quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9310: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (6): Fragmentos Genuínos - 4

FRAGMENTOS GENUÍNOS - 4

Por Carlos Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66

Transportados para Fulacunda um dos lugares que se pretendia servir de tampão e dissuasor de pelo sul o IN chegar a Bissau, apenas tenho memória da viagem até ao porto no rio Geba que ficava a 4/5Km da localidade, de se avistar a perder de vista uma imensa e impenetrável floresta e da linguagem do inefável barbeiro da Companhia, o grande amigo Antonino Marques, já então como que de sobreaviso com as tropelias e prepotências que se vieram a verificar por parte do Alf. Serigado e do medroso Ferreira de Almeida, altamente vernácula e que se tornou paradigma nos considerandos e conversas que frequentemente mantínhamos.

Diversas vezes entrou em choque com o Serigado, nunca lhe perdoando; de tal modo que na primeira confraternização para a qual depois de já termos feito algumas, lá ter eu próprio convencido o Serigado a participar, tendo vindo acompanhado por um filho adolescente, e obrigando-me a tentar por em prática uma política de boas relações, o bom do Antonino quando nas despedidas o Serigado o pretendeu cumprimentar lhe disse na sua voz estentória: eu não conheço o senhor de lado nenhum, e assim ficou. É hoje este meu grande amigo o Barbeiro de Meruge – Oliveira do Hospital.

Aqui após o desembarque e posterior transporte por uma desesperante picada cheia de buracos e enlameada de tal modo que um dos unimogues que nos veio buscar se atolou, e em que um dos jovens desconhecedor como todos, das características da floresta bateu inadvertidamente com o corpo num arbusto ficando com uma comichão que o fez arrastar-se no chão para tentar suavizar o ardor; era, viemos a saber depois através dos velhinhos que íamos substituir o feijão-macaco. Chegados ao aquartelamento, um rectângulo rodeado de arame farpado e sem ligações com nada excepto este porto ou uma improvisada pista de aterragem, dentro do aquartelamento existiam algumas casas de antigos colonos e que serviam de messes enfermaria etc… e um refeitório e Bar, para além de já construídas duas casernas; no exterior havia uma tabanca e algumas casas abandonadas mas funcionando ainda um posto de correio, onde estava colocado um jovem cabo-verdiano que era o nosso companheiro de actividades e alinhando na fragilíssima equipa de futebol do sul, donde éramos meia dúzia e servíamos de batuta para o resto do pessoal. A nossa Companhia tinha como maior componente, pessoal oriundo das beiras.

Aqui começávamos a sentir a realidade de uma vivência em guerra cheia de agruras turbulências e peripécias algumas delas rocambolescas mas qualquer delas traumáticas e de inimaginável tensão; para além da tragédia da morte e desaparecimento de grandes amigos e camaradas. Na primeira noite ainda muito confiante e pouco avisado deixei-me adormecer numa cadeira tipo baloiço (de design militares das colónias - feitas com as tábuas dos barris do vinho), no alpendre das nossas instalações, só acordando por mor das milhentas picadelas de mosquitos que por ali pululavam aos milhões. Que banquete, eu já na altura era suficientemente anafadinho. Enfim fui o motivo para risada geral: os trastes hem!!!

Após poucos dias de estadia em Fulacunda e ainda sem uma completa adaptação ao meio, onde as noites eram passadas em sobressalto com os ruídos naturais tanto de algum movimento na Tabanca o natural rumorejar da floresta, e os guturais gritos dos macacos-cães, principalmente em dias de chuva e ventos, e que se tornavam verdadeiramente assustadores para estes neófitos e isolados guerreiros, saímos em patrulhamento no sentido de Uaná Porto. Esta tabanca ficava situada no terminus de um vale junto do rio Corubal e à beira duma mata intensa, sendo que por todo aquele vale/planície se via uma extensa plantação de arroz, vindo só junto ao rio a aparecer a povoação; era uma paisagem paraisidiaca, tendo nós assistido ao nascer do sol que era mesmo no sentido do Rio, é indescritível a beleza e sentido de paz que pairava etereamente no ar; no meio de um silêncio profundo, um camarada não se conteve, mandou às urtigas as recomendações de surpresa e disse em alta voz: “Oh meu Deus porque é que fazes guerras aqui”. A ansiedade era enorme, transformando-me numa autêntica pilha de nervos. Exceptuando uma rajada que um camarada nosso com menos auto-domínio executou e em que a espingarda logo encravou regressámos ao aquartelamento sem mais qualquer incidente. A sugestão do médico da Companhia, Dr. Dias Neves, do Montijo (era talvez o melhor atirador da Companhia; vi-o matar em pleno voo um pato bicanço), tinha pela sua maneira de ser um grande ascendente sobre o Cap. Caria e influenciava facilmente as decisões deste, toda a Companhia foi para a pista de aterragem fazer fogo para o mato a fim de testar as armas. Uma percentagem elevada estava inoperacional.

Hoje, por sobre o aquartelamento e redondezas desencadeou-se um tremendo temporal que faz desta noite um tempo de temores e sobressaltos, tal é a quantidade de água da chuva que mais parece uma catadupa permanente que se abate sobre tudo, acompanhada do mais rigoroso trovejar e com relâmpagos, com só vi na Guiné, e que são de tal modo que se vêem em sequência por centenas de metros iluminando tudo até para lá da pista de aterragem a ponto de se entreverem difusamente os contornos do início da floresta da Bianga.
Tudo se me afigura intimador e desconhecido. Entretanto já bastante tarde foi mandado chamar o nosso guia, Malam Sanhã. Era um homem já de idade (um Homem Grande) de porte altivo e forte presença, era muçulmano e usava os trajes condizentes, homem de poucas palavras, aceitava a missão de nos guiar e encaminhar para os locais onde pretendíamos agir sem o mínimo comentário; entendia-nos perfeitamente.

Reunida a Companhia, já transformada em três Pelotões, e mesmo em face aquelas inóspitas condições, lá tivemos que sair para o mato, sendo que apenas saímos com dois Grupos acompanhados dos sempre presentes elementos das milícias, com alguns dos quais estabeleci fortes laços de amizade, e alguns carregadores que sempre nos acompanhavam, (estes elementos eram recrutados entre a população e iam sem qualquer armamento levando em bolsas adaptadas as granadas de Bazooka e de morteiro e aos quais era pago uma quantia ridícula; desta vez tive, ao vir atrás trocar impressões com alguns camaradas, pois o meu lugar era como de costume o segundo, no caso logo atrás do Malan, a desdita de verificar que um destes pobres apresentava indícios de sofrer de poliomielite ou qualquer outra doença, pelo que lhe era bastante difícil caminhar; mas coitado pelos míseros pesos=escudos que iria receber lá ia sujeito a por ali ficar. Que desumanidades cometemos.


Lá avançámos a caminho do objectivo debaixo daquela tempestade do fim do Mundo, encaminhamo-nos, depois de atravessar a tenebrosa mata da Bianga, período durante o qual se afastou o temporal a que se seguiu um opressivo silêncio e escuridão de tal monta que tivemos de nos agarrar todos ao elemento da frente e onde amiudadas vezes caíamos ou batíamos com a cara na coronha da arma desse elemento, valeu-me nesta aflição ser o segundo logo atrás do Malan Sanha e as suas roupas serem mais claras. Aproximamo-nos do Rio Geba e ouviam-se nitidamente, para além de indecifráveis e misteriosos ruídos, uns estalos secos, que mais pareciam tiros à distância.

Questionei o Malan Sanha!
E este na sua superioridade cultural e calma placidez apenas disse: - É a mar… Rios, é a mar…

É verdade, os estalidos provinham do tarrafo que crescia a esmo à beira dos canais do Geba e em todas as enchentes de maré estalavam muitos e provocavam aqueles ruído seco.
Prosseguimos e ao alvor da madrugada entrámos no objectivo: afinal uma tabanca com todos os vestígios de ter sido abandonada recentemente e onde havia um imenso laranjal onde nos abastecemos, após o que regressámos sem incidentes e em menos de um quarto do tempo a Fulacunda.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9302: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (5): Fragmentos Genuínos - 3

Guiné 63/74 - P9309: Memória dos lugares (170): Regresso a Missirá em Janeiro de 1990 (Mário Beja Santos)


Aqui fica uma prova provada da revolução de costumes em Missirá: a discoteca. O Tangomau não teve coragem de perguntar nada sobre o horário de funcionamento e a natureza dos serviços prestados.



1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Dezembro de 2011:

Queridos amigos,
 
Espero que a lembrança vos dê satisfação. Aí a páginas 250 deste calvário que levo na escrita e que tenho que aprontar até ao fim de Fevereiro, reconstituo a visita que fiz a Missirá vinte anos depois de lá ter estado. Foi um encontro inolvidável, o mundo mudara mas aquela paixão pelo Cuor mantinha-se firme. Mantinha-se e mantêm-se.

Desejo-vos do coração um novo ano com a saúde em pleno e sinto-me grato pela vossa amizade,
MBS


O regresso a Missirá em Janeiro de 1990

Maria Leal Monteiro e o Tangomau iam comer regularmente à Pensão Central, na Avenida Amílcar Cabral, sempre superintendida por D. Berta de Oliveira Bento. Foi aqui que conheceram outro cooperante, o Dr. Francisco Médicis, que estava ligado a um projecto da segurança social. Suspirava-se, no fim de uma tarde de quinta-feira, para encontrar um transporte no fim-de-semana para ir até ao Cuor, era mesmo crucial fazer esta visita durante o fim-de-semana, pois estariam de regresso a Portugal na terça-feira seguinte. Com uma enorme candura, o Dr. Francisco Médicis assegurou-lhes que os levava ao Cuor no domingo, aquele domingo ficava por conta de alguém que sentia um enorme fascínio por aquele regulado que ele não conhecia nem nunca ouvira falar. Estava prometido, o Tangomau voltava ao seu chão.

Alvorecia em Bissau quando os três se puseram ao caminho numa carrinha de caixa aberta, de Bissau até Nhacra, antes de Mansoa tomaram a estrada em Jugudul, era a primeira vez que o Tangomau percorria caminhos outrora interditos; não se entrou em Porto Gole, a nova estrada alcatroada seguia por Malafo e passava perto do Enxalé. 

Nesta altura já o Tangomau estava alvorotado, via embevecido as culturas do arroz pam-pam, ao fundo nas lalas os majestosos tabás, os cipós, surpreendeu-se com as culturas do cajueiro, a grande novidade; do Enxalé para a frente, sentia a respiração entrecortada, os olhos suspensos no horizonte, à procura dos meandros do Geba, sentiu-se desnorteado, pois percebeu que o novo traçado da estrada se afastara do rio, era impossível ter perdido de vista aqueles formosos palmares nas vizinhanças de Mato de Cão; viu a indicação da povoação com este nome, muito depois de Saliquinhé, perguntou aos passantes onde estava o rio e todos disseram que estava longe, mais a mais o curso de água encontrava-se na vazante, era impossível aproximar-se daquele local mágico que visitara todos os dias, uma das razões porque se atirara ao caminho, vem pelos homens e vem pelos lugares, vem pelos cheiros, pela fauna e pela flora, está de regresso ao Cuor, que lhe pertence; conformou-se com a desfeita da natureza, mas não deu o tempo por perdido, nesse mesmo Mato de Cão foram mostrar-lhe o planalto, foi então que se apercebeu que por ali houvera um quartel exactamente no local onde pernoitara tantas vezes, que calcorreara em todas as direcções, agradeceu a recepção, a carrinha de caixa aberta, por indicação de outros passantes, mais adiante, em Gambana, inflectiu à esquerda e tomou o caminho da velha estrada do Geba, que ele tão bem conhecia, em dado ponto até exclamou que estava a ver Malandim, no lado direito e ao fundo a opulenta, a luxuriante bolanha de Finete.

É um dia de Janeiro sem uma aragem e escorre pelos corpos um calor fervente, o caminho é acidentado, predomina a zanguizarra dos grilos, aqui e acolá começam a despontar terrenos cultivados, o Tangomau entra em transe, já se avista a curva de Canturé, a carrinha vai sempre em frente, mesmo aos tombos em tantos buracos, disseram em Bissau que é preciso ter muito cuidado pois há muitas estradas alagadas, são os resquícios da época das chuvas, o Dr. Francisco Médicis prefere a segurança deste empedrado que muito mais adiante, de acordo com a carta e a percepção do Tangomau, irá desembocar em Cancumba.

 Agora está um calor de enlouquecer, vê-se uma indicação de Maná, a carrinha prossegue imperturbável, e quão curioso vai o antigo alferes de Missirá, Maná é um percurso de antanho, prenhe de memórias, por ali há um túmulo de um régulo do Cuor, um nome inesquecível de um Soncó; dentro da viatura não se ouve um comentário, tripulante e passageiros levam frequentemente à boca a garrafa de água; o terreno agora é mais escalavrado, o Tangomau tem um arrepio, recordou à esquerda a entrada para Mato Madeira, num ponto alto do alcantilado avista-se uma tabanca à direita, pelas informações que dispõe trata-se de Sansão, foi recriada no fim da guerra, estão pertíssimo de Missirá; agora a estrada alarga-se, melhor dito é a natureza liberta da floresta, temos ali as palmeiras de Cancumba, a carrinha inflecte numa picada, alguém, a caminho das hortas, confirma que é preciso tornear a nova tabanca para chegar a Missirá; o estradão está de facto pejado de hortas, o Tangomau reconhece os altos poilões e o mar de cajueiros, Missirá está em frente, quando a viatura franqueia a entrada ouve-se o gralhar das crianças, começam a sair os adultos das moranças e naquele espaço que fora a parada do quartel a viatura sossega, os viajantes põem-se em terra.

Sempre que descrevia o acontecimento, o Tangomau comentava: entrei e saí de Missirá a soluçar, é uma experiência inenarrável, 20 anos depois sentir a atmosfera, ver alguém que se aproxima e logo se reconhece, é Lamine Mané, a criança tornou-se num homem robusto, guarda a inocência no sorriso, pega o Tangomau pelos ombros e dá-lhe as boas-vindas dentro de um abraço caloroso. Explode a gritaria, o Baké regressara, claudicando aparece Quebá Soncó, depois dos cumprimentos efusivos dá instruções para se juntarem os bancos, vai começar o cerimonial das conversações, mas o Tangomau está frenético, procura as mulheres grandes, encontra duas, partem mantenha, elas fazem a reverência, perguntam pela família, pedem cola; se já vinha desnorteado, dentro de Missirá perdeu a bússola, está tudo modificado, a única referência a que se agarra é ao edifício dos abastecimentos, não o demoliram; o cerco estreita-se, ele tem pela frente alguém que lhe estende os braços e que o ampara, vibrante, é Bacari Soncó, o seu irmão, o Tangomau já não pode mais, soluça encostado a uma estaca de querentim, sente a cabeça à volta parece o dia da ressurreição dos vivos, que andavam tão distantes. Quebá Soncó sente-se na obrigação de pôr ordem, há autoridades do PAIGC que pedem explicações para esta explosão de alegria, trocam-se cumprimentos, as autoridades falam em crioulo e Quebá traduz: nosso alfero é muito bem-vindo.

Cumpre-se o protocolo dos cumprimentos, Quebá perora em mandinga, Maria Leal Monteiro e o Dr. Francisco Médicis estão manifestamente siderados com o cerimonial, olham para a pequena multidão silenciosa, o povo aguarda o ritual dos cumprimentos, parece que voltámos aos tempos bíblicos. A assembleia posiciona-se: no extremo de um longo U um banco para os visitantes, estes já receberam pratos de papaia e copos de água fresca; em frente, sentado numa cadeira de vime, pontifica Quebá, compete-lhe a batuta de toda a conversa; logo atrás todos os homens grandes, estão ali festivos nas suas fatiotas multicoloridas, vêem-se ali os Soncó, os Sani e os Mané; aos lados, temos os jovens adultos e os blufos, a maior parte mantém-se de pé, são obrigados ao respeito, compete-lhes ouvir a confirmação de uma história que já ocupou muitas noites da vida de Missirá, o Baké existe, é um Soncó que regressou nesta visita meteórica, mas existe, não é lenda nem tem a forma de um Deus; ao fundo estão todas as mulheres e as crianças, só as mais velhas estão sentadas, elas tiveram o privilégio de conviver com o branco da família, que não pára de chorar, coisa inconcebível de se mostrar em público, ele deve ter um amor muito entranhado, deve ter vindo amarfanhado pelas saudades para quebrar os deveres da honra, um homem não chora, mais a mais ele é o guerreiro que nenhuma bala pode derrubar.

É longo o discurso de Quebá e mal se faz silêncio um homem jovem, vestido à europeia, começa a traduzir para português, fraseia e articula sem mácula, o Tangomau está intrigado e pede explicações e Quebá prontamente responde: é o nosso irmão mais novo, Abudurramane Serifo Soncó, é professor, está de férias, tinha sete anos quando houve o grande ataque que destruiu Missirá, em 1969. Feita a saudação inicial, levanta-se imponente Aladje, o ancião dos Soncó, lança uma oração de graças, o Deus misericordioso nunca falta ao apelo dos seus crentes, é bom este regresso de alguém que jamais foi e será esquecido, chegou o momento do ilustre visitante falar com a família. O Tangomau, para sua própria surpresa, tem o coração oprimido mas discursa sem nenhuma congestão narrativa, recorda todos os seus amigos, as idas ao médico e os trabalhos do abastecimento em arroz, naquele preciso momento sentia grande comoção em recordar Mussá Mané, praticamente todos os dias o chefe de tabanca lhe vinha suplicar uma coluna extraordinária para suprir carências de toda a espécie, recordou o régulo Malã e aquele dia de despedida em que ele se transformara num Soncó. Aqui a sua voz tremelicou, resolveu abreviar, que ninguém duvidasse que ele nunca esquecera Missirá e Finete, as belezas indizíveis do Cuor, o regulado mais belo do mundo, que vinha para colaborar com a Guiné-Bissau e que sentia uma grande alegria por este reencontro e que pedia licença para ir rezar com os homens grandes à mesquita, dar hossanas e desejar as maiores venturas a quem ali vivia.

O que se passou nas horas seguintes ainda hoje permanece confuso, veio o novo régulo, um Soncó que vivia no Senegal, no tempo da guerra, de nome Mamadi; furtiva ou abertamente, entregavam-lhe bilhetes, trouxe dezenas deles, pedindo equipamentos de futebol, livros, chapa ondulada, bancos para a escola; percorria Missirá de uma ponta a outra quando foi sacudido pela emoção maior: sempre discreto e estendendo-lhe as mãos ali estava Cherno Suane, que tanto sofrera na prisão do Cumeré, andara a monte e finalmente fora autorizado a residir perto de Missirá, em Biassa. 

O Tangomau nunca se arrependeu da promessa impulsiva que logo ali lhe fez: juro-te que tu vais para Portugal, se quiseres. É quando começa o fim do dia que o Dr. Francisco Médicis, com mansuetude, lhe recorda que a viagem até ao tapete alcatroado tem os seus riscos, é melhor partirem, tem consciência de que é muito difícil agora a despedida, apela à sua compreensão. E começa o cerimonial do adeus, garante a todos que é bem provável que volte em breve, na caixa aberta vão as prendas, várias galinhas a cacarejar, com as patas atadas. Cherno Suane vai erecto e altaneiro na caixa, despede-se de todos como se amanhã partisse para Lisboa. Esta despedida é igualmente emocionante, a carrinha está imobilizada à entrada de Missirá, são adeuses sem fim, o Tangomau parece querer congelar no olhar aquele céu sem uma nuvem, agora a temperatura é benfazeja, depois prosseguem pela estrada alcantilada, em Cancumba os habitantes insistem em cumprimentar, correu célere a notícia da presença do Baké, muita desta gente veio de Madina, Belel e Quebá Jilã, se fosse necessário prova mais eloquente de que já se consumou a reconciliação entre guineenses e portugueses, ela aqui estava, neste final feliz da visita.


Esta é a nova Missirá e estes meninos olham para o futuro. Está na hora de partir, o Tangomau sabe que vai voltar, mais cedo do que a população de Missirá pensa. Até porque há muita coisa para ver nos arrabaldes: Madina de Gambiel, Sansão, Maná. Há uma grande nostalgia por percorrer a velha estrada que ligava Bissau a Bafatá. O Tangomau não sairá defraudado. Toda a comitiva entra no carro de combate conduzido por Calilo Dahaba e marcha-se para Mato de Cão. Ponham-se em sentido todos aqueles que ali vigiaram e viveram!


Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9305: Memória dos lugares (169): A CCAÇ 2464 em Biambe e Binar (António Nobre)

Guiné 63/74 - P9308: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (3): Começar o ano novo com medo de levar uma porrada

1. Do nosso camarada e amigo, António Graça de Abreu (AGA), publica-se mais um excerto do seu Diário da Guiné, 1972/74, a partir do ficheiro em word que serviu de base à edição do livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp).


Com seis meses de Guiné, ele estava no princípio do ano de 1973 ainda em chão manjaco, no Canchungo (Teixeira Pinto), no CAOP1, servindo sob as ordens do Cor Cav Pára Rafael Durão (que ele nunca identifica, a não ser pela incial do apelido, D.).  Recorde-se que o AGA era Alf Mil, com a especialidade de Secretariado, Serviço de Pessoal:

" [Sou] chefe de secretaria, chefe de pessoal, controlador das limpezas, secretário dos majores, responsável pelas obras, encarregado dos correios, pequeno oficial na ligação diária com os meios aéreos" (...).

Com 25 anos, culto e viajado, paisano no meio de militares puros e duros, ainda mal ambientado à Guiné e ao trabalho que lhe é exigido no CAOP1, o AGA é confrontado com o risco (real) de "apanhar uma porrada", ao abrigo do RDM, ser despromovido e perder o direito de licença às tão desejadas férias na Metrópole (o que, diga-se de passagem, não virá a acontecer, sendo o AGA um felizardo com direito a 3 períodos de férias no "Puto", durante a sua comissão, que vai de Junho de 1972 a Abril de 1974)...

No entanto, as coisas tinham aparentemente começado bem quando ele chega, de armas e bagagens, em rendição individual,  a Teixeira Pinto, em 26 de Junho de 1972:

(...) "Tive uma simpática recepção, um coronel pára-quedista, comandante do CAOP 1, meu chefe e o dono da guerra aqui, mais dois majores, Barroco e P., o capitão Borges e o alferes Carvalho que venho substituir" (...).

Em 12 de Julho de 1972, o AGA descreve o seu trabalho (burocrático) no CAOP1:

(...) "Não vivo num paraíso tropical, tão pouco numa colónia de férias para brancos em África. Mas é verdade que faço uma guerra pacífica, sobretudo com papéis. Tenho dois subordinados, o furriel Peres que, tal como eu, veio para a Guiné já com 21 meses de tropa em Portugal e o 1º. cabo Pereira, escriturário que escreve à máquina, arquiva a papelada e vai buscar umas laranjadas ou cervejas ao bar.

"Eu abro a correspondência que leio e organizo, dou ao Peres para ele registar no livro de entradas, depois vou levá-la ao gabinete do major P. que tem o pomposo título de Chefe do Estado-Maior, o major entrega ao coronel D., o comandante do CAOP 1 e vai a despacho com ele. O coronel assina e anota os papéis, devolve ao major, este entrega-mos a mim, seguem para o furriel que faz a descarga no livro de entradas e por fim vai tudo para os arquivos, trabalho do cabo Pereira. Temos três secções no CAOP, Operações, Informações e ainda a chefia do Estado-Maior.

"A correnteza da correspondência, com idas e vindas, pode demorar pouco mais de uma hora ou pode prolongar-se por dias se uma peça graúda do sistema estiver ausente, por exemplo o meu coronel que se desloca frequentemente a Bissau onde tem a mulher e onde participa em muitos dos planos de operações para a nossa zona de intervenção. Este coronel pára-quedista vem da arma de Cavalaria, a mesma do general Spínola de quem é confidente e amigo.

"O furriel e o cabo encarregam-se dos passaportes, das guias de marcha, etc. Compete-me a mim redigir um ou outro ofício. Faço o rascunho, vai ao cabo para ser batido à máquina, revejo o texto, segue para o major e o coronel. O major P. já notou que eu escrevo bem, uma prosa limpinha até nos ofícios militares". (...).

Diz-nos igualmente o que é o CAOP1 e para que é que serve:

(...)"O CAOP engloba quase quarenta homens. Somos os 'operacionais da retaguarda'. Aqui se fazem os briefings sobre as operações, se trata do apoio logístico, temos as transmissões e os condutores auto com os unimogs, as viaturas que transportam as tropas operacionais para o terreno. Sob as nossas ordens encontram-se a 35ª. Companhia de Comandos e os pára-quedistas, estamos acima do Batalhão de Infantaria 3863 aqui estacionado, com uma CCS (Companhia de Comando e Serviços) e mais alguma tropa. Estamos ainda acima das companhias distribuídas pela zona geográfica que nos pertence, entre os rios Mansoa e Cacheu, e para leste temos mais uns trinta a quarenta quilómetros de território. O resto da Guiné  não tem a ver connosco". (...)
Em 30 de Julho de 1972, fala do seu coronel, como homem e como militar, nestes termos:

(...) "Do coronel D. [, Durão,], áspero, cem por cento militar, muito duro de nome e de trato, não tenho razão de queixa. Usa um bigodinho, a cabeça quase rapada com uma pequena poupa à frente. Não gostei de saber que, enervando-se e em situações extremas, dá murros nos soldados." (...).

Mais à frente, voltará a falar da dureza do Cor Pára Durão, numa cena que lhe deixa "marcas":

(...) "Canchungo, 2 de Setembro de 1972: Ao fim da tarde, na coluna de Bissau chegou um Unimog com quarenta telhas e umas pranchas de madeira para as obras que estamos a fazer no edifício do CAOP. Chovia imenso e era preciso gente para descarregar a viatura. Passava das seis, já não tinha pessoal no meu serviço. Fui ao bar dos praças e pedi três voluntários para ajudarem na descarga. Ninguém se ofereceu. Nomeei três soldados. Os três, repimpados no bar a comer sandes e a beber cerveja, recusaram-se e disseram-me, por palavras mais delicadas do que estas, que se estavam cagando para mim e para o material a descarregar. Ora o coronel dera-me ordens para eu tratar de arrumar os materiais vindos de Bissau. Ele, tal como o major que está de férias em Portugal, fiscaliza sempre o meu trabalho, era uma tarefa que tinha de ser feita naquela altura. Arranjei outros três soldados que se prontificaram a ajudar e a esvaziar o Unimog. Continuava a chover copiosamente e ficámos todos encharcados.

"Os outros três, à distância, gozavam o espectáculo. Eu respeito os soldados, também exijo que me respeitem. Não aguentei, fui ter com o coronel e disse-lhe: 'Meu coronel, os soldados Ramalhete, Silva e o Victor recusaram-se a obedecer ao pedido que lhes fiz para descarregarem a telha e a madeira do Unimog que veio de Bissau.' O coronel mandou imediatamente chamá-los, os rapazes ficaram em sentido e, à minha frente, a cada um deles deu uma daqueles socos impressionantes de que já tinha ouvido falar. Os rapazes cambalearam e foram mandados embora.

"Ficámos sós, o coronel e eu. Berrou comigo, acusou-me de ser mole demais por isso havia sido preciso chegar àquela situação. Eu devia ter tido pulso, fazer-me obedecer na altura própria. Como militar ele tinha razão, aliás como militar é muito raro o coronel não ter razão, só não tinha razão para me chamar 'imbecil'. Foi o murro que levei, mais suave do que os que pespegou nos soldados. Mas também doeu." (...).


AGA fala sempre do "meu coronel" com um misto de respeito e de admiração, louva-lhe a coragem, a determinação e o sangue-frio nas situações difíciais, e descreve o seu paternalismo autoritário nas relações com os seus subordinados. Oriundo da arma de cavalaria, é paraquedista, tem a mulher em Bissau, não tem filhos e é amigo e confidente de Spínola... No entanto, AGA pensa que está "debaixo de olho" do chefe... No início do ano de 1973, ele escreve no seu diário que tem receio de "apanhar uma porrrada"... Aliás, o diário é fértil em pequenas histórias passadas com o Cor Pára Durão que, a seu tempo, poderão de novo aparecer aqui no blogue. O AGA esteve com o Cor Durão em Canchungo e Mansoa, até Junho de 1973. Em Cufar, passará a estar à frente do CAOP1 o Cor Joaquim Curado Leitão, um hoem que é descrito pelo AGA como "calmo, educado e periquito",  ...(LG).



(...) Canchungo, 5 de Janeiro de 1973

Quando a avioneta ou os helicópteros chegam de Bissau, não é preciso comunicarem por rádio que vão aterrar. Nós ouvimo-los no ar, pegamos nos jipes, vamos para a pista e quando aterram estamos à espera deles.

Hoje ouvi a DO, fui para a pista com o major P., a avioneta sobrevoava Canchungo, mas nunca mais descia, dava voltas e mais voltas por cima do campo de aviação, até que por fim aterrou. Estranhámos bastante. O piloto vinha a suar, era “periquito”, baixava pela primeira vez em Teixeira Pinto, estivera uns minutos largos a estudar a pista. Chama-se [João] Baltazar [da Silva, abatido por um Strela em 8 de Abril de 1973], é um furriel piloto aviador com um ar castiço, inconfundível, alto, magro, os cabelos muito ruços e encaracolados. Pediu desculpa ao meu major pela demora na aterragem.

Canchungo, 8 de Janeiro de 1973

O general Spínola e o general Costa Gomes estão na sala ao lado, com o coronel, o tenente-coronel (do Batalhão) e os majores todos. Vieram arejar as cabeças ou poluir os ares? Que congeminam estes crânios iluminados pelos clarões da guerra?

Canchungo, 11 de Janeiro de 1973

Problemas, as relações humanas difíceis, recalcamentos, fingimentos. No lidar quotidiano com os meus chefes tudo depende de mim.

Dói. Faço um esforço de gigante para conseguir não levar uma “porrada”, ou seja, não ser castigado ao abrigo do Regulamento de Disciplina Militar. O coronel espera a minha próxima grande asneira para, zás, me punir disciplinarmente. O que equivaleria a ser despromovido, de oficial para sargento, a mudar de unidade – o que talvez não fosse mau, seria colocado em Bissau, quase de certeza - a passar a comissão para vinte e quatro meses e a deixar de ter férias. Até Junho de 1974 não iria mais a Portugal. Inimaginável eu levar uma "porrada".

A semana passada estava eu a almoçar sossegado na messe e entra o major P., furibundo, a berrar comigo. Havia-me esquecido de entregar duas garrafas de azeite ao pessoal da coluna que seguia para Bassarel. As garrafas destinavam-se a um protegido, um informador do CAOP e na verdade nunca mais me lembrara de dar sequência a esta importantíssima oferta. O major tinha razão, mas era desnecessário aquele barulhão todo. Reconheci o erro, disse que ia tratar do assunto. Quando ele voltou costas, fiz um daqueles meus sorrisos cínicos, irritantes, entre a tristeza e o gozo. Azar meu foi o coronel estar em cima da cena. Não havia reparado mas ele almoçava na mesa ao lado, quase de frente para mim. Viu o meu sorriso, meio de desdém, meio de estupidez, levantou-se, veio ter comigo com aquela fúria reprimida, muito sua, e disse: “Abreu, você tenha cuidado, muito cuidado!”

Soube ontem pelo capitão Pancada – ele é miliciano e faz a charneira informativa, de amizade e trabalho entre os oficiais de carreira e nós, pobres alferes – que o sucedido foi comentado na sala dos bigs e que o coronel afirmou esperar a primeira oportunidade para me dar uma “porrada exemplar”.

Tenho de salvar a pele, ser cauteloso, não posso cometer mais erros. Eu detesto vocábulos com conteúdo semelhante a “eficácia, dedicação, subserviência”. Sou chefe de secretaria, chefe de pessoal, controlador das limpezas, secretário dos majores, responsável pelas obras, encarregado dos correios, pequeno oficial na ligação diária com os meios aéreos. Às vezes tenho medo de mim, sou distraído, esqueço tarefas, deixo escapar palavras que não funcionam no mesmo comprimento de onda do vocabulário dos meus chefes. Fundamentalmente, sou ainda um civil fardado de alferes do exército, o que desagrada a estes homens que escolheram ser militares toda a vida, por opção e profissão.

Este tipo de problemas não cai apenas sobre mim. O tenente-coronel Correia, comandante do Batalhão 3863, também já ameaçou os alferes Gamelas e Teixeira. Encontram-se, tal como eu, na eminência de uma “porrada.” (...)

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Nota do editor

Último poste da série > 29 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9287: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (2): As duas passagens de ano: Canchungo, 1972/73, e Cufar, 1973/74

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9307: Tabanca Grande (316): Vasco da Gama foi operado ao coração, mas está já em casa em convalescença

Provavelmente será do conhecimento de boa parte da tertúlia que o nosso camarada Vasco da Gama foi operado ao coração no passado dia 28 de Dezembro. Ao que sei, os cirurgiões tiveram que efectuar uns quantos by-pass coronários. C. Martins, podes explicar?

Como não tinha autorização expressa do Vasco,  não dei conhecimento público do sucedido.

Fui tendo notícias da evolução do estado de saúde do nosso doente através do nosso camarada Miguel Pessoa, o que desde já agradeço publicamente.

Como havia prometido ao Vasco antes da sua operação, só hoje telefonei à sua esposa para saber notícias, e para minha surpresa fiquei a saber que ele havia regressado ontem mesmo a casa.

Da parte da tarde recebi um telefonema, estando do outro lado da linha o próprio Vasco. Notei na sua voz que ainda está muito longe da forma desejável, mas não tarda voltará ao nosso convívio a cem por cento.

Trago hoje a notícia a público porque ele quer que os camaradas e amigos saibam que o pior já lá vai, sendo que o pós operatório é difícil pelos estragos que os cirurgiões fazem para chegar ao coração, por um lado, e para arranjar material nas pernas (veias) para fazer os by-pass coronários.

Num dos próximos dias, quando o Vasco ler este poste, poderá ler as mensagens que lhe vamos deixar prestando a nossa solidariedade.

Força Vasco, a tertúlia está contigo. Carlos Vinhal.

Vasco da Gama e José Brás aquando do Encontro de 2009 da Tertúlia
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9293: Tabanca Grande (315): Margarida Peixoto, Professora do Ensino Básico Aposentada, esposa do nosso camarada Joaquim Carlos Peixoto

Guiné 63/74 - P9306: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (27): Bolos de bacalhau à moda de Catió

1. Em mensagem do dia 30 de Dezembro de 2011 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua boa memória da guerra:

Caro Vinhal
Junto esta história passada com o Portojo. Não foi bem assim mas penso que ele não vai ficar chateado.

Uma boa passagem e, acima de tudo,
UM BOM ANO

Um abraço do
Silva


Memórias boas da minha guerra (27)

Bolos de bacalhau à moda de… Catió

Penso que foi em Maio/Junho de 1968. Em Catió, sul da Guiné, estava instalada a sede do BART 1913. Uma das suas Companhias estava para os lados de Buba e outra ocupava o aquartelamento de Cufar. Em Catió, além da CCS e dos Pelotões de Armas Pesadas e de Auto-metralhadoras, estava a CART 1689, Companhia de Intervenção, que viera do norte, por onde andara em operações, ao serviço do ComChefe.

As instalações e serviços estavam sob a alçada da CCS, incluindo a gestão da Messe de Sargentos. Esta responsabilidade rodava entre os seus furriéis ou sargentos, o que era compreensível, mas não muito acatado pela malta da CART 1689. É que estes, fartos de guerra, sofriam ainda a exploração do seu sacrifício através da fraca alimentação fornecida.
O prato com mais saída no menu era, sem dúvida, o de “Arroz com arroz e arroz e umas rodelas de salsicha”. A “Sopa 365” já era famosa há anos.
Foi nessa altura que foi designado para essa gestão, o Furriel Teixeira, que havia chegado há pouco, por uma rendição individual.

Catió > Jorge Teixeira (Portojo), na foto, o segundo a partir da esquerda

Catió > Em primeiro plano, de pé e à civil, Fur Mil Silva. Jorge Teixeira é o terceiro, de pé e de camuflado, a partir da direita.

O Teixeira, que era do Porto, ao contrário dos seus conterrâneos, parecia muito introvertido. Todavia, cedo se salientou pela simpatia e pela sua forte sensibilidade. Pois o Teixeira, talvez com pena da malta da CART 1689, que ele admirava, decidiu mandar fazer um prato diferente: “Bolinhos de bacalhau com arroz malandrinho”.

Como o Cozinheiro Laurentino estava doente, ficaram os dois básicos (Guisande e Engelha) para resolver os assuntos da culinária. O Guisande já estava mais habituado à cozinha, especialmente nas lides da lenha para o fogão e no abrir das latas de salsichas. Mas o Engelha era muito limitado. Havia sido seleccionado pelo Capitão Ternicotim-Ternicotão, aproveitando a sua experiência de servente de limpeza na Pocilga de Sandim.
Agora, em Catió, ocupava o seu tempo a passar alguma água pelas panelas e a perseguir os ratos, de toco de vassoura na mão.

O Guisande, entusiasmado a confeccionar um prato daqueles, estava a colocar em perigo o prestígio do cozinheiro Laurentino que já se especializara também no prato “Esparguete com esparguete e rodelas de salsicha (ou chouriço!)”. Não esquecer também que foi ele que conseguiu o “Frango assado”, festivamente servido no dia da entrega da Flâmula de Honra do CTIG (ouro) à nossa CART 1689!

A massa já estava pronta quando o Furriel Teixeira lá foi espreitar. O Guisande aproveitou para dizer:
- Isto está uma maravilha, mas falta-lhe a salsa. Já corri tudo e não encontrei.
- Isso também não vai ser grande problema. – respondeu o Teixeira.
- Ó Furriel, preciso de ir à Secretaria, que o sargento Viscoso me mandou chamar e eu não quero problemas com esse filho da mãe. – disse o Guisande.
- Não há problema, veja se vem depressa porque o Engelha já tem o fogão bastante adiantado. – respondeu o Teixeira que, logo de seguida diz:
- Ó Engelha vá lá fora, junto ao esgoto das águas da cozinha e veja se tem lá salsa. Se não encontrar, traga mesmo umas ervitas mais verdes, para enfeitarmos isto.

O Teixeira saiu confiante e o Engelha acabou por brilhar na resolução rápida do problema.

- Ó Berguinhas, acode-me aqui que devo ter engolido alguma espinha dos bolos de bacalhau.- pedia o Simões ao Enfermeiro, que não parava de se queixar.
- Ó pá, olha que eu também já tive que beber dois bagaços para queimar a garganta, porque também sinto a garganta arranhada. – respondeu o Berguinhas

Já na Enfermaria, o Berguinhas aproveitava a boca aberta do Simões para espreitar e meter o bisturi, enroscado em algodão, até ao fundo da garganta. E dizia:
- Não estou a ver nada. Deixa lá, anda mas é ao Valadares (“barman”) queimar isso, que eu faço-te companhia.

De bagaço em bagaço, com uns whiskies, licores e triplices pelo meio, não levou muito tempo para que as dores de garganta passassem. Agora, já meios tocados, debruçados sobre o balcão, repetiam os parabéns ao Teixeira e, embalados pelo tema do bacalhau, desenvolveram uma discussão quase interminável.

- Já ouvi, da boca de um militar que não acredita que o bacalhau vem do estrangeiro. – dizia o Berguinhas, que continuou:
- E já lhe meteram na cabeça que se pode plantar como o ananás – com os rabos metidos na terra.
- E eu tenho um soldado que já me disse que ele nasce como o capim – argumentou o Simões.
- Olha, (voltava o Berguinhas):
- Se for junto da bolanha, até já pode vir salgado.
- E, se a catana estiver bem afiada, já se pode apanhar às postas – argumentava o Simões.
- Ó Teixeira, Teixeira. - chamava o Berguinhas, já com a voz arrastada: – Olha que amanhã, logo de manhã, quero os rabos do bacalhau, para plantar ao pé da Enfermaria.

Há dias soube que os irmãos Carvalho, o Manuel de Mampatá, perto de Aldeia Formosa, e o António, também conhecido por Veterinário de Jolmete, devido à sua fama no tratamento (com piri-piri…) de frangos, cabritos e outros animais, organizaram mais um patuscada junto ao Rio Douro na pequena Medas City, onde o António Carvalho é Mayor. Convidaram o Simões mas ele não pôde porque estava para o Alto Douro.

Estiveram lá os do costume: Zé Manel da Régua, Silva de Baião, Eduardo Paraquedista, o Carmelita, o Cancela e a Parelha dos Compadres de Penafiel. E, claro, também lá estava o acima referido Furriel Teixeira (agora conhecido no meio artístico por Portojo) que não perdoou a ausência do Simões, que, até, vive ali perto.

O tempo foi passando e de história em história, lá foram recordando e saboreando o melhor daquela experiência guerreira inesquecível. Porém, o Teixeira, por vezes, ia intervalando:
- Ora f....-se! Aquele c.....o do Simões, não veio!

Por volta das 19 horas (grande almoço!), o Teixeira, já bastante pesado, ao ouvir falar de ervas medicinais, aromáticas e outras, contou a história dos bolos de bacalhau capinado, servido em Catió, e revelou o segredo da salsa. E confessou:
- Tinha pena daqueles desgraçados da CART 1689 e com mais pena fiquei quando vi o Simões f....o da garganta por causa do capim que o Engelha meteu nos bolos. Ainda tentámos tirar muita coisa mas acabaram por passar alguns pedaços de capim seco.

O Carvalho, já farto de rir, ligou o telemóvel para o Simões e contou-lhe:
- Está aqui o Teixeira a contar a história dos bolinhos de bacalhau que te f.....m em Catió. Diz ele que aquilo foi do capim que meteram em vez de salsa e que não teve coragem de vos dizer.
- Ai o filho da... mãe! - Respondeu o Simões exaltado, que continuou:
- Por favor, passa-me o telelé a esse c......o, que não larga o biberão.

O Carvalho aproximou-se do Teixeira, que gritou:
- Ouve lá, oh morcom, nunca ouviste dizer que todo o burro come palha, a questão é saber lha dar?

De pé, Manuel Carvalho de Jolmete

António Carvalho, "Veterinário de Mampatá", actualmente o "Mayor" de Medas

Silva da Cart 1689
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9155: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (26): Ao domingo não há guerra e Estragos no bananal

Guiné 63/74 - P9305: Memória dos lugares (169): A CCAÇ 2464 em Biambe e Binar (António Nobre)

1. Mensagem do nosso camarada António Nobre (ex-Fur Mil da CCAÇ 2464/BCAÇ 2861, Buba, Nhala e Binar, 1969/70), com data de 29 de Dezembro de 2011:

Meu caro Carlos
Se porventura vislumbrares algum interesse nas fotos que se juntam, publica no nosso Blogue

A título informativo esclareço tratar-se de Pessoal da CCAÇ 2464/BCaç 2861 que nos anos 69/70 cumpriu serviço militar na ex-colónia portuguesa da Guiné

As fotos reportam-se à nossa estadia em Biambe e Binar.

Um abraço
Saudações camarigas
António Nobre
(ex-Fur Mil da CCaç 2464)


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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8234: Convívios (324): Almoço de confraternização do pessoal da CCAÇ 2464, ocorrido no dia 30 de Abril de 2011 em Fátima (António Nobre)

Vd. último poste da série de 26 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9272: Memória dos lugares (168): Bambadinca, de 1969/71... Evocando a figura do antigo comerciante Fernandes Rendeiro, natural da Murtosa, recentemente falecido... (Leopoldo Correia)

Guiné 63/74 - P9304: Estórias cabralianas (70): Sambaro, o Dicionário e o Afecto (Jorge Cabral)

1. Mensagem do Jorge Cabral, que também é,  além de um notável contador de estórias, um homem de afectos (com "c", não de cão mas de coração) e um activo facebook...eiro (com cerca de 2300 amigos e amigas, incluindo guineenses, como a sua antiga aluna de serviço social, a  B. B. Ferreira, nascida em Bissau em 1980, e aqui numa foto com ele, na Universidade Lusófona, em Lisboa)...

Além de professor de direito penal, agora reformado, é conhecido na praça e no blogue por ser um  escritor lusófono que diz não ao NAO (Novo Acordo Ortográfico):



Bom Ano, Amigos!

Com o AFECTO
do Jorge Cabral


2. Estórias cabralianas (70) > Sambaro, o Dicionário e o Afecto
por Jorge Cabral





Agora que tenho tempo,  tornei-me um caminheiro. Logo pela manhã abalo pela cidade. Travessas, calçadas, pátios, becos, vilas, percorro devagar essa Lisboa escondida, quase invisível.

Foi num desses passeios que encontrei Ansumane. Um negro velho e calvo, que entre a Travessa da Lua e o Beco das Estrelas, arengava em crioulo.

Dei-lhe os bons dias e ele apresentou-se:
- Ansumane Baldé, segurança.
- Segurança? Foi militar?
- Soldado de Artilharia, Número Mecanográfico 82062962, Guileje, com os Alferes…  - e desfiou uma lista de nomes.
- Eu estive na Guiné. Era o Alferes Cabral do Pel Caç Nat 63.
- Ah! O Alfero Bigodes!
- Sim,  usava um grande bigode. Mas como sabes? Estive sempre no Leste, em Fá e Missirá!
- Quando fugimos para o Senegal,  iam muitos soldados dos Pelotões Nativos. Do teu, foi o Sambaro, que já morreu. Morávamos na mesma Tabanca e muitas vezes falávamos de vocês todos. Sambaro, o homem da bazuca. Talvez quarenta anos, forte, sério, três mulheres, muitos filhos. Queria ser cabo e estudava, estudava para ir fazer o exame da 3ª classe a Bambadinca.


Quando voltei de férias ofereci-lhe um Dicionário. E que contente ficou! E leu e releu a dedicatória: “Para o Sambaro que é quase Cabo e ainda há-de chegar a Sargento. Com Afecto”.
- Alfero,  o que é Afecto? (ele lia o “c”)
- Procura no Dicionário, Sambaro. Que é para isso que ele serve.


Isto passou-se em Fevereiro de 1971. O Sambaro,  além da bazuca,  passou a carregar o dicionário. Ainda me lembro de o ver no Mato Cão a folheá-lo…


Disse-me o Ansumane que os filhos e os netos do Sambaro vivem para as bandas de Sonaco. E que será feito do dicionário?


Imagino um dos netos a procurar nele a palavra afecto;
- Olha,  Sambaro  Neto, se te  disserem que agora é afeto, não acredites. Ninguém lhe pode tirar o “c” de coração.


Jorge Cabral
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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9223: Estórias cabralianas (69): Onde mora o Natal, alfero ? (Jorge Cabral)

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9303: Memórias do Carlos Marques dos Santos (Mansambo, CART 2339, 1968/69) (1): Op Gavião: Abril de 1968, antes o fogo do IN que o ataque das abelhas

Guiné > Zona Leste > Setor L1 > 1969 > Rio Geba, junto ao Xime > Travessia de canoa para o Enxalé
Foto: © Carlos Marques Santos (2005)



Memórias do Carlos Marques dos Santos, ex-Fur Mil da CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69





1. Operação Gavião - Abril de 1968, antes o fogo do IN que o ataque das abelhas*

5 de Abril de 1968
Às 15h, saída de Fá Mandinga para mais uma operação (Op Gavião). Desta vez para a zona do Enxalé, via Xime.

O Rio Geba foi atravessado de lancha. Do Enxalé saímos cerca da meia-noite iniciando mais um passo para o desconhecido. Dois meses de mato e já tínhamos tido a nossa dose. Andámos a corta mato até às 3.30h.

O guia turra capturado, como sempre, perdeu-se. Descanso até às 5.00h, seguindo as NT depois em progressão normal.

Perto do objectivo vimos, na mata, dois nativos. Fugiram e nós continuámos. A CART 2338, nossa companheira de andanças, está a atacar o objectivo. A Companhia de Mansoa também.

Cerca do meio-dia sofremos um ataque de abelhas. Desespero em muitos de nós. Eu também fui completamente picado. Há camaradas inchados. Disformes. Há 2 camaradas desmaiados. Faz-se uma maca. Soam tiros...
- Emboscada!

Um nativo do Pel Caç Nat 53 é atingido e morto. O ataque IN continua. Regressamos.

Sofremos 5 emboscadas, mas apesar de tudo correu sem grandes azares. O IN tem baixas. Fogem. Seguimos para o Enxalé. Mais 2 ataques de abelhas. Choros. Desespero. Há que fugir. Desorientação total. Armas abandonadas.

Compreendo agora - pois noutra ocasião e lá para a frente no tempo de comissão, estive debaixo de fogo - o que é estar nestas mesmas circunstâncias. 45 minutos intermináveis. Antes o fogo do IN.

Chegámos ao Enxalé cerca das 18.00h. Soube-se depois que tinha ficado um homem da Cart 2338 (**) desmaiado no local dos acontecimentos.

Quem vai procurá-lo? Ninguém. Não há voluntários.

Triste vida a da Guerra e da sobrevivência. Mas nem sempre foi assim!

Passámos para o Xime e chegámos a Fá Mandinga às 03.00h da manhã do dia de 7 de Abril de 1968. (***)

Estou exausto. Estamos todos exaustos.

Boas notícias: o nosso homem desmaiado, soube-se, apareceu por ele no Enxalé! Já li uma estória semelhante neste blogue. Ou será o mesmo protagonista?

No dia seguinte, 8 de Abril de 1968, voltamos ao Enxalé procurar as armas perdidas. Na progressão ouvimos rebentamentos. Será Mato Cão?

Recuperámos 2 armas. Regressámos a Fá Mandinga sem incidentes.

10 de Abril de 1968
Há emboscada na estrada Xime-Bambadinca. Não houve incidentes, são as notícias que nos chegam.

14 de Abril de 1968
Dia de Páscoa, aqui, igual aos outros.
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Notas do CV:

(*) Originalmente publicado na I Série do nosso blogue em 31 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXIII: Diário do CMS (CART 2339)(1): Um homem ficou para trás e não há voluntários para o ir buscar...

(**) Mobilizada pelo RAL 3, e independente tal como a CART 2339. Vieram para o TO da Guiné na mesma data (14/1/1968) e regressaram a casa na mesma data. A CART 2338 esteve em Fá Mandinga, Nova Lamego, Buruntuma e Piche. Comandantes: Cap Mil Art João Carlos Palma Marques Alves; Cap Art Manuel João de Azevedo Paulo. Tem cinco referências no blogue. A CART 2339 tem 118…

(***) Sobre a Op Gavião vd. poste de 11 de maio de 2008 > Guiné 63/74: P2833: Op Gavião (Belel, 4-6 de Abril de 1968) (Armando Fernandes, Pel Rec CCS / BART 1904, Bissau e Bambadinca, 1966/68)

Guiné 63/74 - P9302: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (5): Fragmentos Genuínos - 3

FRAGMENTOS GENUÍNOS - 3

Por Carlos Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66

Durante seis dias, passámos primeiro pelo Funchal para irmos buscar mais uma Companhia, navegámos a caminho de Bissau, correu uma agradável viagem sempre com mar calmo e bom tempo; pela primeira vez vi uns curiosíssimos peixes-voadores, que acompanharam diversas vezes o navegar do navio ao seu lado. Aqui vim também a reparar na extrema estratificação existente na sociedade portuguesa; que profunda ignorância a minha: os graduados tinham aceitáveis acomodações e uma sala para refeições; os restantes camaradas, que iam exactamente com o mesmo fim que nós (a guerra) iam instalados a monte em deploráveis condições nos porões de carga e comiam em marmitas no convés do navio.

No Bar e sala de estar, onde passávamos a maior parte do tempo, adormeci um sábado nos sofás do mesmo só acordando com os ruídos estranhos na manhã seguinte; o padre preparava o espaço para a realização de uma missa. Lá tive que me levantar de madrugada, 8h00, e desandar.

O famigerado Niassa

Ao aproximar-nos de terra vislumbrava-se à distancia uma paisagem deslumbrante, ainda que difusamente, o ar era pesado e o calor abrasador começava a fazer sentir-se, de um conjunto de ilhas fronteiras a Bissau, (arquipélago dos Bijagós) aonde nos dirigimos e fundeámos entre a cidade e o agora bem visível arquipélago, que nos transmitia uma sensação de placidez com a sua luxuriante floresta onde eram visíveis alguns conjuntos de moranças (tabancas) numa mostra exuberante e exótica de tipicismo tropical que já imaginava devido às profundas explanações e ao imenso espólio fotográfico a que tivera acesso em longas e agradáveis conversas durante toda a viagem, com o malogrado, querido amigo e conterrâneo Vasco Cardoso.

Imagem de uma tabanca situada em lugar de pouca mata e onde se pode verificar o seu aspecto exótico e tipicamente tropical. Ao fundo uma luxuriante, densa e misteriosa floresta.

O povo bijagó é nómada entre as ilhas do arquipélago e cultiva principalmente arroz

Uma bolanha cultivada com arroz

Braço de mar ou bolon, em maré baixa

Tabanca bijagó. As aldeias bijagós estão sempre cercadas de árvores e afastadas da costa.

Pouco tempo tivemos para usufruir deste ambiente, onde o calor era já abrasador, porquanto de imediato começamos a transferir para os botes que nos levaram ao cais, todas as nossas bagagens e afins. De imediato comecei a sentir um profundo desalento quando cheguei a um degradado cais de desembarque e pude constatar o movimento que nele se fazia e a miséria que dele parecia depreender-se, onde pululavam um número indeterminado de crianças desnudas ou em farrapos e que se ofereciam para transportar as nossas coisas, (houve de imediato quem aceitasse) tinham em comum um pormenor que na altura me chamou a atenção apresentavam grandes ventres e os umbigos de alguns eram bastantes salientes, a tudo isto juntava-se o ar sobranceiro e displicente que uns quantos indivíduos, alguns fardados, apresentavam. O ar era seco, denso, agreste, enfim; parecia quase irrespirável; a simples tarefa de transportarmos para as lanchas as nossas bagagens e afins faziam-nos estar permanentemente a transpirar com a roupa colada ao corpo como que pegajosa parecendo fazer parte da pele, era profundamente incomodativo a par do inóspito ar ambiente que em lugar das fragâncias e odores tropicais que imaginava ir encontrar. Fui confrontado assim que comecei a caminhar, com o sufocante respirar ao cheiro a terra vermelha queimada, típica do continente africano, ainda acompanhado de episódicos pequenos tufões que se levantavam em muitas das ruas, que em parte eram de terra e com pouca limpeza, o que começou a germinar em mim um sentimento de rejeição em relação a este pedaço (dito) de Portugal. Não, pensava eu. Aqui não fico, isto não tem nada a ver com a minha já saudosa linha do Estoril onde nasci e cresci e onde em comparação escolho os maravilhosos e esplendorosos nasceres do sol, em que sorvendo uma brisa agradável e revigorante, remando numa “chata”, navegava junto da costa para recolher os “galrichos”, postos na noite anterior para fazer decorrer uma maré, sendo que escolhíamos as noites em que um manto diáfano de luar nos alumiava transmitido pelo nosso satélite, na sua majestática quietude, de que usufruíamos para a minha falhada pesca artesanal. Surgiam nesta aérea cabeça mais alguns pingos nostálgicos.

Forte da Giribita visto da Praia de Caxias

Depois de em Stª. Luzia recebermos directamente o armamento, conselhos e despedidas de grande amizade e alvoroço, juntámos um grupo em que se incluía o Vasco Cardoso, o Bastos, o Mota e mais alguns que sendo guiados pelo malogrado Vasco, que já aqui tinha estado quando ainda na adolescência, fomos dar uma volta pela cidade e terminar no “Pireza” uma pequena cervejaria cujo proprietário o Vasco conhecia e onde a uma pergunta posta por este, apenas pude responder a frase que se veio a tornar paradigmática entre os diversos elementos que se deslocavam a Bissau: "a cidade como vila é uma aldeia bastante grande".

Vista aérea de Bissau em 1966

Uma rua de Bissau – havia muitas assim

(Continua)
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Vd. último poste da série de 30 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9289: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (4): Fragmentos Genuínos - 2

Guiné 63/74 - P9301: Notas de leitura (319): Milicianos, Os Peões das Nicas, de Rui Neves da Silva (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2011:

Queridos amigos,
Procurei atinar com a relevante importância do curso para capitães de Julho de 1970, em Mafra, não terei sido muito bem sucedido. O autor gaba-se de como estes capitães milicianos, em muitos casos ardorosos, entusiastas e valentes, podiam ter contribuído para mudar o curso da guerra, era um sangue novo que foi recusado pelos muitos interesses enquistados dos oficiais do quadro permanente, que neste relato romanceado são, regra geral, tratados a baixo de cão. Seria bom ouvir a opinião daqueles que, à época (entre 1970 e 1974) tenham vivido a incorporação, a guerra em África e depois a rejeição dos oficiais do quadro permanente.

Um abraço do
Mário


Milicianos, os piões das nicas

Beja Santos

Em Julho de 1970, cinco dezenas de cidadãos, com idades compreendidas entre os 27 e os 35 anos, e com formação académica superior, foram convocados pelo Ministério do Exército para se apresentarem em Mafra, na Escola Prática de Infantaria. Estes adultos tinham em comum coisas como estas: havia cumprido já o serviço militar obrigatório, estavam numa fase ascendente das suas carreiras profissionais e não eram propriamente aliados do regime. Receberam quatro meses de formação, foram promovidos a capitão e deram-lhes o comando de Companhia, numa das três frentes de combate. Este é o ponto de partida do relato romanceado “Milicianos, os peões das nicas”, por Rui Neves da Silva (Prefácio, 2007).

Com o passar dos anos e o agravar da guerra, tornou-se indispensável o recurso generalizado a estes capitães milicianos para suprir a falta de oficiais do quadro no comando de Companhias. Durante os primeiros anos, eram oficiais do quadro os chamados, e os alferes, seus subordinados, eram milicianos. A narrativa centra-se no papel que eles desempenharam, a contragosto dos oficiais do quadro permanente. São cerca de 700 páginas de um relato que não esconde o excesso, tanto na linguagem rebuscada como na animosidade a muitas figuras do quadro permanente, isto numa atmosfera em que o vinho a mais, a cartilha de Marialva e a solidariedade são omnipresentes. É uma narrativa composta por três livros: a Escola Prática de Infantaria é apresentada como uma fábrica de oficiais; a guerra como uma fábrica de heróis; e a revolução do 25 de Abril uma fábrica de equívocos. Esses capitães milicianos são apresentados como piões das nicas, numa daquelas diatribes carregadas de gongorismo o autor levanta o véu do conflito latente entre o quadro permanente e os milicianos: “Entre os diversos processos de tirar partido do jogo do pião há um que exige dos participantes um forte instinto destrutivo; trata-se de, lançado o pião, procurar não só que ele gire rápido e de forma equilibrada, mas também que, ao chegar ao solo, acerte do pião do adversário que por sorteio jogou primeiro. Acertando, o vencedor ganha o direito de, com o seu pião, nicar o pião do vencido; ou seja, espetar-lhe através de sucessivos golpes o espigão de ferro na zona mais carnuda e frágil, junto à pequena saliência onde o cordel é preso no acto de lançamento”. E, mais adiante, o tenente miliciano diz a um tenente-coronel: “Neste jogo há um processo de o nosso pião perdedor, ou ganhador, não sofrer o menor dano, que é o de um jogador ter um pião bem equilibrado para lançar, um outro de ponta de ferro bem afiada para escavacar o do adversário… e um terceiro, de ponta gasta e de corpo cheio de lanhos, para levar com as nicas. Senhor tenente-coronel, nesta maldita guerra nós somos os piões que levam com as nicas”.

O autor argumenta que estes tenentes milicianos tiveram necessidade de ser exigentes consigo próprios. E para que não haja equívoco sobre a carga autobiográfica, Rui Neves da Silva esclarece: “Foi em Angola que combati. No Leste e no Norte. Orgulho-me de ter feito parte do único Exército do mundo que venceu uma guerra subversiva. Quando saí desta província ultramarina os três movimentos independentistas estavam de rastos”. O leitor é logo emerso no Convento de Mafra, o lançamento das hostilidades é dado pela pergunta do miliciano a um oficial superior: o que vão vossemecês fazer quando a merda da guerra acabar? Depois o autor aprimora-se a identificar a proveniência destes tenentes, como eles se relacionam entre si, as tascas e restaurantes onde se encontram, os engates, as bebedeiras, as zaragatas, as peripécias da instrução, a ansiedade das suas famílias. Quando há palestras, são inevitáveis as ferroadas políticas, os oficiais do quadro permanente são confrontados com a abertura inevitável de diferentes áreas de comando aos milicianos. Há também o diagnóstico do quadro mental e político de cada um, tudo é superado pela franca camaradagem. Alguns deles irão frequentar o Centro de Instrução de Operações Especiais de Lamego e depois colocados nas Unidades de onde partirão para a guerra, à frente da respectiva Companhia.

Partem todos para a guerra, o epicentro narrativo será Angola, Guiné e Moçambique merecerão igualmente referências, praticamente anódinas e desambientadas. Marcelino, filho de D. Diogo Fermões de Pimentel, parte para Bissum, Daniel Cabrita fica em Bissau. São apontamentos frágeis, ao contrário de tudo quanto é escrito sobre Angola, é um desequilíbrio de que toda a obra se ressente, terá faltado investigação que permitisse dar quadros impressivos e ajustados ao que ele descreve sobre o Leste e Norte de Angola. Vão surgindo as baixas, os sinistros, os capitães mantêm-se em contacto entre si e toda a desconfiança quanto ao quadro permanente jamais abranda. Sensivelmente a partir de Março de 1973, os capitães milicianos da tal incorporação de Julho de 1970 começam a regressar. Marcelino tinha morrido heroicamente em combate.

E chegámos ao período revolucionário, o autor descreve minuciosamente a legislação do ministro Sá Viana Rebelo e o descontentamento que ela provocou, como irão ficar acirradas as relações entre os oficiais preparados na Academia Militar e aqueles que o regime de Marcello Caetano pretende que ingressem no quadro especial de oficiais. É deste ângulo que o autor parte para uma crítica demolidora aos oficiais do quadro que confundiram uma reivindicação com as obrigações que deviam ter mantido com ética militar. O MFA, nesta lógica, foi uma maneira de esses oficiais do quadro terem fugido à competitividade com aqueles que tinham ardor e entusiasmo em combater. Esses oficiais foram politicamente manipulados, os comunistas e a extrema-esquerda. Os piões das nicas descobrem o logro em que caíram. Um mestiço que fugira do MPLA e que desertara do Exército português irá abater um oficial miliciano condecorado no dia 25 de Novembro. Aqui termina a narrativa romanceada e dá-se como demonstrado o nefando papel dos militares de carreira em tudo terem feito para impedir os capitães milicianos para não terem sido compensados com igual estatuto ao seu.

Não se percebe exactamente o que levou Rui Neves da Silva a escrever este relato que ele classifica como história romanceada de um punhado de homens que se assumiram como testemunhas de eventos que militares envolvidos na revolução dos cravos e historiadores teimam em calar ou desvirtuar. Não se percebe a dimensão desta conspiração de silêncio e pasma o silêncio do autor quanto ao alferes e tenentes milicianos que, segundo os historiadores, tiveram um papel fundamental na preparação das condições psicológicas que contribuíram para os oficiais do quadro terem chegado à conclusão que todo aquele esforço de guerra era insano na ausência de uma resposta política, quando não se antevia qualquer solução militar, pelo menos da Guiné e em Moçambique.
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Nota de CV:

Vd.- último poste da série de 30 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9288: Notas de leitura (318): Literaturas da Guiné-Bissau, Cantando escritos da história (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9300: Parabéns a você (361): Carlos Marques Santos, ex-Fur Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9298: Parabéns a você (360): A nossa novel tertuliana Margarida Peixoto

domingo, 1 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9299: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (13): Mensagens dos nossos camaradas José Manuel Cancela, António Teixeira, Francisco Palma, Carlos Rios, Manuel Reis, Fernando Barata, Manuel Sousa e Manuel Joaquim

1. Do nossos camarada José Manuel Cancela, ex-Soldado AM da CCAÇ 2382, Bula, Buba, Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Chamarra, 1968/70:

Caro Amigo Carlos
Um pouco atrasado, mas a época natalícia continua.
Quero deixar aqui os meus votos de um Ano Novo com tudo que há de melhor para todos os ex-combatentes e em especial para os da Guiné, e mais ainda, aqueles esquecidos da sociedade, que lutaram connosco, e não são reconhecidos como tal.

Aqui vai uma recordação do meu segundo Natal na Guiné, este em Safim.
José Manuel Cancela


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2. Do nosso camarada António Teixeira, ex-Alf Mil da CCAÇ 3459/BCAÇ 3863 - Teixeira Pinto, e CCAÇ 6 - Bedanda, 1971/73:


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3. Mensagem do nosso camarada Francisco Palma, ex-Condutor Auto Rodas da CCAV 2748/BCAV 2922, Canquelifá, 1970/72:

Para todos, votos de um Bom Ano Novo 2012, com saúde e felicidade.

Saudações do
Francisco Palma


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4. Do nosso camarada Carlos Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66:

Para os incansáveis e extraordinários responsáveis do blogue e todos os camarigos alguns dos quais tem feito o favor de ter paciência de ler e enviar os mais entusiásticos e agradáveis comentários aos meus incipientes
escritos e a tudo o mais, aos quais retribuo e agradeço, pois estes momentos e tudo o mais são partilhados por todos nós, envio os maiores desejos do mais maravilhoso 2012 ao encontro dos desejos mais íntimos de cada um.

Bem Hajam!
Carlos Rios


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5. Do nosso camarada Manuel Reis, ex-Alf Mil da CCAV 8350, Guileje, 1972/74:


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6. Mensagem do nosso camarada Fernando Barata, ex-Alf Mil da CCAÇ 2700, Dulombi, 1970/72:

Carlos
Para toda a equipa de editores da Tabanca votos de muita saúde para que possam continuar a desenvolver este genuíno "serviço público".


Abraço
Barata

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7. Do nosso camarada Manuel Sousa, ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74, actualmente Sargento-Ajudante da GNR na situação de Reforma:


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8. Do nosso camarada Manuel Joaquim, ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67:

Vivam, meus caros Luís, Carlos e Eduardo:
Que as vozes destas crianças, na sua força e sua alegria, nos sustentem a esperança e nos dêem alento para continuarmos o caminho rumo a um futuro melhor.
Feliz Ano Novo, para os meus queridos camaradas e para todos os vossos entes queridos!

Um grande abraço
Manuel Joaquim


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9. Mensagem de CV:

Muitos outros camaradas se dirigiram a mim ou ao Blogue utilizando os célebres Power Point's que não são publicáveis, como tal, no Blogue. A todos o nosso muito obrigado pelos votos manifestados, os quais agradecemos e retribuímos.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9292: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (12): Cartão de boas festas do Patrício Ribeiro, À sombra do poilão, Cacheu, Dezembro 2011

Guiné 63/74 - P9298: Parabéns a você (360): A nossa novel tertuliana Margarida Peixoto

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9284: Parabéns a você (359): Luís F. Moreira, ex-Fur TRMS da CCAÇ 2789 (Guiné, 1970/72)