisão do Cumeré, andara a monte e finalmente fora autorizado a residir perto de Missirá, em Biassa. 

O Tangomau nunca se arrependeu da promessa impulsiva que logo ali lhe fez: juro-te que tu vais para Portugal, se quiseres. É quando começa o fim do dia que o Dr. Francisco Médicis, com mansuetude, lhe recorda que a viagem até ao tapete alcatroado tem os seus riscos, é melhor partirem, tem consciência de que é muito difícil agora a despedida, apela à sua compreensão. E começa o cerimonial do adeus, garante a todos que é bem provável que volte em breve, na caixa aberta vão as prendas, várias galinhas a cacarejar, com as patas atadas. Cherno Suane vai erecto e altaneiro na caixa, despede-se de todos como se amanhã partisse para Lisboa. Esta despedida é igualmente emocionante, a carrinha está imobilizada à entrada de Missirá, são adeuses sem fim, o Tangomau parece querer congelar no olhar aquele céu sem uma nuvem, agora a temperatura é benfazeja, depois prosseguem pela estrada alcantilada, em Cancumba os habitantes insistem em cumprimentar, correu célere a notícia da presença do Baké, muita desta gente veio de Madina, Belel e Quebá Jilã, se fosse necessário prova mais eloquente de que já se consumou a reconciliação entre guineenses e portugueses, ela aqui estava, neste final feliz da visita.


Esta é a nova Missirá e estes meninos olham para o futuro. Está na hora de partir, o Tangomau sabe que vai voltar, mais cedo do que a população de Missirá pensa. Até porque há muita coisa para ver nos arrabaldes: Madina de Gambiel, Sansão, Maná. Há uma grande nostalgia por percorrer a velha estrada que ligava Bissau a Bafatá. O Tangomau não sairá defraudado. Toda a comitiva entra no carro de combate conduzido por Calilo Dahaba e marcha-se para Mato de Cão. Ponham-se em sentido todos aqueles que ali vigiaram e viveram!


Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9305: Memória dos lugares (169): A CCAÇ 2464 em Biambe e Binar (António Nobre)