segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10534: Blogoterapia (218): Voltei ao Éden (Felismina Costa)

Sintra - Foto retirada de http://atracoessintra.no.sapo.pt/, com a devida vénia

Voltei ao Éden

Por Felismina Mealha

A manhã nublada envolvia a serra num místico turbilhão de nuvens voláteis, que ora se posicionavam à direita, ora à esquerda…
Estou sentada no parque em frente!
Sozinha!
Os bancos do parque, todos ocupados, quando há pouco cheguei, apenas aquele em que me sento, apresentam agora, uma volumetria colorida, no azul dos jeans e da camisola de cores contrastantes, que cobrem o rectângulo humano, que de caneta na mão, desenha sobre um bloco, que firma sobre a perna traçada, as palavras que chegam através da influência panorâmica.
Fujo de mim e observo…

As folhas caem das árvores, em tons de castanho e ouro e passeiam-se pelo chão… preguiçosamente.

À minha rectaguarda, os carros circulam a pouca velocidade, condicionados pelo semáforo próximo.

De vez enquando, pequenos grupos passam falando, à procura do almoço…

Olho o candeeiro de ferro forjado, sobre o muro, de desenho airoso, que espera a noite para mostrar a sua beleza e utilidade.
Numa das floreiras, frente aos meus olhos, floresce mimosa uma planta, no tom das flores da romãzeira, e, as casas apalaçadas, no sopé da serra, estão fechadas e caladas com medo de acordar recordações.

Como que dopada, permaneço sem pressa nem objectivos imediatos. Com a estação ferroviária a dois passos, encetarei a viagem de regresso quando me apetecer. O dia… é meu!

Agora, quero sentir o vento!
Paira uma atmosfera mole, preguiçosa, tal como me sinto.
Uma brisa, ofendida com as minhas palavras, soprou mais ligeira e eu sorri…

Olho o chão, de calçada portuguesa, desenhando uma geometria ondulante a que as folhas dos plátanos emprestam um doce enfeite…
Fotografo-as para as olhar no Inverno!
Uma pomba branca passeia-se indiferente e decidida. Gostei de ver a sua coragem, expressa na atitude.

Ao fundo do parque, um monumento, encimado por uma esfera armilar, lembra os que caíram pela Pátria, e eu, que sempre me tocam essas honras, lembrei-me dos que sobreviveram e continuam a ser ignorados e passam por nós, anónimos, com o brilho da sua heroicidade, apenas no seu coração e na sua memória…

Mais carregadas, as nuvens cobriram o sol, que aparecia a espaços…
No topo da serra, um pouco a sudoeste, uma das muralhas da Pena, sobressai por entre a vegetação.

Alguns transeuntes, de livros e telemóveis na mão, ocupam alguns bancos, tranquilamente, e eu vou deixar o espaço que observei, agradada e agradecida.
Num comboio longo, que circula sobre carris, vou-me deixar levar, mirando da janela o espaço abrangente, que transformarei em crónica deste dia e tempo.

Felismina-mealha
10 de Outubro de 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10457: Blogoterapia (218): Obrigado pelo acolhimento nesta Grande Tabanca, que abriga as alegrias e as dores de uma geração, batizada com suor, sangue e mosquitos, nas águas escuras dos deltas dos rios da Guiné (Vasco Pires, Brasil)

Guiné 63/74 - P10533: Agenda cultural (223): Lançamento do livro "Palavras de um Defunto... Antes de o Ser", de Mário Tito, dia 27 de Outubro de 2012, pelas 16h00, na Livraria - Bar Les Enfants Terribles, em Lisboa

C O N V I T E




 
1. É já no próximo dia 27 de Outubro de 2012 (sábado), pelas 16h00, que vai ser apresentado o livro "Palavras de um Defunto... Antes de o Ser!" de autoria do nosso camarada Mário Serra Oliveira.

O evento terá lugar na Livraria - Bar Les Enfants Terribles - Cave do Cinema King - Rua Bulhão Pato, n.º 1, em Lisboa.


Oradores convidados: 
José Eduardo Ferreira Couto, 
Dr. Mário Beja Santos e 
Fernando Carvalho.

Sobre o livro:
Autor: Mário Tito
Edição: Chiado Editora
Colecção: Viagens Na Ficção
Páginas: 542
Data de publicação: Outubro de 2012
Género: Ficção
Preço: 16,00 €
ISBN: 978-989-697-706-1

Alguns dos tópicos de realce, no interior destas linhas:
“Quando perguntei ao defunto… qual o estado dele… vejam só: nem “xúz nem búz”, assim como que não me conhecia! Eu, que até andei ainda a arrastar a asa a duas das três irmãs dele – duas gémeas e uma “corcunda”; o nascimento lá na minha aldeia, de um rapazote, com um sinal numa das brilhas e um olho de vidro, tal como a mãe, bem como uma tatuagem num braço, e uma perna de pau – tal como o pai; os americanos, a falsa democracia, e o roubo do petróleo; os ingleses e as nossas descobertas; os meus dois casamentos, sem nunca me ter divorciado; a origem da águia, do tigre e dos lagartos; a “Graça do Senhor” e a fatia de pão trigo; eu, o Land Rover dos americanos e o dos chineses, em Bissau; os fuzilamentos políticos na Guiné; o baptismo do vinho na Messe dos Oficiais da FAP, em Bissau; o meu irmão bancário e os pintainhos no forno. Cheira-me a penas chamuscadas; os mórmons e o poderem ter muitas mulheres, às vezes sem poderem poder; a pergunta do alfaiate, sobre de que lado eu usava a minha “ferramenta”; o eu ter ido ao céu ou a minha 1ª experiencia sexual; a descoberta, por uma médica “para” – que eu tinha um testículo maior que o outro; o foguete “mosca-abelha” e os foguetões tripulados; o jogo da “bilharda” e o jogo do baseball americano e, muito, muito mais…”


2. Alguns esclarecimentos do nosso camarada Mário Oliveira:

(i) Os ex-combatentes da guerra do ultramar terão desconto de 20% nos seguintes moldes:

No dia do lançamento, toda a gente paga por inteiro, para o que recebe um talão comprovativo, por uma questão de contabilidade. Cada camarada ex-combatente que se identifique como tal (Angola, Moçambique, Guiné, etc - não Iraque nem Afganistão, porque isso foram opções tomadas e não obrigações forçadas) dirige-se a mim e recebe os 20% imediatamente, no local. Só um livro por camarada.

Fora do dia de lançamento. Se quiserem adquirir o livro porque tomaram conhecimento dele através do Blogue, ou outros meios, pedem o livro por intermédio do Blogue ou directamente a mim, regista-se o interesse e eu faço-o chegar ao destino, à cobrança, já com o desconto.

(ii) Do produto de venda de cada livro doarei 1 €uro à Guiné-Bissau através de uma instituição a designar oportunamente

A minha ideia até seria fazer entrega lá na Guiné, se atingisse um valor razoável, numa visita futura, com saudade constante. Creio que não estará mal desta forma.

Mais, o valor de 1€ será doado por todas as vendas, seja ou não efectuada a ex-camaradas.
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Notas de CV:

Sobre o livro "Palavras de um Defunto... Antes de o Ser", vd. postes de:

15 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10037: Os nossos seres, saberes e lazeres (45): Para breve o lançamento do livro "Palavras de um defunto... antes de o ser", por Mário Tito (Mário Serra de Oliveira)
e
21 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10418: Blogoterapia (217): Mário Tito, aliás, Mário Serra de Oliveira, camarada da diáspora, está disponível, em 27 de outubro, no lançamento do seu livro, ou então na 1.ª quinzena de novembro, para estar com os camaradas de cá, para "papiar crioulo" e "parti mantenha e lembra tempo di tuga"

Vd. último poste da série de 13 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10527: Agenda cultural (222): Tertúlias Fim do Império, Oeiras e Lisboa, calendário das sessões

Guiné 63/74 - P10532: Notas de leitura (417): "Guiné Portuguesa", por Avelino Teixeira da Mota (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
Manda o rigor que se diga que é inaceitável estudar a Guiné Portuguesa sem consultar a respetiva monografia assinada pelo então primeiro-tenente Avelino Teixeira da Mota. Profundo conhecedor da realidade guineense, foi um árduo estudioso de matérias tão dispares como o ambiente físico, as línguas, a fauna e a flora, a demografia e a pré-história e a história conhecida antes da presença portuguesa. Remete-nos para o segundo volume a história da ação portuguesa e os capítulos obrigatórios numa monografia sobre a economia que ele regista com todos os pormenores, até à exaustão.
A diferentes níveis, e reconhecido por outros estudiosos, a sua monografia mantém um valor incalculável, pelo que é de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


“Guiné Portuguesa”, por Avelino Teixeira da Mota (1)

Beja Santos

Avelino Teixeira da Mota acompanha o Governador Sarmento Rodrigues, foi seu Ajudante de Campo e depois passou a prestar serviço na missão Geo-Hidrográfica da Guiné Portuguesa, em 1947. Para trás ficavam os seus decisivos contributos na fundação, organização e publicação de um Boletim Cultural, na elaboração de um inquérito etnográfico, e na sua preparação para publicação uma nova carta geográfica e etnográfica da Guiné. Mesmo com alguns interregnos, Teixeira da Mota ficará na Guiné até finais de 1957. Ele reconhecerá mais tarde que havia encontrado a solução providencial para continuar na costa ocidental de África e a aprofundar os seus conhecimentos sobre a Guiné. Por exemplo, é neste período em que colabora com a Missão Geo-Hidrográfica que estabelecerá contactos mais estreitos com membros do Institut Français de l’Afrique Noire (IFAN), prestigioso centro de investigação científica da África Ocidental Francesa, que publica a sua primeira obra de fôlego, em 1950, sobre a toponímia de origem portuguesa usada para denominar vários locais na Costa Ocidental de África. Finalmente, aparecerá em 1954 a Guiné Portuguesa que ainda hoje é inultrapassável em muitos dos seus pontos focados, como escreve o seu biógrafo, Carlos Valentim, nomeadamente no que respeita à Geografia Física e Humana, à Geologia e História do espaço guineense. Apresentada em dois tomos, publicada pela Agência-Geral do Ultramar, desta monografia é uma súmula dos cerca de nove anos de conhecimento e estudo do autor sobre a Guiné Portuguesa. Não é despiciendo referir que Teixeira da Mota esteve atento, durante este período a um conjunto de missões de zoólogos, botânicos, geógrafos, médicos veterinários e médicos tropicais que produziram documentos inovadores.

Tratando-se de um trabalho de primeiríssima, e sendo o primeiro retrato histórico de importância incontestável, obra de primeiríssima água, deve-nos merece uma apreciação detalhada. Como segue.

Depois de descrever o meio físico (situação, estrutura geológica, relevo), o clima, os solos, os cursos de água, as costas, deixou-nos um quadro impressivo da fauna e flora (vegetação, a fauna nas suas relações com o ambiente físico), detém-se sobre as populações nativas. E esclarece sem rebuços: “A pré-história guineense e, de uma maneira geral, a da África Ocidental, continua a ser pouco conhecida, em virtude da escassez dos elementos até agora descobertos. Adiante refere-se ao que se tinha vindo a apurar sobre a proto-história guineense, referindo que achados recentes vinham ligar os vales de Geba e do Corubal às velhas civilizações sudanesas, revelando que o interior da Guiné Portuguesa tinha estado na órbita de grandes Estados continentais – facto de considerável significado e que em muito explica a atual distribuição de populações e certos aspetos da sua civilização”. E discreteia sobre explorações mineiras, incluindo as auríferas, de que não restam praticamente vestígios. Admite que a mineração no vale do Geba tenha correspondido ao apogeu do império do Mali, no século XIII ou XIV e adianta: “Não é impossível que o vale do Geba tenha sido explorado no tempo do império que precedeu o dos Mandingas, ou seja o império Saracolé de Gana. São hipóteses que aqui ficam. Do que já não pode haver mais dúvidas é que o interior da Guiné portuguesa desde cedo esteve ligado aos grandes impérios sudaneses (convém articular este texto com a tese de doutoramento de Carlos Lopes intitulada “Kaabunké – Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais”, de que já se fez aqui recensão). E explana sobre os impérios do Gana e do Mali e primeiras islamizações, bem como sobre o primeiro conhecimento histórico das populações da Guiné Portuguesa, efetuando uma relevante situação por meio de notas históricas das várias etnias (até ao século XIX), discutindo as suas origens e afinidades, abarcando Balantas, Felupes e Baiotes, Banhuns e Cassangas, Cobianas, Manjacos, Brames, Papéis, Bijagós, Beafadas, Nalus, Bagas e Landumãs, Tiapis e Cocolis, Pajadincas e Tandas, Mandingas. Depois regista a islamização dos fulas, a constituição do Estado do Futa-Jalom e a sua expansão. E, muito importante, analisa as consequências da ocupação europeia no deslocamento de populações. A título de curiosidade, refere que os manjacos emigraram para o território do Casamansa, principalmente a área de Ziguinchor e dentro da Guiné aparecem também em centros urbanos e dedicam-se à agricultura e exploração de palmares e regiões como o Oio e Catió; os Papéis emigraram também para áreas de palmares como os Bijagós, Chitole e Cubisseco. Os maiores emigrantes terão sido porém os Balantas que se deslocaram para constituir novas bolanhas em terrenos roubados ao mar. e foi assim que invadiram o baixo Geba, baixo Corubal, Quínara e quase toda a área de Catió.

O trabalho monográfico de Teixeira da Mota passa depois para a demografia, associando-a aos solos, recursos hídricos, doenças tropicais e própria ocupação europeia. Quanto às línguas faladas na Guiné refere que fazem parte do grande grupo das línguas sudanesas, o qual, com as línguas bantas e as línguas nilóticas, formam o ramo das línguas negro-africanas. E dá a sua interpretação sobre o crescimento do crioulo: “A necessidade dos indígenas se entenderem entre si, terem uma língua franca, pelo facto da ação e depois a ocupação europeias terem quebrado o isolamento tribal. O movimento demográfico atual carateriza-se por duas grandes correntes, uma de deslocamento para os espaços rurais desocupados anteriormente por motivo de defesa, a outra de atração urbana. Qualquer dos movimentos vem baralhar cada vez mais o complicado mosaico étnico e linguístico que é a Guiné onde se falam para cima de 20 línguas. Que se entendam por meio do crioulo, em vez de utilizaram uma língua nativa importante, como o Balanta ou Fula, só me parece motivo de satisfação para nós – noutras partes de África foi o último caso que cedeu (por exemplo, o Kisuahili nos territórios ingleses da África Oriental)”. O investigador explica como o crioulo guineense se tinha vindo a afastar do crioulo cabo-verdiano, incorporando um português antigo, arcaísmos portugueses e muitíssimas palavras africanas. Fica aqui uma nota de curiosidade, como escreve o autor: “É de registar que o crioulo utiliza para animais e plantas formas portuguesas criadas em África; para os animais marinhos é frequente a designação de peixe seguida de outra palavra (peixe-banda, peixe-areia, peixe-cavalo, etc.); para as árvores é, de maneira análoga, a forma pau (pau-carvão, pau-sangue, pau-ferro, pau-conta, etc.)".

E o primeiro volume prossegue com o inventário das religiões, a caracterização do animismo e a especificidade islâmica. Temos, por último, o capítulo sobre géneros de vida e formas de civilização que permite ao autor questionar a identidade dos diferentes grupos étnicos, bem como o agrupamento das populações negras, o que os liga à agricultura e forma de povoamento, as técnicas de pesca, a organização social ou o caso das sociedades sem Estado, como os balantas e o modo como cada uma destas etnias aplica as singularidades arquitectónicas na habitação.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10519: Notas de leitura (416): Kaabunké Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance", por Carlos Lopes (Mário Beja Santos)

domingo, 14 de outubro de 2012

Guiné 63/74 – P10531: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (21): Operação Outra Vez, objectivo: Iracunda

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 11 de Outubro de 2012:

Caríssimos Luís, Vinhal e M. Ribeiro.O que sai logo à ideia é enviar-vos um grande abraço, e este mail encontrar-vos em plena boa saúde.
Aqui vai mais uma página “ arrancada” do meu caderno de memórias “ Páginas negras com Salpicos cor-de-rosa”.

Passem bem
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

- 22 de Junho de 1965 (quase 1 mês de Guiné) -

IRACUNDA 
(ainda hoje, ao falar, há ainda uma residual sensação)

Foi o batismo de fogo da 816: mais de 20 minutos de fogachada em Iracunda. Julgo que toda a espécie de arma que o inimigo usava na altura em toda a Guiné, estava toda ali.
Não foi a minha primeira vez no mato mas lá que foi a primeira vez que chamei a Nossa Senhora lá isso foi!
Iracunda ao tempo era o verdadeiro braço armado da base de Morés, no OIO.

Localização de Iracunda, estrada Bissorã-Mansabá, a sul do Olossato e a NW do Morés, bastião do PAIGC no Oio. 
Vd. carta da Província da Guiné.
Legenda de CV

Certo dia então chegou a ordem para os 2.º e 3.º Grupos de combate prepararem-se para saírem para o Olossato. Não sabíamos, mesmo nós os Sargentos, qual seria o objetivo. Se bem que não estranhássemos (?) a falta de dados, uma vez que sabíamos que na guerra o sigilo tem toda a importância, ficamos na desusada expectativa quanto ao que nos estava reservado com a Operação Olossato. A ordem veio lacónica embora concisa, à boa maneira militar. Sem fazermos qualquer objeção (pudera!) ou simples pergunta (pr’a quê?), embora a nossa curiosidade nos incitasse a tal, vestimos uma vez mais o camuflado, armamo-nos como de costume e abalamos rumo às viaturas que se encontravam já alinhadas, à saída do aquartelamento de Bissorã, na direção da estrada para o Olossato, ali bem perto do edifício civil da Administração de Bissorã e da rotunda com um pequeno monumento no meio. O centro de Bissorã, afinal.

Encarávamos o trajeto com certo pessimismo, (periquitices) pois a estrada que liga Bissorã a Olossato tinha fama de aparecerem muitas emboscadas, principalmente na zona da “carreira-de-tiro”, nome que a tropa deu e que ficava sensivelmente a meio caminho até Maqué e que atravessava um local de capim muito denso, mesmo propício a uma cilada. Também nesta estrada era frequente aparecerem minas e fornilhos, dizia-se. Sabíamos também que era uma zona batida pelos terroristas da fortíssima base de Morés e que a estrada passava por Maqué, a meio caminho, onde algures também existia uma casa-de-mato.

No entanto, uma vez que esta nossa saída foi rodeada do maior segredo (o que até em Bissorã parecia não funcionar muito bem), havia toda a possibilidade de os não termos à perna, o que não queria dizer que, pelo menos, não tivéssemos de depararmo-nos com minas e outras quaisquer armadilhas. Assim, e como era de contar com isto, a estrada foi picada por uma secção e à vez. Porque a coluna levava à frente homens apeados - os picadores -, obrigava a uma progressão lenta, embora segura, quanto a minas.

Os cerca de 15 quilómetros que separavam Bissorã do Olossato, ou melhor até Maqué (~8-9 Kms.) , percorridos de tal forma, pareciam não ter fim. As secções alternavam-se à frente na picagem da estrada, e quando essa mudança acontecia, havia uma longa paragem da coluna, o que fazia ainda mais enervar.

O trajeto, o primeiro que fazíamos naquela estrada, que tão badalada era - já em Bissau, quando passamos por Brá, ouvíamos falar dela, pelos seus perigos -, foi feita no clima da maior “suspense” e expetativa. Os “longos” quilómetros foram-se então calcorreando até que chegamos a Maqué sem qualquer novidade.

Logo divisei do lado oposto e do outro lado do pontão (ponto de encontro) uma auto-metralhadora e alguns soldados de camuflado já muito coçado, muito queimados (era a velhice). Rostos queimados do impiedoso sol, grandes barbas e/ou bigodes, tudo aquilo denunciador de velhos amigos daquelas paragens. Eram elementos da Companhia de Artilharia n.º 566, a Companhia que estava sediada no Olossato. Tinham picado a estrada do lado deles e portanto dali para a frente já ninguém foi apeado, pelo que a marcha foi imposta pela velocidade das viaturas.

Alguns quilómetros volvidos, deparam-se então as primeiras moranças, outras mais, mais ainda e eis que nos aparece o aquartelamento de Olossato. Troncos de palmeiras já muito gastos a fazerem de paliçada em toda a volta do aquartelamento; abrigos de sentinela cilíndricos e em cone no teto nos 4 cantos do quadrado da fortificação. Tudo no entanto bem arrumadinho e cuidado. Troncos de palmeiras, chapa dos bidões da gasolina e barro da Guiné para encher, eram os materiais utilizados. Na ponta de um mastro, já bem dentro do quartel, bem alto, ondulava a bandeira portuguesa, orgulho nosso e a chama do nosso valor e coragem. Numa alisada chapa de bidão logo sobre a “Porta d’armas”, podia-se ler em letras e números bem grandes, pintados à mão e com relativa habilidade: “C. ART. 566”. Esta chapa estava bem ao alto e logo à entrada do quartel. Eram ali que moravam os “velhinhos” da 566, Companhia que tinha muita fama pelo valor evidenciado através de êxitos e mais êxitos por aquela temerosa zona do Oio.

Tive mais tarde ocasião de o assim constatar, ao trabalhar com eles no mato.

Poucos meses atrás, pouco antes de virmos para a Guiné, tinham eles tido um formidável êxito na base de Morés. Aprisionaram entre 2 a 3 toneladas de material de guerra entre ele diversas e valiosas metralhadoras pesadas.

Aquele cenário no Olossato fez-me lembrar logo os filmes de cow-boys do western americano: muros construídos com trocos de palmeiras, cavalo-de-frisa e arame farpado a embrulhar tudo, e homens armados de carabina (diga-se G3) e em tronco nu e bem queimados; barbas, barbichas e exóticos bigodes e muita descontração; chão vermelho e poeirento também.

Olhei em redor a ver se encontrava por ali algum conhecido, mas não encontrei ninguém. Ouvi então risos e palmadas nas costas, mesmo atrás de mim. Virei-me e era o Zé Baião que tinha encontrado um seu conterrâneo eborense e amigo. Este era o Furriel Martins. Conversaram, riram, mas não era preciso haver conhecimentos, pois ficávamos logo em família sempre que se davam estes encontros. O Martins usava um chapéu à cow-boy, mais um dado característico dentro daquela encenação.

Receberam-nos muito bem e logo se aprontaram a arranjarem-nos comer na messe deles. Embora fosse da praxe, os visitantes serem bem recebidos pelos seus anfitriões, o certo é que os camaradas da 566 foram inexcedíveis em gentilezas, pelo que, viríamos a manifestar o nosso reconhecimento com grande ênfase. Ficamos desde o primeiro minuto a gostar daquela maralha e, diga-se de passagem, que também conquistamos a simpatia deles. Almoçamos então em clima de grande confraternização e depois de contarmos, e principalmente ouvirmos as aventuras da malta ali na Guiné, fizemos uma partida de futebol na parte da tarde.

O pequeno campo de futebol dentro do aquartelamento do Olossato que ficava junto às messes quer dos Oficiais quer dos Sargentos onde, antes umas horas de irmos à base de Iracunda, jogamos à bola com a malta da 566. A casa atrás da baliza seria mais tarde a secretaria da 816 onde estava o saudoso 1.º Rodrigues (falecido cá e já com alguma idade - paz à sua alma) e o desenfiado do “Boavista”, sempre com o Primeiro a perguntar-nos onde andava este, …na bola quase sempre. A casa do lado direito, já civil, e fora do aquartelamento, julgo ser a casa do Sr. Fodé, nativo,vendedor de panos e outras miudezas e apetências nativas.

Ao fim desta, fomos então, nós os da 816, chamados ao nosso Capitão (não foi preciso lembrar-nos que não fomos ali para jogar futebol) e por ele fomos postos ao corrente da nossa missão, agora com a informação em detalhe. O objetivo era para nós desconhecido, mas que lá ia ficar bem no nosso conhecimento lá isso ficou. Os velhinhos da 566 já o conheciam, e bem o notei logo no olhar apreensivo dos que iam alinhar com a gente, que tal refúgio não era nenhuma pera doce. Diante de um mapa estendido sobre uma mesa, fomos então elucidados pelo Alferes Victor da 566 coadjuvado pelo nosso Capitão, quanto ao efetivo do inimigo, seu armamento, quantidade e posição dos sentinelas, dispositivo que nós íamos adotar, etc., etc. A hora de saída do aquartelamento foi fixada para a 1 hora da madrugada. Objetivo: IRACUNDA!

Nada nos dizia (a nós os da 816), mas, só até lá chegar…

Depois da operação ficamos com a certeza que na verdade Iracunda era uma grande base terrorista, talvez até mais bem operacional do que a de Morés, isto dito também pelos da 566 e pelo chinfrim que houve também.

As lavadeiras do Olossato evidenciavam bem como a Guiné era muito fértil em boa fruta

Por gentileza de um colega Furriel da 566, dormitei um pouco na cama dele, acumulando energias, até à hora da partida. O jogo da bola tinha sido um grande desgaste, mas como havia o maior segredo, esse desgaste não foi poupado. Nesta altura, calmamente e com tempo, foi-me preparando. Peguei na minha G3, verifiquei o funcionamento da culatra, apalpei os carregadores nas cartucheiras, fixei bem a fivela do cinto do camuflado e fui beber um pouco de café. Um pouco de bagaço também para aquecer e a malta foi aparecendo. A noite estava com um intenso luar. A coluna foi-se formando no maior dos silêncios e, como autómatos, depois de tudo verificado, guarnições de “bazooka” e de morteiro, pessoal indígena carregador de granadas, nativos voluntários (de Mauser”!!) etc., fomos deixando Olossato no sentido oposto aquele pelo qual tínhamos vindo de manhã de Bissorã. A operação Iracunda tinha-se iniciado.

Olossato ia ficando para trás e a sua iluminação ia-se assim reduzindo para dar lugar às trevas. Como sempre, calculávamos o tempo de maneira que chegássemos às imediações do objetivo (refúgio) algumas dezenas de minutos antes da hora previamente combinada para o assalto. Servia tal interregno para nos refazermos um pouco da caminhada e ultimarmos também pormenores (se necessário), sobre o assalto. O facto de na maior parte das vezes chegarmos muito cedo às proximidades do objetivo devia-se também à progressão ter sido feita sem sobressaltos, nomeadamente do guia não nos ter feito andar às voltas, como não raras vezes acontecia, e que o tempo previsto também contemplava estes tipos de atraso mais ou menos previsíveis. Com o dito descanso, recuperávamos da caminhada e as nossas condições quer físicas quer psicológicas (sem nos vermos livres do nervoso miudinho, contudo), eram bem melhores. Até que chegamos junto de uma zona mais ou menos descoberta mas com folhagem suficiente para nos encobrir e camuflar uma vez sentados ou deitados. Estávamos ao longo de uma sebe e a escuridão da noite fazia o resto. Teríamos os cantares dos variadíssimos pássaros em breve a denunciar o nascer do dia.

(A descrição seguinte, em itálico, que faz parte integrante da narração desta operação “tirei-a” para introito do livro das minhas memórias - “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”- e nessa qualidade já saiu no Blogue (post 1809). Para aqueles que não gostam de ver coisas repetidas, as minhas desculpas)

"Eram 4 horas e meia da madrugada quando paramos. Fazia noite, noite escura. Já tínhamos andado um bom par de quilómetros.

Olhares que se interrogam e… era a espera.

Era aquele terrível espaço de tempo que se repetia sempre em todas as operações de “Golpes de mão”. Era aquela inquietante altura do tempo que nos punha na maior tensão e ansiedade. Era o aguardar da hora H, a hora do assalto ao refúgio inimigo e era ao mesmo tempo o retempero das energias gastas ao longo da caminhada.

Algumas dezenas de metros mais adiante estava o inimigo, oculto, algures acoitado naquela densa e emaranhada mata. A obscuridade dava às árvores e à sua folhagem feições de figuras fantasmagóricas e assustadoras. Estávamos todos reunidos, uns sentados, outros deitados, outros ainda nas posições que mais lhes apeteciam. Havia o maior silêncio, apenas cortado por um ou outro pigarrear inevitável ou pelo estalar de folhas secas provocadas pela mudança de posição deste ou daquele.

De olhos extasiados, circunspectos e de músculos contraídos, entreolhávamo-nos e parecia interrogarmo-nos: Como vai ser?..., Haverá surpresa?..., Conseguiremos o objetivo?, ou estarão eles já alertados e à nossa espera com uma emboscada montada?

Eram estas as pertinentes interrogações que nos martelavam o cérebro numa expectativa profundamente emocional. Que pesadelo!!... Não, naquela altura não éramos seres humanos, sentíamos e pensávamos como irracionais, quais animais selvagens prontos a atacar a presa.

Estávamos ali para matar, sim, matar, matar o semelhante, só que este tratava-se do inimigo, que, também… nos queria matar.

…E chegou a hora!!

O dia começou a nascer. Era na semi-obscuridade a altura ideal para atacar. Em pé e como autómatos tomamos as posições iniciais de fila indiana e a coluna retomou a marcha. Os cuidados agora redobravam-se. Era a etapa final, a curta etapa que precedia o ataque. As armas foram tomando nas mãos a posição adequada e os cuidados de progressão cingiram-se ao máximo.

De repente, inesperadamente, soa um tiro!... e foi o começo! Foi como que uma gigantesca trovoada então entoasse no silêncio da madrugada. As rajadas ouviam-se incessantemente; o matraquear da metralhadora pesada inimiga fazia-se destacar com as suas fortes detonações; os rebentamentos de granadas de “bazooka” e lança-“rockets” faziam-se aqui e acolá; o fogo era pleno… de parte a parte. A nossa reação, como que impelida por uma mola, foi imediata. Vi os soldados de dentes cerrados e feições crispadas apertarem com raiva os gatilhos, e trocarem os carregadores em movimentos nervosos mas calculados.

Foram 25 minutos de fogo cerrado e ininterrupto, e… embora lentamente, o inimigo foi cedendo… cedendo….

A peito descoberto e ainda debaixo de fogo, avançamos em “leque” em passos firmes e decididos na direção do refúgio inimigo que, entretanto, se põe em debandada, mas sem, no entanto deixar de atirar na nossa direção, com rajadas cada vez mais esporádicas e cada vez também mais distantes.

E o refúgio de Iracunda deu então lugar a gigantescas chamas que reduziram a cinzas aquela importante e estratégica base inimiga algures no Oio, zona de grande poderio e concentração inimiga.

O inimigo reagiu, e, de que maneira! Reagiu forte e decididamente!

Aliás foi o primeiro a atacar, pois tinha-se gorado o fator surpresa que contávamos, o que aliás acontecia em grande parte das vezes, e então emboscou-se aguardando a nossa aproximação.

O tal tiro era o sinal para abrir fogo.

Deram bem a noção da sua força, quer humana quer bélica. Tinham-nos também escapado, mas o seu tributo não tinha deixado de ali ser pago e de forma implacável: no chão, jaziam os corpos de três inimigos; três corpos despedaçados, por, presumivelmente, granadas das nossas “bazookas” ou dos nossos morteiros".

Foi uma terrível emboscada junto àquela base, e a atestar essa força, viu-se no que alguém da 566 nos disse já no regresso: “Eu já sabia que isto era assim, mas não convinha vos dizer”. Compreensivelmente aquiesci.

Depois do inimigo desbaratado e destruído completamente o seu refúgio, começamos a reagrupar as respetivas Secções. O intenso e demorado tiroteio tinha-nos tirado parte da lucidez e por momentos a malta viu-se desorganizada. O Capitão Riquito e o Alferes Castro tiveram mesmo que gritar para que a malta começasse a andar e ao mesmo tempo a reorganizar-se. As casas-de-mato mais importantes na Guiné (julgo) tinham também uma escola. A de Iracunda tinha a sua. Deu bem para ver. Os djubinhos das tabancas adjacentes não andavam ao Deus dará, não. Escola limpa, bem arrumada e asseada que indiciava muita disciplina e ordenação e que me ficou na retina.

Uma escola do PAIGC algures nas matas da Guiné. A que presenciei em Iracunda não fazia muita diferença no ordenamento, mas era mais simples e artesanal. Ao legítimo proprietário da foto a minha vénia pela reprodução aqui feita por mim.

Folhas de papel impressas, soltas (algumas podem ser vistas em reprodução de seguida) que recolhi para recordação (!!) que serviam para ensinar as crianças a escrever e a ler. As folhas que ensinavam o A E I O U e nas “entrelinhas” o incentivo ao combate aos colonialistas e à independência do povo nativo. Muito pedagógicas em todo o sentido.


Entretanto aqueles minutos de hesitação e desorganização permitiram ao inimigo o seu reagrupamento e o ensejo de fazerem ainda algum fogo bem dirigido àquilo que fora o seu refúgio e onde nos encontrávamos agora nós. Imediatamente ripostamos, embora que com poucas armas, pois estávamos desorganizados e até de algum modo desprevenidos. Ficamos a saber que era assim, quando o inimigo era desalojado reagrupava-se adiante umas dezenas de metros e agora disparava sobre os novos locatários do refúgio. Isto deveu-se mais à falta de experiência do que a outra coisa, pois se para o meu Grupo de combate era ainda o segundo contacto com o inimigo, para o 2.º Grupo era mesmo o primeiro. O inimigo “calou-se” então, se bem que tornasse a fazer-se ouvir através de tiros isolados e de muito longe, mais a querer dizer “até logo”. Começamos então a andar rumo à origem: Olossato.

Dada a resistência inimiga e às possibilidades de reagrupamento do mesmo, e uma vez que o nosso abandono do refúgio foi demorado, contávamos com emboscadas por o caminho. No entanto, e ao contrário do que era de supor, o inimigo não se emboscou, razão a que não foi alheia, concerteza, a impressão que lhe causamos com o destemido assalto ao refúgio ainda debaixo de fogo. E por vezes também haviam erros de cálculo. Talvez isto. Terá acontecido isso.

No regresso fomos queimando, sistematicamente, as tabancas e moranças que nos iam aparecendo, aliás como era habitual em análogas circunstâncias. Ao chegarmos a elas e como também invariavelmente acontecia, encontrávamo-las com um aspeto de recentemente abandonadas, portanto numa ação denunciadora de que ali habitavam terroristas ou pró-terroristas.

Completamente extenuados física e psicologicamente, chegamos junto do cruzamento, local, que como tinha ficado combinado, nos encontrávamos com as viaturas. Pousei o capacete no chão e deixei-me cair, deitando-me um pouco. Naquelas alturas que se lixe a guerra. O desgaste físico e psicológico fazia-nos olhar para o céu de forma absorta e descontraidamente. A segurança, se bem que em caso algum era de descuidar, não seria muito pertinente, pois estávamos muito perto do Olossato. E às vezes que se lixe a segurança também; queríamos era o chão para as costas e a lembrança: “Oh(!) Rui olha a nossa cervejinha à espera”, como me dizia muitas vezes no mato o meu amigo, Furriel também, o açoriano Vieira, falecido recentemente - paz à sua alma.

Iracunda tinha então ficado bem conhecida da 816. Chegados ao Olossato logo tratamos de regressar a Bissorã. Uma vez chegados aqui fomos logo “assaltados” por os colegas que ali tinham ficado, que nos “metralharam” com perguntas e mais perguntas, satisfazendo assim a sua curiosidade e o conhecimento de causa. Afinal a 816 tinha andado aos tiros pela primeira vez.

Compreensivelmente, fomos respondendo com maior ou menor humor, se bem que o que mais me apetecia era sentir o mais depressa possível a água a jorrar pelo corpo abaixo e de seguida abocanhar o gargalo de uma garrafa de cerveja bem fresquinha. Estas duas coisas (banho logo seguido de uma cerveja fresca ou, ao contrário, a maior parte das vezes - haja paciência!- era o nosso prazer e a nossa alegria quando chegávamos do mato. A operação “Outra vez”, que curiosamente até era a primeira para a 816, a Iracunda, marcou-me indelevelmente para sempre e porquê: Saraivada de fogo durante longos e longos minutos a abrir a nossa operacionalidade. Só em ficção e em filme tinha visto daquilo. Armamento atualizado e estratégia poderosa do lado do inimigo.

E carago(!), aquilo não era para brincar, vi que andava por ali muito quem me queria tirar o sarampo e sem me conhecer de lado nenhum e sem eu ter feito mal a alguém.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 – P10348: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (20): Um sapo com asas no Olossato

Guiné 63/74 - P10530: História da CCAÇ 2679 (54): Quatro tiros para o Pedro (José Manuel M. Dinis)

1. Mais uma história do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), desta vez contracenando com o seu amigo e camarada Pedro Nunes.


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (54)

QUATRO TIROS PARA O PEDRO

O final da comissão aproximava-se. Naturalmente, a nossa motivação estava toda direccionada para o regresso. Alguns já tinham passado maus bocados, não só do ponto de vista da ruideira e ansiedades da guerra, estrito senso, como também da guerra psicológica que era discricionariamente servida a uns e outros. O Pedro pertencera a este último grupo, desde que a companhia entrou em quadricula, e ele não se mostrou disponível para o negócio da gasolina. Foi tão perseguido e penalizado, que ninguém percebeu o louvor final que a "trika" lhe atribuiu. Alguma espécie de arrependimento? Teriam tido conhecimento das boas relações familiares do Pedro? Ou pura hipocrisia para compensar o elevado número de porradas que comprometiam a carreira do capitão?

Naquelas circunstâncias o Pedro, por vezes, mostrava-se alterado, exprimia a sua legítima revolta. Comigo mantinha bom relacionamento, pleno de camaradagem e solidariedade. Lembro-me de quando recebia queijos da metrópole, feito menino queque cortava as partes bolorentas, que o Pedro imediatamente agarrava e levava à boca, dando vivas à penicilina.

Um dia fui acordado muito cedo com uns traques na cara, e quando me dei conta, enquanto ele fugia pela porta, atirei-lhe uma bota que não atinou com a trajectória, e embateu suavemente na cara de outro camarada que também dormia. O Pedro escapou em frente à minha janela e ria-se com estrondo. Ele fazia a festa e lançava os foguetes.

O Pedro dormia no abrigo dos auto-rodas, mesmo ao fundo, onde havia segurança máxima. Mas era dos primeiros a acordar, pois todos os dias havia movimentação de viaturas para diferentes deslocações. Ao contrário, eu dormia quando não estava comprometido com saídas matinais. Por isso, um dia ou dois a seguir, o Pedro voltou a entrar no meu quarto a horas incertas da madrugada, aproximou-se da cama, e voltou a peidar-se na minha cara. Acordei com a detonação, muito a tempo de o ver a sumir-se no outro quarto ao lado, até atingir o alpendre da casa, e correr à frente da janela, enquanto ria alarvemente. Contava aos que por ali cirandavam a acção valente que empreendera. E já era pela segunda vez.

O sono não me permitia pensar em vinganças, mas, no íntimo, eu achava que a aleivosia ia sair-lhe cara. Ora, como diz o ditado, tantas vezes a bilha vai à fonte, até que parte. A cena ainda se repetiu para gáudio do Pedro, um sacana gabarolas, que depois se ragalava a contar e a fazer filmes que desmoronavam a minha reputação. Uma noite alguém me alertou ao deitar, para dormir em corrida, a ver se não era acordado com ataques já esperados, mas sempre surpreendentes. Fez-se luz. Peguei na minha namorada, pu-la em posição de tiro-a-tiro, e encostei-a à beira da janela que dava para o alpendre por onde ele se safava em busca de protecção, e na direcção dos espectadores que já granjeara, onde era aclamado, e se fazia a festa. Grande coiro! Ia pagá-las.

Fatal como o destino. Agora não me ocorre se já esperava por ele, se ele ainda me acordou. Lembro-me de que cumpriu o talentoso plano de me aterrorizar com flagelações, e fugiu pelo caminho do costume que já conhecia tão bem, e lhe conferia o êxito de que carecia para elevar o moral. Levantei-me. Peguei nela. Apontei-a para o exterior. E quando ele passou em correria esfuziante, puxei o gatilho uma vez. PUM! Puxei o gatilho outra vez. PUM! E ainda puxei o gatilho mais duas vezes. PUM! PUM! Os tiros foram para a parada onde não havia ninguém, direi que para uma altura que não atingia os pedestres, se lá houvesse.

Mas não houve festa. Antes, sucedeu um silêncio que muito apreciei. Como aquelas pausas na música, que lhes dão profundidade ou continuidade. O Pedro sentiu a morte a rondar-lhe. Logo argumentou que eu estava maluco, que não queria mais conversas comigo, e que eu era um perigoso assassino em potência. E, na verdade, passou cerca de 15 dias até voltar a falar-me. Mas à defesa. Sem confianças. Até que as relações voltaram ao normal, e hoje mantemos estima recíproca.

Semana de campo no Caniçal - Madeira > Pedro, Dinis, Gonçalves, Marino e Calvo

Bajocunda > Recepção aos piras

Piche > Rebenta-minas usado 

Piche > Oficina da ferrugem

Bajocunda > Crianças celebram as primeiras chuvas

Piche > Abrigo concluído pela ferrugem da 2679
Fotos de Pedro Nunes
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10517: História da CCAÇ 2679 (53): "Ataque" muito certeiro (Jose Manuel M. Dinis)

sábado, 13 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10529: Um artigo sobre o toque de "Silêncio" (José Martins)

1. Em mensagem do dia 9 de Outubro de 2012, o nosso camarada José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviou-nos este trabalho sobre o toque de Silêncio:


O toque de Silêncio 

Há dias, não muitos, recebi um mail do meu irmão mais novo que, sempre que encontra algo do género me envia. Apenso trazia o PPS intitulado Funeral Militar, com fundo musical de um clarim, [http://www.slideshare.net/amadeuw/toque-de-silncio-funeral-militar] e enviei-o aos editores do blogue, interrogando da possibilidade de o partilhar com a Tabanca Grande.
O nosso administrador sugeriu-me que pesquisasse o tema e o desenvolvesse. Aqui está o resultado.

A peça em questão e que pode ser visionado no link acima referido, esta referida como “Taps” que tem origem no termo holandês “Taptoe”, que significa, em tradução livre, “Fechar os botequins para que a tropa volte para os quartéis”.

Foto: Wikipédia (DR)

Voltando aos slides, eles contam um acontecimento ocorrido durante a Guerra Civil Americana ou Guerra da Secessão, que ocorreu entre 12 de Abril de 1861 e o dia 9 de Abril de 1865, entre os Estados Unidos da América e os Estados Confederados da América, também conhecidos como a União contra os Confederados, ou o Norte contra o Sul. Apesar de ter terminado o confronto em Abril, ainda houve escaramuças entre os militares de um lado e outro, sendo o último tiro sido dado e 22 de Junho desse ano. Estiveram envolvidos mais de 3.000.000, sendo cerca de dois terços da união, dividindo, inclusivamente, famílias, não só pelas ideias defendidas mas pela localização dos diversos membros da mesma.

Voltando ao acontecimento referido, de que não se conhece se é um facto que existiu ou se “tem contornos de lenda”, uma vez que várias versões foram encontradas.

Robert Elly, Capitão de Infantaria do Exército da União, durante a noite quando estava no seu posto de combate, ouviu gemidos vindo para além da sua linha de defesa. Desconhecendo quem se encontrava em sofrimento, rastejou, sob o fogo das armas que se fazia sentir, chegando junto do soldado que, já tenuemente, pedia ajuda. De imediato foi arrastando o militar ferido, até regressar às suas linhas, a fim de lhe prestar auxilio. Acontece que quando chega a local seguro, apercebe-se de que arrasta apenas o corpo de um militar já sem vida.

Levado para um local onde pudessem tentar identificar o soldado tombado, verificam pela farda que se trata de um soldado confederado mas, além desse facto, Elly constata que o corpo que se encontra sob o seu olhar, mais não é que o do seu filho, que tinha ido para uma cidade do sul estudar música. Não sabia que ele se tinha alistado nas tropas confederadas.

Pede, então, ao seu superior hierárquico que o autorize a fazer um funeral militar ao rapaz, apesar de ser um inimigo da União, permitindo uma guarda de honra e a presença de músicos no enterro.

É autorizado a utilizar uma pequena guarda de honra, mas quantos a músicos só dispensava um, deixando essa escolha ao pai desafortunado.


A escolha recaiu sobre um corneteiro, a quem o pai pediu que executasse, durante a cerimónia, algumas notas musicais, encontradas num papel no bolso da farda do filho.

Assim nasceu um “toque” que passou a ser usado, quer pela União quer pelos Confederados em funerais militares, sendo oficialmente reconhecido pelo exército dos Estados Unidos da América em 1874, passando o toque a ser executado, oficialmente, em todas as homenagens a militares falecidos a partir de 1891.

Executado apenas por um corneteiro, em conjunto com outros instrumentos de sopro e percussão, ou mesmo por uma orquestra sinfónica, a base do tema é sempre executada por uma trompete.

O toque é usado, segundo o que apurei, em muitas cerimónias militares de vários países, com algumas variações, mas tendo por base a versão original. Também foram adaptadas várias letras, ao tema, sendo um deles o seguinte:

O dia terminou. 
O sol se foi dos lagos, das colinas e do céu, 
tudo está bem,  descansa protegido. 
Deus está próximo.

A luz ténue obscurece a visão, 
e uma estrela embeleza o céu, 
brilhando luminosa. 
De longe, aproximando-se cai a noite.

Graças e louvores para os nossos dias. 
Debaixo do sol, 
debaixo das estrelas, 
debaixo do céu, 
enquanto caminhamos, isso nós sabemos.

Deus está próximo.

O Toque de Silêncio, assim como as Cerimónias fúnebres variam, de acordo com os resultados da pesquisa efectuado, de país para país, mas mantendo o “Toque de Silêncio” muita semelhança.

Em Portugal, não é habito a execução deste toque, em cerimónias fúnebres militares. Não tendo conseguido obter regulamento ou normas sobre o assunto, vamos basear-nos na observação directa destas cerimónias.

Há uma força, do ramo a que pertence o militar, que varia desde a secção ao pelotão, quando se trate de oficiais ou sargentos e praças. Aqui interessa realçar, já que esta patente não existia no nosso tempo, o Sargento-mor, apesar de pertencer à classe de sargentos, tem honras de oficial.

A força colocada à entrada do cemitério, presta honras à passagem do féretro na posição de “Funeral Armas”, enquanto o comandante faz “Continência”.

Pelotão de Infantaria - Salvas de Ordenança 
© Foto inserida no post 9804 [Aqui pretendia colocar fotos, de minha autoria, durante um funeral militar, mas não as localizei no arquivo].

Logo atrás do armão, segue um ou mais militares que transportam, numa almofada própria, as condecorações e o boné ou outra cobertura em uso.

O tempo do acto seguinte varia, um pouco, pelo que gostaríamos de ter encontrado documentos que revelassem a forma das mesmas.

O acto seguinte, e final pelo que a força destroça de imediato, é a “Salva de três disparos” que acontecem assim que o carro fúnebre entre no cemitério, ou no momento em que o corpo é depositado no jazigo ou desce à terra.

Após o “Toque de Recolher”, dando o sinal de que as tropas devem regressar ao quartel, é executado o “toque de silêncio” (ou era já, que muitas normas foram alteradas) após algum tempo, dando sinal de que o dia terminou e é tempo de descansar, até ao “Toque de Alvorada”. Este descanso só “pode/podia” ser interrompido por “algo extraordinário” que acontecesse, apesar de que muitos instrutores do nosso tempo, gostavam de proceder a “exercícios suplementares, em instrução extraordinária e, sobretudo, nocturna.

Em cerimónias militares, há sempre uma parte em que são Homenageados os Mortos em Combate, quer se esteja numa cerimónia junto a algum monumento que assinale esse facto, quer em paradas militares fora do ambiente de homenagem junto a algum monumento.

Nesse acto, e após colocação de flores na base do monumento, no caso de ser esse o motivo da concentração da força, é dada a voz de “Ombro Arma” e, nesta posição é executado o “toque de Silencio, querendo significar que “alguém” adormeceu na paz que não encontrou no combate que travou.

Com a força militar em posição de “Apresentar Armas” é executado o “Toque de Mortos em Combate”, acompanhado, ou não, por uma salva de artilharia de vinte e um tiros, seguindo-se um momento de silêncio.

Retomando a posição de “Ombro Arma” é executado o “Toque de Alvorada”, como um sinal de que é possível o reencontro com os camaradas que partiram e que, os que se mantêm em serviço, tudo farão para que o seu sacrifício não tenha sido em vão.

Toques militares – endereço (DR):
http://ultramar.terraweb.biz/Imagens/mocambique_ilidiocosta_toquesmilitares.htm

Toque de silêncio, com orquestra – endereço:
http://www.youtube.com/watch?v=fXS7bMh8vEA

José Marcelino Martins
8 de Outubro de 2012
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10490: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (3) (José Martins)

Guiné 63/74 - P10528: (Ex)citações (200): Pois que viva... o VAT 69! (Tony Borié / Luís Graça)



1. Mensagem do Tony Borié, um camarada luso-americano, a propósito de um comentário do editor L.G.  ao seu último poste, P10524:

Olá, Luis. Este poema (*), vai para o meu espólio de guerra. Já lá está. 

Que o Criador continue por muitos e longos anos a inspirar-te, e dar voz aos teus sentimentos, que são o de muitos milhares de antigos combatentes, felizmente ainda vivos, e que os podem ler, e ver neles a sua imagem reflectida. 

Estou um pouco longe do meu querido Portugal, já não uso o passaporte de Portugal, mas continuo a chorar ao ouvir o hino de Portugal e a sofrer ao lembrar-me na nossa vivência em África. 

Por favor, continua a dar vida à tua página na Internet, que é um grande motivo de coragem, e a voz de milhares de antigos combatentes. Talvez sem quereres, já fazes parte do património da história do nosso conflito com as antigas colónias de África. 

Um abraço do amigo, Tony Borié.

(*) Comentário de Luís Graça  ao poste P10524:

Tony, Ganda Cifra!... Pois que viva o Vat 69!... Ajudou-nos a (sobre)viver!... (Felizmente que eu nessa altura não era um homem... da saúde pública!). 

(...) Retenho ainda a imagem
Do nosso patético duelo
No bar de sargentos de Bambadinca,
Tendo por arma, letal,
Uma garrafa de VAT 69
(Ou era Jonhnie Walker ?
Ou White Horse,
a tal do cavalinho branco ?
Já não me lembro do rótulo,
Sei apenas que era scotch,
E do bom,
Daquele que vinha
From Scotland
For the Portuguese Armed Forces
With love!
)…

Um duelo de morte,
Gole a gole,
Até ao gole final,
Em menos de 15 minutos!...
Com árbitro e tudo,
Apostas a dinheiro,
Mirones e claques de apoio,
Como mandavam as regras
Dos apanhados do clima de Bambadinca!

Apanhados do clima, dizes bem,
Exaustos,
Usados e abusados,
Filhos de um Sísifo menor,
Condenados ao mais insano dos suplícios,
Uma guerra a que chamavam
De contra-guerrilha,
Uma guerra do gato e do rato…
Não, não, era a roleta russa,
Ninguém tinha pistolas de tambor,
Era o fado lusitano,
Era o fado da Guiné,

Meu camarada, meu amigo, meu irmão,
Era a nossa triste condição,
Era a nossa quiçá estúpida, mas viril, maneira
De matar… o tempo,
O tempo em tempo de guerra,
O tempo de espera entre uma e outra operação.
O tempo de espera que podia ser
Entre a vida e a morte.
Era a insanidade mental,
Era a raiva, traiçoeira,
Era a lucidez da loucura a tomar conta
De nós….

(...)

In Luís Graça > Blogpoesia > Elegia para um paisano.

2. Comentário do Tony Borié ao comentário do editor L.G.:

Olá, Luis:

O teu poema ao Vat 69 e outros" scotchs" é  um hino às horas que nós,  antigos combatentes, passávamos, nos intervalos da guerra, que sofremos no corpo e na alma!. Bem hajas. Nessas horas, éramos nós, oriundos da Europa, onde entre dois scotchs, dávamos largas aos nossos sentimentos, de amizade, abraços, amor ao próximo, esperando a paz dentro da guerra, e algumas chorávamos, lembrando o nosso recanto no Portugal, que o mapa colocou à beira mar plantado!. 

Nas minhas andanças pelo mundo, em alguns países, não havia Vat 69, e então olhava a garrafa e pedia um "cavalinho branco" [, White horse,] , como me sabia esse scotch, fechava os olhos e pensava no chão vermelho, no arame farpado, e no cheiro a camuflado sujo, roto e cheio de lama que via nos meus colegas secarem encostado ao meu mosquiteiro!. 

Não vou continuar, porque vou começar a ser piegas, e isso não é bom num antigo combatente!. Um abraço, Tony Borié.

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P10527: Agenda cultural (222): Tertúlias Fim do Império, Oeiras e Lisboa, calendário das sessões

CALENDÁRIO DAS TERTÚLIAS FIM DO IMPÉRIO EM OEIRAS E LISBOA



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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10521: Agenda cultural (221): Debate: "Que surpresas nos reservará a literatura da Guerra Colonial?", na Bertrand Dolce Vita Monumental (Lisboa), dia 16 de Outubro de 2012, pelas 18h00

Guiné 63/74 - P10526: Manuel Serôdio, ex-fur mil CCAÇ 1787 (Empada, Buba, Bissau, Quinhamel, 1967/68) (Parte II): Bula, Op Bolo Rei, uma grande operação de 15 dias, de 22/12/67 a 3/1/68: 40 mortos e 5 feridos confirmados e 14 capturados, do lado IN; 7 mortos e 32 feridos do lado das NT; recuperados 44 elementos pop





Guiné > Região do Cacheu > Bula >1967 >  Furriel Serôdio

Fotos: © Manuel Serôdio (2012). Todos os direitos reservados.
1. Continuação da publicação das memórias do Manuel Serôdio (*):


(i) A 4 do corrente, escreveu o Manuel Serôdio, de Rennes, França onde vive:

Amigo Luis, vejo que guardas conhecimento da língua Françêsa, vamos fazer um teste:  Je suis arrivé en France a 21 Aôut 1970, et j'ai depuis ce jour residence à Rennes, capitale de la Bretagne qui aujourd'hui compte près d'un million d'habtitants. (**)
Isto é uma pequena brincadeira, mas se lês a frase, não hà dúvidas que és um bom "francês",.,,,

Vou continuar a "escrita" possivelmente vou recomeçar certas passagens jà publicadas, mas assim vai tudo em "ordem". Queria responder a um comentário do Arménio Estorninho, mas ainda não percebi como enviá-lo. E PORTANTO ESTAMOS EM 2012. Um abraço amigo.

(ii) Resposta do nosso editor:

Salut le copain! Le français ? C' est ma première langue étrangère... Ton français écrit est de très bonne qualité... J'aimerais bien avoir beaucoup d'autres opportunités pour parler le français, une très belle langue latine!... Amitié. Luis

PS - Je viens de recevoir ton dernier message concernant l'histoire de ton unité militaire en Guinée... On la va publier.




2. Manuel Serôdio, ex-fur mil CCAÇ 1787 (Empada, Buba, Bissau, Quinhamel, 1967/68) (Parte II ):  Bula, Op Bolo Rei

Durante o período de permanência da Companhia em Bula, foi-lhe dado o treino operacional pela CCva 1693, tendo ficado posteriormente como Companhia de Intervenção do Comando Chefe.

1967


Novembro

Segurança aos trabalhos da estrada Bula-João Landim e estacionamento da engenharia.
Emboscadas 10
Escoltas a João Landim 09Patrulhas 03
Controle das populações 01


Dezembro

Proteção aos trabalhos da estrada Bula-João Landim e estacionamento da engenharia

Emboscadas 11
Escoltas a João Landim 05Patrulhas 03
Operações 07


OP "BARCAROLA"


1) Exploração da notícia que referia a existência de armas distribuidas pelo inimigo a elementos da tabanca de Biur.

2) Patrulhamento

3) Península de S. Vicente


4) 1 de Dezembro de 1967

5) Saída às 3 horas

6) CCça 1787, CCav 1693, 1 secção do pelotão de auto-metrelhadora ligeira 1106.

7) Efetuada uma rusga a Biur. Não foi confirmada a notícia.

OP "BOLOTA"

1) Coluna de reabastecimento.

2) Operação com a finalidade de escoltar uma coluna de reabastecimento a Binar e Biambe, e atuar ofensivamente com as forças de segurança sobre os elementos inimigos que tentassem atuar sobre a coluna.

3) Bula-Binar-Biambe
4) 4 de Dezembro de 1967

5) Saída pela 6,30 horas

6) CCaça 1787, CCva 1693, C. Art 1647, C. Art 1688, 1 secção do pelotão de auto metrelhadora ligeira 1106

7) Sem incidentes.


OP "BALUARTE BRANCO"

1) Exploração da notícia que referia a existência de um acampamento inimigo na península de Bissauzinho.

2) Ação ofensiva com a finalidade de destruir as instalações inimigas, aprisionar ou aniquilar elementos inimigos e capturar material e documentos.

3) Bissauzinho.


4) 9 de Dezembro de 1967

5) Saída pelas 12,30horas

6) 1 grupo de combate da CCaç 1787, CCav 1693, CArt 1647, CCav 1747, 1 secção do pelotão de Milícias 126.

7) As nossas tropas foram emboscadas pelo inimigo com lança-roquetes e metralhadoras ligeiras. À reação pronta e rápida das nossas tropas, o inimigo retirou com baixas prováveis. As nossas tropas sofreram 1 morto e 3 feridos graves. Foi batida a área, sem mais contactos.



OP "BARBA AZUL"

1) Detetar movimentos inimigos na região

2) Rede de emboscadas conjugadas com um patrulhamento ofensivo, com a finalidade se aniquilar ou prender os elementos inimigos que se revelassem, capturar material, documentos, e prender elementos suspeitos.

3) Região de Capafá, Bipo Delta, e Boté.


4) 14 de Dezembro de 1967

5) Saída pelas 22 horas

6) CCaç 1787, CCav 1693

7) Não houve contato.


OP "BOLETIM"

1) Coluna de reabastecimento

2) Operação com a finalidade de escoltar uma coluna de reabastecimento a Biambe, e atuar ofensivamente com as forças de segurança sobre os elemntos inimigos que tentassem atuar sobre a coluna.

3) Bula-Biambe

4) 18 de Dezembro de 1967

5) Saída pelas 8 horas

6) CCaç 1787, CCav 1693, CArt 1647, CArt 1648

7) Não houve contato.


OP "BENVINDO"

1) Coluna de reabastecimento

2) Operação com a finalidade de escoltar uma coluna de reabastecimento a Binar, e atuar ofensivamente com as forças de segurança sobre os elementos inimigos que tentassem atuar sobre a coluna.

3) Bula-Binar


4) 20 de Dezembro de 1967

5) Saída pelas 5 horas

6) CCaç 1787, CCav 1693, CArt 1647

7) Foram avistados por 1 grupo de combate da Companhia 1787, 8 elementos inimigos que fugiram ao serem detetados. 1 grupo de combate da Companhia 1693 avistou 3 elementos que fugiram sob o fogo das nossas tropas. 


Cerca das 12 horas voltaram a ser detetados 8 elementos inimigos, incluindo 2 brancos, que se furtaram ao contacto. 1 grupo de combate da Companhia 1647 foi flagelado por um grupo inimigo com morteiros, lança-roquetes e armas automáticas. 1 grupo de combate saiu de Binar em perseguição do inimigo até Poncho, causando baixas prováveis. Sem consequências para as nossas tropas.


OP "BOLO REI"

1) Missão: combater a atividade inimiga no setor.

2) Batida através de patrulhamento, golpes de mão e emboscadas.

3) Zona de ação: região norte do setor

4) Data de início: 22 de Dezembro de 1967

5) Duração: 15 dias

6) Forças intervenientes: CCaça 1787, 1788, 1801, CCav 1747, 1650, CArt 1746, 1648, 1647, 1802, e três  pelotões de rtilharia do BAC 1;


23 de Dezembro de 1967

Forças das companhias 1787 e 1788 que patrulhavam a trgião a sul de Bipo, foram emboscadas por 1 grupo inimigo. Â pronta reação das nossas tropas, o inimigo retirou com baixas prováveis. As nossas tropas sofreram 1 morto e 7 feridos. Neste contato, a companhi sofreu o seu primeiro morto e 5 feridos, dois deles graves.


31 de Dezembro de 1967

Apoiadas pela força aérea e pela artilharia, as CCaç 1787 e 1788 conseguiram entrar no acampaento inimigo de Choquemone, tendo capturado diverso material e destruído as instalações inimigas.


03 de Janeiro de 1968

As CCaç 1787 e 1788 efetuarm um cerco às tabancas da península de S. Vicente, tendo detido 83 elementos da população. Posteriormente, após interrogatório, verificou-se que 2, eram elementos inimigos.


Conclusões: 

Como reflexo da operação "BOLO REI", e até ao fim do mês de Janeiro de 1968, apresentaram-se 124 elementos da população de áreas anteriormente controladas pelo inimigo.

Durante a operação o inimigo sofreu 40 mortos e 5 feridos confirmados, e 14 capturados. As nossas tropas sofreram 7 mortos e 32 feridos. Foram recuperados 44 elementos da população.

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10474: Manuel Serôdio, ex-fur mil CCAÇ 1787 (Empada, Buba, Bissau, Quinhamel, 1967/68) (Parte I): De Oliveira de Azemeis a Bula e Empada

(**) Cheguei a França em 21 de agowto de 1970 e desde então tenho residência em Rennes, a capital de região da Bretanha, que hoje conta com cerca de um milhão de habitantes.

(**) Viva, companheiro! O francês é a minha primeira língua estrangeira.  O teu francês escrito é ótimo... Pessoalmente gostaria de ter muito mais oportunidades de falar esta bela língua latina... Com a amizade do Luís

PS -  Acabo de  receber a tua última mensagem, respeitante à história da tua companhia...  Vamos publicar esse material.

Guiné 63/74 - P10525: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (1): Uma história do artilheiro de Gadamael, à beira da peluda, no 'bem-bom' de São Domingos...




Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > O alf mil art Vasco Pires, ex-alf Mil, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72), nos últimos meses da sua comissão no 'resort' de São Domingos...

Foto:  © Vasco Pires (2012),. Todos os direitos reservados [Editada por L.G.]

1. Mensagem do nosso grã-tabanqueiro Vasco Pires,  tuga da diáspora, a viver no Brasil:

Caros Luis Graça e Carlos Esteves Vinhal,
Cordiais Saudações.
Estou em dívida com o blogue, pois ainda não enviei foto dos tempos da Guiné (*). 

Como eu disse em mensagem anterior, pedi a um parente para procurar essas fotos nos meus pertences que estão em São Paulo, contudo, teve que ausentar-se da cidade, e não pode ainda procurá-las. Me cedeu a foto, que vai anexa, que estava num álbum em seu poder.

Dita foto, acredito eu, é da fase final da minha comissão, três ou quatro meses que passei em São Domingos, na altura sede de um Batalhão de Infantaria (lamentavelmente não lembro o nome do oficial que dirige o jipe). 

Nós,  de rendição individual, por vezes tínhamos que esperar substituto, que normalmente tardava. Ao fim de mais de vinte meses de comissão, a maior parte deles passada em Gadamael, mandaram-me para São Domingos. 

A atividade operacional da artilharia em São Domingos era nula, assim quando cheguei, falei para os Furrieis, que a minha comissão tinha terminado (21 meses), mas faltava o substituto. Eram excelentes profissionais, tomaram conta do Pelotão e respeitaram a minha "aposentadoria" e,  como eu pedi, só me chamariam quando houvesse algum problema, o que nunca aconteceu. 

A minha atividade principal era jogar bridge, o Comandante do Batalhão, um Coronel à beira da reforma, era o mais entusiasta.

Chegados os 24 meses, pedi para o Tenente-Coronel,  2° Comandante, no exercício temporário do Comando do Batalhão de Infantaria, que me liberasse pois a minha hora de voltar já tardava, o que não aconteceu; dizia ele que só me liberaria com a chegada do meu substituto, sendo em vão os meus argumentos de que o Pelotão tinha dois excelentes Furrieis experimentados. 

O máximo que consegui foi autorização para ir a Bissau para ver se conseguia um substituto. Ao chegar ao GAC 7 (ou já seria GA 7?), fui-me apresentar ao Comandante, que acredito era o Coronel Cirne Correia Pacheco, que me recebeu cordialmente, e logo disse que ia mandar-me para casa, ao que eu retorqui:
- Infelizmente, não vai ser possível, porque o nosso Tenente-Coronel disse que é ele que manda, e não vai autorizar.

Vi que tinham sido "santas palavras", pois ele limitou-se a dizer 
- Ah é, ele disse que é ele quem manda ?!
- Sim,  senhor, meu Comandante - ousei dizer. 

Imediatamente ordenou a quem de direito provedenciar os meus papéis.

 Estava eu na sala de espera do Aeroporto de Bissau, quando vejo entrar o Comandante do GAC 7 [ou melhor, GA 7], dirigiu-se a mim e ao meu amigo, na altura Alferes Vinagre de Almeida, que também estava voltando, e depois de responder à nossa saudação, dirigiu-se a mim e disse em tom solene:
- Infelizmente o nosso Tenente-Coronel é quem manda e você tem que voltar!!!

Provavelmente viu que eu tinha mudado de cor, e logo emendou:
- Brincadeira, vim aqui para agradecer, e desejar boa sorte para vocês dois. 

Caro Carlos Vinhal, cá vai uma "estória" ou "causo", como falam aqui no Brasil, da nossa guerra, conforme você pediu na minha apresentação.

forte abraço, VP  [, foto atual à direita].


PS - Caros Amigos Luis Graça/Carlos Vinhal,

Ontem enviei um e-mail, e, procurando no fundo do "baú de recordações", sobre a fase final da minha comissão em São Domingos, disse que no começo de 72, era sede de um Batalhão de infantaria, ou seria um Batalhão de cavalaria?

Desculpem a minha falha mas, como disse anteriormente, saí de Portugal ainda em 72, e a Artilharia na Guiné era de rendição individual, e somente oficiais , sargentos e especialistas, pois praças e cabos eram da guarnição local. Então os contactos com os camaradas se perderam facilmente, e as memórias foram ficando mais diluídas.
forte abraço, VP


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Nota do editor:

(*) 27 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10443: Tabanca Grande (362): Vasco Pires, ex-Alf Mil, CMDT do 23.º Pel Art.ª (Gadamael, 1970/72)

Guiné 63/74 - P10524: Do Ninho D'Águia até África (17): Meia Missão, em África (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (17)

Meia Missão, em África

O dia, como costume, estava quente e abafado. Fez um ano que o Cifra desembarcou em África e esteve no tal acampamento, junto ao cais de desembarque.

Já não é um “periquito”, novato, é um veterano, já pode dar conselhos aos mais novos. É um posto, como se diz na zona de guerra.

Chamou o Setúbal, que como já sabem foi baptizado com este nome porque o principal era Jeremias e não dava muito jeito a pronunciar, mais o Curvas, alto e refilão, e disse:
- Como já devem saber, faço um ano de guerra, vamos festejá-lo? - Ao que o Setúbal logo respondeu.
- Fazes não, fazemos, pois viemos no mesmo barco. Não te lembras?.

Era verdade, embora colocados em unidades diferentes.

Foram buscar uma garrafa de Vat 69, sentaram-se os três debaixo da enorme Mangueira, que por sinal tinha sido baptizada com o seu nome, junto das gaiolas dos macacos e periquitos, abriram-na e atiraram com a rolha para longe, sinal de que não precisavam mais dela.

Acordaram umas horas depois, com os macacos a olharem para eles, umas vezes com a cara de lado, outras vezes emitindo grunhidos de angústia, dando voltas na gaiola, tentando abri-la, talvez para acordar os donos que os tratavam e lhe davam algum carinho.

Ao outro dia pela manhã, o Cifra, tinha umas fortes dores na cabeça e,  ao vestir os calções, desequilibrou-se e rasgou-os um pouco mais. Era normal, pois a roupa já estava bastante coçada, as botas gastas, e no comando diziam que só tinha direito a roupa nova quem a perdesse em combate ou coisa parecida, mas como o Cifra não andava em combate, não tinha direito a roupa nova.

Aqui funcionava o tráfico de influências. Os mais velhos trocavam duas camisas ou uma camisa e dez maços de cigarros por uns calções, com os mais novos, pois camisa é coisa que poucos usavam. Nessa altura, a mais importante pessoa
 passou a ser o sargento da arrecadação, onde não existia arrecadação nenhuma.

O Cifra falou com ele, pois os seus calções estavam rotos. E disse-lhe com cara de mau:
- Estou farto de calções rotos desde criança.

O sargento, com paciência, responde-lhe:
- Só se estiverem mesmo rotos e já não se possam usar.

O Cifra, nesse preciso momento, tira os calções do corpo, rasga-os ao meio e diz:
- Aqui está a prova.

Regressa nu ao centro cripto, pois há muito que não usava roupa interior. O caso correu fama e andou de boca em boca no aquartelamento.

Passado uns dias o Cifra tinha dois pares de calções novos. A partir desse momento foi colocada uma folha no refeitório, para colocarem o nome para que cada caso fosse analisado.

Os calções que foram distribuídos ao Cifra eram da cor verde azeitona e as camisas que algumas vezes usava eram amarelas, portanto, quando se vestia de roupa lavada, principalmente ao domingo, com calções verde azeitona e camisa amarela, tinha um aspecto de tropa diferente. O Curvas, alto e refilão, quando o via assim vestido, dizia:
- Tu não és nem nunca foste um militar. Tu és tropa fandanga! Não sei o que é que vocês aqui fazem. Vocês dizem que são cifras, vocês são mas é uma “granda merda”. Na altura em que andamos em patrulha, temos emboscadas, ou quando vamos em operações de destruição das bases das tuas amigas guerrilheiras, (falava sempre nelas), olho para o lado, e nunca te lá vi.

Era assim o homem, e o melhor era não lhe responder, pois o vocabulário ia estender-se, e como por vezes não andava o Trinta e Seis por perto...

Mas no fundo o Curvas, não era má pessoa, tinha tido uma juventude de sofrimento, sem carinho e nunca teve ninguém que lhe perguntasse alguma vez se tinha fome, se tinha frio e precisava de roupa, ou se tinha dores em qualquer parte do corpo, neste momento  devia ser o militar mais bem preparado para a guerra, que se encontrava no aquartelamento, era um autêntico “survivor”, necessitava somente de compreensão de alguém como o Trinta e Seis, a quem ele obedecia, sem refilar.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10504: Do Ninho D'Águia até África (16): As notícias (Tony Borié)