terça-feira, 5 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11194: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (3): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes III/IV): Buba e Aldeia Formosa, de 30/7 a 9/8/1968


Guiné >Região de Quínara > Buba > 1968 > Domingo de de Páscoa >  1º Cabo Enf Teixeira, da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)


Guiné >Região do Cacheu > Ingoré > 1968 >  1º Cabo Enf Teixeira, da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)

Fotos: © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados



1. Continuação da publicação do "diário" do José Texeira (ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70) (*), o meu "diário de guerra", que publicámos no nosso blogue, na I série, entre janeiro e março de 2006 (**).

[Toto à direita, Farosadjuma, Cantanhez, Região de Tombali, Guiné-Bissau, 2011]


São apontamentos que o Zé foi escrevendo num caderninho, durante a sua comissão na Guiné (1968/70). É um notável documento humano onde,
 para além de dados factuais (colunas, operações, baixas, topónimos...),  também vêm ao de cima as dúvidas, as contradições e a angústia do português, do homem, e  do cristão (praticante que ele sempre foi). Nesse Agosto de 1968, em Aldeia Formosa (hoje, Quebo), o Zé escreve, dilacerado pelo absurdo daquela guerra: "Ainda não dei um tiro. A minha missão é curar. Jamais darei um tiro nesta guerra. Matar não, nunca. Vou tentar passar esta guerra sem fogo". Vem também ao de cima o poeta que ele é: veja-se a ternura de poema que ele escreveu sobre "As Mãos de Minha Mãe".


Aldeia Formosa, 28 de Julho de 1968

Ontem Aldeia Formosa voltou a ser atacada. Três vezes numa semana é muito.

Hoje fui fazer uma coluna a Gandembel. Tudo correu bem. O IN não atacou nem colocou minas na picada. Só tivemos uma tempestade de chuva. Começamos por ouvir um ruído assustador que se aproximava de nós. De repente surge uma forte ventania que nos arrastava, seguida de uma tromba de água que transformou a picada num rio. Um quarto de hora depois tudo desapareceu e voltou o sol quente que rapidamente nos secou.

Pouca antes de chegar a Gandembel vimos o IN atacar um Fiat das FAP que se incendiou, tendo o piloto saltado de pára-quedas.[***]

Passei no sítio onde há pouco tempo se deu uma terrível emboscada que roubou seis vidas. Quinze fornilhos colocados em série num local onde a tropa ao sentir as primeiras balas da emboscada se esconde. Doze rebentaram no momento em que se iniciou a emboscada e ceifaram seis vidas. Foi uma sorte não ter lá ficado toda a Companhia.

Quando chegamos a Gandembel fomos saudados pelo IN com um pequeno ataque ao aquartelamento, sem consequências. Os camaradas que estão aqui estacionados  [, CCAÇ 2317] dizem que comem disto todos os dias e mais que uma vez. Como é terrível...

Encontrei em Gandembel  o Mário Pinto, meu colega de escola [, foto à esquerda, Buba, 1968], contou-me coisas terríveis que se têm passado neste aquartelamento fortificado, junto à fronteira com a Guiné-Conacri que tem como objectivo cortar os carreiros de ligação à "estrada da morte" impedindo o IN de fazer os abastecimentos.
-Será verdade que vamos ficar nesta zona por muito tempo ?

Odeio... Odeio os homens que se guerreiam e matam. No entanto eu também sou um deles... O Inimigo também tem namorada, mulher, filhos... também se agarra aos seus santos protectores...

Pergunto-me se quantas vezes ao sair para o mato as portas das Tabancas se abrem e surgem caras, um sorriso, um braço no ar ... um desejo de "bom biaje", se não serão essas mesmas caras com o ódio estampado que nos esperam no meio da bolanha, prontos a matar quem não quer fazer guerra, mas foi obrigado pelo sentido de Pátria em que foi educado ?

Toda a cara preta me parece um IN. Odeio o IN porque é traiçoeiro,porque mata.

Aldeia Formosa, 30 de Julho 1968

Ontem o IN voltou a atacar Aldeia Formosa. Meia dúzia de granadas de morteiro, que caíram bem longe. Que quererá o IN com estes pequenos ataques ?


As Mãos de minha mãe

As mãos de minha mãe!
Mãos belas e puras,
Mãos de santa.
Mãos que sofreram, trabalharam,
Mãos que se sacrificaram,
... Para que não me faltasse o pão.
Mãos calejadas, doridas,
Sangrentas, mesmo.
As mãos de minha mãe !...

Era pequenino,
Talvez ainda não compreendesse
As mil carícias que me faziam,
Todo o amor que me dedicavam
Mas já sentia o calor dessas mãos.
Já sentia o seu amor,
O seu carinho.
Parece que sentia mesmo,
O enorme esforço dessas mãos.
Os sacrifícios de minha mãe.
O trabalho a que se votava,
A fome que passava
Para que nada faltasse
À criança
Que no berço dormia feliz,
Embalada com tanto amor.

... Como são belas
As mãos de minha mãe !...


Aldeia Formosa, 1 de Agosto 1968

É dia de correio, mas pelos vistos o avião já não vem. Ontem aterraram dois Dakotas com páras e espera-se outro hoje. Mau sinal. Ou me engano muito ou em breve vamos ter "manga de chocolate".

No dia de S. João, enquanto me divertia em Ingoré nas marchas improvisadas do S. João, o pessoal da Companhia 2382 viu arder tudo o que trouxeram da Metrópole, aqui ao lado em Contabane, num ataque inimigo. Felizmente só tiveram 4 feridos. Que rico S. João !

Aldeia Formosa, 2 de Agosto 1968

A guerra é triste... Na estrada da Chamarra ia-se dando mais um drama. Vinte e sete abrigos de três homens e dois fornilhos a serem montados, eram a espera para a Secção que vem todos os dias a Aldeia buscar víveres. Quatro milícias passaram perto e avistando o IN abriram fogo. Três acabaram as munições e fugiram, o quarto, sozinho pôs o IN em fuga. Não fora os milícias e nesse dia a Secção podia ser apanhada à mão.

Pouco tempo antes o IN tinha tentado a sorte no mesmo local. Dizem que um nativo de 12 anos ao ver um branco com farda diferente da do nosso exército lhe apontou a Mauser e matou-o. Era um cubano que junto com outros tinha uma emboscada montada. O miúdo tentou avisar Chamarra e conseguiu-o, mesmo depois de ter apanhado um tiro de raspão no nariz.

Crianças na guerra, será possível ? Que futuro para esta gente que cresce no ódio, na guerra ?.

Aldeia Formosa, 4 de Agosto 1968

Ontem foi comemorado pelo IN o V Aniversário da implantação da luta pela independência da Guiné [ou não seria, antes  o IX Aniversário da Revolta  do Cais do Pinjiguiti, em 3 de agosto de 1959?, LG]. No sector de Buba a festa começou cerca das 22 horas com um ataque a Mampatá com quatro canhões sem recuo e terminou às 3.30 horas em Aldeia Formosa.

Às 22 horas iniciaram em Mampatá. Às 22.30 acordaram Aldeia Formosa com algumas morteiradas e continuaram em Gandembel, Guileje e Buba. Às 24 h recomeçaram em Aldeia Formosa com pequenos intervalos até as 3.30 h., não fazendo feridos.

Hoje o Senhor concedeu-me a graça de ouvir a missa pela telefonia. Sinto-me outro, mais [?, ilegível]... Hoje é dia de correio. Para completar esta boa disposição é preciso que venhas também até mim com a tua confiança.

Ouvi o Spínola dar as boas vindas à tropa vinda da Metrópole. Segundo ele, o tempo de Comissão é de 21 meses.


Buba, 8 de Agosto de 1968

A Guerra e . . . a minha "paz"

Avisto a Selva,
Do outro lado, o mar...
Corpos negros,
Corpos brancos.
Almas assassinas
Que destroem, matam.
Não sabem amar.
Quando entro na guerra,
Esqueço quem sou.
Deram-me uma arma
Tenho que lutar...
Que coisa terrível !
Marca espíritos,
Destrói sentimentos,
Origina ódios.
Mais que tudo isto,
Ensina a matar !...
Mas se eu matar
E a "pátria" o afirma,
Em defesa dos "inocentes"
Buscando a "paz",
Porquê este remorso
Se quero somente amar !?

Aldeia Formosa, 9 de Agosto de 1968

Cheguei à uma da madrugada de Buba. Tinha partido para baixo em coluna no dia 6. Desta vez o IN não apareceu. Fomos e voltámos pela estrada de Nhala.

Estava com medo desta coluna, depois do que aconteceu na última, mas o Senhor protegeu-me, a mim e aos meus colegas de aventura.

Um pelotão de milícia de Aldeia Formosa foi bater a zona de Mampatá, para confundir o IN e sofreu dois mortos e três feridos. Trouxe orelhas de vários IN, mortos durante o combate. É horrível, Senhor... dois mortos e três feridos e... orelhas de vários IN mortos. Alguns, foi a sangue frio, segundo dizem, depois de serem descobertos com ferimentos que os impediam de fugir. Tudo isto é guerra, enquanto uns estavam na rectaguarda feridos, outros, autênticas feras, procuravam IN, irmãos de raça, para os assassinarem. (****)

Os homens não ouvem a voz de Deus, abafam a tua voz com o matraquear das armas. Matar pessoas, porquê ? ... E aquele corte de orelhas, vitorioso !?... Como se fosse um animal ! E se fosse, quem deu ao homem tal direito ?!...

Que faço eu nesta guerra ?... Curo uns e procuro matar outros para salvar a pele? Que culpa tenho eu que os homens não se amem ?!... Me queiram matar sem eu lhes fazer mal nenhum ?!...

Ainda não dei um tiro. A minha missão é curar. Jamais darei um tiro nesta guerra. Matar não, nunca. Vou tentar passar esta guerra sem fogo.



Guiné > Mapa geral da província (1961) > Escala 1/500 mil > Detalhe de região de Quínara, e da estrada Buba - Mampatá - Quebo - Chamarra - Gandembel [junto ao rio Balana, não  constando o topónimo]
_________________

Notas do editor:

(*) Vd. último poste da série > 28 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11168: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (2): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Parte II): Buba-Aldeia Formosa, 39 horas dolorosas para fazer uma picada, de 35 km, em 24/25 de julho de 1968

(**) Vd. I Série, o último poste de 19 postes > 14 Março 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

(***) Vd. poste de 21 de junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1864: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (7): do ataque aterrador de 15 de Julho de 1968 ao Fiat G-91 abatido a 28

(****) Julgo que a milícia em causa era a da Aldeia Formosa, comandada pelo alferes de 2ª linha Aliu Candé, ou Aliu Sanda Candé:

Vd. poste de 4 de dezembro de 20009 > Guiné 63/74 - P5406: Os nossos camaradas guineenses (16): A morte do Aliu Sanda Candé (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P11193: Em busca de ... (217): Faltam 4 elementos para completar a lista nominal dos 184 camaradas que integraram a CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72)... Um deles é o Carlos Alberto de Oliveira Rodrigues... Quem saberá do seu paradeiro ? (Ricardo Lemos, Matosinhos)


Guiné > Subsetor de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Furriéis Rico [Ricardo Lemos] e Pedroso, e Alferes Correia...

Foto: © Fernando Barata (2007). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem de Ricardo Lemos, nosso leitor (e camarada) com data de 4 do corrente:

Data: 4 de Março de 2013,  21h30

Assunto: Procura de um camarada da Guiné (*)

Caro camarada Luís:

Sou um ex-combatente da CCaç 2700, que esteve na Guiné em 1970-1972.

O meu nome é Ricardo Lemos, ex-furriel mecânico.

E-mail: ripele@netcabo.pt

Tenho trabalhado, já lá vai um ano na reconstituição de uma lista de camaradas que pertenceram à 2700,
ou que por lá passaram algum tempo.

A nossa lista é constituida por 184 elementos, tendo já falecido 28 camaradas.

Estão quase todos referenciados, com moradas, telefones, e-mail, etc. Ainda nos faltam 4 elementos. Este "ainda" é muito bom...

Lembro-me de ver no teu blog o nome de CARLOS ALBERTO DE OLIVEIRA RODRIGUES [Vd. poste P1150, de 26/2/2007] (**).

Este camarada pertenceu à 2700, a partir de Novembro de 1971. Portanto, esteve connosco durante 4 meses. Devia ter sido colocado na nossa Companhia, a substituir um soldado nosso que faleceu em Outubro de 1971, em combate.

Este é um dos camaradas que nos falta saber o seu paradeiro. Será possível uma ajuda do camarada Luís?

Com os melhores cumprimentos,
Matosinhos, 4 de Março de 2013
Ricardo Lemos

2. Comentário de L.G.:

Ricardo, sê bem vindo!...E obrigado por recorreres ao nosso blogue para tentar localizar um antigo camarada teu, da CCAÇ 2700, do qual não parece haver rasto...Mas comecemos por um detalhe: Tu eras/és o Ricardo Pereira Lemos, fur mil manut auto, mais conhecido, na Dulombi do teu tempo, pelo fur mil Rico... Certo ?... E meteste-te na louvável mas hercúlea tarefa de juntar, pelo menos num lista nominal, todo o pessoal que passou pela CCAÇ 2700, ao todo 184 camaradas, dos quais 15% já morreram...E faltam-te os contactos ou os paradeiros de 4 (quatro!), incluindo o Carlos Alberto de Oliveira Rodrigues, que faz parte do vosso recomplemento em novembro de 1971, a 4 meses do final da comissão... 

Ficamos sensibilizados pela tua iniciativa, que contará certamente com o apoio de camaradas tão ativos como o Fernando Barata, o primeiro de vocês - se não me engano - a entrar para o nosso blogue. Aliás, é o Fernando Barata que refere o nome do Carlos Alberto, num dos seus postes sobre a história das unidade (**)... Não temos, infelizmente, mais nenhum elemento informativo, no nosso blogue, sobre o camarada que procuras,. Mas aqui fica o teu pedido. Espero que alguém te possa ajudar e o que o próprio Carlos Alberto, se por acaso nos ler, dê sinais de vida... Pesquisando na Net (Google="Carlos Alberto de Oliveira Rodrigues", com aspas...), é possível que encontres alguma pista, mesmo que ténue... 

Constatando, por outro lado, que o teu ilustre nome não consta, como grã-tabanqueiro, nos nossos públicos ficheiros (leia-se: não és ainda membro da nossa Tabanca Grande... ), ficas desde convidado a tratar, com o o nosso editor Carlos Vinhal, teu conterrâneo e vizinho, da papelada para um entrada em grande, pela porta grande do nosso tabancaql... (Como sabes, a pertença ao "clube" dos amigos e camaradas da Guiné custa apenas duas fotos tipo passe, uma antiga e outra atual + uma história, basta um simples apresentação... Como todos somos poucos, e cada  vez menos - pela lei natural da vida - , para partilhar e preservar as memórias daqueles tempos e lugares, contamos contigo, camarada!).
_______________

Notas do editor:

(*) Vd. último poste da série > 2 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11181: Em busca de ... (216): O meu professor, em Afiá, Aldeia Formosa, o ex- 1º cabo Abeltino José Rocha (Sori Baldé, secretário executivo da ONG ADI - Associação para o Desenvolvimento Integrado)

(**) Vd, poste de 26 de fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1550: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (2): A nossa gente

(...) Em Setembro é recompletado o quadro com a chegada do soldado José Luís da Silva Navalha. Igual situação se passa, em Novembro, com a chegada dos soldados Carlos Alberto de Oliveira Rodrigues e José da S. Alves. Por outro lado, o Furriel João Costa é transferido para a CCAÇ 14 do BART 3844, experimentando sentido inverso o 1.º Cabo António Fernando da Silva, vindo da CCAÇ 3327. (...)

segunda-feira, 4 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11192: Tabanca Grande (388): Fernando Macedo, ex-1.º Cabo Apontador de Artilharia Pesada do 5.º Pel Art (Cabedu, 1971/72)

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Fernando Macedo (ex-1.º Cabo Apontador de Artilharia Pesada (10,5), 5.º Pel Art, Cabedu, 1971/72), com data de 26 de Fevereiro de 2013:

Boa noite Camarada:

Faz tempo que acompanho este blog assim como outros, onde cheguei a lançar pedido no sentido de encontrar camaradas do 5º pelotão de Artilharia que esteve em Cabedu entre 1971/1972, sem sucesso.

Sou Fernando Macedo, ex-1º Cabo Apontador de Artilharia Pesada (10,5), natural de Bonfim, Porto, nascido a 26 de Janeiro de 1949.

Embarquei para a Guiné em Abril, a bordo do Angra do Heroísmo atracando a 1 Junho de 1971.

Nove dias depois, periquito, tive meu batismo, nem queria acreditar, Bissau era atacada pela primeira vez assim como várias localidades próximas da capital. Tinha-me encontrado com um primo, Policia Militar no território há já longos meses, num café na baixa de Bissau.

Bom, foi um desatino completo com o pessoal a recolher aos quartéis.
Apanhei boleia para a minha Unidade, GA7. Era na verdade uma grande agitação, ao fim de não sei quanto tempo, que me pareceram horas, de formaturas e espera, seguiram várias colunas militares com vários destinos e eu fui parar a Nhacra, regressando a Bissau no dia seguinte, 10 Junho.

Duas semanas depois segui de batelão para Cabedu, onde estava sediada parte da CCAÇ 2792. O destacamento era Comandado pelo Alferes Paiva.

Fui em rendição individual substituir um camarada que estava a acabar a comissão, a bateria de obuses era comandada pelo Alferes Nolasco natural de Macau excelente homem.

Poucos meses depois sofri perfuração do tímpano do ouvido esquerdo, agravado com uma infeção na sequência das detonações, tendo dez meses depois  de ter regressado a casa sido submetido a uma operação no hospital de São João, no Porto, em Dezembro de 1972.
Resultado final, surdez completa do ouvido esquerdo.

De momento, sem outro assunto,
Fernando Macedo.


Vista aérea do destacamento e da tabanca de Cabedu
Foto: © Tony Grilo (2009). Direitos reservados.

2. Comentário do editor:

Caro camarada Fernando Macedo, bem-vindo à Tabanca Grande e a esta tertúlia de ex-combatentes da Guiné.

O episódio que contas do ataque a Bissau, que aconteceu exactamente no dia 9 de Junho de 1971, quase o vivia em directo.

Estava programada uma visita de estudo à Capital da Província, como prémio (de consolação) pelo esforço dispendido à protecção da construção do troço de estrada entre o Bironque e o K3, a dois dos pelotões da minha Companhia, precisamente no dia 10 de Junho, que como sabes era o dia em que a guerra parava para festejar o Dia da Raça, como então se dizia. Cumpriu-se apesar de tudo a promessa, e lá andámos nós a fazer turismo numa Bissau acagaçada, desculpa o termo, e deserta porque a malta ainda estava atordoada pelo fogachal do dia anterior.

Estás a ver a diferença, nós vínhamos do mato onde as morteiradas nos caíam no prato da sopa, não a quilómetros das esplanadas dos cafés.

Voltando a ti, já que te apresentaste, sabendo nós que andaste por Cabedu, lá para o sul da Guiné, tens que nos falar das tuas memórias desse tempo. Se tiveres fotos, também as queremos mostrar à malta. Eu tenho especial curiosidade pela paisagem do sul, muito diferente da do norte por onde andei.

Sabes que o principal objectivo do nosso blogue é o registo de acontecimentos e vivências contados na primeira pessoa, para que não sejam os outros a fazê-lo, um dia,  por nós, gente até que nunca pisou aquela terra vermelha, com a qual se fazia lama misturando o próprio suor.

Para terminar a tua apresentação, deixo-te um abraço em nome da tertúlia e dos editores.

O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 19 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11114: Tabanca Grande (387): Carlos Afeitos, professor, ex-cooperante na Guiné-Bissau, agora a viver em Inglaterra, novo grã-tabanqueiro nº 606

Guiné 63/74 - P11191: Memória dos lugares (221): Gandembel: fotos de 1968 (Idálio Reis), 2008 (Luís Graça) e 2011 (Carlos Afeitos) (Parte II)


Foto nº 13 (Luís Graça, 2008)


Foto nº 14 (Luís Graça, 2008)


Foto nº 15 (Luís Graça, 2008)


Foto nº 16  (Luís Graça, 2008)



Foto nº 17 (Luís Graça, 2008)


Foto nº 18 (Luís Graça, 2008)


Foto nº 19 (Carlos Afeitos, 2011)


Foto nº 20 (Carlos Afeitos, 2011)


Foto nº 21 (Carlos Afeitos, 2011)


Foto nº 22 (Idálio Reis, 1968)


Foto nº 23  (Idálio Reis, 1968)


Foto nº 24  (Idálio Reis, 1968)


Foto nº 25  (Idálio Reis, 1968)

Guiné - Bissau > Região de Tombali > Gandembel > Fotos de três épocas:  1068 (Idálio Reis), 2008 (Luís Graça) e 2011 ( Carlos Afeitoas).


Carlos Afeitos, professor de matemática, cooperante na Guiné-Bissau, durante 4 anos (2008-2012), é nosso mais recente membro da Tabanca Grande, com o nº 606 [, foto à esquerda]. Está na neste momento a fzer um metrado em Inglaterra. Já nos mandou fotos dos restos de alguns dos nossos aquartelamentos (Gadamael, Gandembel, K3).

O Idálio Reis não precisa de apresentação: foi um dos bravos construtores e defensores de Gandembel e ponte Balana (CCAÇ 2317, 1968/79). Luís Graça, por seu turno, passou por estes sítios em 1 de março de 2008, de visita ao sul da Guiné.

Recorde-se que Gandembel, tal como outras guarnições militares no sul, foi abandonada - em 28 de janeiro de 1969 - por ordem expressa do Com Chefe, 292 dias depois do início da saua construção e após 372 ataques e flagelações. (LG).

Guiné 63/74 - P11190: Notas de leitura (461): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Novembro de 2012:

Queridos amigos,
Dando continuação à transcrição de folhas policopiadas cuja data desconheço, a verdade é que referem o Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa, embora seja de supor tratar-se de um espetáculo de cantares Mandingas para o qual foram compilados vários textos e onde não terá sido alheia a mão de Manuel Belchior, um funcionário ultramarino que trabalhou na Guiné e com uma missão claramente cultural, juntam-se agora elementos que têm a ver com lendas Mandingas ao serviço de música do Korá.

Braima Galissá confirmou que o pai viera a Portugal onde deu espetáculos, é de supor que estes textos tenham tido essa proveniência.

Um abraço do
Mário


Lendas Mandingas ao serviço de músicas e canções

Beja Santos

Dando continuidade às referências feitas aos Mandingas numas folhas policopiadas que foram editadas pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa, com data desconhecida, refere-se hoje um extrato do livro “Grandeza Africana”, de Manuel Belchior, um funcionário ultramarino que é autor de obras de divulgação, sobretudo da cultura Mandinga.


A canção de Quelé Fabá

Quelé Fabá, a tua lança ficou em Baria.
Tu não tinhas medo da morte.
Quelefá Sané, filho de Mariama Nanki,
porque era o teu almoço e o teu jantar.
Os cobardes, esses vivem mais,
mas nunca terão música para dançar.(1)
(Da canção de Quelé Fabá)

Quelé Fabá Sané, natural de Badora, era o maior guerreiro das terras de Bafatá e Gabu. Ninguém o igualava em temeridade e destreza. Tão alto subia a sua fama que, vários régulos, quando empenhados em guerras, pediam o seu concurso.

Um dia, Demba, senhor de Baria e seu amigo, chamou-o para o auxiliar a combater um chefe vizinho poderoso. Pôs-se Quelé Fabá a caminho, acompanhado de sua mulher, Fendabá, mas antes de partir jurou na sua tabanca que, nem na guerra, nem tão pouco na viagem, voltaria a cara para trás.

A certa altura necessitaram de atravessar um rio e, na canoa, o herói esqueceu-se do juramento feito. Para melhor conduzir o barco, ficou de frente para o ponto de partida. Vendo isto, Fendabá gritou: “Que desgraça! Lembra-te do juramento!”.

Entristeceu Quelé Fabá e disse que o seu esquecimento era de certo presságio de que iria morrer na luta. Implorou a mulher que voltassem para casa, mas o guerreiro ponderou-lhe que perder a vida era uma desgraça mas que perder a honra seria muito pior.

Ficou Fendabá aflita e, chegados que foram a Baria, contou em segredo a Demba o que acontecera, pedindo-lhe que poupasse o amigo a uma morte certa, afastando-o da guerra por meio de qualquer pretexto hábil.

Assim fez Demba, amigo verdadeiro, que incumbiu Quelé Fabá de uma missão distante, garantindo-lhe que não iniciaria a luta antes de ele regressar.

Quando o campeão credulamente seguiu ao destino que lhe fora designado, o régulo partiu para a guerra. Causou espanto em Baria o ato de Demba que, sem motivo conhecido, assim desprezava o concurso de homem tão valente, e a explicação que a alguns ocorreu foi a de que pretendia roubar ao seu amigo uma nova glória.

Por isso, uma bruxa velha e má foi no encalço de Quelé Fabá e, quando o encontrou, disse-lhe que Demba partira para a guerra e por inveja o havia afastado.

Lembrou-se o guerreiro do episódio da canoa e da aflição de Fendabá, concluindo que esta e o amigo se haviam combinado para o salvar. Então, repeliu com desprezo a intriguista, regressou precipitadamente a Baria e dali correu ao campo de batalha.

Quando lá chegou, Demba morrera e os seus homens lutavam já sem esperanças de vitória. Lançou-se Quelé Fabá com ímpeto na refrega e mudou o curso da luta, mas, quando o inimigo ia ser vencido, eis que uma lança adversa o fere de maneira grave.

Admirados com o que acontecera ao herói, que todos supunham invulnerável, os trovadores que animavam os combatentes de Baria gritaram, aflitos:
- Como foi isso, Quelé Fabá? O teu guarda de corpo, o teu chifre mágico, permitiu que fosse assim ferido?(2)

A esta pergunta o próprio chifre respondeu:
- Cada pessoa tem o seu dia para morrer e este é o dia de Quelé Fabá. Por isso, eu não o pude proteger.(3)

Pediu que o guerreio que lhe ligassem fortemente a ferida para o sangue não se escapar muito depressa. Voltou à contenda como um leão esfaimado e desbaratou os últimos inimigos. Depois, caiu exausto e disse aos bardos:
- Até ao meu último suspiro cantem as canções de guerra que eu tanto amei.

Isso fizeram.

Quando sentiu que a morte estava próxima, perguntou-lhes:
- Que vão vocês fazer para que o meu nome fique na memória dos homens?

Então o mais velho dos cantores respondeu por todos:
- Morre em paz. Nós vamos lembrar-te como nunca o foi outro guerreiro. Faremos uma canção que louve os teus feitos e terá o privilégio de ser a primeira que todo o trovador aprenderá. Essa será a canção de Quelé Fabá.(4)
__________

(1) - Aos grandes guerreiros, os “judeus” dedicavam uma composição musical. Nas vésperas de uma batalha, ao som de cada música, o respetivo guerreiro dançavam diante dos outros e dizia o que se propunha fazer no combate

(2) - Guardas de corpo são amuletos que podem ser usados em diversas partes do corpo, pendentes do pescoço, na cintura, nos braço e nos tornozelos. Nos africanos islamizados são versículos de Alcorão dentro de uma caixinha de metal ou de coro. Quelé Fabá era, porém, um Mandinga animista (soninqué) e, por isso, usava um chifre. 

(3) - Os amuletos conservam sempre o seu prestígio, mesmo que a morte venha ao encontro do seu possuidor porque neste caso ou se considera que o guerreiro não tinha o coração puro e não merecia por isso a guarda de corpo, ou, então, na hipótese presente de um verdadeiro herói, chegara a sua hora derradeira. 

(4) - Tive a curiosidade de perguntar ao contar que me narrou esta lenda se de facto fora a canção de Quelé Fabá a primeira que aprendera. Respondeu-me afirmativamente.



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Nota do editor:

Vd. poste anterior de 1 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11174: Notas de leitura (460): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P11189: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (9): O batizado muçulmano da Aminata, a filha do padeiro

1. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, por Anabela Pires (Parte IX) (*) 

[,  Foto à direita; créditos fotográficos: JERO]


20 de Fevereiro de 2012

Ainda não são 9 horas e vai uma grande azáfama no terreiro das mulheres. Eu não tinha percebido bem o que se ia passar. A Satu tinha-me dito que iam cortar o cabelo à Aminata, a menina que nasceu há dias e que é filha do meu vizinho padeiro e que, por sinal, nasceu com uma enorme cabeleira, e fazer uma festa. Afinal trata-se do batizado da menina.

Em frente à casa do Abubacar e da Satu está tudo a postos para a cerimónia à qual também vou assistir. Já fui ao terreiro das mulheres tirar umas fotos, ao panelão de arroz e ao tacho onde estão a cozinhar peixe. Ontem à tarde, quando cheguei da pesca, as mulheres estavam a encher saquinhos de plástico com sumo. Bom, hoje verei como é que organizam uma festa de uma família pobre. Claro que a mentora de toda esta azáfama é a Satu pois a mãe da criança, a Cadi [, a esposa do padeiro}, parece-me ser pessoa de nenhuma iniciativa. Mesmo quando ardeu o telheiro do marido ela não mostrou qualquer inquietação e estava aqui na casa da Satu.

O terreiro da frente já está cheio de homens que vêm assistir à cerimónia, o detrás cheio de mulheres.

Ontem voltei à pesca. Hoje dói-me, literalmente, tudo. Fui e vim a pé, com os habituais companheiros. A piroga de ontem tinha banco para me sentar mas saímos daqui às 9 horas e chegámos às 19. Ainda por cima estou adoentada, constipada e com tosse. Por regra dentro das pirogas há sempre uma enorme rede de pesca que só empata! Bem, fiquei com uma dor nos joelhos, por não poder esticar bem as pernas. Entra água na piroga e fica tudo molhado, tudo imundo. Tinha levado sanduíches dentro de uma caixa e outras num saco plástico. Quando fui tirar as do saco de plástico, aqui chamado oleado, estavam ensopadas em água salgada. 

Apanhei uma raia (estou a pensar fazer raia alhada para o jantar), 2 garoupas (aqui chamadas bedandas do mar de fora) e um barbo (o tal parecido com a faneca). O Sambajuma apanhou um charroco, um peixe maior de que não sei o nome e um tipo esquiló (ruivo cinzento) mas que não é esquiló. Isto está a melhorar. Desgosto foi ter perdido um peixe grande que conseguiu partir o fio quando já o estava a tirar da água. Não o cheguei a ver mas que era grande isso era. Para a próxima levo os empates com estralhos de aço pois ontem fiquei várias vezes sem anzol. E vou levar o carreto mais forte. 

O Sambajuma quer levar-me ao “mar grande” mas para isso não pudemos levar o Gassimo pois ele tem medo. Ontem, cada vez que me mexia na piroga o Gassimo refilava pois tem um medo enorme mesmo estando sentado no fundo da piroga. E eu até tenho algum receio de o levar pois já percebi que ele não sabe nadar bem e não temos quaisquer meios de salvação. Quem fica sempre na maior tristeza por não ir é o Alaje. Tenho muita pena de não o levar mas ele tem cinco anos e é responsabilidade a mais. É um menino muito inteligente, com um sorriso lindo. Adoro este menino que a toda a hora se aleija! Ando sempre a fazer-lhe curativos nos pés. Até me parece que ele já se aleija de propósito para eu lhe fazer os curativos. Gosta muito de cantar e aprende rapidamente as canções, que não sei, mas tento ensinar-lhe. Aí minha irmã, cá te espero com a viola para ensinares cantigas ao Alaje.

Por falar em meninos, quero dizer aos meninos de Portugal que, num mês, os únicos brinquedos que vi foram: um peluche às costas de uma menina, fisgas feitas de paus e borracha de câmara-de-ar e um aro de uma bicicleta tocado por um pau. A diferença entre os brinquedos que os meus meninos de Portugal têm e os brinquedos que os meninos da Guiné não têm é abismal. Mas estes meninos são felizes, desde que a barriga esteja cheia e não estejam doentes. O que mais me custa é ver meninos todos ranhosos. Porque sujos já percebi que é impossível não estarem. Aqui os meninos da Satu, como todas as pessoas que aqui vivem, tomam banho diariamente. Meia hora depois do banho as crianças estão sujas da terra.

Vou agora parar para ir ver o que se passa lá fora.


22 de Fevereiro de 2012

Acabei por perder a parte principal do batizado. A Satu, com a confusão, esqueceu-se de me chamar. Espreitei pela janela e vi os homens, rapazes e meninos, já a lavarem as mãos para comerem. Saí e a Aminata já tinha sido batizada e já tinha o cabelo rapado. Na varanda do Abubacar estava o Imã e o seu séquito. Ao fundo das escadas estavam duas mulheres grandes, as mulheres mais velhas, a mãe da criança e a menina. Tinham-lhe rapado o cabelo e numa cabaça havia água, folhas, cola e não sei que mais. Disse-me a mulher grande que era para a menina ficar de cabeça limpa. É curioso como os rituais entre as religiões muçulmana e a católica têm tantas semelhanças.

Foi então servido o pequeno-almoço ao sexo masculino. Grandes tigelas de arroz com peixe e os homens reúnem-se agachados à volta de uma tigela em função, mais ou menos, da idade e comem com a mão (com uma delas, a considerada limpa, creio que é a direita, porque a outra é aquela com que se lavam e por isso é considerada suja). Também havia um grupo de meninos à volta de uma tigela. 

As mulheres, à excepção das três que trouxeram a menina, não saíram do terreiro detrás. Depois foram distribuídos saquinhos de bolachinhas (um pacote destas bolachas custa 50 FCFA, o que equivale a cerca de 8 cêntimos, mas de 1 pacote foram feitos 2 ou 3) e de sumo. Entretanto foi morto um cabrito e, penso que a cada chefe de família, foi oferecido um naco de carne para levarem para casa. Levaram a carne na mão, sem qualquer tipo de acondicionamento. Lembro-me muitas vezes da ASAE e dá-me vontade de rir! Levadas à letra todas as exigências da ASAE por aqui já estaríamos todos mortos! 

E assim terminou o batizado. Os terreiros ficaram pejados de saquinhos de plástico que o Abubacar teve o cuidado de imediatamente mandar retirar. Ainda ontem continuava a retirada de plásticos e de latas de refrigerantes. Como só tinha comido um pacotinho de bolachas do batizado, e talvez por ter dado um contributo para o mesmo, ofereceram-me um pacote de bolacha Maria e 2 refrigerantes. Os contributos não são obrigatórios mas quem pode e quer dá. Assim, no final, havia um homem a contar o dinheiro recebido dos convidados. E assim foi a festa do batizado da Aminata que é de uma família com poucas posses.

Vi na festa, pela primeira vez, uma mulher de burca preta. Já tenho visto algumas de véu mas de burca foi a primeira vez. Estas mulheres são sempre da Guiné Conacri. As mulheres muçulmanas da Guiné-Bissau não usam véu, nem burca. São, aliás, muito “liberais” pois com frequência as vejo de blusas ou vestidos de alças.

[ Fotos, acima, Iemberém, dezembro de 2009:  © João Graça (2009). Todos os direitos reservados]

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Nota do editor:

domingo, 3 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11188: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (27): 28.º episódio: Memórias avulsas (9): Do inferno para o céu

1. O nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), em mensagem do dia 24 de Fevereiro de 2013, enviou-nos mais esta história para publicar na sua série "Os melhores 40 meses da minha vida".


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA (27)

GUINÉ 65/67 - MEMÓRIAS AVULSAS

(9) DO INFERNO PARA O CÉU

Confesso que me tem sido útil estar aqui a VIVER Guiné e por isso se foram alguns dos fantasmas que me incomodavam desde 1967. E tenho-o feito a brincar... a brincar com os momentos vividos, particularmente no que se refere aos doze meses no mato em Mansabá, Bissorã, Manhau, Pelundo, Jolmete e K3. Já os últimos oito meses da comissão foram passados em Bissau.

Tiro... e queda... e nem ainda hoje acredito... mas na verdade tive de abandonar a minha CCAÇ 1422.

Inicialmente, por motivos odiosos e alheios à minha vontade, "voluntariei-me" para fazer parte da 3ª Companhia de Comandos do Quartel General, só que essa integração após a aprovação dos exames a que me sujeitaram, não foi possível dada a chegada duma verdadeira, treinada e formada na Metrópole.

Enquanto aguardava o regresso ao ponto de partida, colocaram-me, para ajudar administrativamente, na Secção de Funerais e Registo de Sepulturas/1ª Repartição/QG e que acabei por vir a chefiar.
São-me disponibilizadas, residência militar junto à messe em Santa Luzia e também uma viatura descaracterizada, um mini moke.

Sem obrigações nem horários, competia-me unicamente, estar sempre disponível para enfrentar os funestos acontecimentos, inerentes à função que agora exercia. Ao saber destes, tinham de ser imediatamente tomadas as providências para que tais cruéis notícias fossem transmitidas para Lisboa, a fim de que, do HORROR, fosse dado primeiro, conhecimento aos familiares.
Impunha-se-me, que nalguns casos, fizesse o reconhecimento presencial, na morgue do Hospital Militar, se antes as Companhias onde o desenlace se dera, mo não comunicassem. Vinham a seguir, as cerimónias religiosas e toda a elaboração da documentação para a célere trasladação.

Como vêem, saíra do Inferno e estava agora no purgatório nada fácil e com tantos sentimentos contraditórios, a quererem destruir-me.

O CÉU Bissau pois. A cidade tinha de tudo... fui sócio da UDIB; ia ao cinema... ao aeroporto... ao cais ver quem chega, nem sonhando a que martírio..., contrastando com a alegria dos que partiam... nos : Uige... Niassa... Manuel Alfredo... Rita Maria... Ana Mafalda.

A minha presença era requerida no futebol... nos locais com boa comida... na piscina de Nhacra... nos camarões em Quinhamel... e tudo no maior sossego que por ali não se vislumbrava ainda a guerra ...nem haviam bolanhas para atravessar... nem percutores do morteiro para substituir ou sequer G3 para olear.

A relação com os cidadãos, de amizade mais tarde, era excelente e facilmente nos acolhiam nos seus seios. Existiam grandes armazéns que tudo vendiam desde agulhas a automóveis e nos mercados nada faltava.

As noites eram famosas e já apareciam simulacros de boites. Em momentos vagos, visitei a Sé... o Liceu... o palácio do Governador (Arnaldo Schutlz então)... o Pilão... a fábrica da gasosas... o café Portugal... o Pintosinho... a Ultramarina... a casa Gouveia... O BNU... a rádio... as tascas que serviam ostras ao natural... as...........enfim!!!

Sozinho rezei, sem o saber fazer, na capela do cemitério e aí então, esgotei as lágrimas enquanto "falava" com os amigos que já não me podiam responder.

(Continua)

Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério Municipal > Talhão Militar Central > Abril de 2006 > Monumento que celebra os soldados portugueses, mortos nas diversas campanhas de pacificação da Guiné, desde a Campa do Geba (1890) à Campanha do Cuor (1907/08), passando pelas Campamhas do Oio e Bissorã (1913), onde se destacou o Capitão Diabo, Teixeira Pinto. 
Neste cemitério (que tem três talhões, reservados aos combatentes portugueses mortos em campanha), repousam os restos mortais do Sold António da Purificação Marques, morto no início do ano de 1966, em combate, em Darsalame, no Cantanhez. Campa nº 33. 
Foto: © Hugo Costa (2006). Direitos reservados.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 24 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11146: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (26): 27.º episódio: Memórias avulsas (8): Alto e pára a guerra

Guiné 63/74 - P11187: Memórias de Mário Oliveira, Cabo Condutor de Máquinas da Vedeta de Fiscalização Belatrix (2): A vaca do Cabo Jaquim

1. Mensagem do nosso camarada Mário Ferreira de Oliveira (1º Cabo Condutor de Máquinas, na situação de reforma, Vedeta de Fiscalização Bellatrix, 1961/63), com data de 8 de Janeiro de 2013:

Carlos Vinhal Meu camarada e Editor
Mantanhas
Aconteceu uma quase desgraça: inadvertidamente apaguei sem guardar os email recebidos da Tabaca Grande.
Estive agora cerca de um mês sem abrir o email porque estive três semanas em Cantanhede, e além disso tenho andado um pouco adoentado, isto é um corpo “velho” de 76 anos a resistir às “ordens” de uma mente que teima em manter-se jovem. Antes de ir para a parvónia tinha alinhavado a segunda história da arca de recordações da Guiné, aqui vai ela!


Memórias de Mário Oliveira, Cabo Condutor de Máquinas da Vedeta de Fiscalização Bellatrix

2 - A Vaca do Cabo Jaquim

O herói da história de hoje era “patrão” da LDP 1 ou 2 (?) o Cabo de Manobra Joaquim. Sei que era de Setúbal, tinha mais de 40 anos de idade, e um perímetro abdominal directamente proporcional aos petiscos em que se envolvia sempre que podia, não fosse ele de Setúbal cidade de bons petiscos e melhores vinhos. Tinha como “imediato” o Luís Marinheiro de Manobra, que era um “castiço do caraças” e vai ser o herói da história nº 3, não me recordo quem era o Fogueiro da LDP.

O Cabo Joaquim era respeitado pela malta toda, quer pela sua idade quer por ser um bom marinheiro e era tratado familiarmente por “cabo Jaquim”. Tinha por mim um especial ”carinho”e tratava-me por Márinho, tratamento que eu nunca admiti a f. da p. nenhum (diminutivos são para as mulheres) mas que a ele admitia e vou contar porquê.

Todos os Grã Tabaqueiros sabem o que são os tornados na Guiné, como se formam e como rapidamente nos surpreendem com rajadas de vento de extrema violência e chuva torrencial. As LDP não eram habitáveis, pelo que as guarnições depois de as fundearem da parte de dentro da ponte cais de Bissau iam para o edifício onde era a Rádio Naval, o refeitório e caserna das praças (agora dizem é chique dizer : Os Praças).

Ponte Cais de Bissau

Um dia pela manhã cedo formou-se rapidamente um tornado, que fez garrar a LDP do Jaquim indo esta em poucos minutos embater violentamente na ponte cais. Era de partir o coração um navio novinho em folha sujeito a desfazer-se com os porradões que dava nos pilares em cimento da ponte cais. E nós na Bellatrix amarrada com bons cabos, a ver a triste cena. Não vi outra solução que não fosse acudir à emergência, subi a escada, corri pela ponte cais e depois de estudar os movimentos que a LDP fazia com a forte ondulação (não sou maluco) saltei-lhe para dentro, lá me equilibrei até à casinha da máquina, arranquei com os motores, peguei no leme, fiz marcha à ré e afastei a LDP do perigo maior. Depois fiz-me ao largo e aguentei proa ao vento até o tornado amainar. Entretanto sem eu dar por isso tinha em cima da ponte cais uma “plateia” composta pelo Comandante da Defesa Marítima, cabo Jaquim e toda a sua “tripulação” gente que eu não tinha tido tempo de ver, envolvido que estava com o leme e com a máquina.

Quando atraquei o Jaquim vem direito a mim com lágrimas nos olhos e diz-me:
- Oh! Márinho se não fosses tu a minha Lanchinha tinha ido ao fundo.

O sacana ia-me partindo as costelas com o abraço que me deu.

Claro está que nesse dia fui o “herói de serviço”, toda a malta me dizia:
- Eh pá prepara o peito que vem aí bruta medalha!

Não veio a bruta medalha, (nem era caso para isso) mas veio coisa muito mais útil, uma bruta garrafa de Macieira oferecida pelo “Contramestre Manel”, disse ele para “aquecer” e a gratidão eterna do camarada cabo Jaquim.

Como sabem a Armada Portuguesa é casa de velhas tradições que a marujada faz questão de cumprir, uma delas é bem portuguesa: as alcunhas!

Uma alcunha pode ser depreciativa, como por exemplo: “Pintelho eléctrico”, “Peúgas”, “Botinhas”, “Ferro em Brasa”, “Rupias”, “Cabeça de Vaca”, “Tomate Saloio” e tantas outras aplicadas aos oficiais que traziam da vida privada para os navios o mau humor das suas vidas e aliviavam o stress como agora se diz, perseguindo por ninharias a marinhagem.

Mas também havia alcunhas que demonstravam o muito respeito que os marinheiros nutriam por alguns oficiais, que pelo seu profissionalismo, coragem, exemplo e humanismo se impunham à consideração e respeito das guarnições dos navios. Estou a lembrar-me de “Quebra-Mar” alcunha do Capitão de Mar-e-Guerra Mário dos Reis Antunes, ou “Boroeste” alcunha do na altura 1º Tenente Barros, natural da região de S. Pedro do Sul, ou “Contramestre Manel” alcunha do na altura Capitão de Fragata Manuel Lopes de Mendonça, Comandante da Defesa Maritima da Guiné ou seja o nosso Comandante.

O “Contramestre Manel” era neto ou bisneto do Comandante Henrique Lopes de Mendonça, oficial de elevada cultura, membro da Academia das Ciências, etc. etc. etc. que foi quem escreveu em 1890 a letra de ” A Portuguesa “


Feitas as apresentações vamos lá à história da vaca. 

Um dia o cabo Jaquim foi com a LDP em serviço a Jabadá, que como se recordam ficava a umas milhas, poucas, no Geba a montante de Bissau. Encontrou por lá uma vaca, e logo imaginou as “petisqueiras” que a vaca dava.

 Localização de Jabadá. Vd. carta de Tite

Abica a LDP junto às oficinas navais, descarrega a bichinha, amarra-a nas imediações da cozinha e toca a fazer os convites para a petiscada e arranjar quem matasse e esfolasse a desgraçada que em má hora se atravessou no caminho de um marujo.

Claro que o “Márinho”, estando a Bellatrix no plano, estava disponível e foi dos primeiros a ser convidado.

Andávamos nós junto à cozinha, “salivando” e preparando a “orgia”, “cabeça de gesso” trazido da Manutenção Militar aberto, primeiros copos bebidos, tudo isto na hora do serviço, chega o “Contramestre Manel”, vê por ali aquele “maralhal” todo, (todo não, alguns quando o viram aproximar-se, foram-se pirando) e admirado de ver uma vaca viva, manda chamar o cabo do rancho e pergunta?
- Olha lá, então apresentas na contabilidade facturas de bifes e tens aqui uma vaca?
- Senhor Comandante a vaca não é minha, é do cabo Jaquim!

Entretanto o Jaquim que estava por perto, aproxima-se faz a continência e diz:
- Senhor Comandante a vaca é minha!
- Ai é! Onde é que a compraste?
- Não a comprei, achei-a!
- Achaste a vaca! Então uma vaca é lá coisa que se ache, troca lá isso por miúdo?
- Senhor Comandante fui a Jabadá fazer o serviço tal, encontrei lá a vaca meti-a na Lancha e trouxe-a.

Diz-lhe o Comandante:
- Olha lá Joaquim, se na tua terra as vacas não têm dono, aqui na Guiné ficas a saber que têm! Não te aplico já uma “porrada” porque tens a caderneta limpa, mas vais imediatamente levar a vaca ao mesmo sitio onde a encontraste.

O cabo Jaquim, de orelha murcha, dando graças a Deus por não ter sido castigado disciplinarmente, foi levar a bichinha a Jabadá, e nós na imergência fizemos uma “punheta de bacalhau” para darmos conta do “cabeça de gesso”.

 Vidal, Karamon Kêta e Mário Oliveira

1961 > Batuque de Africanos e Europeus >  Mário Ferreira de Oliveira Cabo Condutor de Máquinas
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Nota do editor:

Vd. poste anterior de 10 de Janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10922: Memórias de Mário Oliveira, Cabo Condutor de Máquinas da Vedeta de Fiscalização Belatrix (1): O Soldado Desconhecido do Ana Mafalda, 1961

Guiné 63/74 - P11186: História da CCAÇ 2679 (62): Um caso com o Vieira (José Manuel Matos Dinis / Cândido Morais)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 20 de Fevereiro de 2013:

Meus amigos Carlos e Cândido,
Aqui vai um novo trecho da História da CCaç 2679, desta vez subscrito pelo Cândido Morais, e que reporta num estilo bem comunicativo, mais uma estória sobre a sageza e oportunidade do nosso capitão Trapinhos.
O Cândido centraliza a estória na atitude tomada pelo Vieira, mas eu considero que é ele mesmo, o Cândido, o ilustre herói da narrativa. Porque heróis foram também todos aqueles que não se queixavam e estavam prontos para a solidariedade. É característica dele a altruísta entreajuda manifestada. A ele não caíam os parentes na lama, sempre que decidia ajudar um subordinado em dificuldades, pois a todos considerava camaradas.
Era um exemplo a seguir.

Daqui envio um grande abraço para ambos
JD

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HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

62 - Um caso com o Vieira

Cândido Morais

O Vieira era um homem calmo, por natureza. Com ele podiamos conversar, sem corrermos riscos de algum atropelo verbal, pois media cuidadosamente tudo o que dizia, tornando-se evidente que se preocupava com o interlocutor, não pretendendo maçá-lo e deixando ao seu critério a duração duma conversa. A ele, ninguém poderia apelidar de cansativo, pois estava ali apenas para conversar e não para se constituír parte integrante de uma enfadonha conversa.
Não sei como e quando isso lhe aconteceu, mas chegou ao meu conhecimento que o Vieira tinha grandes dificuldades para dormir. Na verdade, tinha sido atingido pelos efeitos colaterais de uma "roquetada", que, pelos vistos, embatera na frente do abrigo de um posto avançado, projectando os seus estilhaços para as costas do Vieira, que se soerguera um pouco na vala quando respondia a fogo do IN. Pelo menos, foi essa a informação que chegou ao meu conhecimento.

A minha preocupação principal não se concentrou nos tais estilhaços. Segundo me fora dito, os mesmos poderiam manter-se por ali indefinidamente, e o Vieira poderia viver até aos 100 anos com eles nas costas, e não seria por causa disso que entregaria a alma ao Criador. O que realmente me preocupava, era o sacrificio que me fora confidenciado por um camarada de armas, que acrescentara a enorme dificuldade que o Vieira sentia quando fazia reforço nos abrigos, pois, como lhe era dado dormir pouco, acabava por executar duplo esforço, enquanto olhava para lá do arame farpado na solidão que se proectava savana fora.

Um dia, tive com ele uma das tais conversas, durante a qual me contou grande parte da sua vida e me confessou as dificuldades que passava, por causa dos tais estilhaços. Acabei a ouvi-lo atentamente, e a pensar como poderia ajudá-lo em tão doloroso sofrimento, definindo lentamente uma decisão:
- Olhe, Vieira, eu não me importo de fazer o seu turno de reforço. Ao fim e ao cabo, são duas horinhas que tiro ao sono, e a essas horas da noite, até dá para pensar um pouco mais, ali sozinho, longe de tudo e de todos.

Eu não contava que o Vieira aceitasse tão prontamente, desfazendo-se em elogios e agradecimentos endereçados à minha pessoa. Disse-lhe que nada tinha a agradecer, e antes era meu dever colaborar com todos os camaradas, para levarmos aqueles dois anos a bom termo, dentro da maior amizade e camaradagem. Pedi-lhe, por isso, que não comentasse a minha disponibilidade, e que o facto ficasse apenas entre nós, pois não havia vantagem nenhuma em que mais alguém soubesse.

Mas soube. Não foi preciso passar muito tempo para se saber que o furriel estava a fazer os turnos de reforço do Vieira, não por que este tivesse falseado a sua promessa de sigilo, mas por que talvez não fosse habitual os furriéis consagrarem-se a essa actividade. Ao fim e ao cabo, eu teria sempre de ir acordar o reforço seguinte, que estranharia a minha presença nessa missão diária...

Passou-se, contudo, um mês, sem qualquer ocorrência, ligada ao facto, que importunasse esse desempenho. Até que, um dia, me vieram dizer que o Comandante de Companhia soubera do que se passava e, mais uma vez, decidira dar o seu ar de mando, chamando o Vieira e perguntando-lhe se tal era verdade. Este, segundo me informaram, respondeu prontamente que sim, voltando a referir a minha pessoa em tom elogioso e dizendo que isso lhe aliviava, e muito, o sofrimento. O nosso Comandante ouviu-o atentamente e, depois, mandou-o embora, dizendo-lhe que o chamaria brevemente, para continuarem a conversa.

Essa conversa, não chegou a acontecer, nem com o Vieira, nem comigo. Mandou-lhe recado por um cabo da secção, dizendo-lhe que teria de reiniciar o reforço, pois as necessidades de pessoal eram grandes e o sacrificio tinha de ser repartido por todos. Nesta justificação, não teve oportunidade de ponderar a minha disponibilidade, e eu ainda hoje não sei quais foram as razões que o impeliram a proferir essa ordem por interposta pessoa.

Eu não assisti à cena que se seguiu, mas vieram contar-ma à camarata onde dormitava, e confesso que sorri ao ouvir esse relato, conhecedor que era das falas mansas do Vieira e da sua enorme vontade de não chatear ninguém, mesmo que fosse para levar a cabo uma acção radical. Disse-me então a minha fonte que o Vieira, depois de lhe ser transmitida a decisão do Comando, pegou numa granada de mão e dirigiu-se ao gabinete do nosso Comandante, onde pediu educadamente licença para entrar:
- O meu Comandante dá-me licença?
- Entre! O que o traz por cá?
- Disseram-me que o meu Comandante mandou que eu fizesse reforço outra vez, e eu vim cá confirmar...
- Sim senhor! Você vai ter de fazer reforço outra vez, e aliás nunca devia ter deixado de o fazer! - Disse-lhe o Comandante.
- Mas sabe, meu capitão, é que me doem tanto as costas!... argumentou o Vieira.

E, se havia uma coisa que o Vieira honrava, era não ser medroso. Por isso, mentalmente, engendrou a melhor forma de levar a cabo aquilo que se determinara fazer e, muito mansamente como era seu timbre, descavilhou a granada e, segurando a respectiva alavanca entre ela e a mão, pousou-a sobre a secretária:
- É que sabe, meu Comandante, as costas estão mesmo a doer-me muito...

Talvez influenciado pelo conhecimento de outros factos do género que, infelizmente, não rareavam entre a tropa e não só em terras da Guiné, o visado ponderou a situação.

 - Que acha, meu Capitão? Acha mesmo que devo fazer reforço?
- Ora, ora, senhor Vieira! Claro que vai deixar de fazer reforço. Eu só estava mesmo a ver se era tudo verdade o que se passava consigo!
- Eu bem me parecia, meu Capitão! Que diabo, as costas doem-me mesmo! Muito obrigado, meu Capitão, e se me dá licença, retiro-me.

Como já disse, eu não assisti a esta conversa. Contaram-ma depois e não foi preciso assistir a ela, conhecendo como conhecia o Soldado Vieira. Mentalmente, idealizei a cena e deu-me uma enorme vontade de sorrir novamente. No íntimo, penso que o Comandante procedeu sensatamente, pois ainda hoje não sei o que teria acontecido no Gabinete (eram três, as pessoas lá presentes), se o Vieira recebesse uma recusa pura e simples. Quanto a mim, que não fui tido nem achado em todo o processo, continuei calmamente a fazer o reforço do Vieira, remetendo insistentemente para o Minho o meu pensamento, naquelas longas e negras noites a olhar o mato ali tão próximo, donde por vezes surgiam ruidos estranhos, uns rápidos e fugazes, outros cansativamente persistentes, entremeados com o irritante riso das hienas, que não tinham pejo em tocar o arame farpado junto ao posto avançado, fazendo tilintar as garrafas de cerveja estrategicamente lá posicionadas para nos alertarem da presença dum intruso

Cândido Morais
ex-Fur Mil
CCAÇ 2679
Bajocunda
1970/71
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 25 de Janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11002: História da CCAÇ 2679 (61): A vingança serve-se fria (José Manuel Matos Dinis)

Guiné 63/74 - P11185: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (6): ...onde também tem lealdade, dedicação e competência

1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires (ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72), com data de 17 de Fevereiro de 2013:


FANTASMAS DO FUNDO BAÚ

6 - No fundo do "baú", também tem ...lealdade, dedicação e competência

Caros Luís Graça/Carlos Vinhal,
Segui a sugestão do Carlos de raspar o fundo do baú, agora ilustrado com algumas fotos que chegaram de São Paulo, e olhem o que eu encontrei... lealdade, dedicação e competência.

Na foto *, Vasco Pires (de camiseta branca) ladeado por dois Grandes Artilheiros, a partir da esquerda o Furriel Oliveira, e à direita o Furriel Krus. Foi pela dedicação e competência destes dois altamente empenhados Furriéis, que o Exmo. Senhor Coronel de Artilharia António Carlos Morais Silva escreveu, mais de quarenta anos depois, neste Blog (P9936):

"...sempre exigi, quando andava no mato, tempo de resposta que não podia exceder 1 minuto e perante uma "saída" das armas IN a resposta imediata de um obus fosse qual fosse, no momento, a direcção de vigilância. Cumpriram sempre e nunca esqueci os excelentes artilheiros...".

A partir da esquerda: Fur Mil Oliveira, um graduado da Companhia de Comandos Africana (?), Alf Mil Vasco Pires e Fur Mil krus

O Pelotão foi colocado, famílias incluídas, na última fileira da tabanca junto ao rio (facilmente localizada na foto de Gadamael). Acredito que foi do Furriel Oliveira, a sugestão de ocuparmos a primeira casa junto ao arame, na realidade uma verdadeira "mansão" com dois quartos sala e cozinha, bem próximo aos obuses. Excelente ideia, pois, como eu disse, eles já "saíam atirando", como nos velhos filmes do Clint Eastwood. Humor tardio à parte, tinham grande conhecimento das bases IN, e ajustavam o material rapidamente.

Temos que reconhecer, que não é tarefa fácil, dois jovens beirando os vinte anos, controlarem soldados profissionais, com vários anos de guerra, com mulheres (alguns com mais de uma) e filhos, e eles o fizeram muito bem; lembro, por exemplo, que no dia de pagamento, muitas vezes, passavam a noite administrando os problemas familiares dos soldados, agravados pelos vapores do álcool.

Não posso deixar de lembrar, a sofisticadíssima rede logística, que o Furriel Oliveira, assessorado pelo meu ordenança, o Cabo Apontador (da guarnição local) José Carlos, montou para interceptar caçadores e pescadores às primeiras horas da madrugada, garantindo assim as proteínas extra destes três Artilheiros.

O Furriel Krus sempre administrou brilhantemente a parte operacional do Pelotão, inclusive, durante um longo período formando o Pelotão diariamente para revista.

Mas, sobretudo, fica a certeza que durante a minha vida, civil e militar, nunca tive parceiros tão leais e dedicados, como os Furriéis Oliveira e Krus.

Onde quer que estejam, a minha gratidão.
VP
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 24 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11148: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (5): "Alfero di canhão"

Guiné 63/74 - P11184: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (39): Uns alunos foram à matança

1. Em mensagem do dia 13 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

39 - Uns alunos foram à matança

Em princípio de Dezembro de 1960 (poderá ter sido no mesmo mês de 1959, mas de qualquer modo ocorreu há, apenas há uma escassa “meia dúzia” de anos) um grupo de alunos finalistas do COA aceitaram, contentes e alvoraçados, o convite para se deslocarem a Rocas do Vouga, a casa dos meus pais, para participar num almoço diferente do habitual, porque era fora do COA e não só. Esta refeição, chamada localmente, de “rejoada”, ou seja, o prato principal constava de rojões – lombo de porco cozinhado, em nacos de bom tamanho, na própria banha do animal, em panela de ferro e ao lume brando da lareira.

Nos dias de hoje, principalmente no Ribatejo e Alentejo, tal almoço típico, ocorre no próprio dia do abate dos animais (matança) e consta quase só de carne grelhada (febras ou fêveras, costeletas e entremeada).

Naquele tempo, lá na terra, os animais eram abatidos na quinta-feira; ficavam pendurados, para escorrer o sangue, e arrefecer até sábado; neste dia, logo pela manhã, procedia-se à “desmancha” (desfazer, com arte, os animais em pedaços). A carne devidamente cortada era guardada em sal, dentro de grandes arcas (salgadeira) feitas de madeira de pinho ainda verde; não se utilizavam pregos, parafusos ou dobradiças metálicas, pois o salitre corroeria essas peças em tempo curto e as tábuas da arca desconjuntar-se-iam de seguida.

O dia da matança não era escolhido ao acaso; os agricultores tinham em grande conta as fases da lua, não só para matar os animais, mas também para semear cereais e até cortar as árvores cuja madeira eles utilizavam nas suas construções ou reparações.

No espaço de tempo que decorria entre o abate e a própria rojoada, preparavam-se morcelas e chouriças com produtos dos porcos abatidos – morcela com carne e um pouco de sangue; as chouriças eram elaboradas só com carne, tudo temperado a preceito - todos os artigos eram absolutamente frescos, da melhor procedência e de superior qualidade.

O colega José Sá e Sousa, oriundo lá das bandas da Vila da Feira, tinha carro (coisa raríssima naqueles bons velhos tempos); o Armando Figueiredo, creio que não era ainda encartado, mas a mãe emprestou-lhe a sua viatura e lá fomos cinco em cada carro, até quase ao limite interior do distrito de Aveiro.

Quem se lembra de todos aqueles convivas? Eu recordo apenas 8: Sá e Sousa, Reis Ferreira; Armando, Valdemar, Eugénio, Belmiro, Eberl e Ribeiro, havia mais dois; destes o Miller, talvez fosse um deles. Se alguém se lembrar do outro ou se houver imprecisão da minha parte, há que esclarecer.

Chegámos ao local pouco antes da hora aprazada. Solicitei ao Eberl que me acompanhasse até ao canto da eira e perguntei-lhe, apontando para determinada planta ali existente:
- Que arbusto é aquele?

O Eberl ficou surpreendido e comentou:
- Tu não podes ter isto aqui! É absolutamente proibido!
- Não foi isso que eu perguntei! Responde à minha pergunta!
- Isto é a planta do tabaco e não é permitido cultivá-la na Metrópole!
- Eu só pretendia o teu esclarecimento! Sempre ouvi dizer que se tratava de tabaco, mas faltava-me a opinião dum conhecedor.

O Eberl nasceu em Angola, no Pango Aluquem, mais precisamente na fazenda Quenuma Numa e era filho de pais alemães; creio que cultivavam café e tabaco.

Ainda hoje, lá no meu quintal, existem plantas dessas que ali aparecem sem serem semeadas. Até faz lembrar o alecrim. Nesse tempo, a “botica” (remédio de farmácia) tinha por ali pouca utilização; as pessoas vizinhas quando sofriam de determinadas mazelas vinham lá a casa pedir umas folhas de tabaco para curar as suas chagas; diziam que as folhas continham excelentes efeitos curativos.

O padre, como, à época, não podia deixar de ser, também foi convidado. Como era domingo e teria outros compromissos, enviou, em sua representação, a sua irmã que, até era uma solteirona de “profissão”. Bem tentou arranjar partido lá na terra mas não conseguiu.

Logo que nos sentámos à volta da mesa, ela tentou comandar as tropas o que não terá agradado a ninguém. Aí o Ribeiro fez com que ela desistisse da ideia e ela “perdeu o pio”.

Lembras-te, Ribeiro, da anedota que contaste e que a fez encabular? Esta tinha-nos sido narrada pelo Dr. Magalhães Lima, um excelente mestre de matemática do 3º ciclo.

Resumindo: uns anjos, lá no céu, participaram a Jesus que sua Mãe introduzia almas naquele paraíso celeste, clandestinamente, puxando-as por meio de uma corda com nós. Jesus perguntou:
- Sabeis que corda é essa?

E de seguida esclareceu, aquelas celestiais criações:
- É o terço! É através do rosário que as almas pecadoras podem ficar limpas (perdoadas) podendo assim entrar no Reino de Meu Pai!

A senhora Ana, (menina cinquentona), irmã do Padre e certamente conhecedora dos preceitos da Fé, não achou graça alguma ao que ouviu (não lhe chamou blasfémia)! Mas acabado o almoço… desapareceu!

O Reis Ferreira pediu à minha mãe que lhe arranjasse uma “assadura” (um pedaço de carne assada), grelhada nas brasas da lareira; alegou que adorava aquilo e já não comia havia muito tempo.

Iniciou-se o almoço:
1º Prato - cozido à portuguesa – hortaliça colhida no próprio dia e carnes bem frescas.
O meu avô presidia à mesa, ele adorava “passar rasteiras” à malta jovem. De maneira que todos ouvissem, ele avisou:
- Oh! Rapaziada! Isto é o que há! É o nosso almoço e não há mais nada! Cá em casa há só um prato, mas isto dá para todos!

Eu lembrei aos colegas, sem desdizer o meu avô – que participávamos duma rejoada… mas ninguém acreditou no que eu proferi: todos comeram o cozido que nem uns desalmados! Até parecia que no COA se comia mal! Mas aquele cozido era mesmo do outro mundo! Estaria mesmo divinal!

2º Prato – massa meada guisada com carne.
Perante este prato ninguém se alarmou porque… era massa e, como de costume, ninguém apreciava aquilo.

3º Prato – rojões de lombo, arroz do forno, batatas assadas e salada.
O Reis Ferreira foi “aos arames” e comentou descoroçoado:
- Nunca na minha vida fui enganado por um velho, senão hoje! Sinto-me ludibriado; furibundo!

O meu avô adorou aquela brincadeira! Ria-se a bandeiras despregadas, porque tinha enganado os estudantes; durante muito tempo, sempre que se lembrava, comentava comigo aquela “tirada” do Reis Ferreira. Tornou-se célebre! Na verdade, os alunos quase não provaram os rojões, o prato principal que dava o nome ao repasto pois tinham enchido os “bandulhos” com o espetacular cozido.

De seguida colocaram sobre a mesa, à frente do Reis Ferreira, a tal assadura, um bom pedaço de suculenta carne, perfeitamente tostada, doirada, nas brasas da lareira. O jovem Reis Ferreira ficou envergonhado, pois não conseguia comer o que tão delicadamente havia solicitado. No seu estômago não havia lugar para mais… nem uma “assadura” tão desejada.

Todos colaboraram comendo um naco cada um para tirar o Reis Ferreira daquela dificuldade.
Ele sentiu um grande aperto no estômago, mas daquela… lá o safámos.

Já agora a sobremesa também tem de ser citada: castanhas assadas e fruta da época.

Assim terminou um almoço muito diferente do habitual, porque foi servido fora do ambiente colegial e porque, já naquele tempo, a carne dos animais criados em casa era bastante melhor que a carne do talho.

Os porcos abatidos lá em casa tinham sempre mais de um ano e meio quase sempre pesavam mais de 180Kg (limpos) cada; eram umas bestas avantajadas!

Foi um domingo bem passado… em plena liberdade… sem o Correia… nem diretores, professores ou quejandos!

Saudações colegiais
Fevereiro 2013
B T
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 22 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11135: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (38): O Carinhas

Guiné 63/74 - P11183: Blogpoesia (323): É um pássaro, diz ela. De areia. Ferido de morte (Luís Graça)




Lourinhã > Praia de Vale de Frades > 8 de Junho de 2007 > É um pássaro, diz ela. De areia. Ferido de morte.

Foto: © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados.

Para o Idálio Reis e os bravos da CCAÇ 2317 

(Gandembel/Ponte Balana, 1968/69), 
com um Alfa Bravo

É um pássaro.
De areia.
Diz ela.
Ferido de morte.
Uma jurássica ave de arribação
que te veio anunciar a peste.

Peste branca. Preta. Vermelha.
Vírus do Nilo.
Dengue.
Al Qaeda.
O tchador.
A burkha.
A mulher dengosa.
A expulsão do paraíso.
A língua viperina.
O caduceu do Asclépio.
Febre hemorrágica.
Sida.

Pena capital.
Terror nuclear.
Pandemia. Amarela.
Bílis negra.
Os neutrões.
A língua azul dos camelos.
O vírus influenza
dos gansos selvagens.

A danação eterna.
A gripe das gaivotas-ratazanas.
A implosão dos neurónios.
O buraco do ozono.
A febre da carraça.
Malária, paludismo, sezonismo.
A doença de Creutzfeldt-Jakob.
O mal de viver.

O mal de amores.
O morbo gálico.
A vingança das índias
que envenenaram o sangue dos espanhóis.
Os vectores de todas doenças emergentes e reemergentes.
As metástases pancreátricas.
O pão transgénico.

As setas pragas do Egipto.
A implosão do milenar Portugal dos pequeninos.

O triunfo do Goldman Sachs Sachs Sachs,
o homem de ouro
que está acima de Deus
e de todas as suas criaturas.

A estátua jazente de um deus alado
que morreu nas dunas.
Diz ele.
Por fadiga. 

Burn-out
Desidratação.
Imprecação.
Hipotermia.
O irã que largou o poilão
e morreu de infinita tristeza.
Vidrado.
Varado por um tiro de Kalash.

Puro pau sangue exangue.
Triste bissilão dda diáspora,
sem raízes.
Ou então um pobre náufrago da costa de ouro, marfim e prata.
A escassos metros da meta.
À entrada do paraíso.
Da reserva ecológica.
Dos abrigos à prova de canhão sem recuo
da Europa imaginada.
Blindada.

Cega.
Surda.
E muda.

Terá atravessado os campos de golfe magnéticos
que outrora eram verdes.
Diz ela.
Na rota das Canárias e do Saará,
segue sempre em frente
e encontrarás o paraíso.

Do ouro, do incenso e da mirra.
Já.
Ou encontravas.

Miragem,
diz ele.

Aqui jaz.
Agora.
Na areia da praia.
O soldado.
Desconhecido.
Número tal.
Que terá vindo de Gandembel,
sobrevoando Ponte Balana.
Sem senha
nem contra-senha,
nem ração de combate,

nem número mecanográfico.
Nem requisição de transporte.
Nem visto
ou simples carta de chamada
da Pátria.
Nem sequer muda de roupa
para o além.

Nem sequer a última carta da namorada.
Simples soldado raso,

morto por uma roquetada.

O puro terror dos fornilhos,
diz ele.
A cilada.
A emboscada.
As pirogas à deriva.
A guerra elevada à categoria de arte
do predador.
Generalíssimo predador.
As tripas de fora
de um deus-menino.
O pássaro.
De fogo.
Desintegrado.

Oh! Gandembel das morteiradas,
dos abrigos de madeira
onde nós, pobres soldados,
imitamos a toupeira
.
-diz ele.


In memoriam.
A morte, sem legenda,
a asfixia, sem escape,
a exaustão, sem honra,

a luta sem glória nem compaixão,
os nervos de aço esfrangalhados
do soldado-toupeira,
o envenenamento das fontes de água
que corria doce e triste,
o triste rio Balana,
triste como todos os rios da Guiné,
o céu trespassado por setas envenenadas,

as chuvas ácidas,
o napalm,

o jato do povo.
o strela,
o RPG-Sete.

O pássaro de areia, diz ela, 

outra vez.
- Quem vem aí ?
Cala-se o dari no Cantanhez. 

Imobiliza-se o jagudi de Pirada.
Esconde-se a gazela na orla da bolanha de Ponta Coli.

....Para se poder ouvir o tiro tenso do voo
da ave mortal da madrugada.

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Nota do editor

Último poste da série > 26 de fevereiro de 2013> Guiné 63/74 - P11160: Blogpoesia (322): Não sou nada, não sou ninguém (Ernesto Duarte)