terça-feira, 3 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12003: Convívios (527): III Convívio da CCAÇ 3414, realizado nos passados dias 9; 10; 11 e 12 de Agosto de 2013 na Ilha do Pico (Joaquim Carlos Peixoto)



1. Em mensagem de hoje, dia 3 de Setembro de 2013, o nosso camarada Joaquim Carlos Peixoto (ex-Fur Mil Inf MA, CCAÇ 3414, Bafatá e Sare Bacar, 1971/73) enviou-nos a reportagem do III Convívio do pessoal da sua Unidade, levada a efeito na Ilha do Pico nos passados dias 9 a 12 Setembro de 2013:




CONVÍVIO DA CCAÇ 3414

Como a CCAÇ 3414, era composta na maioria por soldados açorianos, houve sempre uma grande dificuldade em nos reunirmos.

Em 2011, graças ao “ Blogue Luís Graça”, conseguimos organizar o nosso 1º convívio, em Coimbra. A maior parte dos presentes era do Continente e apenas um do Arquipélago.

Em 2012 foi marcado o 2º encontro, que seria em Angra do Heroísmo no quartel, antigo BII17 (hoje denominado Regimento de Guarnição 1), onde foi formada a Companhia. Neste convívio já apareceram continentais e açorianos, mas ainda éramos poucos.

Foi então marcado o

3.º CONVÍVIO NA ILHA DO PICO

Este encontro começou no dia 9 de Agosto, na ilha do Pico, com um jantar onde houve um pequeno contacto entre todos.

Neste convívio estiveram camaradas do Continente, de várias ilhas açorianas, e muitos emigrantes de vários estados dos EUA.

O dia 10 começou com uma missa na Igreja da freguesia de S. João em homenagem aos mortos em combate, furriel Ribeiro e soldado Parreira e a todos os já falecidos.


Seguimos para o Parque “ São João Pequenino - onde foi organizado o almoço.


Belíssimo almoço onde para além das lapas e uma grande variedade de queijos das ilhas foi servido o peixe albacora assada à moda de S. João. O amigo Sérgio, da ilha do Pico, ofereceu um porco para grelhar. O amigo Bernardo ofereceu umas camisolas referentes ao evento. Um outro soldado, o Furtado, que se dedica a produzir peças de artesanato, ofereceu uma pequena lembrança a cada um de nós. No fim para além do bolo para comemorar o 40.º aniversário da chegada da Guiné, houve uma grande variedade de bolos típicos dos Açores. Para acompanhar foram servidos vinho tinto da ilha do Pico, vinho branco da ilha, vinho verdelho, além de cerveja, água e sumos. De referir que toda a organização, confecção e preparação esteve a cargo de familiares dos soldados. 





No fim houve a actuação do “ Grupo Folclórico da Casa do Povo de S. João do Pico e o “ Grupo de Pauliteiros de Sanhoane.”



No dia 11 concentramo-nos em S. João, onde fomos visitar o Museu Baleeiro. De seguida demos a volta à ilha acompanhados pelo Caldeira, que como natural desta ilha, nos serviu de guia. Entre outras coisas visitamos o museu da vinha em Santa Luzia, zona classificada como património mundial. Nesta viagem passamos pela casa de mais um amigo, o Simas, que nos “ obrigou” a entrar onde nos serviu vários queijos feitos por ele acompanhados pelo famoso vinho verdelho.

No dia 12 recebemos o convite do Leonel Ramos para um almoço na ilha de S. Jorge. Mais uma viagem de barco para a ilha onde nos foi servido um fabuloso almoço, para o qual matou um bezerro.



Regresso à ilha do Pico.

Porque “ recordar é viver “, viveram-se dias de euforia, de emoções contidas, lembraram-se os bons e maus momentos passados juntos na Guiné, recordamos os que já partiram e num abraço de amizade, companheirismo e de uma grande dignidade matamos saudades daquele tempo.

É indescritível o que se viu e viveu nestes poucos dias de confraternização.

É pena que os “grandes” deste país, aqueles que apregoam aos sete ventos, o bem para Portugal, não tenham assistido a tão nobre e leal encontro.

É pena que os “grandes” não vejam a felicidade com que se pode viver num simples abraço.

É pena que os “grandes” não possam tirar lições desta camaradagem e lealdade, porque só vêem grandezas.

É pena que os “grandes” não vejam como poderiam dar a volta a este país, olhando para o que estes “guerreiros” são capazes de fazer para se reunirem.

É pena que os “grandes” não estejam atentos nem oiçam a voz destes ex-combatentes que perderam a juventude, que perderam os sonhos, que viram companheiros sucumbirem junto deles, que viram pais, irmãos, esposas e filhos transformarem os seus olhares alegres e felizes em olhares tristes e melancólicos.

É pena que os “grandes” se esqueçam de respeitar estes Homens, de lhes dar o devido valor, em vez de os insultar com as atitudes que tomam com eles.

Sem mais delongas, porque o que faz escrever este texto é relatar sobre o nosso III convívio, quero agradecer a todos, em especial aos residentes nas ilhas, o carinho, a amizade e o calor humano com que nos receberam.

Estou certo, que as minhas palavras de agradecimento, assim como a felicidade que senti, são comuns a todos os camaradas que participaram neste convívio, vivendo, tal como eu, todas as emoções.

Não tenho palavras para agradecer ao Sérgio e seus familiares todo o empenho que tiveram para que o dia 10 fosse um dia inesquecível.

Assim como me faltam as palavras para também agradecer ao Leonel Ramos e toda a família o espectacular almoço que ofereceu sem nada em troca a todos os que participaram neste convívio. A emoção é forte, as palavras não brotam para agradecer tamanho testemunho de amizade.

Propositadamente, deixei para o final, os três grandes colaboradores e organizadores deste convívio: Caldeira, Lopes e Silveira. Sem o seu trabalho, esforço, dedicação, espírito de solidariedade, camaradagem e amizade este convívio não teria sido possível. Bem hajam, companheiros de luta, pela vossa disponibilidade trabalho e amizade. Valeu a pena o esforço que fizeram. Estes dias, as noites mal dormidas, preocupação de tudo estar em ordem, foi compensado pelo sorriso que viram em cada rosto e a alegria que cada um de nós manifestou.


Obrigado a todos e que o próximo convívio vos faça tão feliz, quanto este nos fez.

OBRIGADO.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12002: Convívios (526): V Convívio Anual dos ex-Combatentes no Ultramar do Concelho de Gondomar, dia 21 de Setembro de 2013 na freguesia de S. Pedro da Cova (Carlos Silva)

Guiné 63/74 - P12002: Convívios (526): V Convívio Anual dos ex-Combatentes no Ultramar do Concelho de Gondomar, dia 21 de Setembro de 2013 na freguesia de S. Pedro da Cova (Carlos Silva)

V CONVÍVIO ANUAL DOS EX-COMBATENTES NO ULTRAMAR DO CONCELHO DE GONDOMAR

DIA 21 DE SETEMBRO DE 2013

FREGUESIA DE S. PEDRO DA COVA

PROGRAMA

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11970: Convívios (525): 50 anos depois da partida para o CTIG, os camaradas da CART 494 reencontraram-se em Viana do Castelo, a 21 de Julho de 2013 (Coutinho e Lima)

Guiné 63/74 - P12001: Parabéns a você (621): Luís Gonçalves Vaz, amigo Grã-Tabanqueiro

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P11997: Parabéns a você (620): Manuel Joaquim, ex-Fur Mil Armas Pesadas da CCAÇ 1419 (Guiné, 1965/67)

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12000: Notas de leitura (516): "Le Naufrage des Caravelles", por René Pélissier (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Maio de 2013:

Queridos amigos,
Esta capa de Pélissier não tem nada a ver com a Guiné, reproduz o forte de São José de Encoge (1759), em Angola, Pélissier estudou Angola a fundo.
A matéria deste trabalho prende-se com as consequências demográficas na guerra de guerrilhas, ele faz uma interpretação do que se passou na Guiné, com base nos dados das autoridades portuguesas e os apresentados pelo PAIGC.
Como se verá, ele não andou muito longe da verdade e não se deixou seduzir pelos cânticos das sereias.

Um abraço do
Mário


O naufrágio das caravelas, por René Pélissier

Beja Santos

“Le Naufrage des Caravelles, Etudes sur la fin de l’empire portugais (1961-1975)”, Editions Pelissier, 1979, reúne um conjunto de ensaios que o investigador publicou em diferentes periódicos entre 1967 e 1975, todos eles consagrados às colónias portuguesas em África. De um trabalho publicado em 1974 na Revista Francesa da História do Ultramar e intitulado “Consequências demográficas das revoltas na África portuguesa (1961-1970), ensaio de interpretação”, parece-nos interessante reproduzir algumas das suas afirmações sobre a situação então vivida na Guiné.

Ele recorda que ambas as partes na contenda usaram de propaganda para angariar apoios, por vezes sem nenhuns escrúpulos. Qualquer guerrilha leva a alterações demográficas, ao crescimento de alguns territórios em detrimento de outros, as partes em conflito brandem números sobre a população que se acolhe à sua causa. Neste trabalho, o autor não esconde que parte do postulado da validade das estatísticas portuguesas, considera que os recenseamentos portugueses constituem um ponto de partida particularmente sólido. E logo comparando as fontes portuguesas de 1960, em que se fala de uma população aproximadamente de 521 mil habitantes, refere dados exibidos por Basil Davidson em que a fonte do PAIGC refere 800 mil habitantes, em 1968, e não tem rebuço em dizer que as fontes dos nacionalistas têm tendência a empolar os efetivos das etnias que lhes eram favoráveis, minorando as que eram manifestamente opostas. E dentro desta comparação dos dados apresentados pela Agência-Geral do Ultramar e fontes do PAIGC, mostra como o PAIGC reduz a população Fula e Mandinga inflacionando a Balanta e a Manjaca. E adianta que o recenseamento de 1960 feito pelas autoridades portuguesas visava apurar com rigor por causa dos impostos e conhecer com exatidão possível a onda parava a mão-de-obra masculina.

A fuga de populações começou a ser um dado inicialmente menor entre 1961 e 1962, a partir de 1963 é a desarticulação na região Sul, com o tríplice efeito de concentrações na mata, em apoio ou com a coação do PAIGC, em fuga para as regiões fronteiriças da Guiné-Conacri ou com uma concentração à volta de povoados mais importantes como Aldeia Formosa, Bedanda, Tite, Buba, Catió, Cufar ou Gadamael Porto; este fenómeno da desarticulação com as inevitáveis consequências demográficas também se registou na região de Corubal, entre Xime e Xitole, portanto Leste, e afetou a região entre Mansoa e Bissorã (Morés) e Norte (região de Farim). É a partir daqui que se pode apreciar a evolução dentro dos conselhos e circunscrições: entre 1960 é incontestável o crescimento de Bissau e Bolama, de Bafatá, do Gabú e dos Bijagós e um decréscimo pode ser observado em Cacheu (muito ligeiro), em Mansoa, em Bissorã (relevante), São Domingos, em Farim (relevante), em Fulacunda (relevante) e em Catió (relevante). Os dados que dispomos sobre os refugiados no exílio não são suficientes. O alto comissariado das Nações Unidas para os refugiados só fez a recensão dos guineenses no Senegal, em 1971 considerou haver aqui cerca de 83 mil guineenses, mas nada se ficou a saber sobre os refugiados na Guiné-Conacri, e ignorou-se as comunidades guineenses de não refugiados residentes no estrangeiro. E para sermos rigorosos, uma população que vive no exílio não vive na dependência condicional do PAIGC.

Procurando analisar as consequências demográficas, Pélissier observa que o caso de Bissau tem a mesma analogia de qualquer capital de um país em guerra, procura-se segurança, trabalho. Bolama era uma ilha, dispunha de um centro militar, atraia recrutas e só era alcançável por mísseis. Os Bijagós, um pouco à semelhança dos Felupes, puseram-se à margem do conflito, igualmente que atraíram quem procurava segurança e atividades económicas. A estagnação demográfica de Cacheu tem a ver com o comportamento do chão Manjaco, uma certa fuga de população para o Senegal, até 1970 julgava-se, na ótica dos militares portugueses, que se recusaria o apoio ao PAIGC.

O Gabu, esse imenso concelho com uma longa fronteira com a Guiné-Conacri, contou com a hostilidade dos Fulas e as imensas reservas dos Mandingas, ambas as etnias não queriam embarcar na aventura coletivista nem desfazer-se de uma hierarquia do tipo feudal. Os territórios ditos sob o controlo do PAIGC (caso do Boé) eram áridos e com população muito reduzida. A região de Bafatá acolheu, tal como Bambadinca e o regulado de Badora populações inseguras e daí ter mais população em 1970 do que 1960. Aqui e acolá, Pélissier faz observações contundentes, por vezes o PAIGC afirmava controlar toda a região Leste, chegando ao ponto de incluir Contubuel em zona libertada, a estatística portuguesa referia, em 1970, cerca de 22 mil habitantes, o Xitole podia estar cercado por grupos armados mas de modo algum estava sob o total controlo do PAIGC.

Depois, na análise dos concelhos em baixa populacional, Pélissier refere as fugas para o Senegal, os litígios no rio Cacheu e o predomínio balanta onde, sobretudo em Farim, Bissorã e Mansoa, o PAIGC foi buscar o seu principal apoio. São Domingos aparece dividida entre o fator nacionalista, a presença muita próxima do Casamansa e a hostilidade Felupe, sobretudo. A sul do Geba, onde a implantação do PAIGC era inegavelmente forte, há a distinguir a razia demográfica em Fulacunda e Catió.

Que concluir? Há números que apontam para perdas superiores às migrações internas; há o bloco muçulmano das savanas do Leste, há os terrenos do tarrafo entre os rios Cacheu e Tombali. Portugueses e PAIGC guerrearam também com os números. Pélissier admite que em 1970, haveria no exílio 90 mil guineenses e 30 mil sob inteiro controlo do PAIGC e presume mesmo que este número poderá ser altamente contestado pelo PAIGC. É inaceitável falar-se de uma população de 800 mil habitantes e ainda por cima reivindicar o controlo de dois terços do território, a ser verdade isso significaria dominar mais de 440 mil pessoas, dez vezes mais que os números estabelecidos pelas fontes portuguesas. Como se saberá mais tarde, quando o PAIGC fizer recenseamento para as eleições da sua assembleia legislativa, os números apresentados não excederão os 80 mil eleitores.

Este estudo de Pélissier é hoje matéria para académicos, já não tem o trotil que se destinava a incendiar apoiantes e adversários. Dentro desta frieza, dá para apreciar o rigor que Pélissier usou nas suas considerações. E dá igualmente para refletir como estes trabalhos às vezes esquecem dimensões óbvias como sejam as melhorias sanitárias, a baixa da mortalidade infantil e, mesmo que conjuntural, o aumento da esperança de vida. As guerras guardam em si segredos que só podem ser revelados mais tarde: por exemplo, o estado sanitário dos britânicos melhorou consideravelmente durante o racionamento da II Guerra Mundial, menos açúcar, menos gorduras, etc. Os guineenses, a despeito do tumulto demográfico, não regrediram nas suas condições de vida. Mas isso é outra coisa que não vem ao caso neste trabalho de René Pélissier.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11993: Notas de leitura (515): "As Ausências de Deus", por António Loja (Mário Beja Santos)

domingo, 1 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P11999: (Ex)citações (225): Camaradas que tombaram no palanque do conflito (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Sinais do tempo, sem tempo, da enfadada guerra guineense

Camaradas que tombaram no palanque do conflito 


Permitam-me esvoaçar nas asas do vento e trazer à opinião pública no nosso blogue uma foto de túmulos de infelizes camaradas que nos verdes anos da sua juventude perderam a vida na guerrilha guineense. Admito que não é fácil debater uma temática que hoje, já sexagenário, me arrepia a “meia dúzia” de cabelos que pomposamente primam em manter-se hirtos à tona de um coro cabeludo que outrora fez “ronco”. Porém, esta explanação de realidades que amiudadamente observamos, toca no ego de antigos camaradas que nos anos 60 e 70 viram partir para a tal famigerada viagem sem regresso companheiros e amigos deste cosmos terrestre. 

Olho, atentamente, os sepulcros (amigos de infância que morreram em Angola, Moçambique e Guiné) que frequentemente visiono no cemitério da terra que me viu nascer – Aldeia Nova de São Bento – e que um dia me acolherá para a eternidade junto àqueles que me deram o ser, e questiono-me sobre a injustiça que se abateu sobre aqueles jovens, à semelhança de muitos outros bravos militares, que tombaram numa guerra na qual foram, simplesmente, soldados desconhecidos. Forçados a partir para terras de além-mar, como era exigido, o destino foi-lhes cruel e os seus restos mortais chorados com uma inflamada saudade.

Esmiuço o conteúdo da guerra na Guiné – 1963/74 – e reconheço que os seus imensuráveis contornos foram, de facto, incontroláveis. Consultando os registos, e não vou mencionar o número como facto consumado, ou dado adquirido, refere o documento da Comissão para o Estudo das Campanhas África – Estado Maior do Exército – que na Guiné terão morrido em combate 2069 militares oriundos da Metrópole e 471 elementos do recrutamento local.

Defuntos que em nada contribuíram para o fatídico fim numa guerra onde as frentes de combate, a meu ver, se apresentavam pressupostamente desiguais. Nós, singelos militares, que conhecemos o conteúdo real do conflito, sabemos ainda hoje que as armadilhas que o próprio terreno impunha, assim como o clima adverso constatado, eram fatores propícios a eventuais contactos com os guerrilheiros adversários que conheciam a razão do combate.

Considero que é perfeitamente legível que evoquemos, também, toda uma estirpe de gentes que souberam enobrecer a sua defesa pessoal e coletiva e que por ora continuam, felizmente, a possuir o privilégio de contar as suas histórias hilariantes de uma guerra que nos foi inesquecível, sendo porém uma certeza que os estropiados e os que ainda hoje sofrem de profundos traumatismos adquiridos no cenário guineense, são bandeiras sublimes de um tempo que jamais caiará na orla do esquecimento de um País, o nosso, que tende, pressupostamente, olvidar a mais recente peleja da história em que Portugal esteve envolvido.

Era miúdo e pela minha cabeça jamais passou a hipótese, depois a certeza, que o meu destino me reservasse uma comissão militar na Guiné. Mas… aconteceu. Revejo o sentimento de dor nos momentos da chegada dos corpos de inocentes à terra onde eram sobejamente acarinhados e que lá longe, num chão distante, perderam a vida em plena flor da idade. Familiares e amigos, apreensivos, tentavam explicar o inexplicável. O choro, em coro, resvalava para uma revolta suprema. O povo, pela calada, lançava gritos de insurreição pela desgraça conhecida e, clandestinamente, sonhava pelo fim da guerra no Ultramar.

Esta ligeireza memorial sobre a temática abordada, levou-me a um pressentimento comum que explica, sumariamente, que serão raros os cemitérios nesta pátria lusíada onde não haja uma lápide que refira a existência de um antigo camarada morto na guerra da Guiné.

Permitam-me, pois, relembrar que a foto que aqui vos deixo foi recolhida no cemitério da minha terra e diz respeito a um camarada fatidicamente caído numa peleja díspar, restando a sensação comum que a sua coragem, como militar português, extravasou desejos impensáveis. Este leque de saudosos camaradas foram, no fundo, peças de um puzzle estéril onde os interesses individuais de senhores de colarinho branco se sobrepunham ao coletivo de uma sociedade quiçá desordenada.

Os militares que integravam, normalmente, as ditas frentes de combate eram substancialmente oriundos da plebe.

Descansem em paz velhos camaradas!
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P11998: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (5): A saga do corte umbilical

1. Em mensagem do dia 26 de Agosto de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Pós-Guiné:


O PÓS-GUINÉ 65/67

5 - A SAGA DO CORTE UMBILICAL


A outra peça que encontrei, é uma espécie de punhal, feito em ferro pelo meu amigo felupe, O QUARENTA E QUATRO, (como gostava que o chamasse), com a pega adornada em pele estriada e de variegadas cores. A bainha em couro também embelezada da mesma forma.
A lâmina propriamente dita, foi batida a martelo por ele próprio e afiada com esmero.

Foi num dia qualquer de 1966, que ma ofereceu e ma colocou no cinto, tendo o cuidado de me avisar:
- "Furrié" entrará sempre na tabanca, sem problemas e bem-vindo se a tiver à vista e "se a levares pró mato, poderá ser-te útil também".

Sempre fui de não acreditar em amuletos, mas que resultou... resultou. Aquele 44, de quem nunca mais soube, para além de guia, foi também membro da minha Secção de Morteiros e também meu protector quase invisível quando em combate.

Lembro-o sempre com muita saudade e procurei saber do seu destino, através de muitas tentativas mas nunca obtive respostas.

Mantenho preservada apenas uma foto que tirámos, vendo-se Farim lá depois do rio.

Na foto > De pé: (?), Samba, Soares, (?), Nascimento e (?). De cócoras: 44, Tarouca e Domingues

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FOI NUM DIA DE JUNHO DE 1966

Que devo ter chorado tudo o que haveria para chorar, mas de alegria.

Um helicóptero aproximava-se vindo dos lados do Olossato e pairava sobre o K3, deixando a impressão de que iria pousar e pousou.

Tal era inédito e pensámos que seria alguém importante para saber algo sobre os funestos acontecimentos do dia anterior em que mais chorei, mas de dor e raiva.

Ainda atordoado, deixei-me ficar sossegado à porta da minha suite e esperei não ser incomodado, mas fui bíspando o que se passava.

Nisto oiço que me chamam e vejo que indicam a minha mansão a alguém que viera lá do ar.

Era um 2.º Sargento lá da minha terra, que estava sediado em Teixeira Pinto e que viera para visitar o meu "corpo" que ele houvera ouvido dizer, estar também esfrangalhado.

Digam lá se o Mundo e a Camaradagem não eram então coisas lindas?

E foi com um apertado abraço (e gratidão minha) que celebrámos este encontro e foi com esta prova espantosa, que me fez entender ainda mais, o que são as fraternidade e amizade.

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O SOLDADO CHICO QUE ERA PALHAÇO

Este rapaz tinha sido um verdadeiro palhaço e a isso voltou, num dos circos que deambulavam pela feiras da nossa terra e onde eu tanto gostava d'ir, mais pelas pernas das trapezistas... ora bem. Fazia parte da comitiva que comigo permaneceu no Pelundo e conseguiu indrominar e fazer rir de tal forma, quer o homem grande (Ti Vicente se chamava) quer os seus ministros que nem ler sabiam, que decidiram oferecer-lhe algumas benesses em paga da alegria que lhes proporcionava.

Tudo o que tinham de melhor lhe pertenceria se ele ficasse por ali desde já e prontificaram-se a falar com as altas chefias militares.

Davam-lhe as filhas, as vacas e os porcos, a fonte e a igreja, a bolanha e alguns terrenos cultiváveis... parte doutros que iam até Bula, e para comer só do bom e do melhor, nem que para tal, houvessem de se deslocar e aviar onde fosse necessário, para além das fracas galinhas e cabras que lhes pertenciam. Além disso, prometiam-nos segurança ali na zona, que convenhamos, à época era mesmo sossegada, talvez devido ao medo que tinham de nós, gentes aguerridas que éramos, embora não descarte que por vezes, também alguma cagunfa sentíssemos.

O rapaz pediu-me conselhos e direcções a tomar... prometi apresentar o assunto superiormente... e dar-lhe-ia a resposta um destes dias.

Mas o destino não o quis (e nem ele próprio como mo confessou depois) mas enquanto pudemos fomos aproveitando a maré e usufruindo do que pudéssemos, Pouco tempo depois correm connosco dali, precisamente no dia seguinte a termos ido em visita de cortesia até Jolmete para uma belíssima jantarada que nos ofertaram, só que e porque se resolveram atacar o aquartelamento, pouco comemos.

Safei-me, porque logo que os tiros começaram, guardei nos bolsos, umas perninhas, ou seja, no bolso esquerdo uma de borrego e na direita duas de galinha assadas em brasas de lume, pitéus que continuo a incluir ma minha dieta mediterrânica.

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NOUTRO DIA QUALQUER DE QUALQUER MÊS DE 1967

(O que me lembro é que havia regressado em Abril) e quando me encontrava desempenhando a minha função na Tesouraria da Fazenda Pública em Ponte de Sôr, recebi a visita dum individuo bem trajado que pretendia fazer-me umas perguntas, tendo-se antes identificado como agente da Polícia Política d'então.

Afinal apenas queria saber se tinha sido eu a colocar um qualquer petardo que havia rebentado ali perto da Assembleia Nacional e isto porque ao analisarem a minha ficha cadastral, haviam verificado que eu chegara da Guiné e tinha todas as condições para o ter feito, para além do mais e até, porque eu era especialista de Tancos, com um grau apreciável na preparação de Minas e Armadilhas.

Comprovadamente verificou que não era eu o procurado, e pronto o caso ficou encerrado, embora me preocupasse, porque nessa época, era-se preso por ter cão... e por não o ter.

É nesse entrementes que resolvi ir para a arbitragem de futebol, devido à necessidade imperiosa do "sentir" do perigo.

Cheguei lá... apitei uns jogos da regional... e... levei umas pedradas de quando em vez... e... com um bocado de madeira da bancada do Estádio da Fontedeira em Portalegre doutra vez... e... insultos do piorio... e até que um dia, perante a luta desigual, pois que não podia corresponder... decidi e comuniquei:
- Ou em vez do apito levo uma G3 comigo, ou não quero mais.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11978: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (4): O diacho da cicatriz

Guiné 63/74 - P11997: Parabéns a você (620): Manuel Joaquim, ex-Fur Mil Armas Pesadas da CCAÇ 1419 (Guiné, 1965/67)

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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11988: Parabéns a você (619): António Barbosa, ex-Fur Mil Cav do Pel Rec Panhard 1106 (Guiné, 1966/68) e José Manuel Corceiro, ex-1.º Cabo TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1969/71)

sábado, 31 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11996: Blogpoesia (353): Pôr-do-sol (Juvenal Amado)

1. Em mensagem do dia 28 de Agosto de 2013, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), enviou-nos este poema e as fotos que se publicam


Pôr-do-Sol

A vida escorreu-nos pelos dedos
Numa sucessão de momentos únicos
Observámos a água dos rios
Idealizámos pontes entre margens
Desaguámos em mares
Ouvimos o vento
Reprimimos lamentos
Contámos estrelas
Descobrimos odores
Criámos novos passados
Outras pessoas habitam em nós
A guerra é um sítio estranho
Porque teimamos em revivê-la,
Nunca se regressa de lá.
Nesse tempo o que fomos
O que fizemos
O que lamentamos
O que éramos e que não fomos
O que esperámos
Quem esperou por nós
Neste Verão quase Outono da vida
Os olhos cansados
Insónia de todos os excessos
Relógios que somam tempo
Tempo que soma calendários
Porque esperámos demasiado
Passámos em barco contra a corrente
Extasiados e encandeados pelos pôr-do-sol
Sentamo-nos,
E ficamos à espera do tempo que nunca virá.
É que esse tempo não existe.






Fotos: © Alf Mil Vasconcelos

Os periquitos: Sertã, Ivo, Passos, Leo, Canário e Amado, a caminho do Regala
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11938: Blogpoesia (352): Três poemas recentes de J. L. Mendes Gomes: A minha bicicleta; O meu netinho Tomás; Contemplação da noite...

Guiné 63/74 - P11995: Os nossos seres, saberes e lazeres (54): Passagens da sua vida - 7000 milhas através dos Estados Unidos da América (2) (Tony Borié)

1. Em mensagem do dia 24 de Agosto de 2013, o nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), enviou-nos o segundo episódio da sua viagem/aventura de férias, num percurso de 7000 milhas (sensivelmente 11.265 quilómetros) através dos Estados Unidos da América.




...7.000 milhas através dos USA -2

"Companheiros de jornada”, ainda se lembram do que passou no último dia?
Pois cá vai o resumo do segundo dia.

Manhã cedo, depois de tomar iogurte, sumo de laranja, café e uns biscoitos, a normal medicina acompanhada de um pouco de fruta de banana com água, seguimos em direcção ao norte, atravessando por um pequeno período de tempo o Estado de Arkansas, onde não parámos, pois não estava no nosso roteiro. Passámos por algumas povoações rurais, longas pontes sobre rios, pântanos e terras alagadiças, chegando ao Estado de Tennessee, que fica localizado na região sudeste dos USA, cuja economia é baseada na indústria de manufactura, serviços financeiros e imobiliários, turismo e agricultura.

Muito do actual Tennessee, durante o período da colonização britânica da região das “Treze Colónias”, fazia parte do actual Estado da Carolina do Norte, sendo a região mais ocidental das antigas “Treze Colónias” britânicas, tendo inicialmente escassamente povoado, mas passou a receber muitas pessoas a partir da década de 1750. O Tennessee, por causa da cordilheira de montanhas do “Apalache”, era isolado do restante território da Carolina do Norte. Dizem que após o reconhecimento da independência dos Estados Unidos, por parte do Reino Unido, em 1783, os habitantes da região pediram a separação daquele território do actual Tennessee do restante da Carolina do Norte. Assim sendo, o Tennessee separou-se da Carolina do Norte, tornando-se o 16.º Estado Norte Americano, em 1796.

O nosso objectivo principal no Tennessee, era visitar a cidade de Memphis, que dizem que é a 20.ª cidade mais populosa dos USA, e que se destaca no seu âmbito cultural, sendo considerada uma das três cidades mais importantes da música norte-americana, juntamente com Nova Orleães e Nashville, ficando famosa por ser ali casa de Elvis Presley entre 1948 e 1977.

Nós, e talvez muitos milhares de jovens do tempo do Tony, que com toda a certeza são muitos de vocês, apreciámos o Elvis Presley, pois além de ser um grande cantor, músico e actor, até lhe chamavam o “King of Rock and Roll”, que foi um estilo de música, que na nossa opinião era um conjunto de estilos onde existia “pop”, “blues”, “gospel” e talvez mais, que transmitia algo, tanto na letra como nos movimentos, que até àquela altura quase ninguém conhecia, mas todos nós sabemos que marcou uma geração.

Como ser humano, na nossa opinião, sempre assumiu as suas responsabilidades, lutando e ajudando muitas causas, pelo menos na região onde nasceu, a localidade de Tupelo, no Estado do Mississippi, que também visitámos, pois só com a idade de 13 anos, passou a viver em Memphis, no Estado de Tennessee, para onde a sua família se mudou por razões de sobrevivência.


Lembram-se que por altura de 1958 chegou a fazer parte do exército dos USA, chegando a estar estacionado na Europa, e que uns anos antes tinha sido o principal protagonista do célebre filme “Love Me Tender”, onde interpreta o papel do irmão mais novo dos quatro irmãos “Reno”, que era o Clint Reno, que ficou em casa a cuidar da sua mãe e da fazenda da família, enquanto os irmãos mais velhos, Vance, Brett e Ray, lutavam na Guerra Civil Americana, para o Exército Confederado. A família é erradamente informada que o irmão mais velho Vance, é morto no campo de batalha. Depois de quatro anos de guerra, os irmãos voltam a casa e descobrem que a Cathy, que era a namorada e noiva do irmão mais velho Vance, está casada com o irmão mais novo Clint, que sem qualquer preconceito se tinha apaixonado pela noiva do irmão mais velho. Uma das mensagens transmitida nesse filme, era aquele jovem que estava sempre revoltado com tudo o que não fosse de acordo com a sua ideia de estar no mundo, o que acontecia com muitos de nós naquele tempo.

Como dizíamos, lembram-se vocês do nosso tempo de jovens, em que o “Elvis” marcou a época?

Queríamos ver a sua mansão, a que chamam “A Graceland”, património da família Presley, hoje transformada em museu, e que é visitada por mais de 600 mil pessoas ao ano.


Assim aconteceu, cruzámos a fronteira, a cidade acolheu-nos e depois de percorrer algumas ruas, deparámos com a mansão do Elvis Presley. Era tal e qual como nos filmes de Hollywood, estava lá, fizemos o “tour”, vimos a sua casa, os seus retratos, a roupa que ele usava, as centenas de discos de ouro que conquistou ao longo da sua carreira, os seus dois aviões, um deles, o mais pequeno, que ele usou para levar a sua filha a ver a neve no estado do Colorado, dizem que a menina lhe pedia para ver a neve, e ele já bastante ocupado com os seus espectáculos em Las Vegas, um dia levantou voo daqui e foi ao Colorado, aterrou, deixou a filha calcar a neve por uns minutos e voltou de novo a Las Vegas para continuar com a sua exibição. Talvez devido ao esforço despendido, sem intervalos para se restabelecer, querendo cantar e agradar a todos, tivesse começado a usar algo que o havia de levar à morte, ainda um jovem, pois tinha somente 42 anos. Os seus carros, a piscina, os anexos onde se divertia cantando ou brincando com a sua família, o local onde dizem que está sepultado, tudo o que a ele dizia respeito, estava lá, para que todos possam apreciar. E o Tony viu mesmo cenas de pessoas chorando ao verem este local, que mais parece um local de peregrinação.

Com o coração cheio de saudade do Elvis Presley, rumaram em direcção ao norte pela estrada número 55, que os havia de levar a St. Louis, no Estado de Missouri, que é cortado pelos rios Mississippi e Missouri, sendo este último o que lhe deu o nome. O cognome do Missouri, é “Mother of the West”, a mãe do oeste, e foi adquirido pelos Estados Unidos na “Compra da Louisiana”, em 1803, e à medida que o país passou a expandir-se em direcção ao oeste, o Missouri passou a ser uma das principais escalas dos migrantes, tornando-se no 24.º Estado norte-americano em 1821.

Naquele tempo, a indústria agro-pecuária do Missouri fazia grande uso do “trabalho escravo”, e dizem que apesar da maioria da população do Estado ser a favor da secessão e da união do Missouri com os Estados Confederados da América, este Estado permaneceu ao lado dos Estados Unidos durante toda a guerra civil.

Como dizíamos, parámos e fomos admirar a cidade de St. Louis, que foi fundada em 1764, por Pierre Laclède e Auguste Chouteau, em nome de Louis IX que foi rei de França. Depois da “Compra da Louisiana”, passou a ser o maior porto do rio Mississippi, a sua população expandiu-se e depois da guerra civil Americana, chegou a ser a quarta maior cidade dos Estados Unidos no século dezanove. Tem um monumento, o “Gateway Arch”, junto ao rio Mississippi, que é conhecido como o “Gate to the West”, ou seja a porta para o oeste, é um grande arco, construído em aço pelo arquitecto finlandês Eero Saarinen em 1947, e é considerado o mais alto monumento dos Estados Unidos, pois avista-se a milhas de distância. No seu pedestal, tem um museu com motivos do oeste, e exemplifica o que os emigrantes faziam e usavam a caminho do oeste, depois de terem viajado, talvez por anos, no rio Mississippi, vindos dos portos de Boston, New York ou Philadelphia, que depois de saírem de St. Louis, levavam outros tantos anos a chegar à Califórnia, ou mesmo ao sul, viajando pela “Santa Fé Trail”, que também era conhecida pelo “Caminho Real”, que era um caminho que os levava às regiões do sul, junto à fronteira do México.

O Tony e a sua companheira e esposa, não queriam abandonar este local, tem fascínio, tem história e em cada local faz nascer lembranças, o rio está lá, a correr em direcção ao sul, naquela curva a água pára, faz um remoinho, a lembrar-nos que era ali que as pessoas ficavam andando em redor umas das outras depois de desembarcarem, não sabrndo qual a direcção que tomariam. Sabiam só que iam à aventura, por anos, percorrendo caminhos selvagens, construindo os seus próprios utensílios, carros rudimentares, que com a ajuda de animais, viajavam, nasciam filhos que chegavam já grandes ao local de destino, quando havia destino.


Já ao fim da tarde, rumaram a oeste, despediram-se de St. Louis, e tomaram a estrada número 70 em direcção a Kansas, e ao anoitecer dormiram numa cidade com o nome St. Charles, ainda em Missouri.

Tony Borie,
Agosto de 2013.
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Nota do editor

Primeiro poste da série de > 24 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11972: Os nosssos seres, saberes e lazeres (53): Passagens da sua vida - 7000 milhas através dos Estados Unidos da América (1) (Tony Borié)

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11994: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (9): Um reencontro para agasalhar a idade

1. Em mensagem de hoje, 30 de Agosto de 2013, o nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70) conta-nos como reencontrou o seu camarada Vilas Boas que o acompanhava, mais o João Rebola, nas suas "actuações" em Bissorã.

Camarada e Amigo Vinhal.
Sei que o Luís Graça está de férias. Mas não sei, quando ele está de férias, como se faz chegar material para o nosso blog. É que tenho um história breve de um feliz reencontro, que gostava fosse, caso fosse também essa a vossa concordância, publicada.
[...]
Um grande abraço do
Armando Pires


Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires)

9 - Um reencontro para agasalhar a idade

Mais um reencontro para agasalhar a idade. Estava eu posto em sossego e chama-me o João Rebola para perguntar:
- Ó Pires, sabes quem está aqui?

A pergunta foi feita através desse prodígio da comunicação chamado Skype. Sabem os que sabem, quem não sabe fica a saber que é um software que podemos instalar no computador, e que nos permite falar com qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, e, o melhor de tudo, estar a vê-la do outro lado.

Pois o Rebola, nosso camarada tabanqueiro, chamou por mim no Skype e fez-me a tal pergunta. Disse-lhe que não fazia ideia, ele chamou para o seu lado um rapaz da nossa idade, cabelos grisalhos e farto bigode, e fez nova pergunta:
- Sabes quem é este gajo?

Eu pressenti que era alguém da tropa, da nossa tropa, que estivera connosco na Guiné, mas não conseguiu chegar lá.

- É pá, peço muita desculpa mas não sei quem é?

- Ó Pires, é o Vilas Boa, pá!

O Vilas Boas, imaginem, um rapaz de transmissões que pertenceu à CCAÇ 2444, a companhia do Rebola, que já estava em Bissorã quando a minha companhia lá chegou, que tocava lindamente viola, que fazia parelha com o Rebola, acompanhando-me a cantar o fado, nas noites de sábado em que o bar de sargentos da minha companhia se enchia de militares e civis a jogarem o bingo e. a ouviram cantar o fado, acompanhado à viola pelo João mais o Vilas Boas.

A fotografia desses momentos já por aqui passou, já foi, até, publicada no nosso blog mas eu recupero-a hoje aqui, para vocês verem o antes e o depois. Mas sobretudo, e esta é a finalidade da comunicação que aqui vos faço, para assinalar o meu reencontro com o Vilas Boas, quarenta e três (43!!!) anos depois de nos termos separados.

Claro que o reencontro deu-se por imagem, através do Skype, como já disse, mas não deixou de ser um reencontro. Porque nos vimos e ouvimos. Só faltou um abraço, um abraço físico, que ficou para um não tarda nada.

E eu, esse momento em que nos estávamos a ver e a falar no computador, também o registei.
Fica aqui esse momento. E, como disse, o outro, o do passado.
Para que me possam acompanhar na alegria sentida do antes e do depois.

Ontem, em Bissorã. À esquerda o João Rebola, à direita o Vilas Boas, ao meio, com sentimento, eu a cantar.

Hoje, nós a falarmos no Skype. À esquerda o Vilas Boas, á direita o João Rebola, eu, escondido no canto inferior direito.
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11974: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (8): Ainda Bula, 1969: Fotos do meu álbum

Guiné 63/74 - P11993: Notas de leitura (515): "As Ausências de Deus", por António Loja; Âncora Editora, 2013 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Maio de 2013:

Queridos amigos,
Esta reedição era de elementar justiça, não me canso de dizer que António Loja reservou para a literatura da guerra da Guiné parágrafos belíssimos, intensos, vigorosos. Foi comandante de companhia nalguns dos teatros de operações mais duros. Mejo, por exemplo. Passadas décadas desses eventos que nunca se apagam da memória, a pretexto de uma operação em ambiente hospitalar, associou ruídos a lembranças do que viveu.
O resultado é exaltante.
Os confrades têm agora à sua disposição um relato incontornável sobre as recordações irreprimíveis que transportaremos até ao fim das nossas existências.
Desejo-vos boa leitura.

Um abraço do
Mário


As ausências de Deus, por António Loja

Beja Santos

Trata-se de uma reedição há muito esperada, “As ausências de Deus” (por António Loja, Âncora Editora, 2013) faz parte do rol das obras fundamentais da literatura da guerra da Guiné. Tem parágrafos belíssimos, são trechos indispensáveis em qualquer antologia que doravante se venha a escrever sobre a guerra da Guiné em particular ou mesmo num contexto mais amplo. O autor explica o que o motivou, inesperadamente, a voltar à guerra: “Trinta anos passados sobre o fim da minha participação na guerra colonial na Guiné tinha a ilusão de que esta pertencia apenas ao meu passado. E, de repente, no pós-operatório de uma cirurgia num hospital de Coimbra, ela regressou. E de um modo obsessivo. No dia-a-dia do ambiente hospitalar o sono fez ressuscitar, nas pessoas que encontrei nos corredores, os meus companheiros de combate, os soldados europeus e africanos que lutarem ao meu lado ou contra nós, os homens, mulheres e crianças que passaram por mim na selva africana, que regressaram ligados a episódios ocasionais da vida presente e ganharam corpo na minha vivência de paciente em recuperação (…) São essas recordações que, naquele ambiente hospitalar, decidi passar para o papel”.

Em 1966, António Loja foi chamado pela terceira vez a prestar serviço militar obrigatório, rumou para a Guiné, no comando de uma companhia de infantaria, deram-lhe um teatro de operações entre os mais ásperos. O dever de memória surgiu assim, inusitadamente: “O ruído do motor de um frigorífico, numa sala vizinha do corredor onde, no hospital, faço a minha caminhada diária, levou-me de repente a recordar o motor da LDG (lancha de desembarque grande) que, diretamente do Uíge, nos transportou de Bissau para Buba. Fomos transferidos para a lancha de desembarque e, através do que nos parecia um impenetrável e complicado labirinto de rios e canais naturais, depois de algumas horas de navegação, com o sol alto, cerca de uma hora da tarde, chegámos a Buba”. Assim, a frio, logo atirado para a guerra, picar a estrada, fazer a conferência de material, visitar o chefe religioso do Forreá, Cherno Rachide.

A prosa de António Loja pauta-se pela intensidade com que transmite as emoções, em vez de brunir aquelas expressões que ornam a brutalidade dos acontecimentos, é seco e remete para os seus sentimentos toda a explosão de dor, é como se o leitor se condoesse da sua reação ao invés do sofrimento alheio, assim: “Não teve tempo de dizer-me que havia uma mina na picada porque, na certeza enganosa de que o terreno que antes calcara estava livre, colocou o pé sobre outra, que já tinha passado sem notar e que explodiu com violência. Mamadú ficou desfeito, literalmente, em pedaços espalhados pela picada e escorrendo de ramos das árvores; e Abdulai, que vinha logo atrás, foi apanhado por um estilhaço que o atingiu na parte superior do tórax. Deu dois passos na minha direção, dizendo: 
- Ai, meu capitão! Meu capitão!

De um buraco abaixo da clavícula jorrava, a cada batida do coração, um repuxo de sangue que me atingiu a cara, os óculos e me escorreu para o nariz e para a boca. Sustentei-o debaixo dos braços e pousei-o devagar sobre as folhas das árvores, no meio da picada, enquanto toda a companhia assumia posições de defesa. Nunca consegui esquecer o sabor do sangue ainda quente e o cheiro adocicado e logo nauseabundo que me invadiu as narinas. Disse-lhe uma mentira piedosa: 
- Vem aí o enfermeiro. Vais ficar bem! Já mandei vir o helicóptero…

Espero que ele tenha acreditado, nos breves segundos que levou a morrer. Só que na morte não há breves segundos. É um tempo sem relógio. É toda a eternidade de um fim que parece nunca chegar. Morreu a esvair-se em sangue que ninguém poderia estancar. O que recordo com horror é a minha reação seguinte: ainda ajoelhado junto dele, inclinei-me para o lado e vomitei, de um modo incontornável, ali a dois passos do cadáver do meu camarada”.

Para quem está no pós-operatório, aquela volta à guerra é irreprimível: comunicar a um pai africano que aquele estrondo que ele ouviu há pouco foi a explosão que lhe matou o filho; ver os africanos a não aceitar as fronteiras traçadas por portugueses e franceses, quem foi atacado do lado de cá sente-se no direito de atacar a sua gente do lado de lá, matar, matar até que aprendam com a lição, não compreende essa linguagem dos incidentes diplomáticos; recordar uma menina cheia de vida a quem dera um brinquedo e que ele, depois de uma flagelação, foi encontrar esvaído em sangue, apertando na mão o brinquedo que ele lhe oferecera…

O medonho da guerra é por vezes um relato entre a incredulidade, o bizarro e a extrema inocência, como o autor recorda: aqueles dois amigos que andaram juntos na escola, que foram recrutados no mesmo ano, destacados para a mesma unidade, quase dois gémeos típicos que caíram juntos e que depois foram enviados às suas famílias em dois caixões que viajaram no porão do mesmo navio e que depois foram enterrados no mesmo cemitério, nos arredores de Barcelos; as confidências do Francisco, o condutor do rebenta-minas, que vai casar dentro de dois meses e que deixou de sentir tesão, houve urgência em tomar medidas para combater o stresse; o Roncolho, um herói improvisado que um dia gritou “ai minha mãe!” lá numa emboscada e a quem o capitão teve de dar uma estalada e que estupidamente morreu na véspera da partida, atropelado para os lados do aeroporto de Bissau. A tudo isto juntam-se as queixas da dobrada liofilizada, dos coronéis incapazes, daquele aviador que durante uma operação achou que não devia almoçar em Mejo e o alferes disse ao cabo Chico para pegar numa metralhadora e caso o helicóptero levantasse lhe desse uma rajada das grossas.

Recordações em noites sem sono, naquele doente a insónia ou os medicamentos fizeram-no regressar ao passado: “Carregamo-lo connosco e basta uma pequena faísca para provocar a grande explosão. Depois, é como um filme antes da montagem. Por vezes as cenas desenrolam-se numa sequência lógica, outras de modo caótico ou pelo menos disperso, sem nexo aparente ou com um nexo difícil de discernir”.

É este o prodígio da trama de “As ausências de Deus”, que vitoriam os que conseguem dar um pontapé na morte, estão para além de qualquer convalescença, há memórias da guerra colonial que não se apagam, de Mejo a Guileje a vida era um desassossego, entre minas e emboscadas, e depois aos poucos o convalescente sente a memória suavizar, porque a recuperação foi dura: “Pago uma prestação cada vez que me dirijo ao hospital para mais uma sessão de radioterapia” é um pagamento duro, o paciente lembra um grande escritor, Thornton Wilder, que escreveu: “Será que para Deus nem a pena de um pássaro cai sem que Ele o permita; ou, pelo contrário, Deus dispõe das nossas vidas com a indiferença com que uma criança mata moscas num dia de Verão?”.

O autor, tal como estivesse em Mejo, reclama desabridamente: ou será que Deus não existe, ou, numa versão menos radical, se ausentou, deixando-nos entregues a nós mesmos?

Livro inesquecível, qualquer que seja a guerra que levamos em nossos dias.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11980: Notas de leitura (514): "Misiones en Conflicto, La Habana, Washington y África, 1959-1976", por Piero Gleijeses (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11992: Efemérides (140): 8º aniversário do monumento aos combatentes da Lourinhã, 25/8/2013 (IV e última parte)


Vídeo (1' 15''). Luís Graça (2013). Alojado no You Tube > Nhabijoes ~

Comemorações do 8º aniversário da inauguração do Monumento aos Combatentes do Ultramar, Lourinhã, 25 de agosto de 2013. Organização da AVECO, com apoio da CM Lourinhã. Almoço-conívio no restaurante residencial Braga, no Vimeiro. Atuação de um camarada, ex-fuzileiro, do concelho de Peniche, interpretando o incontornável "Adeus, Guiné". Conheci este cmarada, num convívio anterior, na Atalaia. Penso desculpa de não ter aqui à mão o meu caderno de notas, donde constava o seu nome. Sei que ele passou pela Guiné, no início da década de setenta.

[O editor, ainda em férias, está na tabanca de Candoz,   sita em Paredxes de Viadores, Marco de Canavezes, na extrema com Baião e Cinfães, perto da barragem do Carrapatelo, onde não há Net que lhe valha... Teve de de ir, esta tarde à sede do concelho,  a amis de 15 km, para apanhar a "autoestrada" da Net, e assim aceder ao nosso querido blogue, neste fim de agosto, o nosso querido mês de agosto... Por aqui o céu é de bronze, devido aos incêndios. A minha homenagem aos heroicos bombeiros voluntários que têm perdido a vida, ou ficado gravemente feridos, neste verão de inferno, no cumprimento das suas missões de paz. Um abraço camarigo para todos os nossos tabanqueiros. Na próxima 3ª feira, tenho planeada uma viagem de barco, do Pocinho à Barca d'Alva, terra que ainda não conheço. (LG).]


Comemorações do 8º aniversário da inauguração do Monumento aos Combatentes do Ultramar, Lourinhã, 25 de agosto de 2013. Almoço-convívio no RestauranTe Residencial Braga, Vimeiro, Lourinhã. Um momento musical, com, uma camarada dos fuzileiros.


Comemorações do 8º aniversário da inauguração do Monumento aos Combatentes do Ultramar, Lourinhã, 25 de agosto de 2013. Almoço-convívio no RestauranTe Residencial Braga, Vimeiro, Lourinhã. Dois dirigentes da AVECO, promovendo o sorteio de uma garrafa de Aguardente DOC Lourinhã XO. Foram vendiadas váruias centenas de rifas,a  1 euro. O sorteio recaiu no nº 243. O sortudo foi o nosso editor Luís Graça que, num gesto de camarigagem, voltou a oferecer a garrafa à AVECO para novo sortieo noutra oacsião.


Comemorações do 8º aniversário da inauguração do Monumento aos Combatentes do Ultramar, Lourinhã, 25 de agosto de 2013. Almoço-convívio no RestauranTe Residencial Braga, Vimeiro, Lourinhã. Um antigo prisioneiro da Índia, o meu amigo, primo e camarada Luís Maçarico, de Ribamar.


Comemorações do 8º aniversário da inauguração do Monumento aos Combatentes do Ultramar, Lourinhã, 25 de agosto de 2013. Almoço-convívio no Restaurante Residencial Braga, Vimeiro, Lourinhã. À esquerda o meu conterrâneo e amigo, João Delgado, ex-combatente em Angola e membro da comissão "ad hoc" que construiu o monumento aos combatentes, numa altura (2005) de vacas gordas. A comissão dispôs de um verba generosa, 30 mil euros, da autarquia local. À direita, outro ex-combatente, emAngola, e que vive na Lourinhã, desde o seu regresso de África.


Comemorações do 8º aniversário da inauguração do Monumento aos Combatentes do Ultramar, Lourinhã, 25 de agosto de 2013. Almoço-convívio no RestauranTe Residencial Braga, Vimeiro, Lourinhã. O bolo de aniversário.

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados
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Guiné 63/74 - P11991: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (5): Os meses seguintes até às férias na Metrópole

1. Quinto episódio da série "Conversas à mesa com camaradas ausentes", pelo nosso camarada José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72:

A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado

No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.


CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES

ESTÓRIAS DA HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL - GUINÉ-BISSAU

5 – Os meses seguintes até às Férias na Metrópole

Era a época das chuvas e, estavam já inscritas nas nossas rotinas a presença diária das lavadeiras, dos “putos” dos abrigos, e as idas à Ponte dos Fulas. As saídas às tabancas e patrulhamentos, passaram a ser mais espaçadas. Devido ao isolamento provocado pelas chuvas, não eram possíveis as colunas de reabastecimento o que transformou, durante meses, o Rancho Geral numa rotina que alternava entre “vianda” com atum ou com salsichas porque, os pára-quedas que traziam os frescos eram um verdadeiro milagre. Logo pela manhã, os putos da nossa estimação encarregavam-se de que o pequeno-almoço não faltasse no momento certo. As lavadeiras tratavam as roupas com esmero e desdobravam-se na conquista da nossa simpatia. Era a luta pela sobrevivência, vista do outro lado.

Já tudo funcionava, parecia um paraíso. As primeiras grandes “pielas” não se fizeram esperar. Nuns quantos abrigos cantarolava-se ao som de uma viola e as patuscadas ditavam o fim de uns quantos frangos e cabritos. Rolavam as “bazucas” da Cristal. Lembras-te camarada? Tinhas um talento soberbo para as petiscadas. Fazias uns pitéus de hipopótamo, de vaca ou de frango que eram de chorar por mais. Bons momentos, que nos faziam esquecer as agruras da guerra. Os jogos de futebol, algumas paixonetas pelas bajudas e as idas domingueiras a banhos em Cusselinta, compunham o resto do ramalhete.

Devido à intensidade das chuvas, o caudal do Rio Corubal subiu acentuadamente. Uma noite, as sentinelas do posto da cozinha assustadas, deram o alarme. Teriam ouvido um zumbido muito intenso e que lhes parecia ser um helicóptero. Todo o pessoal ficou em prontidão, mas a presença da aeronave não se confirmou. Todos se interrogavam da origem do estranho barulho. A resposta veio pela manhã pela boca da população. O “zumbido” teria origem na força da deslocação do vento, provocado pela grande altura da vaga do Macaréu no Corubal. A pouca distância do quartel para o rio fez o resto.

Não resisto camaradas, a partilhar convosco uma “estória” singular de que fui um dos intervenientes. E quero garantir-vos que, só eu e o principal actor a conhecemos e do seu nome sempre farei reserva.
Um dia, um dos oficiais da companhia em privado no Posto de Socorros, foi-me dizendo que, como já tínhamos uns meses de comissão sentia necessidade de ter relações sexuais, de preferência longe do Xitole e, não se via, devido ao seu posto a ir à tabanca solicitar os favores sexuais de uma mulher.
Mas porquê a mim este pedido, interrogava-me eu? E logo a mim, que também estive uns meses a “seco” com medo das doenças sexualmente transmissíveis, ou não fosse eu Enfermeiro e, não soubesse das misérias de uns quantos! E acabei por entender a escolha do oficial.
Devido à minha função, respeitado pela população, entendeu ele que a mim elas não recusariam um pedido. Não era tão fácil assim mas, vestido dos meus brios e dos dotes que os outros me atribuíam, não dei o flanco e respondi:
- Vamos tentar.

Engendrei uma estratégia, que nem para mim tinha utilizado.
- Quando o senhor se deslocar às tabancas mais afastadas, eu também irei prestar assistência sanitária às populações e veremos então o que se pode arranjar.

E lá fomos um dia.
Chegados a Tangali, debaixo de um grande mangueiro no centro da tabanca, pedi que se reunissem as pessoas que necessitassem de assistência. Entre o grupo que entretanto se juntou, estava uma linda mulher, alta, de tez clara, talvez Futa-Fula com uma criança ao colo, aí pelos dois anos. Adivinhava-se-lhe uns lindos seios e um corpo escultural. Vai ser esta, pensei eu.
Propositadamente deixei-a ficar para o fim.
O “consultório” era no interior de uma das habitações próximas do mangueiro e o oficial assistia ao desenrolar das “consultas”.
Quando ela entrou, eu dei-lhe sinal de que o momento tinha chegado. Abordei a mulher e, ela pediu-me “mesinho” para a criança que estava com “panga na bariga”. Antes de continuar, solicitei-lhe que “partisse catota” com o oficial, que era “manga” de bom pessoal e que eu depois trataria muito bem o seu menino. Com alguma relutância, que sinceramente vos digo, me pareceu algo artificial, acedeu ao meu pedido.
Deixei-os a sós durante o tempo suficiente enquanto me demorava, simulando ir à viatura buscar medicamentos. Por pudor ou por respeito, eu e o oficial nunca mais voltamos a trocar qualquer palavra a propósito deste episódio.

Umas horas depois eu questionava-me? Mas que desperdício, para mim “niente”.
Bem mais à distância no tempo, não pude evitar um sentimento de repulsa por me ter prestado a esse papel. Era a guerra que tudo explicava, ou antes, que anestesiava o nosso carácter.
E o tempo ia correndo até que, um nefasto acontecimento veio empalidecer os nossos dias.

No percurso entre o Xitole e a Ponte dos Fulas existia um trilho, aí a um quilómetro do quartel, que se sabia usado pelo PAIGC e que era necessário armadilhar para se evitar que viessem colocar mais minas e atacassem o Xitole como já o haviam feito.

Uma secção, com dois furriéis especialistas em minas e armadilhas, foram encarregados dessa tarefa. Era um final de tarde e o tempo urgia antes que escurecesse. Os furriéis montavam a armadilha enquanto o resto da secção, afastada, fazia protecção. Inesperadamente, aconteceu o desastre. Um deles, completamente destroçado, teve morte imediata. O outro ficou gravemente ferido no rosto, no tórax e quase perdeu uma mão. Eram dois jovens, dois jovens com a vida e os sonhos interrompidos. Caía uma noite muito enevoada, o que não permitiu voos para a evacuação urgente do ferido muito grave.

Foi uma noite muito difícil, em que assistimos a noite inteira, minuto a minuto, ao sofrimento e à luta pela vida de um camarada e, tendo bem ao lado, o outro que havia falecido. Enquanto aceitava impotente, a impossibilidade da evacuação que insistentemente pedi, não consegui evitar as lágrimas pelo sofrimento humano a que assistia. Sempre atentos, mantivemos os procedimentos de estabilização do ferido até à evacuação, que aconteceu logo que a luz do dia o permitiu.
O nosso camarada saiu das nossas mãos com vida e assim continuou depois de tratado em Bissau e evacuado para Lisboa. Termos consciência de que a nossa acção contribuiu para salvar uma vida, enche-nos de uma imensa alegria, quase como que um hino de louvor à Vida.

Estávamos novamente na época seca. Os tempos seguintes foram de flagelações à Ponte dos Fulas e ao Xitole, levantamentos e rebentamentos de minas, patrulhamentos e Operações de grande envergadura. Destaco, pelas especiais circunstâncias as “ARRUAÇA" 1 e 2. A Operação “Arruaça 1” foi um autêntico fracasso militar.

Na progressão para SATECUTA, o PAIGC montou uma emboscada de que resultaram ferimentos nos dois guias africanos, sendo um deles com gravidade. Avisado dos feridos, desloquei-me à frente e deparei com os dois guias prostrados no chão. Logo me apercebi de que um deles não inspirava cuidados de maior, mas o outro estava esventrado e com os intestinos pousados no chão, misturados com terra e capim.
O velho guia estava estável e lúcido. No seu aportuguesado crioulo, balbuciava que ia morrer e eu tentava transmitir-lhe serenidade e a convicção de que se salvaria, embora eu próprio não estivesse convencido disso.
Em pleno mato, sob fogo do inimigo, as condições de tratamento dum caso destes, são muito difíceis. O ferido apresentava sinais de que uma bala ou um estilhaço lhe teria “rasgado” a parede abdominal. O objecto causador só parou no velho cantil esmaltado que o ferido trazia à cintura. Felizmente nenhum órgão vital fora atingido, nem mesmo os intestinos. Foi necessário retirar destes, todos os vestígios de terra e capim e repô-los na cavidade abdominal.

Já mais sereno, o guia pediu-me que ficasse com o amuleto que trazia ao pescoço e uma bolsa em pele e os entregasse à família. Confiava, como se de um testamenteiro se tratasse, que eu cumpriria o seu pedido, o que lhe garanti. Tocou-me bem fundo este gesto, que revela o quanto a natureza humana é tão frágil em momentos limite.
E o nosso velho Guia foi evacuado a partir do mato e, apesar de longo internamento em Bissau, sobreviveu. Mas, sem guias, a Companhia não tinha possibilidades de prosseguir. Bem lá do alto do avião ligeiro DO, o Comando insistia que, guiados por ele, podíamos continuar. Não foi esse o entendimento do Comandante da Companhia que, avaliando as circunstâncias, ordenou a retirada para o Xitole apesar das dificuldades de orientação que viriam a provocar a fragmentação da Companhia.

O comandante da Operação ordenaria a repetição da mesma “ARRUAÇA 2”, três dias depois. Esta Operação correu bem e cumpriu o objectivo de destruir SATECUTA.

Sem perceber como, aquando da entrada no objectivo, eu ia integrado no pelotão de assalto. Após os primeiros minutos e não havendo sinal do inimigo, começamos a incendiar o colmo dos telhados das casas. Quando as labaredas já iam altas, rebentou um fogachal medonho. Entretidos na tarefa de pegar fogo à tabanca, eu e mais dois camaradas mal tivemos tempo de nos abrigarmos atrás de uma grande palmeira que se encontrava perto de nós. Lembram-se camaradas? Um de vós lançava dilagramas, o outro disparava a sua G3 e eu, no meio de vós de cabeça bem rente ao solo.

Quando, por momentos levantei a cabeça, assustei-me com a possibilidade de os dilagramas baterem nas grandes folhas da palmeira. O perigo cercava-nos. Foi o momento em que concentrei o pensamento e senti a necessidade de, por instantes, dedicar uma breve lembrança aos que me eram mais queridos.
Até que um de vós percebe que um líquido quente lhe escorre para o pescoço e, ao passar a mão no rosto e vendo que está suja de sangue, quase entra em pânico. Foi preciso um forte abanão para te sossegar e, estando nós ainda debaixo de fogo, aconcheguei-te a mim para fazer o que fosse possível naquelas circunstâncias. Pude verificar que um estilhaço se espetou na parede do crânio na zona da orelha e que, mesmo sangrando muito, não estavas em perigo.

Temendo provocar uma situação que poderia não controlar, optei por não mexer no estilhaço e controlar a perda de sangue. Foste o único ferido, continuaste connosco até ao fim e só foste evacuado a partir do Xitole. A vinda do providencial helicanhão pôs fim àquele inferno.

A pressão sobre a Companhia era enorme. Cerca de um mês depois realizou-se a operação “CORRIDA ENTUSIÁSTICA” para o mesmo objectivo mas por diferentes percursos.
Digno de realce, foi o momento em que um helicóptero desce numa bolanha e, de surpresa, temos perante os nossos olhos o Comandante-Chefe General Spínola. Foi gratificante e moralizador sentir a sua presença e companhia durante uma parte do percurso a caminho do objectivo.

Por esta altura, o Serviço de Saúde funcionava só com dois cabos enfermeiros. O outro camarada por castigo, foi deslocado para Nhabijões/Bambadinca e para os que ficaram, sobrou uma carga excessiva de trabalho.

Lembram-se camaradas que parti para a Guiné de relações cortadas com o meu Pai. Essa situação vinha-me castigando interiormente o que, aliado ao imenso cansaço, fez-me alimentar a ideia ir à Metrópole de férias. Pretendia tentar reatar as relações com o meu Progenitor e, na companhia da família e da namorada comemorar o meu aniversário.
Um tio materno, intercedeu junto do meu Pai e conseguiu que ele aceitasse receber-me em casa. Para minha felicidade, o meu pai esperava-me no Aeroporto de Pedras Rubras. Trocamos aquele apertado abraço que me toldou a emoção até às lágrimas. O Amor falou tão alto, quanto um grito do fundo da Alma.

(Continua)

Corubal nas proximidades do Xitole

Rápidos de Cussilinta na época seca

Hora das lavadeiras, casa do Chefe do Posto e, em primeiro plano à direita, Bar do Soldado e Capelinha

Campo de futebol e pista de aterragem
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11968: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné Bissau (José Martins Rodrigues) (4): Da adaptação ao Xitole, até ao baptismo de fogo