segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10623: Efemérides (112): Cerimónias do 94.º aniversário do Dia do Armistício, 89.º aniversário do Dia da Liga dos Combatentes e 38.º aniversário do Fim da Guerra Colonial, e convívio do S. Martinho do Combatente, dia 17 de Novembro de 2012 em Matosinhos (Carlos Vinhal)

1. A pedido no Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes, levamos ao conhecimento dos nossos camaradas o Convite para as cerimónias constantes do programa e Magusto na Sede do Núcleo, a levar a efeito no próximo dia 17 de Novembro de 2012.
A Cerimónia, obviamente, e o Magusto são abertos a todos os ex-combatentes e seus familiares, sejam ou não sócios da Liga.

C O N V I T E

PROGRAMA PARA A CERIMÓNIA DO 94º ANIVERSÁRIO DO DIA DO ARMISTÍCIO, 89º ANIVERSÁRIO DO DIA DA LIGA DOS COMBATENTES E 38º ANIVERSÁRIO DO FIM DA GUERRA DO ULTRAMAR

A Direcção do Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes tem a honra de convidar V. Exa., seus familiares e amigos para a cerimónia em epígrafe, que terá lugar no próximo dia 17 de Novembro (Sábado) e que será presidida pelo Sr. Presidente da Junta de Freguesia de Matosinhos, Dr. António Parada, com o seguinte programa: 

-10H30 - Concentração em frente ao edifício da Junta de Freguesia de Matosinhos.

-10H35 - Içar da Bandeira Nacional na Junta de Freguesia.

- 10H40 - Sessão solene no Salão Nobre da Junta:
- Alocução por um ex-Combatente do Ultramar;
- Alocução pelo Presidente do Núcleo da Liga dos Combatentes de Matosinhos;
- Alocução pelo Presidente da Junta;
- Condecoração de ex-combatentes com a Medalha Comemorativa das Campanhas;
- Entrega de Testemunho de Apreço;
- “Testemunho de um Combatente”, pelo Professor Luís de Almeida.

11H30-Cerimónia militar no Cemitério de Matosinhos (Sendim) – Talhão Militar da Liga dos Combatentes (Presentes Porta-Guião da Liga dos Combatentes, Força Militar da EPT e Terno de Clarins com Caixa de Guerra do RA5):
- Deposição de coroa de flores no Talhão Militar, seguido de 1 minuto de silêncio e leitura de prece;
- Terno de Clarins executa Toque de Homenagem aos Mortos;
- Hino Nacional;
- Fim da cerimónia.

12H45 - S. Martinho do Combatente – magusto de confraternização na Sede do Núcleo. 

- Solicita-se pré-inscrição para o magusto do número de presenças, até ao dia 12NOV (2ª Feira), através dos contactos abaixo mencionados;

- Sócios €3,00, n/ sócios €4,00 (caldo verde, fêveras, castanhas, vinho, doce e café).

Sem outro assunto de momento, com elevada estima e consideração.
Matosinhos, 17 de Outubro de 2012

O PRESIDENTE
Armando José Ribeiro da Costa
Tenente Coronel

Nota: -  A Sede do Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes situa-se na Avenida Rodrigues Vieira, 80 - a 250 metros da Estação do Metro do Araújo (Leça do Balio) - na antiga Escola Primária do Araújo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10562: Efemérides (111): 3 de Outubro de 1968 - Já lá vão 44 anos desde que deixei Lisboa a caminho de Bissau (Carlos Pinheiro)

Guiné 63/74 - P10622: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte I)


Lisboa > Hospital Militar Principal > 1968 > "Rigoroso", diz hoje o Armando Pires, na altura um aplicado "estudante" de enfermagem…


Foto (e legenda): © Armando Pires (2012). Todos os direitos reservados.


1. Segundo poste da série, dfe acordo com o texto enviado em 3 do corrente pelo Armando Pires (ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70)

Meu Caro Luís Graça, Camarada:

Com o atraso que as circunstâncias impuseram, mas que a atempada justificação há-de ter relevado, envio o segundo texto da série "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".

Com este relato, permite-me que queira homenagear o Doutor Chaves Ferreira e o Engenheiro Agrónomo João Pimenta, meus amigos na Guiné e meus amigos na vida que a eles faltou tão cedo e de forma tão trágica.


2. Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre. 


“…poderás contar a tua experiência como militar, muito mais, como elemento do Serviço de Saúde do Exército Português, que tinha na nossa guerra uma função ímpar junto da população nativa. Tens que nos contar tudo.” 


Carlos Vinhal, em comentário ao P4778 [, poste de 4 de agosto de 2009, em que foi apresentado à Tabanca Grande]


- Então doutor, o puto safa-se?

Não me respondeu. Limitou-se a olhar-me assim como quem diz “vamos ver”, e a dizer-me com um sorriso benevolente:
- Vá lá dormir que você está com cara de quem precisa de descansar.

Voltei-me e dei de caras com a mulher mandinga, sentada junto à porta da enfermaria. O cansaço deixara-lhe os olhos raiados de sangue, o rosto era todo ele a máscara do desespero. Só agora reparava que nunca lhe vira, em toda a noite, verter uma lágrima. Parecia perguntar-me, “onde está o meu filho?”, “vais-te embora e deixa-lo ficar aqui?”, “não me dizes nada?”, e eu procurei dizer sem saber o que dizer. Com um sorriso, talvez meio idiota talvez meio confiante, pedi-lhe que tivesse calma, que o filho estava vivo e que os doutores iam tratar dele para que o pudesse levar de volta a casa.

A mulher mandinga não percebeu uma palavra do que lhe disse mas deixei alguém para lhe traduzir.

Fora uma longa e terrível noite, aquela porque passámos.

Saí do Hospital Civil de Bissau, rua fora em direcção ao Grande Hotel onde o Santos, o furriel vagomestre que ficara a tratar dos assuntos do nosso Batalhão, recebera um pedido meu de ali reservar um quarto, sempre que via rádio lhe dissessem que eu vinha à cidade.

O cansaço não permitiu que despisse, sequer, o camuflado.  Deixei-me cair sobre a cama desfrutando da tremenda paz interior que sentia.

Conseguimos!... Saíra de Lisboa lançando a mim próprio um desafio. Não deixar que se perdesse uma vida até à chegada do socorro. Desafio tonto, arriscado e insensato, sem dúvida, mas resultado da brutal bofetada que a minha consciência levara, num certo fim de tarde, no Hospital Militar Principal.

Eu nunca fui enfermeiro. A colocação de um penso rápido deve ter sido o que me deixou mais próximo dessa actividade. Quando o Luís Graça me sugeriu como titulo para esta série, “Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista” (*), aceitei não por ser uma marca distintiva de mim mas, como escreveu o poeta, por as coisas andarem todas ligadas.

Ribatejano sim, nasci em Santarém. Fadista, aceito na medida em que, naquele tempo e sem modéstia nenhuma, não era nada mau a cantar. Enfermeiro, só o fui por ser ribatejano e fadista.

Quando chegou a hora de assentar praça, Janeiro de 67, o meu destino era a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Mão invisível desviou-me a trajectória para o Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha. Havia muita gente que não se conformava com a ideia de que a disciplina e as regras militares lhes roubasse “o artista”.

Assim, longe da vista,  Caldas com ele. Foram três meses dedicados à tropa e à noite.

Finda a recruta, o comboio levou-me para Tavira, onde no CISMI seria preparado para a especialidade de atirador. As saudades das amigas e dos amigos, da noite e do fado, que estavam a 380 Kms de distância, tornaram devastadora aquela primeira semana ali metido.

Chega segunda-feira e entra um gajo a segredar-nos que conseguira uma cunha do caraças, que ia dar baixa ao hospital, que ia para Lisboa e etc., provocação suficiente para pôr em marcha toda a minha capacidade inventiva.

Acontece que numa certa tarde de domingo, na praça de touros da Figueira da Foz, a promessa de forcado que eu era,  levou um encontrão de um touro que lhe deixou fortes mazelas nas 3ª e 5ª vértebras lombares. Morreu ali o forcado mas eu ganhara um motivo para, tempos depois, gritar ao alferes que comandava a marcha naquela manhã de segunda-feira, por entre gemidos e ais, que a minha coluna claudicara.

Vim nessa tarde para Lisboa, de ambulância, de baixa ao hospital militar. Deixemos de lado a parte da medicina e vamos à hora das decisões. Que fazer depois da alta? Para onde ir?

Se forem à minha “carta de apresentação” aqui na Tabanca, vão lá encontrar escrita esta parte da história que decidiu o meu futuro militar.

À entrada do Parque Mayer havia um bar (ainda lá se veem as ruínas) chamado Dominó, ponto de encontro e de partida para o que de melhor a noite tinha para nos oferecer. Numa dessas noites, foi ali que uma amiga me disse que tinha uma amiga que, por sua vez, tinha um amigo que trabalhava nos serviços mecanográficos do exército. Na noite seguinte, juntámo-nos os quatro à mesa e ele perguntou o que pretendia eu.
- Ficar em Lisboa, pá. Quero ficar aqui, vê lá o que se arranja. Trabalho na rádio, talvez possa ir para foto-cine.

Diz-me que em Lisboa só dava para enfermeiro.
- Que se lixe, pá. Eu quero é ficar aqui.

E foi assim, ficando as coisas todas ligadas, que nasceu o “furriel enfermeiro, ribatejano e fadista”. Três meses de displicentes presenças nas aulas teóricas de enfermagem a que se seguiram mais três meses de estágio, passados nas diversas enfermarias do Hospital Militar.

Acabara o meu turno de entrar de serviço às urgências, ali pelas seis da tarde, quando chega, de ambulância, um jovem cadete da Academia Militar. Foi-lhe diagnosticada uma peritonite aguda e enviado de imediato para o bloco operatório. O sargento-enfermeiro de dia recebeu ordens do médico cirurgião para preparar os estagiários, afim de seguirem a intervenção.

Começa a cirurgia e nós a vermos. Subitamente, através daquela abertura que fizera no abdómen do doente, o médico retira algo com mão, olha para mim, que a curiosidade levara a ficar à frente, e pergunta:
- O que é isto?

O puto ignorante mas atrevido que eu era, responde sem balbuciar:
- É o fígado, senhor doutor.

Julguei perceber-lhe um esgar por detrás da máscara ao mesmo tempo que o ouvi gritar para não sei quem.
- Tirem-me imediatamente daqui estes gajos.

Eramos quatro estagiários. Fomos levados para um gabinete onde permanecemos, possuídos de um terror tal que nos impedia, sequer, de trocar uma palavra que fosse. Até que, uma eternidade depois, dentro de uma bata de um branco imaculado, onde o negro e dourado dos galões de major ganhavam ainda mais peso, chegou o cirurgião.

De pé e silêncio. Os traços tensos do seu rosto não deixavam margem para duvidar do que ali o levava.  O que nos disse sobre a nossa irresponsabilidade, só eu sei.  Enquanto perguntava se sabíamos o que de nós esperavam milhares de homens lá na guerra, procurava o adjectivo capaz de melhor ferir a nossa consciência.
- Quanto estiverem lá no mato e um homem tombar às balas, julgam que alguém vai perguntar onde está a mãe dele?  Não, meninos, o que vão ouvir é alguém gritar, 'Enfermeiro à frente!'. E vocês fazem o quê? Julgam que têm à mão um hospital como este? Se o homem morrer porque não foram capazes de o manter vivo até chegar ao médico, o que vão dizer aos vossos camaradas? E à família, vão ser capazes de a enfrentar?

Não perguntei, não soube e ainda não sei, se os meus três camaradas ali presentes eram tão ignorantes como eu ou se apenas levaram uma enorme piçada por minha culpa.  Sei que aquilo me deixou de rastos. Eu não sabia se alguma vez iria para o mato, mas aquelas palavras, tão duras, acabaram por fazer de mim um enfermeiro militar. Os meses seguintes passei-os de enfermaria em enfermaria, a ver, a perguntar e a aprender.

Até que chegou Setembro de 68. Foi-me entregue uma guia de marcha para Chaves, onde iria integrar um Batalhão de Caçadores com destino à Guiné. Foi nesse mesmo dia que me desafiei:
- Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre.

Desafio tonto, arriscado e insensato. Sem dúvida.  Mas eu, aos vinte anos, queria lá saber disso.

(Continua)
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 9 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10354: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (1): A estreia de um fadista ou a desesperança do Esperança, no EREC 2454, do cap cav Manuel Monge

Guiné 63/74 - P10621: Notas de leitura (426): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo à narrativa do meu serviço cívico na Guiné, nos idos de 1991.
Ao acabar este relato sinto que o meu entusiasmo não foi em vão, mesmo com resultados totalmente inúteis. A ascensão do multipartidarismo parecia uma embriaguez social, refazia-se o imaginário dos dias melhores à volta de slogans; muitos daqueles técnicos e dirigentes com quem eu privava, anunciavam a saída do PAIGC, na esperança de que novas propostas trouxessem paz e dignidade à Guiné. A visita a Bolama encheu-me de uma tristeza sem limites, com a agravante de estar ali bem registada a presença portuguesa, mas era como esta acompanhasse a derrocada da velha capital.

Agora rasgo os últimos papéis desse serviço cívico, o filtro da memória foi passado a escrito, aqui no blogue.

Um abraço do
Mário


O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (3) 

Beja Santos 

As últimas três semanas deste serviço cívico irão estender-se até 21 de Dezembro, o projeto da criação da unidade de defesa do consumidor foi debatido a nível de vários ministérios, todos concordaram com o esquema proposto. Havia que tomar decisões quanto à coordenadora, a minha escolha recaiu em definitivo na Dr.ª Ana Pereira. Fui apresentá-la aos diferentes serviços, na maioria dos casos, fosse de manhã fosse de tarde, não era possível encontrar o técnico ou o dirigente em apreço porque não estava e não se sabia a hora que vinha, porque tinha seguido em viagem, e não se sabia a dimensão da viagem, ausentara-se para ir a um choro, ou fora às finanças, esteja descansado que ele entra em contacto consigo imediatamente… e o imediatamente eternizava-se, seja como for, deixavam-se os documentos para a análise do técnico ou dirigente e pedia-se a sua tramitação para o decisor político. No papel e nas intenções, em meados de Dezembro, quando chegou o ministro do Ambiente de Portugal, já existia a defesa do consumidor da Guiné. O ministro chegou e teve a deferência de me ouvir ou particular. Depois partiu para Bubaque mas com encontro marcado para no dia do regresso, ao fim da tarde, ajustar com o ministro do Ambiente e dos Recursos Naturais e da Indústria a oferta de cooperação: o governo da Guiné-Bissau daria um sinal de querer ver institucionalizada uma política defesa do consumidor, bastava um despacho governamental; em segundo lugar, havia que mostrar interesse pela legislação elementar, o controlo e inspeção de alimentos era um bom pretexto, era mesmo uma exigência da FAO que subordinava tal medida à continuação de apoios; subscrever-se-ia até final de Janeiro um protocolo de cooperação com financiamento garantido para o funcionamento da Comissão Interministerial de Defesa do Consumidor, duas bolsas de estudo para investigadores do INEP terem condições de estudarem a fundo duas problemáticas com interesse relevante para o consumidor guineense; e abria-se os cordões à bolsa para apoiar uma campanha na comunicação social, contribuir para os programas televisivos e, não menos importante, a realização de dois seminários em Bissau, para formadores. Quando a reunião acabou entre os dois ministros, a que também assisti, havia um estado de anuência absoluta ao que a parte portuguesa sugeria, o senhor ministro de Portugal que não tivesse mais cuidados. Eu desconfiava da fartura, havia para ali descontração a mais. Numa reunião com a representante da FAO vi esta esbaforida a gritar com o diretor com o Laboratório Nacional de Saúde Pública, há dois anos que estava prometido um projeto-lei para o controlo e inspeção dos géneros alimentícios, a representante parecia apoplética, ameaçava mesmo em ir-se embora e pedir à FAO para negar doravante qualquer tipo de apoio. Outro sinal lastimável foi da suspensão do programa televisivo, o senhor secretário de Estado dos Recursos Naturais prometera à tv local um qualquer patrocínio para “1 Milhão de Consumidores”, os programas eram exibidos e o patrocínio não chegava, a tv local não esteve para meias medidas, suspendeu o programa até haver apoio financeiro, este nunca mais apareceu, morria à nascença este projeto que eu tanto acalentara.

O tempo estava mais ameno, chegara a época seca com um calor de 26 a 27 graus, com uma aragem benfazeja ao fim da tarde. Os meus serões eram passados invariavelmente à secretária, no espaço que a CICER me reservara, a papelada lá seguia meticulosamente para o trabalho e para os jornais onde eu colaborava. Já tinha na cabeça os voos, para orientar o meu correio: os voos Bissau – Lisboa partiam na manhã de terça-feira e na madrugada de sábado, portanto, e a título exemplificativo eu metia a carta no correio, durante a manhã de sábado com a quase garantia de que as cartas podiam chegar ao destinatário a partir de quarta-feira à tarde. Eu dependia, em termos logísticos de uma unidade denominada CITA – Centro de Investigação e Tecnologia Aplicada, um serviço realista que respondia pelos pesos e medidas, pela normalização e outras áreas de grande importância, passeava-me por aquelas salas, tudo me parecia surrealista, não havia instrumentos, não havia laboratórios, ou o que havia eram equipamentos do tempo da Maria Cachucha, os próprios técnicos se queixavam amargamente daquele logro, o pior de tudo eram os salários permanentemente em atraso.

É também um tempo de recordações indeléveis. Benício Costa tinha conseguido que um dirigente me desse guarida em Bolama, na ausência de qualquer unidade hoteleira, nem uma pensão existia. Parti sexta-feira ao fim da manhã, a aproximação à ilha de Bolama permite ver toda a sua beleza, pus pé em terra e dei com aquele pedregulho monumental que Benito Mussolini ofereceu à cidade de Bolama em memória de uns pilotos que ali morreram num acidente aéreo; era já uma cidade em escombros, parei em frente do Hotel do Turismo, já só restava parte da fachada, vai-se deambulando por um cenário fantasmagórico, fica a percepção que terá sido uma capital com certo espírito cosmopolita, mas a indiferença levara à ruína de tudo, mesmo assim era o Palácio do Governador o edifício mais apresentável. Só tinha direito a guarida, andei errante à procura de um local onde pudesse comer, tive sorte com uma organização que andava a fazer reparações navais, propuseram-me que eu fizesse ali as refeições, incluindo o pequeno-almoço. Aliviado por ter resolvido esta necessidade fundamental, pedi ajuda para percorrer Bolama. Encontrei um voluntário que de bom grado tudo me mostrou: as antigas praias onde os equipamentos jaziam desfeitos; visitei a tipografia de Bolama que tanto me comoveu, tanto ou mais que calcorrear aquelas ruas com nomes sonantes da I República. Regressei domingo à tarde, fomo-nos afastando lentamente porque toda a baia está assoreada, a embarcação anda por ali a vaguear para evitar ficar metida na areia, é uma vista esplêndida, Bolama à distância tem imponência em todas aquelas manchas esbranquiçadas, últimos vestígios da velha capital que nunca mais recuperou do abandono, quando em 1941 Bissau se tornou na metrópole.

Fui visitado na CICER por um jovem que tinha uma juba como cabeleira e me chamou paizinho, era tão hermético no seu crioulo que precisei de ir chamar um intérprete. Fiquei siderado, era Abudu Cassamá, o menino que conheci em Finete, em 1968, tinha as costas retalhadas devido à explosão de uma granada de fósforo. Tratei-o sempre com muito afeto, no meu tempo nunca se conseguiu fazer reparação aos danos que sofria no seu físico, tanto ele como a mãe. O intérprete disse-me que o Abudu vinha ali buscar um saco de arroz, um relógio e um rádio, era o mínimo que esperava do paizinho. É verdade que em Bissau, sempre que encontrava alguém do Cuor eu perguntava por Abudu, ele vinha cobrar tanta pergunta que eu andava a fazer. Encontrei igualmente no bairro de Missirá Mufali Iafai, o nosso canoeiro no rio Geba, foi uma grande alegria. Cherno Suane também aparecia regularmente era o meu companheiro de canja de ostra numa locanda onde me levou, o aparato higiénico era intimidador mas o que caiu no estômago era mesmo manjar de deuses.

Nos últimos dias, conversei longamente com a senhora coordenadora em expectativa: falámos das obras naquele 1º andar do Quartel-General, nas campanhas de sensibilização, nas reuniões com os juristas para o mais rapidamente possível os projetos de diploma irem a conselho de ministros. Embarquei na madruga de 21 com negros presságios. Nenhum despacho fora assinado pelo presidente do Conselho de Estado, tudo se movia em areias movediças. Cheguei, elaborei relatório, enviei cópia ao ministro dos Recursos Naturais e Indústria. E caiu um silêncio espesso, parece que não tinha havido qualquer missão. Em Fevereiro, fui alertado que ou se cabimentava as verbas para o projeto de cooperação até ao final do mês ou o dinheiro seria transferido para outra rubrica. Alertei Bissau, os membros do Governo e a senhora coordenadora em expectativa. E caiu o pano, entreguei-me às minhas obrigações profissionais, a Guiné ficou no fundo do túnel. Aí para Setembro ou Outubro de 1992, a Dr.ª Ana Pereira informou-me num tom como se eu soubesse de tudo, que já havia despacho governamental e que pretendia receber instruções. O desleixo de alguém em Bissau não mereceu qualquer complementação em Lisboa. O meu serviço cívico terminara ingloriamente.

O Pidjiquiti, local mágico de todo o antigo combatente. Era por aquele cais de cimento que, regra-geral, chegávamos a terra firme. As palmeiras da Marginal estavam cuidadas e era agradável estar sentado a ver o porto e o Ilhéu do Rei ao fundo. Está tudo escalavrado, o cimento esfarela-se com a falta de manutenção. Mas é o nosso Pidjiquiiti, ninguém esqueceu a alegria na hora do embarque.

A Associação Comercial e Industrial de Bissau era um edifício com algum arrojo arquitectónico, era uma estrutura moderna que contrastava da imponência do Palácio do Governador e da estrutura ao nível do rés-do-chão do museu da Guiné, com o seu lanternim peculiar. Em 1991, era a sede do PAIGC. Continua a ser, mas não esconde os maus tratos da falta de manutenção. 
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Notas de CV:

Vd. postes anteriores da série de:

29 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10589: Notas de leitura (423): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (1) (Mário Beja Santos)
e
2 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10607: Notas de leitura (424): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (2) (Mário Beja Santos)

2 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10609: Notas de leitura (425): A Guiné na História de Portugal, de Rui Ramos (António Graça de Abreu)

Guiné 63/74 - P10620: Questões politicamente (in)correctas (41): A origem da palavra Turra (António Rosinha)

1. Mensagem do António Rosinha, de 13/1/2007, que esteve para ser publicada na série Questões politicamente (in)correctas, sob o poste P1426, e que por qualquer razão (falha técnica ou erro humano, os dois bodes expiatórios do costume) não o foi... 

O poste  [ Guiné 63/74 - P1426: Questões politicamente (in)correctas (17): A origem da palavra Turra (António Rosinha)] estava em rascunho, em fase de edição, creio até que chegou a ser publicado... O nº 17 da série acabou por ser atribuído a um poste do Amílcar Mendes (*). E o texto do Antº Rosinha acabou por ir para ao "limbo" (, mas não para o lixo)... Cinco anos no limbo!...  Fomos recuperá-lo. Vê agora a luz do dia, com outra numeração por causa da cronologia... . Com o nosso pedido de desculpas ao Antº Rosinha (que está connosco, de pleno direito, desde 29 de novembro de 2006) (**) e,claro,  também aos nossos leitores. Na numeração dos nossos postes fica em branco o nº 1426... (LG)


2. A origem da palavra Turra,
por António Rosinha

Tuga, portuga, caputo, chicoronho, cabeça de porco, baranco, chindele, e por fim cubano, já ouvi esses nomes dirigidos a mim e a outros,  ao vivo e a cores. In loco. Nem todos eram depreciativos, mas alguns eram. Logo que sejam ditos em português, ou crioulo, madeirense ou carioca ou baiano, para mim é fabuloso.

Isto tudo para dizer qual o mês e o ano em que surgiu uma palavra que para muita gente não tem justificação: TURRA (terrorista) e a sua motivação. Pois, apesar da muita informação descarregada neste Blogue, penso que esta explicação que vou dar, e é dos livros, não foi lida aqui.


15 de Março de de 1961. Pois houve um movimento, União dos Povos do Norte de Angola, UPNA, depois UPA, depois FNLA, que provocou actos de terrorismo, contra brancos, mulatos, negros que não fossem Bacongos (***), que a par de outro terrorismo que se desenvolvia nos vizinhos Congo Belga, Ruanda e Burundi, explica uma grande parte do apoio popular que o Governo Português teve em todas as frentes, que sem esse apoio não aguentaríamos...13 longos anos.

Para quem assistiu "tudo a meter o rabo entre as pernas"e a fazer as malas, eu não era excepção, e saber que o 1º classificado do meu pelotão do CSM, angolano, mestiço, uma simpatia, já na sua actividade civil, foi na leva, toda a gente tinha alguém conhecido que tinha morrido (nem descrevo os processos usados, e depois a reacção).


Para quem assistiu, ficou no ar a palavra terrorismo (TURRA). E por uns pagam outros. Foi tão revoltante que todos os mestiços, negros assimilados com estudos que já enchiam as repartições e escritórios, brancos angolanos, guineenses e moçambicanos de várias gerações, e que todos eram pela independência das colónias - não o escondiam, tanto na tropa como no desporto como no ambiente profissional (posso noutro ambiente mencionar nomes públicos, vivos uns e falecidos outros)- , todos se viraram contra as independências de qualquer maneira, e não alinharam com Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Lúcio Lara, Chipenda, etc. Até porque todos os vizinhos independentes viviam em constantes matanças étnicas.(Será que acabou?).

A origem da palavra foi só esta, e justificadíssima. Essa palavra foi aproveitada para todos os fins. Muitos conhecem esta história,  concerteza. Outros, verifico que não (****).
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Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 16 de janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1435: Questões politicamente (in)correctas (17): Matei para não ser morto (A. Mendes, 38ª CCmds)

Último poste da série > 15 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6854: Questões politicamente (in)correctas (40): A guerra colonial: todos querem ser heróis! (Carlos Geraldes)
(**)  Vd. poste de 29 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1327: Blogoterapia (7): Furriel Miliciano em Angola, em 1961; topógrafo da TECNIL, em Bissau, em 1979 (António Rosinha)

(***) Etnia do norte de Angola, que outrora (antes da conferência de Berlim, de 1885, que retalhou o continente africano pelas principais potências coloniais europeias, era o povo que vivia no Reino do Congo):

(...) "A luta anticolonial divide-se em três grupos que refletem diferenças étnicas e ideológicas: o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), multirracial e marxista pró-URSS, com predomínio da etnia quimbundo; a Frente Nacional para a Libertação de Angola (FNLA), anticomunista, sustentada pelos EUA e pela República Democrática do Congo (ex-Zaire), com base na etnia bacongo (norte do país); e a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita), com forte presença da etnia ovimbundo (centro e sul), inicialmente de orientação maoísta, que depois se torna anticomunista e recebe o apoio do regime sul-africano do apartheid. Independência" (...).

Fonte: Sítio brasileiro Mulheres Negras: do umbigo para o mundo > Angola

Segundo o sítio da CIA, com dados estatísticos sobre Angola,  
os bacongos representariam 13% da população. Restantes: Ovimbundos: 37%; quimbundos: 25%; mestiços: 2%; Europeus: 1%; outros: 22%. [Consult. em 4/11/2012].

(***) Vd. também a opinião do linguista Rui Ramos, colaborador do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa:


(...) [Pergunta] Li algures que a palavra tuga era pejorativa. Não a encontro em nenhum dicionário mas de facto tornou-se conhecida pois foi o nome dado à Selecção Nacional aquando do Mundial 2002.  A pergunta é: a palavra existe? E é pejorativa? Manuela Couto, Portugal
[Resposta] A palavra «tuga» é de facto pejorativa. Surgiu em contraponto à palavra «turra» («terrorista») que os colonos portugueses em África usavam para designar os que, com armas, se opunham ao colonialismo. 

Surgiu na década de 60, já em plena luta armada de libertação nacional. Eu próprio a usava, já inserido na luta clandestina do MPLA em Luanda, para falar dos «soldados portugueses em Angola». «Turra-Tuga» é uma dicotomia que faz parte integrante da luta anticolonial e que, já se vê, define o «lado mau» da luta.

Por isso eu desde o início considerei que a palavra tinha sido muito mal escolhida para a selecção portuguesa devido à carga guerreira, colonial e incivilizada, porque parece homenagear um dos períodos mais tristes da História de Portugal.

Em sentido mais amplo temos a expressão «pula» (os imigrantes africanos tratam, invariavelmente, os brancos por esta palavra) (*****). 
Rui Ramos (2003) (...) 



(*****) Vd. poste de 26 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10074: Em bom português nos entendemos (8): O angolês, termos angolanos que pode dar jeito integrar no nosso léxico (Luís Graça, com bué de jindandu para o Raul Feio e demais kambas kalus)

(...) Pula. Pessoa branca (pejorativo). O mesmo que braga, cangando, tuga.(...)

O termo "turra" já está  grafado nos dicionários de língua portuguesa (por ex., o Priberam) como substantivo, com o significado de "guerrilheiro dos movimentos independentistas africanos nos tempos da guerra colonial portuguesa".

Vd.  também a Infopédia:  Turra, forma de turrar;

(i) turra, nome feminino: 1. popular, pancada com a testa; cabeçada; marrada; 2. figurado,  teima; birra; disputa (...)

(ii) turra, nome masculino: gíria, depreciativo, nome atribuído pelos militares portugueses aos combatentes independentistas africanos, durante a guerra colonial portuguesa;
(iii) andar às turras, andar desavindo

(Derivação regressiva de turrar) (...)

domingo, 4 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10619: Prosas & versos de Ricardo Almeida, ex-1º cabo da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) (1): A morte do quarteleiro

O Ricardo Almeida (ex-1.º Cabo da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) pediu-nos para juntar os seus textos (prosa e verso) numa só série... Vamos fazer-lhe a vontade, até por que é um direito que lhe assiste, como membro da Tabanca Grande que nos honra com a sua colaboração ativa e continuada... 

Chamámos à série Prosas & versos do Ricardo Almeida". E aqui vai o primeiro poste, "Heranças de guerra"... O editor, contudo, achou por bem arranjar um título mais concreto e sugestivo: "a morte do quarteleiro". (LG)

1. Prosas & versos > Heranças de guerra (1)
por Ricardo Almeida



Dia inesquecível aquele em que um batalhão de caçadores [, o BCAÇ 2879,]  deixa Portugal a caminho da Guiné (ex- ultramar), já tão calcada e espezinhada por milhares de jovens que,  deixando outrora sua família e seu lar, vão enfrentar o caminho da guerra, que lhes foi predestinado, e que deixa nos rostos de cada um expressões de mágoa, de dor e até de ressentimentos, que transportavam nos seus corações. 

Neste monótono turbilhão de coisas que me deixam atordoado, eis que exprimo toda a minha amargura e desagrado por tudo o que vivi com camaradas excepcionais, com outros mais desonestos, mais desumanos, mas, enfim… é tropa e a nada disto se pode fugir quando se cumpre uma missão.

Perante estes factos, destaco um jovem militar que, pelo seu comportamento, não chegou a conquistar a amizade dos seus companheiros, dada a sua personalidade baixa, modos insuportáveis, desordeiros e irrequietos, mas que cumpria a sua missão como tantos outros.

Dispenso-me de citar o seu nome.  
Com a especialidade de condutor auto, foi destacado para a arrecadação, municiando-nos de material quando saíamos para a mata. 

Valeu-lhe aquela colocação a alcunha de Hipócrita.  
Certo dia tive problemas com ele, mas a crise passou e tudo esqueci. Mais tarde de regresso de uma operação no capim, senti como que uma fraqueza infindável e baixei à enfermaria. Ai estive dez dias, até que fui transferido para o hospital de Bissau e seguidamente evacuado para a metrópole. 

Esperava-me o HMDIC [, Hospital Militar de Doenças Infeto-Contagiosas, em Lisboa, Belém,]  e o Caramulo. Resultado:  
“Tuberculose pulmonar”. Moral: desfeita! 

Já em período de restabelecimento e em data que de momento não recordo, após o jantar, entretia-me a ler um pouco para tentar afogar pensamentos horrorosos que tentavam afluir-me à memória.
Um colega, uma triste noticia, um abraço. 
- Almeida, sabes quem está aqui com a morte quase no goto? 
- Não, quem é? Morre-se todos os dias, na frente, na retaguarda e até no Hospital. -  conclui. 

O colega foi directo e espontâneo e com voz rouca, disse:
- “O Hipócrita”da arrecadação de material! 

Apesar de tudo, considerava-o humano, tal como eu, e desloquei-me à enfermaria onde ele se encontrava. A enfermaria 2 era uma espécie de cubículo, onde os “esqueletos vivos” se amontoavam, jogando-se forte na vida.

Espiei-os e encontrei o que procurava. Estava a oxigénio afim de lhe facilitar a respiração. Pronunciei o seu nome mas ele não me ouviu. Tinha os olhos fechados, a boca um pouco  a
berta e a resposta saiu-lhe dos lábios, como que arrancada lá do fundo: 
- Morro...Água! 

Eu não podia suportar aquele drama doloroso. Um homem a debater-se com a morte apesar de tantas ter visto, mas aquele era diferente. Aproximei-me e perguntei-lhe:
- Queres água? Não me conheces? 

O som das minhas palavras abriu desmesuradamente os olhos e num esgar de dor, respondeu:
- Não! 

Não era para admirar, pois que nem eu, às primeiras impressões, o reconheci. Estendi a mão e disse-lhe quem era. Apesar do choque, já refeito, as lágrimas afloraram-me aos olhos, não podia já olhar aquele corpo já inerte, só com a pele a segurar-lhe os ossos e a recordar como mo conheci: Forte, esbelto e saudável. 

– Água, Almeida. Tem dó de mim! 

Ensopei um bocado de algodão em água e coloquei-lho nos lábios, que já me parecia moribundos. 
Consegui mexê-los e, de repente, tentou suprimir todas as dores naquele bocado de algodão introduzido agora na boca.  Retirei-lho e tentei acalmá-lo, mas inutilmente. As lágrimas apareceram-lhe nos olhos e pediu-me perdão. 
–  Estás perdoado,  amigo. –  respondi. 

Fui-me deitar não consegui conciliar o sono nessa noite.  Os dias iam passando e a minha companhia era inseparável da sua cabeceira. Até que chegou o momento mais doloroso para mim, apesar de viver a guerra e estar habituado a ver coisas que os meus olhos nunca sonharam ver, mas que forçosamente eram obrigados a aceitá-las. 

Dia 21 de Outubro daquele ano de 1970.  
Encarando a realidade e sem coragem de me despedir dele, soube que tinha falecido.  Poucas horas decorridas e inesperadamente, vi-o, pela última vez, envolto num lençol, aquele farrapo humano, transportado em maca, pelo corredor de acesso à casa mortuária, onde deveria entrar naquela maldita “urna”, oferta exclusiva do Exército Português! Envolto nos meus pensamentos e alheio até ao lugar que ocupava, dei uma palmada no caixão, como que a implorar-lhe vida: 
 Acabaram-se as tuas forças, as tuas reguilices, a tua fraca reputação. Apesar de tudo eras humano, por isso te rendo homenagem com o coração destroçado e como teu amigo que era, me despeço até um dia…  – Balbuciei!!! 

Ricardo Marques de Almeida
1.º Cabo 089225/68

Guiné 63/74 - P10618: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (8): 9.º episódio: As confissões de um prisioneiro

1. Mensagem do nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), com data de 1 de Novembro de 2012:

Caros camaradas e amigos
Então aí vai mais um episódio, com abraços reconhecidos
Veríssimo Ferreira


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

9.º episódio - As confissões de um prisioneiro

E lá se ia passando o tempo...

Voltámos no dia seguinte, para um provável reencontro com os tipos que nos andavam a querer dificultar a vida e já o haviam feito neste mesmo local. A determinada altura, vindo de dentro da mata e próximo, veio o zurrar dum burro, daqueles com quatro patas. Aqui nesta zona do K3, nunca tal houvera visto, embora conhecesse, um ou outro, mas de duas patas.

Acomodámo-nos melhor, uns atrás das baga-bagas, outros atrás das vetustas árvores, outros ainda deitados na camuflagem natural da selva. O dedo permanecia no pinchavelho, ou seja, naquela coisa que na G3 faz accionar a saída pelo cano, duma pecita que ao encontrar algo, derruba que se farta. Pedi que ao verem o asno, o deixassem para mim, experimentado que era e sou, em engatá-los na nora do meu sogro que também era o proprietário duma mula bem vistosa.

Passado pouco tempo, lá chegaram aqueles por quem amigavelmente esperáramos para uma aterradora surpresazinha e para lhes cantar também os parabéns. Vinham descontraídos... conversando... alegres e bem dispostos... não antevendo, ingénuos, que também sabíamos preparar recepções. A tiracolo traziam, a meu ver e depois confirmei, armas proibidas e para as quais não tinham a necessária e indispensável licença para uso e porte. No final da fila em pirilau, que o caminho era estreito, lá vinha o jumento, que tanta alegria me viria a dar mais tarde.

Tadinho... vinha carregado que "nem um burro", trazendo num dos lados do lombo... espingardões e do outro lado um canhão sem recuo. Tudo, sem sela nem canga.

Imaginei o sofrimento do pobre e pensei:
- Quais selvagens, tratam assim as bestas ???...

Hora da festa... faça-se a festa... e fez-se. Manga de ronco... mesmo... e só tarde se aperceberam do que lhes estava a acontecer. Regressámos depois a penates e de livre vontade, acompanhou-nos com arreata, o prisioneiro que ia entrementes fazendo uma alarvice de zurraria do caraças. Com este eram agora dois, os aprisionados, porque ontem um outro, bem aparamentado e com a fisga e de mãos no ar, havia desertado e entregou-se às NT.

Estava a ser interrogado a fim de vermos se nos cedia quaisquer informações, mas apenas respondia: "Je ne sais pas". Qual crioulo... qual português? Seulement français, dizia. Até que, por caridade, lhe levei o nosso prato do dia, para que se alimentasse, claro. Ao ver a "dobrada liofilizada com feijão branco", pediu em Português correcto:
- Não, não me torturem... eu falo... eu conto... eu denuncio... mas lá comer isso é que não.

E confessou que tinham:
- na bolanha, três submarinos sem portas, apenas com escotilha;
- no Cacheu, um porta aviões, perto de Farim;
- aviões, manga deles escondidos na mata, junto dos helicópteros;
- comida: camarões e lagostas de Quinhamel e ostras do Geba;
- armas de todo o calibre e feitio, morteiros e em mais quantidade, costureirinhas e AK 47, 48, 49 e 50.

K3 > Entrada da suite. Com o Ismael da Secção de Morteiros 60 

(continua)
____________

Nota de CV :

Vd. último poste da série de 1 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10602: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (7): 8.º episódio: Uma emboscada perigosa

Guiné 63/74 - P10617: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (28): Colégio de Oliveira de Azeméis (1) Parte I

1. Em mensagem do dia 31 de Outubro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias:


Colégio de Oliveira de Azeméis C.O.A.

Parte I 

O colégio de Oliveira de Azeméis, antiga Casa Escola, foi fundado em 1932, pela primeira e única Diretora, Srª Dª. Maria Adília Algria Martins; ela exerceu aquele cargo até 1972, durante precisamente 40 anos. Nesta data, as instalações do vetusto colégio passaram a funcionar como uma extensão do Liceu Nacional de Aveiro, que nos anos 50 substituíra o antigo Liceu José Estêvão, nome de um tribuno afamado, mediante pagamento de volumosa renda-tinha de ser.

O seu crescimento foi lento mas alicerçado, durante vários anos, até que Dª Maria Adília casou com um seu ex-aluno - Sr. António Almeida – que veio dar nova vida, outra dinâmica àquela, já célebre escola. O Sr. António Almeida - ou Sr. Diretor – como lhe chamávamos, porque era marido da srª Diretora-fez aquela escola crescer imenso, diria até quase desmesuradamente, muito em especial a partir do início dos anos cinquenta.

Havia alunos de todos os quadrantes: Guiné, Angola, Trás-os-Montes para citar apenas os de mais long;os distrititos do Porto e Viseu também estavam representados. De várias origens, o sr. Almeida colhia informações sobre hipotéticos candidatos que se preparavam para iniciar os estudos secundários principalmente no interior-centro do país. Ele logo partia ao encontro dos pais destes jovens para os convencer a enviar os filhos para o seu colégio; com frequência levava a água ao seu moinho. Recordo o meu caso. Fiz a 4ª classe; meu pai, confiado nuns cobres acumulados, durante anos, no canto do baú, decidiu pôr-me aos estudos. Voltei no ano seguinte à escola lá da terra ( ficáva a mais dedois km de casa, trilhando caminhos de cabras), onde uma professora bairradina (natural de uma aldeia chamada Fogueira), boa mestra, excelente educadora e soberba condutora de crianças, assumiu levar-me ao exame de admissão ao Liceu. Fiz também exame de admissão à Escola Comercial; se falhasse num tinha outra saída.

Em meados de Janeiro daquele ano lectivo, o director do colégio de Albergaria-a-Velha, acompanhado por um professor apareceu lá em casa a fim de convencer o meu pai a enviar-me para a sua escola. O meu progenitor logo alegou que não tomava naquela hora qualquer decisão; teria de conversar de novo com a professora. Em desespero de causa o professor mandou-me conjugar o presente do indicativo do verbo” remir”; eu não sabia! O professor comentou:- está a ver?! O seu filho está atrasado em relação aos nossos alunos! Meu pai manteve a sua posição.

Obs.: mais à frente falaremos de novo daquele verbo “remir.”

No dia seguinte, meu pai deslocou-se à casa onde a professora residia a fim de colocar os pontos nos “ii”; depois de algumas perguntas e respostas, avanços e recuos ela concluiu: - Já levei vários alunos ao exame de admissão e nenhum reprovou; não posso garantir que o seu filho “vai passar” mas eles também não podem dar essa certeza; a decisão é sua!

De seguida contei-lhe a estória do verbo que eu não soube conjugar; ela comentou que “ainda” não é tarde para aprenderes a conjugar aquele verbo: “ foi uma brincadeira de gosto duvidosos da parte deles! Referiu a professora.
Logo ali meu pai decidiu que eu continuaria ás suas ordens até ao exame final. Como se depreende, naqueles tempos, a luta para conseguir mais alunos era (tinha de ser) dura, persistente e até, por vezes, feroz.

Mais tarde, já depois de ter feito exame de admissão, passei férias em Espinho e, não sei como, fui ali matriculado, no Colégio S. Luis.

Volvido um mês ou perto disso, o director do colégio de Oliveira de Azeméis apareceu em minha casa, já noite escura; vinha acompanhado dum médico (estomatologista) que era um grande amigo do meu pai. Ele foi a arma decisiva. Depois de argumentos vários, o Sr. Almeida assumiu que tratava da anulação da minha matrícula em Espinho e em Outubro seguinte cruzei pela primeira vez o portão “monumental” (o portão de hoje ainda é o mesmo… mas com mais 60 anos )– nunca me arrependi.

Nos tempos que correm, os jovens alunos não sabem, nem sequer imaginam ou sonham como era o dia a dia dum estudante interno metido entre as quatro robustas paredes austeras dum qualquer internato.

Havia escolas cujos alunos eram todos externos: permaneciam intra-muros durante as aulas e também nas horas de estudo mas tomavam as refeições e pernoitavam em casa;. não sofriam com o isolamento forçado em relação à família.

Os alunos internos viviam em autêntica clausura; saíamos do colégio ao sábado depois das 17 horas, quando não eramos obrigados a permanecer na escola durante o fim de semana devido a castigo por más notas ou por atos de indisciplina.Mais tarde saíamos a partir das 13:00 horas. Na 2ª feira de manhã estávamos de volta para mais uma semana fora do conforto do lar; melhor ou pior era sempre diferente; era o nosso lar!

Todos os internatos tinham determinados defeitos mais ou menos comuns a todos, mas também tinham algumas virtudes… uns mais que outros.A maior mazela era “arrancar” crianças, a partir dos nove/dez anos aos afectos da família, “enclausurando-as”, autenticamente entre severas paredes.

Vivi cerca de oito anos lectivos como aluno interno no C.O.A.; ainda recordo com saudade e carinho – apesar de tudo – o tempo e o ambiente daquela casa ,os bons e maus momentos (muitos assim assim); com certeza foram mais aqueles do que estes, até porque eu sempre procuro enviar para as calendas o lado mau da vida ou, no mínimo, não lhe dar relevância, guardando no “disco rígido” da minha cabeça, apenas (ou quase) a parte boa das coisas por que passei.

In illo tempore – no tempo em que frequentei aquele colégio – o internato era uma inevitabilidade; refiro-me aos anos 50 do século passado, época em que muitos jovens do interior, ainda não despovoado, não poderiam estudar se não houvesse internatos.

Havia liceus nas capitais de distrito; os colégios surgiam apenas nas cidades ou em vilas de maior dimensão: na capital do meu concelho não havia ensino para além da primária; surgiu ali um colégio nos fins dos anos 50 ou nos primeiros anos da década seguinte

No meu caso (e no de tantos outros), quando podia ir a casa ao fim de semana, faltava às duas primeiras aulas de 2ª feira; na melhor das hipóteses eram só duas. Saía de casa pelas 7 horas da manhã e chegava ao colégio pelas 11, se tudo corresse bem.A meio do percurso mudava de autocarro. Se houvesse lugares vagos no onibus que vinha de Coimbra, tudo bem; se não houvesse vagas naquele autocarro, chegaria ainda mais tarde, perdendo todas as aulas da manhã.

O dia a dia de um aluno interno era terrivelmente duro! Havia quem chorasse copiosamente! Tal era a bomba! Para os semi internos a pílula não amargaria tanto – iam dormir a casa diáriamente

Dura lex sed lex! A disciplina é dura… mas é disciplina! – e se ela era rígida, inflexível, naquela casa! Não fora a imaginação e a ousadia da rapaziada para tentar adoçar a pílula (algumas vezes conseguia-se; outras vezes as contas saiam furadas, e sofríamos as consequências) e a nossa vida seria ainda mais atroz, quase insuportável

O aluno nunca era expulso da aula; este tipo de castigo não estava previsto. Havia castigo corporal! Naquele tempo, já era proibido por Lei… mas era prática mais ou menos corrente – mais corrente que menos. Regra geral, não podíamos fazer queixa aos nossos pais, porque, na maioria dos casos… levávamos a dobrar.

Nenhum pai (quase) ousava discutir esse assunto com a Direcção; intransigentemente o sr. Almeida alegava que “era para o bem do aluno” e tinha em conta, também os encargos monetários dos pais. “Naquele tempo o dinheiro era muito caro! Rareava quase em absluto!

Os internos podiam ser impedidos (e eram-no com frequência) de ir passar o fim de semana com os pais, acontecia sempre que havia más notas ou eram indisciplinados. Para o colégio seria até um prejuízo material mas, felizmente, a direção (os proprietários da escola) preferiam que os alunos tivessem boas notas e fossem bem comportados, perdendo eles alguns escudos referentes à sua alimentação dos alunos castigados durante o fim de semana.

A nossa tarefa iniciava-se, diariamente, às 6:30 horas da manhã (excepto ao domingo); às 7:00 horas, entrávamos no salão de estudo e ali permanecíamos até às 8:45, tempo para o pequeno almoço. As aulas iniciavam-se às 9:00. Depois do almoço havia um intervalo (cerca de uma hora) para dar uns pontapés na bola ou ver jogar. O período das aulas terminava às 19 horas; depois do jantar havia um intervalo até às 20:30 horas; seguia-se nova sessão de estudo para, sob vigilância do prefeito, preparar as aulas do dia seguinte; às 22 horas íamos dormir num edifício mais recente, voltado para a avenida principal; era no rés do chão deste edifício que tomávamos as refeições – no rés-do-chão. Em véspera de prova (ponto) era permitido estudar até mais tarde. Por vezes enquanto a maioria dos alunos dormia, sem a presença do prefeito, uns estudavam , outros aproveitavam a hora de pretenso estudo para surripiar umas laranjas do quintal da Direcção ou fazer uma incursão na adega (por baixo do salão de estudo) donde se retirava uns pedaços de carne de porco salgada e até umas garrafas de vinho; tudo bem regado! No edifício mais antigo, voltado para o recreio havia uma porta diferente, algo estranha, que dava acesso a uma garrafeira que também chegou a ser visitada por alunos.

Com os restos da comida, a direcção, mandava alimentar uns suínos, cuja carne era depois servida aos alunos; assim tínhamos oportunidade de compreender, na prática, que Lavoisier tinha razão!

No nosso “horário” não havia “furos”; estes eram ali substituídos pela palavra “estudo”; ou seja, entravamos num salão enorme onde passávamos 50 minutos a estudar… no mínimo éramos obrigados a olhar para o livro… e, em silêncio absoluto – ouvia-se nitidamente a mosca que ousasse penetrar aquele espaço – íamos preparando as aulas que se seguiam.

Se um professor faltava – acontecia apenas quando o rei fazia anos (ao contrário dos tempos de hoje) os alunos não entravam na sala de aula, ou abandonavam-na de seguida e dirigiam-se ao salão de estudo.

Uma característica terrivelmente sádica era a “segregação” total por sexos; rapazes e raparigas só podiam ver-se (apenas ver) nas aulas. Conversar com uma moça era um risco extremamente grave que ninguém de bom senso ousava correr sem tomar avultadas cautelas e mesmo assim… a segurança era quase sempre diminuta. O perigo rondávanos!

A menina Dina, pessoa de absoluta confiança da diretora, tinha um excelente jogo de cintura para agradar a gregos e a troianos (alunos e diretores); era uma solteirona “de pai e mãe” seca de carne, elegante, sem nada dever à beleza, afável, delicada e sempre bem disposta, era empregada da secretaria e dava umas arrojadas badaladas na sineta; logo os rapazes corriam para as suas salas de aula; só quando já não havia rapazes nos corredores, as meninas podiam avançar para as respectivas salas; no fim da aula os rapazes só podiam ir para o recreio quando os corredores estivessem totalmente vazios (sem as “pequenas”).

Constava (no mínimo era… parcialmente verdade) que a directora mantinha, “impunha” esta austera, quase ignóbil, separação por sexos, porque ela, sendo já dirigente, casou com um ex-aluno, cerca de década e meia mais novo que ela. Dizia-se até que ela casara com um aluno…, mas na verdade, casou com um ex-aluno. Durante o fim de semana o horário continuava rígido, especialmente para os alunos castigados; para os outros havia um pouco mais de abertura.

Sábado à noite, depois do recreio que se seguia ao jantar, mantinha-se o estudo obrigatório durante hora e meia; ao domingo a “alvorada” era às 8 horas; depois do café da manhã, dirigíamo-nos à Igreja Matriz onde assistíamos à missa das 9 horas; de seguida passávamos cerca de meia hora a dar voltinhas ao jardim da vila (hoje cidade); era o nosso “picadeiro”. Mas constava, entre os rapazes, que apenas as moças davam a volta completa ao jardim… circundando a estatueta ao fundo… para dar uma olhada à pilinha do menino – esta estatueta, em bronze, foi recentemente roubada; assim já não há motivo – se é que havia! - para dar a volta completa . Seguia-se nova sessão de estudo durante 90 minutos, cerca das 10:30 às 12, continuando a ser obrigatório olhar para o livro, no mínimo.

Depois do almoço, se o tempo estivesse chuvoso, podíamos ir ao cinema; Se o sol brilhasse, o leque de divertimentos alargava-se de acordo com os gostos individuais: uns iam ao cinema, outros iam ver a Oliveirense jogar, outros escolhiam dar umas voltas no parque de La Salette, outros ainda decidiam fazer uma visita, a pé e “não guiada”, ás aldeias vizinhas; um último grupo dos não castigados ficava intra-muros a dar uns furiosos pontapés de má qualidade numa infeliz bola de borracha – muda aos cinco e acaba aos dez. Os que passavam o fim de semana no colégio, por castigo, não podiam sair à rua no domingo à tarde; passavam grande parte do tempo no salão de estudo; com frequência a directora aproveitava para dar umas aulas da sua especialidade. E assim se passava um domingo… em beleza.

No dia 18 de Março havia confissões gerais (mais ou menos obrigatórias) para os alunos do colégio; no dia 19, dia de S. José, comungávamos e cantávamos na missa especial celebrada em honra do santo na Igreja Matriz. Nesse dia havia “rancho” melhorado.

Alimentação

Os alimentos eram mais ou menos bons e bem confecionados (dependia do clima) e em boa quantidade. Às duas refeições principais, havia dois pratos – caso raro ou único em internatos – exceto no dia em que o almoço constava de bacalhau cozido com todos (apenas couves e batatas) e ao jantar de domingo em que, para aligeirar a carga horária do pessoal da cozinha, comíamos massa de meada cozida ou (guisada), com alguma carne, normalmente bofes.

O segundo prato era invariávelmente arroz; constava ( até seria verdade) que este cereal era fornecido pelo pai do Sr. Diretor, marido da diretora; Ele era proprietário de um ou mais moinhos de tracção por água para descascar arroz e moer outros cereais, em Santiago de Riba Ul.

Naqueles tempos, como o dinheiro não abundava; os pequenos agricultores pagavam o descasque (acontecia o mesmo com a moedura do milho e/ou centeio) em espécie – entregavam ao moleiro uma determinada percentagem do cereal trabalhado (moído ou descascado). Eis o motivo (dizia-se) por que éramos “obrigados” a comer arroz duas vezes por dia. Não consta, porém, que um qualquer aluno tenha ficado com os “olhos em bico” (olhos de chinês) por causa disso. A directora impunha, (quase só aos mais novos) que “todos” os alunos, por uma questão de boa educação, deviam comer (eram obrigados a) tanto do 1º prato como do segundo. Nós entendíamos que ela pretendia apenas ajudar o sogro… a esgotar o arroz das maquias (trabalho pago em espécie).

Certo domingo, no meu primeiro ano, uns 15/20 alunos ficaram no colégio; ao almoço sentámo-nos todos à volta de uma mesma mesa grande. A refeição era salada russa… seguida de arroz… como tinha de ser. Cada aluno encheu completamente o seu prato; eu era talvez o mais novo… mas sendo um “bom garfo” também atestei o meu. Logo a diretora me avisou que eu, (apenas eu) porque era o mais puto, tinha de comer igual quantidade do segundo prato. Frequentemente ela sentenciava o mesmo a qualquer miúdo mas, por vezes, esquecia-se. Daquela vez tal não aconteceu. Apercebendo-se que eu tinha comido a salada russa, pegou no meu prato, colocou-o sobre um aparador e encheu-o de arroz, recolocando-o à minha frente. Fiquei abismado! Os meus amigos, ao verem a minha cara de quase pânico, logo me ofereceram papéis de jornal e envelopes usados para neles embrulhar o arroz exedente e levá-lo para o exterior do refeitório, para ser colocado no lixo.

A diretora, porém, ao contrário do que habitualmente acontecia, estava atenta; colocou-se estrategicamente nas imediações, e olhava-me pelo canto do olho. Enfardei aquela montanha enorme de cereal. De seguida, levantei-me e transmiti-lhe (respeitosamente ) que queria mais um pouco de arroz. Ela assustou-se! Mas ordenou que colocassem outra travessa na mesa; eu retirei dela apenas meia colher de “alpista” para meu prato e comi. Foi remédio santo! Ela não esqueceu! E nunca mais pretendeu que eu comesse tanto do segundo prato como do primeiro! Passei a ser tratado como um dos “grandes”

O diretor, o Sr. Almeida, porém, tinha opinião diferente – só não queria que os alunos saíssem da sala de refeições com apetite; podíamos comer a quantidade desejada de um só prato, à nossa escolha. No meu tempo havia uma refeição semanal de açorda e outra de “farinha de pau”; (mandioca) estes pratos foram banidos ainda no meu primeiro ano – não sei o motivo mas adorei que tal tivesse acontecido; detestava pão “mastigado” por outrem!

Às refeições principais tínhamos direito a vinho; um pequeno copo mais ou menos a meio. Alguns alunos não gostavam da “pinga”… mas faziam o seu negócio vendendo o vinho aos colegas apreciadores do precioso néctar

Salazar dizia – constava – que “beber vinho é alimentar um milhão de portugueses”! A direcção do colégio aplicava ali os ditames do 1º ministro… para o bem e para o mal

Aproveitamento escolar

Regra geral os alunos do C.O.A. apresentavam bons resultados finais (acima da média) em cada um dos liceus habituais (Aveiro e Porto); distinguiam-se pela positiva. Havia ali bons professores; cito apenas alguns, os que mais me agradaram: Dr. Vide, Prof. Santos, Dr.ª Maria José Mourão, Dr. Abel Gandra, Dr. Magalhães Lima, entre outros.

Os direcores (tanto a Dª Maria Adília como o Sr. Almeida) davam aulas de “empreitada”. Próximo dos exames aproveitavam todos os tempos livres… para mais uma aula. Que seca!

No meu 5º ano, o Sr. Almeida comunicou-nos, logo no início, que nunca tinha dado Geometria no Espaço… nem como aluno nem como professor; durante o Verão recebeu aulas do Dr. Fachada… e nós fomos as cobaias… mas houve resultados muito satisfatórios… também nessa disciplina. O Leonel Castro Nunes conseguiu na prova escrita de matemática uma nota excelente – 19,8. Constou que não lhe “deram” o 20 porque ele deixou o resultado da expressão algébrica em √4; não acrescentou = 2; – entendeu que o examinador devia saber que raiz de 4 era 2.

Nesse ano, numa aula de matemática, o Sr. Almeida, comunicou-nos que determinado problema estava mal apresentado, pois o proposto tinha sentido ambíguo. O Leonel logo comentou: - “ai o umbigo” O Sr. Almeida aproximou-se dele e perguntou agressivo, ameaçador:

Sabes o quer significa “ambíguo”? não esperou pela resposta e acrescentou: quer dizer dos dois lados! E logo lhe afinfou uma sonora bofetada em cada face… e não se fala mais disso!

Educação física

Esta era uma situação caricata! Coisa anormal mesmo há 60 anos! Esta disciplina existia somente no… horário. Na verdade, o Prof. Costeira, pai ( que também era professor de português e ciências naturais do 1º ano e era chefe de secretaria) raramente – muito raramente mesmo – comparecia no recreio (o ginásio foi construído mais tarde e não era usado para esse fim) para ministrar aquela disciplina; quando aparecia vinha “equipado a preceito”: sobretudo vestido e cigarro no canto da boca; os alunos compareciam nesta aula “equipados” tal como para as outras disciplinas. Assim nos iniciávamos(?) na Educação Física.

Ele teria sido furriel na tropa… e entenderam que, assim sendo, estaria (?) qualificado para ser o responsável por aquela disciplina. Certamente ainda não haveria o INEF ou quejandos. Era um bom professor de português… mas na Educação Física deixava muito (tudo) a desejar… ponham muito nisso!

Trimestralmente, porém pagávamos determinada verba (creio que 20$00) para actividades da M.P.(Mocidade Portuguesa) a que todos éramos obrigados a pertencer. Não seria assim tão má pois no verão de 2012 o coordenador dos nossos atletas olímpicos defendeu públicamente que seria aconselhável que se recriasse a M.P. – e porque não?!

Um dia, um grupo de alunos pediu ao Sr. Almeida que comprasse uma rede e uma bola para jogar voleibol. Resposta na ponta da língua, eficiente (curta e grossa). - Essa disciplina não consta do horário do colégio! Mas lá comprou aqueles apetrechos para a malta se divertir, treinando sozinhos para participar nos campeonatos da M.P.

A “Escola Livre” (creio que foi mais tarde aglutinada à UDO??) tinha uma equipa das camadas mais jovens que era campeã ou vice-campeã nacional de hóquei em patins. Apenas um desses jovens não era aluno do colégio! Pediram ao Sr. Almeida que comprasse equipamentos próprios para concorrer aos campeonatos da M.P., pois teriam sérias (todas) as hipóteses de ser campeões nacionais daquela salazarista ( ou salazarenta) organização. A resposta foi um rotundo NÃO! Nada a fazer! O Sr. Almeida estava mais interessado nos estudos do que na componente fisíca; convinha-lhe que os alunos tivessem boas notas que ele podia exibir perante os progenitores dos novos candidatos; Naquela altura os romanos” ainda” não teriam inventado e espalhado pelo mundo de então a sua célebre frase: “mens sana in corpore sano”. Frequentámos o colégio demasiado cedo.

Fim da 1ª parte Outubro de 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10378: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (27): O "Engrácio"

Guiné 63/74 - P10616: Agenda cultural (229): O Festival Sete Sois Sete Luas, na sua 20ª edição, de 4 a 11 de Novembro, em Cabo Verde... Arranca hoje com os portugueses Melech Mechaya na Ilha do Fogo








1. Pensando nalguns dos nossos camaradas que vivem em Cabo Verde, ou nasceram em Cabo Verde, bem como nos muitos amigos e leitores que lá temos (Cabo Verde está no "top ten" dos países de origem dos visitantes do nosso blogue!), damos aqui notícia mais detalhada deste festival, de resto relevante para o aprofundar do conhecimento e do estreitar da amizade entre os nossos povos lusófonos (Brasil incluído)  bem como de toda a Europa mediterrânica...Dos grupos musicais portugueses refira-se a presença dos Melech Mechaya e dos Mood's.   


O Festival Sete Sóis Sete Luas este ano abriu a sua XX edição [, 1993-2012,] com uma grande novidade que marca a sua profunda relação com Cabo Verde: Jorge Carlos Fonseca, Presidente da República, aceitou a herança do Prémio Nobel português, José Saramago, como novo Presidente Honorário do Festival. Este foi só o início de um ano em que se viu a promoção internacional de muitos artistas caboverdianos no mundo. Teté Alhinho, Cordas do Sol, os pintores José Maria Barreto, Djosa, e os vencedores do Prémio Revelação SSSL Leni e Banda, atuaram em diferentes Países da Rede SSSL: Espanha, Portugal, Itália, Croácia e França.

Mas agora chegou o momento de realizar a XX edição do Festival em Cabo Verde, que este ano abarca uma nova ilha: a ilha de Brava, que se vai juntar às outras ilhas que apostaram neste projeto internacional no ano passado: a histórica Ribeira Grande da ilha de Santo Antão, primeira a aderir á manifestação, Cidade Velha e Tarrafal na ilha de Santiago e São Filipe na ilha do Fogo. E é mesmo aqui que vai começar a viagem musical do certame no dia 4 de novembro, terminando no dia 11 de novembro na ilha de Santiago.

A programação artística é um cocktail explosivo de teatro de rua basco, forró do nordeste brasileiro e seduções lusitanas de Portugal. Os nomes são: 

(i) Deabru Beltzak, a companhia de teatro de rua mais internacional do País Basco que vai capturar-nos com as percussões e muitos outros efeitos especiais e vão apresentar-nos as magias e os rituais das suas terras;

(ii) Os Melech Mechaya, primeira e mais proeminente banda de música Klezmer sediada em Lisboa e Almada, farão emocionar com os ritmos ciganos, árabes e balcânicos;

(iii) em quanto que os grupos Culé de Xá (Brasil) e Mood’s (Portugal) farão dançar desenfreadamente com o sensual forró brasileiro e os sons alentejanos.

Para além deste rico programa, haverá o Prémio Revelação Sete Sóis Sete Luas nas cidades de Ribeira Grande de Santo Antão, Cidade Velha e Tarrafal. O grupo vencedor do concurso, que será escolhido por um júri, terá a possibilidade de tocar, no próximo ano, num dos Países da Rede SSSL, como fez este ano o grupo Leni e Banda de Tarrafal, que atuou em Portugal.

O Festival Sete Sóis Sete Luas (www.7sois.eu), com o alto patrocínio da Presidência da República de Cabo Verde e com os importantes apoios da Embaixada de Portugal em Cabo Verde, do Instituto Camões, da Embaixada da Espanha em Cabo Verde – AECID / Oficina Técnica de Cooperação, da Embaixada do Brasil em Cabo Verde, do Governo do País Basco e das Câmaras Municipais da Ribeira Grande (ilha de Santo Antão), da Cidade Velha, do Tarrafal, de São Filipe e de Nova Sintra, celebra este ano duas décadas de existência (1993-2012) e continua a sua longa viagem pelas rotas musicais, artísticas e turísticas que unem o Mediterrâneo ao mundo lusófono.

Nascido entre Portugal e Itália, o Festival Sete Sóis Sete Luas desenrola-se, hoje, ao longo de um itinerário que conta já com 30 cidades em 11 países, entre os quais Brasil, Cabo Verde, Croácia, Espanha, França, Grécia, Israel, Itália, Marrocos, Portugal e Roménia. Cabo verde foi o primeiro país extraeuropeu que entrou na rede no ano 1998, e, ao longo dos anos, ganhou muitas raízes no projeto. O Festival envolve mais de 400 artistas, oferecendo cerca 150 concertos de música popular contemporânea, acompanhados de exposições de artes plásticas, contando com mais de 60 estreias nacionais e 200.000 espectadores anuais.


Programa

SÃO FILIPE (ilha de Fogo), 
Cinema ao ar livre

Domingo, 4 de novembro, 21h30

Deabru Beltzak (País Basco) + Melech Mechaya (Portugal)

Entrada livre


NOVA SINTRA (ilha de Brava)

Terça-feira, 6 de novembro, 21h30 
Deabru Beltzak (País Basco) + Melech Mechaya (Portugal)

Entrada livre
PRAIA (Ilha de Santiago),
Auditório IC-CCP Centro Cultural Português

Quinta-feira, 8 de novembro, 21h30

Melech Mechaya (Portugal)

Entrada livre
TARRAFAL (Ilha de Santiago), Mercado Municipal de Artesanado e Cultura

Quinta-feira, 8 de novembro, 21h30

Deabru Beltzak (País Basco) + Mood’s (Portugal) + Prémio Revelação SSSL

Sábado, 10 de Novembro, 21h30

Melech Mechaya (Portugal) + Prémio Revelação SSSL

Domingo, 11 de Novembro, 21h30: 

Culé de Xá (Brasil) + Prémio Revelação SSSL

Entrada livre


RIBEIRA GRANDE (ilha de Santo Antão), Terreiro

Sexta-feira, 9 de novembro, 21h30
Deabru Beltzak (País Basco) + Melech Mechaya (Portugal) + Culé de Xá (Brasil) + Prémio Revelação SSSL

Sábado, 10 de novembro, 21h30: 

Mood’s (Portugal) + Prémio Revelação SSSL

Entrada livre
CIDADE VELHA (ilha de Santiago), Praça do Calhau

Sexta-feira, 9 de novembro, 21h30
Prémio Revelação SSSL

Sábado, 10 de novembro: 
Deabru Beltzak (País Basco) + Culé de Xá (Brasil) + Prémio Revelação SSSL

Domingo, 11 de novembro: 
Melech Mechaya (Portugal) + Prémio Revelação SSSL

Entrada livre

Mapas das ilhas: Wikipédia (com a devida vénia)
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Para esclarecimentos adicionais:

info@7sois.org; Facebook: Sete Sóis Sete Luas
www.7sois.eu 

Organização sem fins lucrativos: 


Festival promotor de turismo cultural-musical
Um festival único que, no ano em que comemora a sua XX edição, se torna numa viagem a não perder pelas ondas das sonoridades do mediterrâneo e do mundo lusófono com a promoção de vários pacotes turísticos, a preços em conta, para os diversos territórios do circuito, válidos nos dias dos espectáculos do Festival. O pacote de Cabo Verde, válido desde o dia 4 de novembro até o dia 11 de novembro, apresenta diversas opções de viagem segundo as origens (Espanha, França, Holanda, Portugal, Luxemburgo...) e inclui a passagem aérea para Fogo e São Vicente, os transportes internos de barco e o alojamento e o pequeno almoço em todas as ilhas.
O objectivo é fazer dos espectáculos do festival um estímulo para a mobilidade dos espectadores de todos os Países da rede.

Fonte: Facebook Festival Sete Soís Sete Luas (coma  devida vénia...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 31 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10598: Agenda cultural (228): O livro "O Outro Lado da Guerra Colonial - Cantina Oliveira, Moçambique", de Manuel Francisco de Oliveira Ramos, foi apresentado em Torres Novas no passado dia 28 de Outubro de 2012 (Carlos Pinheiro)