terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12736: Memórias de um Lacrau (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70) (Parte I): Faz hoje 45 anos que partimos no T/T Timor... Numa manhã fria de terça feira de Carnaval. Partida inesquecível, dramática... Gritos de despedida e lenços a acenar...



CART 2479 (futura CART 11)  (1969/70) > > Jantar-convívio dos furrieis milicianos e sargentos em Espinho, dias antes do embarque , que será em 18 de fevereiro de 1969, no T/T Timor. O Valdemar Queiroz está ao centro, todo aperaltado, de gravata e casaco de xadrez...



Ordem de serviço 274/RPA 3/ 22Nov68  (Excerto) Nomeação do fur mil 02086066 José V[aldemar] R Q[ueiroz] Silva para o CTIG, integrado na CART 2479 / BART 2866...



T/T Timor... Navio, misto (carga e passageiros), de 2 hélices,  construído em 1950, em Inglaterra (e abatido em 1974), com o comprimento de 131, 48 m; arqueação bruta de 7,656 mil toneladas;: velocidade normal de 14,5 nós; tripulação: 120 elementos; lojamentos para 4 em classe de luxo, 60 em primeira classe, 25 em terceira e 298 em terceira suplementar, num total de 387 passageiros... Armador: Companhia Nacional de Navegação, Lisboa (Fonte: Navios Mercantes Portugueses > Timor)




A bordo do T/T Timor > Fevereiro de 1969 >CART 2479 (1969/70) >  Da esquerda para a direita, os fur mil Pechinca, Valdemar Queiroz   e Abílio Duarte



T/T Timor > Viagem Lisboa-Bissau > De 19 a 26 de fevereiro de 1969 > Rádio, leitor e gravador, de marca Bigston ("Bigston FM/AM Radio Cassette Tape Recorder"), comprado a bordo... Um pequeno luxo, para a época...



Guiné > Bissau > Estádio Sarmento Rodrigues > 26 de fevereiro de 1969 > CART 2479  (1969/70) > Desfile dos futuros Lacraus... O Valdemara Queiroz está assinalado com uma seta...



Guiné > Bissau > Finais de fevereiro ou princípios de março de 1969 > CART 2479  (1969/70) > O Queiroz na avenida principal, tendo ao fundo a catedral de Bissau.



Guiné > Bissau > Finais de fevereiro ou princípios de março de 1969 > CART 2479 (1969/70) > O Queiroz na Solmar


Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemenetar: L.G.]



1. Texto e fotos enviadas, em 9 do corrente, pelo Valdemar Queiroz, nosso novo tabanqueiro, nº  648  [, foto atual à esquerda]



Partida, chegada e os primeiros meses na Guiné (Parte I)


Inesquecível. Dramático. Gritos, principalmente das mulheres, no Cais de Alcântara, antes e depois de ouvido o Hino Nacional, com o afastamento do ‘Timor’. Gritos de despedida e lenços a acenar aos que partiam e nós a acenar aos que ficavam, no cais, aos gritos, e o Renato Monteiro sempre a acenar com um lenço vermelho à namorada, até à barra do Tejo, com Lisboa ao longe, numa manhã fria de terça-feira de Carnaval (18 de fevereiro de 1969).

Inesquecível. Indesejável situação tão dramática, para os que ficavam e para aqueles jovens que partiam para a guerra na Guiné. (Infelizmente continuou o mesmo espectáculo por mais uns anos).

E lá fomos, com paragem, por umas horas, na barra (já não vamos?), devido a avaria, seguindo para a Madeira, já com grandes enjoos e desejosos de lá chegar.

Chegamos à Madeira, de madrugada, ainda com as ruas iluminadas, que vista do mar poucos conhecem, ficando ao largo a ver o ‘presépio’ e a curar os enjôos da viagem, sem desembarcar.

Continuamos viagem, agora com todo o ‘comércio’ em exposição, até então escondido, que deu para comprar telefonias, gravadores, máquinas fotográficas, etc., a jogar à lerpa, a fazer exercícios e simulacros, a ver peixes-voadores e, à noite, deitados no tombadilho, de barriga para o ar, a ver o céu estrelado, passando os dias de enjôos até aparecerem os pilotos de barra, muito pretos e a falar (crioulo?) sem se perceber o que diziam, e o Alferes Pina Cabral a dizer-me 'Queiroz, agora é que chegamos à Guiné'.

Chegamos à Guiné. Terra vermelha. Bissau, sem colinas, céu cinzento, calor pesado, mosquitos e crianças a pedir ‘parte um peso’, (crianças que nós passamos a chamar jubis, mas jubi em crioulo quer dizer ‘olha’, ‘estás a ver’, ‘repara’, - bu ka na jubi riba / sem olhar para cima -, do verbo djubi = ver), tropa por tudo o que é sítio, com as camisas suadas, a dizerem-nos ‘salta, periquito’, ‘periquito, vai pró mato’, mas também muita gente à civil,  europeus e naturais, muito pretos,  e nós desejosos de uma cerveja fresca, fomos encaminhados para umas tendas em Brá, em que alguns tiveram os primeiros encontros com lacraus e todos com um discurso empolgante de Spínola que nos visitou.

Passamos uns dias em Bissau com muito calor, do que não estávamos habituados. Desfile no Estádio Sarmento Rodrigues, com mais um discurso empolgante do Spínola. Passeios pela cidade. Tardes na esplanada da Solmar a beber umas cervejolas 2M (MacMahon) ou uns whiskies com água Perrier, que era mais cara que o whisky, acompanhado com mancarra vendida, pelas bajudas, a meio peso, a observarmos os abutres em cima do telhado do mercado e a ‘deitar abaixo’ umas travessas de ostras, na esplanada do Nacional. 

Ouvimos falar de ataques, emboscadas, minas, na '5ª. REP’ (Esplanada do Bento,  da Amura) e também ouvimos rebentamentos, à noite, num ataque a Tite, no outro lado do estuário do Geba, mesmo em frente a Bissau. Ouvimos a guerra.

Depois, fomos para o mato. Subimos de LDG o rio Geba, com armamento, viaturas e outro material da nossa CART 2479. Rio acima,  sempre a mesma paisagem, sem se avistar povoações, desembarcando no Xime. 

O Xime, zona de guerra, que parecia uma terra de cowboys, só visto no cinema, com uns casebres velhos e esburacados (de ataques?), ruas de terra poeirenta e cães escanzelados cheios de moscas, com os tropas em cabelo, comprido e grandes patilhas, alguns sem camisa, só em calções e chinelos, com uma cor bronze-amarelada, agarrados às pretas, alguns com os camuflados cortados às tirinhas estilo Bufallo Bill, e sem se notar ninguém a comandar. Grande choque para todos nós. [A unidade de quadrícula do Xime era então a CART 1746,  Bissorã, Ponta do Inglês e Xime, 1967/69, comandada pelo nosso querido cap mil e grã-tabanqueiro António Vaz] [LG].

Seguimos em coluna na estrada, de terra batida, vermelha, que tinha ‘embrulhado’ há dias, aparecendo-nos a milícia, com lenços vermelhos atados ao ombro, a fazerem a nossa segurança e que já tinham feito a picagem da estrada (mais tarde seriam os nossos soldados da CART 11 e da CCAÇ 12).

Árvores esburacadas por bazucadas, cápsulas de balas pelo chão, deram uma amostra de guerra. Com muito calor e a água a esgotar no cantil atravessamos a bolanha passando, ao longe, por Amedalai, tabanca em autodefesa, cercada de arame farpado e, depois, atravessamos por uma ponte cheia de ninhos de andorinhas, chegando a Bambadinca [, sede do BCAÇ 2852, 1968/70; a ponte só poderia ser a do Rio Udunduma] [LG].

Por Bambadinca, localidade também à beira do rio e de terra vermelha, com tropa e população e bem arrumada, passamos quase sem parar, entrando na estrada alcatroada, com descidas e subidas para o planalto de Bafatá, agora todos nas viaturas e sem segurança.

Vimos Bafatá lá em baixo (…que bonita é Bafatá!!!) e continuamos, na estrada alcatroada, todos nas viaturas seguindo para Contuboel, com os abutres a vigiarem-nos do alto do céu. 

Saímos do alcatrão e viramos para uma estrada de terra batida, atravessando uma ponte sobre o rio Geba. Entramos na estrada para Contuboel, com grandes árvores floridas, de cor azul-grená e bem cheirosas (jacarandás?) e vimos grandes construções de terra seca, ninhos de formigas baga-baga, e alguns macacos-cães a darem-nos as boas vindas.

Chegamos a Contuboel, situada no interior, leste da Guiné. Ruas de terra batida, umas casas de rés de chão e uma grande tabanca com muitas árvores estavam à nossa espera. Na rua principal, um cartaz pregado a uma árvore, a anunciar um filme a exibir nessa semana descontraí-nos à chegada e uma placa colocada num cruzamento indicava QUARTEL. É neste local, com clima mais ameno, que vamos ficar uns meses.

 (Continua)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 1998 > Rua principal de Contuboel...

Foto: © Francisco Allen & Zélia Neno (2006). Todos os direitos reservados
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 16 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12726: Tabanca Grande (428): Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Os Lacraus (Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70), grã-tabanqueiro nº 648

Guiné 63/74 - P12735: Manuscrito(s) (Luís Graça) (21): Que fazes aqui, Amílcar, / que já te mataram, Cabral ? / E de que traições podias falar, / se fosses vivo, tu, Osvaldo ? / E tu, Vieira ?





Guiné > Bissau > Quartel-General > O velho forte da Amura > Entrada principal > Foto nº 17/199 do álbum Guiné, disponível na página do Facebook, do João Martins.


Foto (e legenda): © João José Alves Martins (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. (Edição: L.G.) 



A velha Amura dos tugas
por Luís Graça


A velha Amura dos tugas,
agora cercada de guinéus
por todos os lados.
Ilha de areias movediças
num mar de belugas,
foi rampa de lançamento de lançados.
Dizem que aqui nasceu a Bissau colonial.
De linhas tortas,
as ruas direitas da capital.

Saúdo os ilhéus,
figuras de museu de cera,
de faces mortiças:
à frente, o capitão-diabo,
o bigode farfalhudo,
espadeirando a torto e a eito,
de peito feito
ao fogo do canhangulo.
Mais os seus soldadinhos de chumbo,
que eram uma ternura:
em linha, 

em formatura,
nas suas fardas multicolores, coloniais,
do tempo dos Cabrais.
Davam vivas à Pátria e à Rainha.
Aqui como em toda a parte,
onde o Império tinha engenho e arte.

Ah!, a velha Amura, 

inútil baluarte,
com os seus canhões
de bronze, incandescente...
Casamata, prisão,
dormitório, agora panteão,
nacional,
coberto de poilões.

Eram onze os soldadinhos,
como no jogo de matraquilhos.
E combatentes da liberdade da Pátria,
contei-os pelos dedos da mão.

Que fazes aqui, Amílcar,
que já te mataram, Cabral ?
E de que traições podias falar,
se fosses vivo, tu, Osvaldo ?
E tu, Vieira ?

E quanto a ti, Titina,
que incendiavas paixões
pelo Óio ?
Que fazes também aqui,
jazida entre os poilões,
debruados a branco,
da triste Amura ?
Cuidado, Silá,
que os tugas montaram-te cilada
na cambança do Rio Farim.

Vejo mais à frente o Domingos,
o valente Ramos,
herói de banda desenhada,
que irá morrer de morte matada,
em Madina do Boé.

E tu, Rui, e tu Demba, e tu  Djassi,
de quem eu não sei nada,
a não ser que morreste em 1964,
depois do tenebroso Congresso de Cassacá ?
Sei ainda que tens nome de rua,
Rua Djassi,
suja e esburacada,
na capital da tua terra,

ao pé do estádio Lino Correia,
outrora Sarmento Rodrigues,
transmontano de Freixo Espada à Cinta...

E tu, camponês, balanta, 
Pansau Na Isna,
herói do Como,
guerrilheiro-cowboy,
enfrentando as naves loucas dos tugas
com a tua Kalash de contrafacção ?

Na Amura fez-se história,
diz-me o guia.
Ou a história dos vencedores
que contam a história dos vencidos.

PS – Cuidado João, 

cuidado, Bernardo,
cuidado Vieira. 
Há quem te espere, 'Nino',
no Panteão Nacional.

Bissau, 7/3/2008.


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Nota do editor:


Último poste de 14 de fevereiro de  2014 > Guiné 63/74 - P12716: Manuscrito(s) (Luís Graça) (20): Gostei de voltar a Tavira (Parte IV): E de ter tempo para (re)descobrir a beleza e o brilho fascinantes do seu património edificado...

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12734: O Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - Contrastes do mesmo cenário [parte III] (Jorge Araújo)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 9 de Fevereiro de 2014:

Caríssimos Camaradas Editores:
Luís Graça, Carlos Vinhal e Eduardo Magalhães. 
Os meus melhores cumprimentos.
O presente texto, ainda que continue a ter por panorâmica histórica o cenário do Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, e o modus vivendi de quem por lá passou [1973], a sua introdução foge um pouco do que tem sido meu hábito em situações anteriores.
Este desvio, enquanto espaço de liberdade, foi influenciado por algumas reflexões surgidas recentemente neste espaço plural de partilha e, daí, deu este resultado.

Obrigado pela vossa compreensão!
Um abraço.
Jorge Araújo.
09Fev2014


O DESTACAMENTO DA PONTE DO RIO UDUNDUMA 
(XIME-BAMBADINCA)

- Contrastes do mesmo cenário [parte III] -

1. Introdução

De acordo com a intensão expressa nos textos anteriores [P12565 e P12586], volto hoje à vossa presença com o mesmo propósito de sempre: o de relatar, na primeira pessoa, os factos mais relevantes que marcaram a vida de um miliciano na sua passagem pelo CTIGuiné.

Assim, continuaremos a aprofundar o tema relacionado com o Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, onde estivemos o segundo semestre do ano de 1973 [já fez quarenta anos!], decisão confortada com as palavras solidárias do camarada António Rosinha ao defender que “cada um deve ter a coragem de dizer aquilo que na realidade presenciou e aprendeu”.

Mas, antes do mais, é justo endereçar aos camaradas, grã-tabanqueiros desta Tabanca que não pára de crescer, os meus sinceros agradecimentos pelos diferentes contributos/comentários produzidos neste âmbito, adicionando-lhe mais valor reflexivo e histórico, por efeito de aí terem passado uma parcela do seu precioso tempo, ainda que em momentos diferentes, em obediência à missão militar que lhes foi confiada/imposta.

Estão nesse caso os camaradas: Carlos Marques Santos [CArt 2339], Luís Graça, António (Tony) Levezinho e Humberto Reis [CCaç 2590/CCaç 12], Jorge Cabral [PCN 63], Paulo Santiago [PCN 53], Beja Santos [PCN 52] e Joaquim Mexia Alves [CArt 3492 e PCN 52], com especial deferência para o Carlos Marques Santos, por ter sido o primeiro a assentar arraial naquele espaço, no longínquo dia 29Mai1969, com tendas de três panos da 2.ª Guerra Mundial, e daí considerar-se, simbólica e carinhosamente, como o DINOSSAURO… da Ponte.
Estou de acordo!

No alinhamento deste texto, entendi incluir e apreciar a pertinência da reflexão do nosso amigo e camarada Pereira da Costa [que foi, durante cinco meses, CMDT da CART 3494, tempo suficiente para ter estado envolvido, entre outros, no episódio estúpido do Rio Geba] ao colocar a problemática do conflito militar a partir de duas perguntas filosóficas; porquê e para quê?

Com efeito, estas são, pela intemporalidade da sua pertinência, duas das principais questões em que nos deveríamos deter ao longo das diferentes fases da nossa vida [unindo o presente ao passado e aprendendo com ele, encontrando novos rumos para a dignificação do Homem], sendo o como e o quando, outras tantas a considerar de igual modo, pois sabemos que tudo é efémero neste nosso cosmos: tem princípio, meio e fim.

Mas, de facto, não tenho uma resposta assertiva e convincente, por ausência de dados, quiçá mais importantes do que aqueles que possuo, na medida em que a nossa ignorância se evidencia e cresce com o saber, em resultado do número de questões ser sempre superior ao das respostas, e daí não haver explicações definitivas.

Retenho-me, por ora, num simples mas importante detalhe que influenciou o nosso comportamento naquele contexto. Quando, dando cumprimento ao programa de treino multidisciplinar de preparação para a guerra, me diziam: “Ranger-Araújo: tu-vais-ser-chefe!” [futuro], omitiam em que condições e com que recursos materiais e humanos tal ia acontecer, para logo a seguir afirmarem: “tu-és-carne-para-canhão!”, expressão [massificada] que viria a ser repetida manga de vezes ao longo da comissão, em particular quando o psicológico dava sinais de algum desânimo, deixando, assim, ao livre arbítrio a construção/reconstrução de um conceito ideológico temperado pela prática concreta do dia-a-dia.

Pelo exposto, e como ficou demonstrado ao longo do tempo, nunca me conseguiram explicar o porquê e para quê, uma vez que a explicação pressupõe antes uma compreensão, que é um processo incompleto e equivocado, e daí haver um deficit dessa compreensão em cadeia. Ou seja, primeiro será necessário compreender para, depois, tentar explicar, pelo que este é um processo que ainda não se encontra encerrado.

Num cosmos onde tudo muda: as pessoas, a sociedade e o mundo, e em que só a mudança é imutável; depois duma ordem, vem a desordem para dar lugar a uma nova ordem [sociologia da ordem e do progresso], por influência da tríade [tróica] TER-PODER-SABER – eis, então, a fórmula que nos comandou… e continua…!

Ainda assim avanço com um elemento mais desta fenomenologia, para prosseguir a reflexão.

Pode ler-se na brochura editada sobre a História do BART 3873 [de autor(es) desconhecido(s)] que “A sede do BArt 3873, decorridos já 5 meses, não teve qualquer ataque ou flagelação o que se percebe pelo cordão protector que a rodeia a dificultar, ou a impedir mesmo, a retirada da força atacante” [p.70].

Da interpretação deste parágrafo nasceu em nós uma outra dúvida: será que o efectivo reduzido a doze unidades, existente no Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, no âmbito da missão de fazer segurança a duas Pontes, era também parte desse cordão?

Do ponto de vista do significado/significante, o conceito “Segurança” significa acto ou efeito de segurar; afastamento de todo o perigo; condição do que está seguro; garantia; confiança; tranquilidade de espírito por não haver perigo [Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: Texto Editora. Abril/2004; p.1339].

Será que esta era a questão principal da nossa missão?

Importa salientar, todavia, que nenhum fenómeno sociocultural, no qual se inclui o socio-militar, é neutral, na justa medida em que não há nenhum sistema totalmente fechado em si, nem é plenamente autónomo. Isto significa que qualquer que seja o seu objecto [de estudo] este emerge de um processo construído pela filosofia da época, a partir do funcionamento sistémico entre todos os elementos que o constituem, como foi referido anteriormente.

Daí julgar que se devem aceitar estas pequenas histórias, com a sua independência e cronologia específica, mais que não seja para se identificarem os contrastes ocorridos nos mesmos cenários [diferenças/semelhanças], e ainda como legado particular de um tempo de vida, que foi o meu, em que, felizmente, saí vitorioso em todos os “contextos”, o mesmo não acontecendo com outros meus semelhantes que não tiveram, lamentavelmente, direito a “bilhete de volta” [expressão do camarada Tony Levezinho], aos quais presto, neste espaço, uma sentida homenagem.

Deste modo, o porquê e o para quê continuará a fazer todo o sentido se antes das decisões a tomar, eles contribuírem para esclarecer as consequências de cada uma delas, numa dupla dimensão: qualitativa e quantitativa. Como teriam feito todo o sentido se tivessem sido colocadas a Winston Churchill (1874-1965), enquanto primeiro-ministro britânico, após o discurso proferido no âmbito de uma Moção de Confiança ao seu governo, em 13Mai1940, a propósito da sua visão futurista no conflito militar emergente da 2.ª Guerra Mundial, quando afirmou: “não dou pré, nem quartéis, nem provisões. Dou fama, sede, marchas forçadas, batalhas e morte”, plagiando a ideia expressa anteriormente pelo general italiano Giuseppe Garibaldi (1807-1882).

Curiosamente, estávamos, então, na época da adolescência dos nossos pais e/ou nos primeiros anos de vida daqueles que foram os pioneiros da Guerra Ultramarina. Eis como os factos históricos continuam a ser cruéis para a humanidade.

Daquela expressão brutal, nasceu uma outra mais reduzida: “Sangue, suor e lágrimas”, e que, entre tantas apropriações, deu nome ao poema “Fado Sangue, suor e lágrimas” [P9122] do camarada Manuel V. Moreira, da CArt 1746, nosso antepassado nas lides da Ponta do Inglês e do Xime - 1967/69, e escrito, segundo creio, em 20Dez1968, no Xime.

Em suma, com o decorrer dos anos, o Poder [pois é ele que decide sobre estas e outras matérias] continua a ser cego, surdo [ou faz de conta!]… e é teimoso, até que o “cordão”… se parte e se desfaz.

Dito isto, avancemos para o ponto seguinte, apresentando mais algumas imagens referentes ao enquadramento geográfico onde nasceu o “Destacamento da Ponte…” e o modo de vida de um tempo organizado em interface com outros tempos, onde a natureza de cada tempo influenciava o outro que vinha a seguir.


2. O Contexto do Destacamento da Ponte do Rio Udunduma

Foto 27 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma] – imagem aérea dos espaços circunvolventes às duas Pontes: a velha danificada em 28/29Mai1969, a cima, e a nova construída pela empresa TECNIL e inaugurada no início do ano de 1972, paralela, a baixo.

O rectângulo a vermelho corresponde à área onde foram construídas as primeiras instalações de apoio aos sucessivos contingentes militares para ali enviados, vulgo abrigos, concebidos a partir de buracos abertos no chão e alinhados entre si, virados para a mata/o mato.

É de referir, em nome da verdade, que o camarada Carlos Marques Santos e o efectivo do seu Gr Comb (o 3.º), da CArt 2339, sediada em Mansambo, e que liderou, foram os primeiros habitantes daquele território.

A imagem de fundo é de Humberto Reis [P12647], com a devida vénia.

Foto 28 – Estrada Xime-Bambadinca [Pontes do Rio Udunduma - 1973] – As duas pontes vistas de frente e o Rio Udunduma. Bambadinca fica para a esquerda e o Xime para a direita.

Foto 29 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - 1973] – Imagem longitudinal da estrada nova, à esquerda, e a velha, à direita. Ao fundo fica Bambadinca, a quatro quilómetros, e à esquerda a estrada termina no Cais do Xime, localizado a sete quilómetros, em cujo Aquartelamento, à data, esta instalada a CCAÇ 12.

Foto 30 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - 1973] – Imagem da estrutura da nova ponte.

Imagens [postal] dos contrastes no roteiro triangular: Bambadinca – Xime – Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, entre 1972/1973. 

Bambadinca, sede de Batalhão, era o local identificado do “ar condicionado”, onde tudo estava muito limpinho e arranjadinho… O Xime foi o destino inicial da CART 3494, onde permanecemos treze meses: de finais de Janeiro/1972 a início de Março/1973 e onde vivemos muitas emoções… O Destacamento da Ponte foi um tempo e um espaço, e um modo de vida… pouco/nada digno, mas que acabou por ser superado com alguma criatividade.

Foto 31 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - 1973] – Imagem de um plano de água do Rio Udunduma, procurando-se identificar potenciais locais de “armadilhas” e outros de risco efectivo…

Foto 32 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - 1973] – População do Aldeamento A/D de Amedalai que ali se deslocava diariamente para lavar roupa e fazer a sua higiene pessoal. Ficava a 1 km [+/-], na direcção do Xime. Estávamos, com efeito, na Estação das Chuvas… o caudal do rio era, naturalmente, maior.

Foto 33 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - 1973] – O mesmo da legenda anterior, reforçada com a presença do camarada Joaquim Cerqueira, para compor o enquadramento.

O Cerqueira, como era conhecido, foi o militar da CArt 3494 que nas saídas para o mato, no Xime, era quase sempre o último a transpor o arame farpado e, naturalmente, o último a chegar ao Aquartelamento. Por isso, vastas foram as vezes que lhe dissemos para ter cuidado, pois um dia poderia ser apanhado à mão. Felizmente que não lhe aconteceu nada. Um abraço para ele.


3. O Tempo de novas Emoções versus Tensões

O dia 13 de Setembro de 1973, 5.ª feira, estava a ser semelhante à grande maioria dos já contabilizados, até então, no Destacamento da Ponte. Porém, deixou de o ser quando no exterior dos buracos, aos quais se chamavam “abrigos”, o pessoal se organizava para superar mais uma noite, depois de ter ingerido a terceira refeição da jornada: o jantar.

O sol já se tinha escondido no horizonte e a claridade do dia diminuía a cada minuto. O equipamento que nos auxiliava na visão de proximidade [petromax] estava a ser preparado. E eis senão quando a nossa atenção mudou de sentido por efeito de mais um “festival pirotécnico”, pleno de luz e som, que se apresentava à nossa frente. Rebentamentos e rajadas de kalashnikov, também conhecidas por “costureirinhas”, entravam pelos nossos ouvidos, provocando um natural aumento do ritmo cardíaco. Não vinham na nossa direcção [por enquanto!], mas não estavam muito longe. Quem estaria, naquele momento, a “embrulhar”? Era a pergunta mais banal naqueles momentos dramáticos.

Como o som dos rebentamentos tinham níveis diferentes, muito provavelmente estaríamos perante vários ataques em simultâneo na direcção do Xime. E nós…? O que fazer naquelas circunstâncias…? Iríamos, também, ser contemplados com uma visita relâmpago…? Estas e outras interrogações nos surgiram no pensamento… E agora o que devo fazer… na qualidade de líder [chefe] do Grupo… com apenas doze elementos.

Lidar com ele, entre emoções e tensões, aliás como acontece com todos os Humanos que estão em situações complexas, como foi o nosso caso no CTIG… e como serão certamente em todas as guerras, independentemente dos lugares.

Sei/sabemos hoje, no quadro teórico das neurociências, por exemplo, que o conceito emoção traz à mente uma taxonomia de seis emoções ditas primárias ou universais; alegria, tristeza, medo, cólera, surpresa ou aversão. O rótulo emoção também tem sido aplicado por impulsos e motivações e a estados de dor e prazer.

Como já tinha estado em situações francamente mais difíceis, como já dei conta nas narrativas sobre as duas emboscadas na “Ponta Coli” [P9698; P9802 e P12232] e a do “Naufrágio no Rio Geba”, em 10Ago1972 [P10246], ou ainda nas várias flagelações sofridas pelo colectivo da CART 3494, no Aquartelamento do Xime, durante os treze meses que aí permanecemos, procurei/procurámos, em função do quadro que estávamos a observar, manter o melhor autocontrolo possível.

Para saber algo mais concreto, recorremos ao único instrumento de comunicação aí existente – um rádio emissor/receptor AVP1 – mas sem sucesso. Ruídos e interferências… e mais ruídos… e mais interferências… até que desistimos. E os rebentamentos continuavam ali tão perto ajudando a iluminar a noite… que já o era.

Largos minutos depois surgiram, ao longe, as primeiras viaturas militares vindas do lado de Bambadinca, o que nos permitiu entender o contexto com mais tranquilidade. Mas, como elas não pararam na Ponte… que “cena” estaria a acontecer, na medida em que a duração do[s] ataque[s] levava já um tempo francamente excessivo em relação a situações anteriores?

Por exclusão de partes, chegámos a conclusão de que o ataque mais próximo de nós seria no Aldeamento em Auto-Defesa [A/D] de Amedalai, situado a escassos mil metros [+/-]. O outro, muito provavelmente, seria no Aquartelamento do Xime, onde estava agora a CCAÇ 12. E bateu certo!

Essa noite foi, como seria de esperar, passada ao relento e mais uma em “branco” num cenário de Lua Nova; escura como breu. Porque não abandonámos o nosso contexto, os relatos acima correspondem, tão só e apenas, ao que sentimos e vivemos naquela noite. Porém, para completar esta ocorrência histórica, recorremos ao que se encontra expresso na publicação sobre a História do BART 3873. Eis a sua transcrição na íntegra:

“Em 131835SET73 [a hora não corresponde aos meus registos; seria mais tarde!], o Xime e Amedalai são flagelados simultaneamente durante 15 e 45 minutos respectivamente, por numeroso grupo IN. Sobre o 1.º, o inimigo utilizou R.P.G, Morteiro 82 e Canhão s/Recuo. Sobre o 2.º, R.P.G. e armas automáticas. 1 GrComb da CCS/BART 3873 e 2 viaturas do Pel. Rec. Daimler 8681, acorreram em socorro da A/D de Amedalai, sofrendo uma emboscada na Estrada Xime/Bambadinca. NT e Pel Mil. 241 (Amedalai) sem consequências, bem como os civis. Houve apenas a registar o incêndio de 2 moranças daquela A/D.

O inimigo deu mostras de maior agressividade nas referidas flagelações, ao prolongar a sua acção contra a A/D por três quartos de hora, sabendo que o acesso das NT a Amedalai seria facilitado pela estrada asfaltada e proximidade de Bambadinca e Destacamento da Ponte do Rio Udunduma. As forças IN, provenientes do Poindon/Ponta do Inglês, vinham reforçadas pelo grupo de Artilharia do Quinara” [pp 119/120].

Termino esta terceira narrativa sobre o “Destacamento da Ponte…” dando conta de um facto omisso na História da Unidade relacionado com a imagem abaixo.

Foto 34 – Estrada Xime-Bambadinca [Aldeamento A/D de Amedalai a 1 km do Destacamento da Ponte do Rio Udunduma] – Estado em que ficou uma Daimler na sequência do ataque.

Porque pertenço à última geração de ex-combatentes que viveu, conviveu e sobreviveu no contexto do Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, tenciono voltar a este tema, numa próxima oportunidade, dando continuidade ao seu aprofundamento histórico, divulgando outras peripécias enquadradas por novas imagens.

Estes meus relatos históricos poderão ser, de facto, os últimos, na medida em que, se a memória não me atraiçoa, o contingente da CART 3494 ali destacado, foi substituído, em Fevereiro/74, por um PCN, como, aliás, acontecera em situações anteriores.

Não é crível, por isso, saber-se o que, entretanto, aí aconteceu até ao 25 de Abril.

Obrigado pela atenção!
Um forte abraço para todos.
Jorge Araújo.
09.Fev/2014.
____________

Nota do editor

Vd. Postes anteriores da série de:

10 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12565: O Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - As acções especiais durante o segundo semestre de 1973 (parte I) (Jorge Araújo)
e
15 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12586: O Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - As acções especiais durante o segundo semestre de 1973 (parte II) (Jorge Araújo)

Guiné 63/74 - P12733: O Nosso Livro de Estilo (8): O que fazer com este blogue ? (Parte III): Joaquim Luís Fernandes (ex-alf mil, CCAÇ 3461 / BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973; e Depósito de Adidos, Brá, 1974)



Guiné > Região de Cacheu > Teixeira Pinto  > CCAÇ 3461 / BCAÇ 3863 (Teixeira Pinbto, 1973) > Visita de Acção Social e Psicológica em Caió, com o camarada tabanqueiro, alf mil médico Mário Bravo e outros camarada da CCaç 3461, alf mil  Moreira que estava “atabancado” em Carenque,  e o alf mil Teixeira,  da CCS, aquando da visita às ilhas de Jeta ou Peciche.

Foto (e legenda): © Joaquim Luís Fernandes (2013). Todos os direitos reservados
Joaquim Luís Fernandes, 
residente em Maceira, Leiria,  
técnico de desenho e projeto 
da indústria de moldes  para 
plásticos, tabanqueiro nº 621
1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Luís Fernandes [ex-alf mil, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973: e Depósito de Adidos, Brá, 1974]:

Data: 19 de Janeiro de 2014 às 02:54

Assunto: P12557- O Nosso Blogue em Números - Divagação -Proposta: A[ssociação] Tabanca Grande


Caro Camarada Luís Graça:

Insigne fundador, administrador, editor do Blogue, de grande sabedoria e mestria como animador e moderador da "comunidade" Tabanca Grande, seu grande e prestigiado Régulo.

Desculpa tantos atributos que te endereço, mas aceita-os como expressão sincera do meu apreço pelo trabalho que tens feito e continuas a desenvolver, tão bem assessorado pela equipa que te acompanha, da qual não posso deixar de referir o nome do Carlos Vinhal, que foi o meu apresentador à Tertúlia e me tem acolhido com grande simpatia e camaradagem. A minha saudação amiga e grata.

Vem esta mensagem na sequência do poste 12557 - O Nosso Blogue em Números - em que, na ocasião comentei, não encontrar palavras que exprimissem o que neles via. Agora, as que me ocorrem, são: Muita vida de muitas vidas.

Perante as dimensões que o Blogue alcançou, em dados, em informações e conhecimentos, na rede de relações, mas principalmente, na massa crítica que elas contêm, então e em jeito de brincadeira e como desafio para a celebração do 10º aniversário do Blogue, lancei a ideia de este poder vir a evoluir até à constituição de uma associação mais formal. Não explicitei o que estava a sugerir ou a pensar, nem manifestei grande convicção no que escrevi, mas não fui inocente e sabia bem que não era fácil e não bastava o que disse. Já tinha em mente esta mensagem.

Também não irei escrever agora tudo o que me vai na cabeça, nem isso interessa, mas sinto que devo transmitir mais do que disse e esperar ser compreendido, para que possa obter algum acolhimento e reflexão, de que aguardarei resultados.

Eu sei que o Blogue tem objetivos editoriais bem definidos, que vem cumprindo com muito mérito, alcançando bons resultados, e deles não proponho que se afaste ; Todos eles são bons e importantes. Sei também das 10 regras a respeitar, que se me afiguram equilibradas, de bom senso e necessárias. Os resultados falam por si.

Porém, dentro destas regras, poderá existir em algumas, uma certa elasticidade, (que já tenho verificado sem qualquer mal) que possa possibilitar dar origem a uma qualquer associação, filha do Blogue, que poderia até herdar o seu nome, Tabanca Grande. Seria constituída por elementos do Blogue, voluntários, ao jeito de outra associação sem fins lucrativos, de índole cultural e informativa, com intervenção ou participação nos média, criando opinião, participando de forma organizada na vida democrática, mas não se confundindo com os partidos. 

Sei que não estou a explicitar tudo o que penso e nem isso interessa agora. Os objetivos seriam: De forma simples e despretensiosa procurar pela sua ação, influenciar a Sociedade, as Organizações Políticas, os Órgãos do Poder, no sentido de obter para os ex-combatentes das Guerras Ultramarinas e em particular os da Guiné, algum reconhecimento público que tem faltado, assim como alcançar algumas condições favoráveis e justas, para a vida dos ex-combatentes ainda vivos.

Dou como exemplo: (i) a redução da idade da reforma;  (ii) apoio extraordinário na área da saúde; e (iii) mais reconhecimento público (e não só) para com os ex-combatentes da Guiné, que por lá ficaram abandonados, que serviram Portugal, lutando ao lado dos soldados da Metrópole e das Ilhas...

O campo de ação será muito mais vasto, mas não entrarei por agora em divagações,

Por fim, devo declarar, que também sou parte interessada. Veja-se o meu caso: farei este ano 63 anos, se Deus quiser. Faço descontos, para a então "Caixa de Previdência" e hoje "Segurança Social", ininterruptos, (exceptuando o tempo da tropa) desde 1968, (já lá vão 45 anos) e o meu horizonte de reforma está a ameaçar afastar-se para os 66 anos (se eu lá chegar). 

Como eu, quantos milhares de ex-combatentes haverá? Entretanto terei que continuar a competir, para sobreviver no mercado do trabalho, com jovens de 30, 40 anos. Coisa injusta para uns e para outros. É mau para o País e pior para mim, digo eu. Mas Que posso fazer?...

Agora alguns números para reflexão:

Dos sete camaradas que nos deixaram mais pobres no Blogue em 2013, um era de 1947, logo com 66 anos; quatro eram de 1948, com 65 anos; dois de 1950 com 63 anos. Média inferior a 65 anos. Mas mais: Tomando como referência as idade dos vinte e nove camaradas do Blogue que já partiram, com menos de 75 anos foram vinte e seis, com uma média de idades de 63,8 anos. Só três acima dos 75 anos. [Negritos e realce a amarelo: editores]

​Sei que estes números não têm valor estatístico do todo nacional, mas não deixam de ser uma amostragem e uma indicação que as mazelas que herdamos da guerra, fazem os seus estragos. Pergunto: Há estudos rigorosos sobre este tema que nos mostrem a quantas andamos? Se houver, tu saberás Luís, será uma da tuas especialidades! Ou estou enganado? Poderás partilhar essas informações com os mortais, que foram carne para canhão?

Presumo, que no nosso universo de ex-combatentes na Guiné, as estatísticas que têm justificado, com o aumento da esperança de vida, o aumento da idade das pensões e reformas, são uma balela e como tal, devem ser denunciadas e combatidas, reivindicando um ajustamento da Lei, que contemple esta situação especial, desfavorável para nós.

Caro camarada e amigo Luís Graça, se me excedi, desculpa o atrevimento. Eu sei, que tudo neste Blogue começou em ti e por ti tem vivido. Eu sou um pira, um quase nada nesta comunidade, com fraca participação e sem qualquer legitimidade de apropriação das suas potencialidades, o que aliás, não pretendo.

O conhecimento que fui adquirindo do Blogue e da tua grandeza de alma, deu-me a ousadia de sonhar. Eu sei sei que sou um sonhador e por vezes os pés descolam da terra. António Gedeão cantou: " O Sonho Comanda a Vida" e Sebastião da Gama escreveu " Pelo Sonho é que Vamos". Eu também quero deixar-me embalar em sonhos... de mais Verdade, mais Respeito, mais Justiça. mais Solidariedade, mais Amor....  

Mas irei com calma, mesmo continuando a sonhar.

Creio que transmiti a ideia. Se houver alguma dúvida, fico inteiramente ao dispor para esclarecer o que me for possível. Mas deixo tudo ao teu mais elevado critério e sem o mínimo de pressão. Faz desta mensagem o que considerares melhor e eu aceitarei qualquer desfecho, sem mágoa ou azedume. Só tenho que me penitenciar por ter sido tão longo e agradecer-te a paciência de me teres lido.
Aproveito para desejar-te boa saúde e expressar os meus votos, de que a intervenção cirúrgica que anunciaste para breve, seja bem sucedida, que tudo corra bem e fiques como novo e cheio de força, para muitos quilómetros neste nosso encantador Portugal.

Muito obrigado e um forte abraço
Joaquim Luís Fernandes

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Nota do editor:

Postes desta série:

7 de dezembro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10770: O Nosso livro de estilo (7): Cerca de 400 abreviaturas, siglas, acrónimos, expressões idiomáticas, gíria, calão, crioulo... Para rever, aumentar, melhorar...

20 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10409: O Nosso Livro de Estilo (6): O que fazer com este blogue ? (Parte II ): Depoimentos de A. Pires, C. Pinheiro, D. Guimarães, L. Ferreira, B. Santos, C. Rocha, F. Súcio, B. Sardinha , T. Mendonça e JERO

18 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10402: O Nosso Livro de Estilo (5): O que fazer com este blogue ? (Parte I) : Depoimentos de H. Cerqueira, L. Graça, A. Branquinho, J. Manuel Dinis, J. Mexia Alves, J. Amado, Manuel L. Sousa, José Martins, Hélder Sousa e Eduardo Estrela

15 de agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8675: O Nosso Livro de Estilo (4): O que nós (não) somos... Em dez pontos!


12 de agosto de  2011 >Guiné  63/74 - P8662: O Nosso Livro de  Estilo (2): Comentar  (nem sempre) é fácil...

22 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8588: O Nosso Livro de Estilo (1): Política editorial do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

Guiné 63/74 - P12732: (De)caras (14): A propósito da morte dos Três Majores, tema da acta do conselho de guerra do PAIGC, de 11 a 13/5/1970: Amílcar Cabral no seu melhor: pode ter sido um grande líder africano, não é definitivamente um humanista (António J. Pereira da Costa, cor art ref)

1. Mensagem do nosso camarada António J. Pereira da Costa  [alf art na CART 1692/BART 1914,Cacine, 1968/69; e cap art cmdt das CART 3494/BART 3873, XimeMansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74; hoje cor art reformado, foto á esquerda]:


Data: 13 de Fevereiro de 2014 às 22:27
Assunto: A Morte dos Majores


Boa noite, Camarada
Aqui vai um texto que me ocorreu na sequência da acta que o [Jorge] Picado divulgou.(*)

Peço desculpa, mas acho que o louvor permanente do PAIGC, dos seu líder e suas actuações não tem razão de ser. 

Como se dizia no nosso tempo: 
- Quem muito sabaicha, a lingerie lhe aparece.

É tempo de pôr alguns pontos nos ii e traços nos tt.

Um Ab.
António J. P. Costa



2. Conselho de Guerra do PAIGC: reuniões de 11-05-1970 a 13-05-1970 

A Morte dos Três Majores

por António J. Pereira da Costa
Começaria por assinalar que esta Acta, embora “informal”,  é uma fonte histórica de grande valor e autenticidade. É um “documento de trabalho” da organização do partido que, supostamente, seria depois passado a limpo e arquivado. Não é, portanto, um documento para influenciar o futuro investigador. 

O estilo da escrita e o vocabulário estão muito dentro da linha dos  revolucionários do tempo. Era o tempo da Guerra Fria e do conflito sino-soviético. Contudo, chamo a atenção para a pobreza dos textos, que podemos admitir seja expressão de uma aplicação “cega” do marxismo que se supunha teria de dar resultados automaticamente. 

É provável que a realidade não se conformasse com os métodos aplicados. Nesse caso, o problema era da [realidade], pois os “mestres” (não os teóricos) e o Partido é que tinham razão.

E as “massas”?  Bem, as massas só tinham que se conformar e seguir o apelo e as directivas do glorioso...

É sabido que, em todas as guerras – especialmente nas subversivas – qualquer das partes pretende sempre desequilibrar psicologicamente uma parte dos elementos da outra que, uma vez recebidos, por deserção ou captura, poderão ser apresentados como materializando uma vitória e que, se colaborarem, serão uma fonte muito considerável de informações. 

Será, portanto, abusivo partirmos da ideia de que se tratava de uma “missão de paz” aquela que os majores foram autorizados a levar a cabo. O risco era enorme e o inimigo, como vemos, desde os primeiros contactos, se apercebeu do que estava em marcha, simulou até onde entendeu conveniente e foi recolhendo informações e, quando julgou o momento oportuno, agiu… com grande violência.

Saliento que, no texto, não há a menor ponta de respeito pelos inimigos capturados nem se lamenta minimamente o fim que lhes foi dado. Não tenho mesmo grande dificuldade em ver, na morte que foi dada aos capturados, uma forte componente de racismo. Mas sou eu que sou adepto da teoria da conspiração… Era necessário dar uma lição aos “tugas” e mostrar a superioridade dos combatentes do partido.

Com este texto cai por terra a ideia de que os negociantes foram mortos porque não era possível transportá-los para outros locais. Com efeito, não estando sequer aflorada esta hipótese, pelo menos no documento escrito, podemos concluir que o assassinato foi friamente planeado. Havia a possibilidade de os negociantes serem capturados e transportados nas próprias viaturas até onde o trânsito automóvel fosse possível e o PAIGC sabia que a actividade das NT era reduzida ou nula pelo que poderia em poucas horas colocá-los no Senegal e, daí na Guiné-Conacry, cujas autoridades lhe eram claramente mais favoráveis.

Reparem na barbaridade do assassinato! Poderiam ter sido simplesmente liquidados a tiro, mas o recurso a catanas confirma a ideia de que se pretendia “dar uma lição”… aos “tugas”

Neste ponto do comentário à acta, gostaria de salientar a forma “carinhosa” como os dirigentes do PAIGC nos tratavam: TUGAS! Claro que estavam no seu direito. Na guerra – mesmo fenómeno sociológico – é assim. Por isso mesmo, acho que não devemos considerar esta forma de tratamento de que os portugueses são alvo, ainda hoje, como algo de que possamos orgulhar-nos ou achar divertido ou até curioso.

Amílcar Cabral é manhoso na maneira como se dirige aos seus, enaltecendo a vitória que acabavam de obter e os louros que o movimento pretendia tirar dela, a nível local e até internacional. Não creio que assim fosse. Os “aliados” suecos do PAIGC não ficariam muito agradados se soubessem do sucedido, e os soviéticos não teriam muitos problemas com isso e não lhe dariam importância especial. Não era uma questão importante para a obtenção dos objectivos que perseguiam. Basta ter em conta os diferentes tipos de apoio que cada um prestava.

Amílcar enaltece a superioridade moral e a clarividência dos seus. Por isso, os tugas não “conseguiam comprar a n[ossa] gente”. Era necessário manter a liderança de forma incontestada e o melhor era alimentar o ego dos subordinados. 

Como é óbvio, não é esta a “1.ª vez que numa luta de libertação nacional se mata[m] assim 3 majores, 3 oficiais superiores” mas o secretário-geral di-lo para enaltecer a acção dos seus subordinados, chegando ao ponto de falar “nas condições da n[ossa] luta”, (neste ponto teve um rebate e reduziu-se à sua insignificância) fazendo equivaler o “facto à morte de generais…“.

Chamo também a atenção para a complexa organização do PAIGC, enunciada no discurso do secretário-geral, o que certamente é indício de uma malha de organização que visava não tanto uma melhor acção na luta, mas antes um controlo dos responsáveis pelos diferentes organismos do partido (embora todos fidelíssimos e muito atentos, como ficou demonstrado). O futuro confirmou que não era bem assim…

E que dizer da leitura das cartas escritas aos responsáveis do partido? Estamos perante um simples acto político ou até administrativo? Não sei até ponto é que o Amílcar não estaria a pretender tirar dividendos dentro do partido para aumentar a sua força e o controlo dentro dele. Por mim creio que estamos perante um acto de vingança, senão de sadismo ou, pior do que isso, de um “padrinho” que amedronta os outros elementos da “família”..


Foto do secretário geral do PAIGC, incluída em O Nosso Livro de Leitura da 2ª Classe, editado pelos Serviços de Instrução do PAIGC - Regiões Libertadas da Guiné (sic). Tem o seguinte copyright: © 1970 PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Sede: Bissau (sic)... Aprimeira edição teve uma tiragem de 25 mil exemplares, tendo sido impresso em Upsala, Suécia, em 1970, por Tofters/Wretmans Boktryckeri AB.

Creio que ficam agora provadas duas coisas.

Primeiro: O PAIGC era um partido guerrilheiro,  igual a tantos outros,  e que fazia a guerrilha com os mesmos escrúpulos de todos os outros. Não se vislumbra aqui nada que o torne melhor ou mais respeitável do que os outros.

Segundo: Amílcar Cabral, como chefe guerrilheiro, não tem nada que o distinga de tantos outros líderes africanos do seu tempo. E não adianta recorrer à velha máxima de que “a sua luta era contra o colonialismo português e não contra o povo português”.

Por último, quero referir que, durante a guerra na Guiné, não tenho conhecimento de que algum guerrilheiro capturado tenha sido morto à catanada, quer fosse soldado, major ou mesmo general. Sabemos hoje que Cabral era um paisano, manobrando os combatentes, independentemente dos postos militares que o PAIGC talvez não tivesse, recorrendo sistematicamente à atribuição de responsabilidade aos “camaradas”, segundo a fidelidade ao partido e resultados obtidos.

Uma coisa é certa: podemos aceitá-lo, mas, por este procedimento está inviabilizada a possibilidade de o considerarmos um humanista. (**)

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Notas do editor:


(**) Último poste da série 21 de março de 2013 Guiné 63/74 - P11288: (De) caras (13): Guerra Ribeiro, natural de Bragança: de administrador colonial no tempo do Schulz a intendente no tempo de Spínola (Paulo Santiago / Cherno Baldé / António Rosinha)

Guiné 63/74 - P12731: Convívios (561): Dia do Combatente de Gondomar, sábado 1 de Março de 2014, em Fânzeres

C O N V I T E

DIA DO COMBATENTE DE GONDOMAR

SÁBADO, 1 DE MARÇO DE 2014

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12728: Convívios (560): VIII Almoço de confraternização de ex-Combatentes da Guiné do Concelho de Matosinhos, dia 1 de Março de 2014, em Leça da Palmeira

Guiné 63/74 - P12730: Notas de leitura (564): "Murmúrios do vento", da autoria do capitão Valdemar Aveiro, 3º livro de uma trilogia sobre a epopeia da pesca do bacalhau, que chegou a ser alternativa à guerra colonial (Prefácio de José António Paradela, arq) (Parte II)



1. Continuação da publicação do prefácio do José António Paradela ao livro de Valdemar Aveiro, "Murmúrios do vento: recordações da pesca do bacalhau" [ Lisboa: Editorial Futura, 2012, 223 pp + fotos; capa: Sofia Ferreira de Lima, Âncora Editora; reproduzida à direita, com a devida vénia].


Prefácio, por José António Paradela, Arquiteto

[por cortesia do prefaciador e do autor da obra, meus amigos de Ílhavo]

(...)

Tive oportunidade de apresentar o segundo livro com um texto até hoje inédito e que me parece fazer todo o sentido deixá-lo aqui, porque este livro é apenas a cúpula do edifício que o autor agora deu por acabado.  Não vai pois a História ficar roubada da sua versão relatada na primeira pessoa. Daí a importância destes livros.

“Caro Valdemar:

Passados quase 50 anos, talvez, como muitos de nós, eu tivesse matéria para contar algumas histórias, mas falta-me o engenho e sobretudo a tua aguda memória, capaz de gravar imagens a fogo no leito do tempo.

Leio novamente as tuas histórias e gosto sempre mais.  Isto só me acontece com certos livros, mas nem sempre pelos mesmos motivos.  Estou a lê-las e a recordar-me de Alain Gerbault ( À la Porsuite du Soleil ), e de Hemingway (O Velho e o Mar), mas sobretudo de Melville de(Moby Dick).


O barco de que falas, o teu Coimbra, já não é de madeira, nem os cabos são de cânhamo, e a baleia tem agora a dimensão dos labirínticos campos de gelo flutuante.  Mas o alento que te atravessa a alma é da mesma natureza, agora consubstanciado na caça ao cardume viscoso e fugaz sob o gelo.

Estas circunstâncias são para ti um apelo, um desafio à aventura, à vitória da descoberta, granjeada num segundo fôlego, ou mesmo num terceiro, quando os outros já ficavam abaixo da linha do horizonte, confundidos com a névoa.




Um das fotos que ilustra o livro: o navio "Coimbra", arrastão da Empresa de Pesca de S. Jacinto. Foi o último navio que o Valdemar Aveiro comandou, antes de se reformar da vida do mar. Continua, contudo ligado a esta empresa armadora, agora como administrador. Nasceu em Ílhavo, e vai fazer 80 anos no próximo mês de dezembro. (Reproduzido do livro, com a devida vénia...).

Descobriste e ensaiaste os mapas do comportamento da manta gelada, para evitares o seu abraço fatal. Mobilizaste os marinheiros – os rapazes, como lhe chamas, para o festim opulento corporizado na sacada de peixe de braço dado com o navio, esse saco-prenúncio do pão para os que em terra esperavam.

Não foste, e ainda bem, o capitão Ahab de Melville, ou o Santiago do Hemingway, mas a associação é inevitável.  Trata-se de vontade em estado puro, de maratonas diariamente repetidas, no afã de levares à terra a mensagem da vitória: Ganhámos! Como há 2500 anos na Grécia. Os homens mudam pouco!

Estamos perante um livro de prodigioso apelo à memória.

À memória do tempo vivido por entre aventuras e histórias, que por vezes assume um tom narrativo confessional, para reconstituir um passado feito de retratos minuciosos de seres que existiram (muitos existem ainda felizmente) e que marcaram o teu trajeto, quase sempre sobre as águas, que do planeta são ainda a parte incógnita.

Não falo dos peixes e da sua geografia, mas dos homens que as habitaram, estes de quem tu falas e que agora convocas a sair do esquecimento.  São histórias assumidas conscientemente como um ajuste de contas contigo mesmo e com aqueles que contigo andaram ou te cruzaram a rota.

O que afirmas, na singularidade e sinceridade da tua escrita, é o tempo em que viveste outro tempo, marcado pelos amigos, ou mesmo por aqueles que contigo se confrontaram. E também a falta que isso agora te faz. 


Outra das fotos que ilustra o livro: (Reproduzida aqui com a devida vénia...).



Paciência, meu amigo, isso é a vida, que faz de cada um de nós uma narrativa única, marcada pela força dos companheiros de aventura e que dentro de nós se arvoram ainda como cínicos que ficaram para nos invectivar e evocar esse tempo de esperanças, amores e desilusões.


Cap Valdemar Aveiro

Um tempo de outrora, mas também de hoje, porque está dentro de nós.

Este livro é o livro que faltava…  

Falo do assunto que coloquei como frontispício deste texto: O esquecimento.  A História com agá grande tem sempre os seus sacerdotes, que vasculham bibliotecas e alinham factos inventando elos de ligação quando necessário. É útil mas insuficiente.

Walter Benjamim, filósofo maldito agora recuperado, desconfiado da historiografia oficial, incitava a “escovar a história a contra pelo”. Para ele o perigo estava no esquecimento, no silenciamento da memória.  Dizia ele: “Toda a imagem do passado… corre o risco de desaparecer com cada instante presente que nela não se reconheceu”.

O teu livro, os teus livros melhor dizendo, porque para mim podiam ser juntos num único, escovam a história a contra pelo.  Haverá quem faça a “história oficial” da Faina Maior, mas é necessário buscarmos o que nela foi esquecido ou abafado, isto é, o que não existe nos arquivos. Os vestígios que o tempo sufocou, as personagens e os episódios que foram ou não chegaram a ser mesmo, colocados nas notas de rodapé dos historiadores oficiais.

O teu livro tem também esse mérito: não deixa silenciar, e regista de modo vivíssimo e rigoroso as ligações orgânicas dos homens – com nome e tudo como tu fazes questão de escrever – aos seus instrumentos e às suas palavras, essas que te obrigaram a fazer um glossário. (Podes acrescentar nesse glossário: “camisolinha interior = copo de bagaço”).

A compreensão histórica de determinados contextos sociais passa obrigatoriamente por aqui:

Pelas ligações estabelecidas entre os homens e os seus instrumentos (em que a linguagem é seguramente o mais importante), e até pelos copos, naturalmente… Lembro-me de Pessoa, e sobretudo de Mussorsky, ardido no álcool, a legar-nos música imortal.

Hoje, que a Internet comporta e transporta milhões de histórias, podemos ser levados a pensar que o problema já não existe, esquecendo que alguém terá de as contar.  Só que não basta contá-las.  E é neste ato de contar, que acompanha os humanos desde os primórdios, neste incontornável filtro da inteligência e do “coração”, que reside a pedra filosofal capaz de transformar uma narrativa banal numa obra de arte viva e perene como tu fizeste para nosso encanto.

Não relataste apenas histórias de uma vida, não personalizaste o navio como já vi, fazendo-o arfar como um animal no esforço da corrida. Ou, como em Hemingway, plasmando no peixe a ansiedade do homem.  Contextualizaste um mundo de relações humanas entre o povo flutuante e errático da pesca do Atlântico Norte, cuja aventura cairia minorada se a não contasses.  E o modo como o fizeste entra pelos domínios da grande arte de narrar.

Para terminar, porque o importante mesmo é ler os teus livros, dir-te-ei que – ainda que esta seja apenas a tua versão dos factos – ela não deixa de ser menos verdadeira.  E é uma parte fundamental da História, doa a quem doer...

Como dizia um combatente da guerra civil espanhola ao relatar a sua experiência:  “… no sé yo cuanto le puede importar a usted ésto que le estou diciendo, no sé si esto le puede importar a alguièn, porque estas cosas no las cuentan los libros, esto no sale nunca en la historia, pero sabe lo que lo digo? Esta es mi verdad”.


Esta é a tua verdade, e através dela resgataste do esquecimento, todos os que convocaste, e através deles todos os outros.

Muitos recuarão ao centro de onde partia o tempo, onde os minutos eram iguais à eternidade, ali, onde os teus livros, de páginas já amareladas continuarão a ensinar aos homens o que foi aquela vida!“

Julho de 2012

José António Paradela, arquiteto

[, natural de Ílhavo; foto à direita; Costa Nova,
agosto de 2007; foto de L.G.]






Dedicatória ao autor, antigo comandante do navio Coimbra aos pescadores e marinheiros que com ele trabalharam ao longo de uma vida

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Guiné 63/74 - P12729: Parabéns a você (693): António Carvalho, ex-Fur Mil Enf da CART 6250 (Guiné, 1972/74) e Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 1426 (Guiné, 1965/67)

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Nota do editor

Último poste da série de 16 de Fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12724: Parabéns a você (692): António Eduardo Carvalho, ex-Cap Mil da CCAÇ 3 e CCAÇ 19 (Guiné, 1974)

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12728: Convívios (560): VIII Almoço de confraternização de ex-Combatentes da Guiné do Concelho de Matosinhos, dia 1 de Março de 2014, em Leça da Palmeira



VAI-SE LEVAR A EFEITO NO PRÓXIMO DIA 1 DE MARÇO DE 2014, EM LEÇA DA PALMEIRA, O VIII ALMOÇO/CONVÍVIO DOS EX-COMBATENTES DA GUINÉ DO CONCELHO DE MATOSINHOS

Como vai sendo hábito, as inscrições estão abertas também aos nossos camaradas ex-combatentes da Guiné dos concelhos limítrofes.
De salientar que este ano, para que se inicie uma aproximação entre todos os ex-combatentes do nosso Concelho, as inscrições são abertas aos três teatros de operações: Angola, Guiné e Moçambique.
Assim, receberemos com prazer todos os nossos conterrâneos que combateram em África na Guerra do Ultramar que queiram confraternizar connosco.

O programa terá este alinhamento:

11h30 - Concentração do pessoal junto à marginal da Praia de Leça, onde se fará a foto de família.

12h00 - Missa de sufrágio na Capela do Sagrado Coração de Jesus, mais conhecida por Capela do Ruas, sita na Rua António Nobre, pelos camaradas caídos em campanha e pelos que, regressados vivos e sãos, ao longo da vida nos foram deixando.

13h00 - Almoço no Restaurante Luso-Brasileiro, sito na Trav da Agra.
Custo do almoço - 19 €uros.

Passa palavra e inscreve-te

Os organizadores do Encontro
Ribeiro Agostinho
José Oliveira
António Maria
Abel Santos
Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12691: Convivios (559): Tabanca do Centro, Leiria, Monte Real, 31 de janeiro de 2014: 4º aniversário, 33º encontro, 80 convivas: um caso de sucesso, um futuro "case study" a ser seguido pelas academias militares de todo o mundo (Miguel Pessoa / Luís Graça)

Guiné 63/74 - P12727: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (81): António Medina, natural da ilha de Santo Antão, Cabo Verde, foi fur mil da CART 527 (Teixeira Pinto, 1963/65) e vive hoje nos EUA, onde descobriu o nosso blogue




Foto (e legenda): © Augusto Silva Santos (2012). Todos os direitos reservados


1. Mensagem de hoje, do novo membro da Tabanca Grande, António Medina, que vive nos EUA, e que foi fur mil da CART 527 (Teixeira Pinto, 1963/65):

Amigo e camarada Graça:

Tive o interesse de ler o que a meu respeito foi colocado no Blogue mas deparei com um pequeno erro que, provavelmente, será facil de se corrigir. É que não nasci na Ilha do Fogo mas sim a minha esposa, sou natural da Ilha de Santo Antão, na antiga Vila da Ribeira Grande, tendo nascido a 26 de Setembro de 1939. Se ainda chego a tempo gostaria de ter a correcção feita.

Tenho muitas histórias que oportunamente irei contar, dessa guerra inútil e não só, da minha vida civil com a continuidade em Bissau, na Guiné como bancário.

Gostei da vossa composição do Blogue e é louvável a vossa paciência e eficiência em nos assistir para que o nosso sacrificio fique para a eternidade.

 Muito obrigado, camaradas.

A todos um grande abraço deste vosso


António Medina

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P12726: Tabanca Grande (428): Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Os Lacraus (Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70), grã-tabanqueiro nº 648



Guiné > Zona leste > Contuboel > Centro de Instrução Militar > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > O fur mil Valdemar Queiroz



O Valdemar Queirioz, foto atual



T/T Timor > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > "Da esquerda para a direita, o Pechincha, o Queiroz e Duarte"



Guiné > Zona leste > Contuboel > Centro de Instrução Militar > CART 2479 / CART 11 (1969/70)  > O fur mil Queiroz, com os jovens recrutas Cherno, Sori e Umaru.


Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemenetar: L.G.]


1. Mensagem de Valdemar Queiroz, com data de 9 do corrente:


Ora viva, caro Luís Graça!

Eu sou o ex-Furriel Mil Valdemar Queiroz, da CART 2479 / CART 11, "Os Lacraus" (Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá,Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70).

Tenho acompanhado a Tabanca Grande desde que o Abílio Duarte entrou nela,  o que me deixou cheio de querer, também, ser um Tabanqueiro,

O que será feito do Cândido Cunha ?  Wntramos prá tropa em Santarém (10/07/67) e na EPC onde  até os ilhós das botas por onde passavam os atacadores tinham que ser areados!

Faz este mês 45 anos, em 18/02/69, da partida da rapaziada prá Guiné.
Em anexo um texto, despretensioso e como eu vi aquele tempo.

Noutro e-mail que, depois vou enviar, vão umas fotos daqueles tempos.



2. Comentário de L.G. [, ex-fur mil ap armas pes inf, CCAÇ 2590, Contuboel, jun/jul 1969, na foto,  à esquerda, com o Renato Monteiro, passeando de piroga no Rio Geba]:

Caro Queiroz, estivemos juntos em Contuboel, desde 2 de junho a 18 de julho de 1969 (e não erro), Eu fazia parte da CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12 (colocada depois no setor L1, Bambadinca, onde fizemos a comissão, como unidade de intervenção.

Não me levas a mal se eu te disser que, pelo teu nome, já não ia lá... Com as fotos de Contuboel, acende-se um luzinha ao fundo do túnel... Da foto que me envias com três jovens recrutas, o Umaro Baldé, o mais puto de todos, reconheço-o de imediato. Não devia ter mais do que 16 anos. Fumava cachimbo para passar por "homem grande"... Não sei como é que ele - e outros, que eram ainda crianças! - passaram pelo "crivo" da tropa... O Cherno e o Sori também, podem ter ido parar à minha CCAÇ 12, mas não tenho a certeza...

Tivemos, na 3ª secção (fur mil José Sousa Vieira), do  3º Gr Comb (alf mil Abel Maria Rodrigues), o soldado 82109669 Cherno Baldé, de etnia fula... Era municiador da  Metr Lig HK 21m e o Sold 82109269,  Sori Jau, também fula, apontador de Dilagrama.

Também tivemos, na 1ª secção (fur mil Joaquim Augusto Matos Fernandes), do 4º Gr Comb (alf mil José António G. Rodrigues, já falecido), o Sold 82115269 Cherno Baldé, fula, ap Metr Lig HK 21.

O Sold 82115869 Umarú Baldé (Ap Mort 60), fula (já falecido, depois de viver na Amadora), pertencia ao 4º Gr Comb, 2ª secção (fur mil António Fernando R. Marques),

Na 3ª secção do 4º Gr Comb, havia um outro Sori Baldé, fula, Sold 82111069...

De qualquer modo, querido camarada de Contuboel, deste a recruta aos nossos 100 soldados do recrutamento local, oriundo dos regulados de Badora e de Cossé, que passaram depois para a CCAÇ 2590/CCAÇ 12. Fomos nós que lhes demos a instrução de especialidade e a IAO.

É com enorme alegria que te recebo na Tabanca Grande,  tão grande que cabemos cá todos, os camaradas que passaram pela Guiné desde 1961 até 1974, e que estiveram no noete e no sul, no leste  e no oeste.  Da tua companhia cá temos, pelo menos, o Renato Monteiro e o Abílio Duarte, dois nomes que me vêm logo à memória... Mas também o António Baldé, 1º cabo, fula, que é capaz de ser ainda do teu tempo... e que é natural de Contuboel! (É é agora meu vizinho... e "compadre", já que somos "padrinhos" da sua filha, a Alicinha do Cantanhez)... E ainda outros que passaram pela CART 11, mais tarde CCAÇ 11...

Valdemar, conheces as "regras do jogo" do nosso blogue... Vamos de seguida publicar o texto e as fotos  que mandaste.  Passas a ser o grã-tabanqueiro nº 648, e a ter direito a sentares-te sob o nosso poilão, mágico, fraternal e protetor. Manda também, ao Carlos Vinhal, editor de serviço 24 horas por dia, o teu contacto telefónico (telemóvel ou telefone fixo, só para uso interno, não devendo ser divulgado no blogue, a menos que autorizes).
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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12723: Tabanca Grande (427): António Cândido da Silva Medina, ex-Fur Mil Inf da CART 527 (Teixeira Pinto e Pelundo, 1963/65)

Guiné 63/74 - P12725: Notas de leitura (563): "Murmúrios do vento", da autoria do cap Valdemar Aveiro, o 3º livro de um trilogia sobre a epopeia da pesca do bacalhau, que chegou a ser alternativa à guerra colonial (Prefácio de José António Paradela, arq) (Parte I)


Capa do livro de Valdemar Aveiro: "Murmúrios do vento: recordações da pesca do bacalhau" [ Lisboa: Editorial Futura, 2012, 223 pp + fotos; capa: Sofia Ferreira de Lima, Âncora Editora; reproduzida com a devida vénia].




Dedicatória autografada ao editor do blogue,  Luís Graça






Nota biográfica sobre o autor, o capitão Valdemar Aveiro, nascido em 1934, em Ílhavo.  Cortesia do autor e do editor.


Índice da obra



PREFÁCIO, por José António Paradela, Arquiteto [natural de Ílhavo, e meu grande amigo]

[por cortesia do prefaciador e do autor da obra, meus amigos de Ílhavo]


“…E dentro de uma geração quem é que se lembrará disto?  A menos que fique escrito, tudo se perderá no nada.”  (Valdemar Aveiro)


Esta reflexão, respigada do autor, confronta-nos por um lado com o risco de esquecimento da História, reagindo saudavelmente por outro, a essa entropia; à mudez que muitas vezes se segue às vivências cuja violência assume uma dimensão desmedida.

Não é por acaso que só agora, ao fim de mais de três décadas, haja na sociedade portuguesa coragem para contar as histórias que se passaram na segunda metade do século vinte, por aqueles que efetivamente as viveram.  Sejam as da guerra colonial, sejam as dessa outra guerra que foi a não menos violenta, porque psicologicamente castradora, da pesca do bacalhau que, ironicamente, chegou a ser alternativa legal à guerra de África. 

[Negritos e sublinhados de L.G. Vd. este tópico, a pesca do bacalhau como alternativa à guerra colonial, vd. aqui o respetivo marcador.]

Na verdade quando os acontecimentos superam a capacidade de assimilação do ser humano, este têm de se proteger criando mecanismos de defesa contra o excesso de estímulos de sinal negativo, gerados pelas condições adversas que obrigatoriamente têm de enfrentar.  No caso de alguns acontecimentos traumáticos, esse escudo de proteção é porém insuficiente, e deixa marcas profundas que impossibilitam qualquer verbalização.

Tive em casa um exemplo disso: Gostando de escrever histórias nos últimos anos da sua vida, o meu pai nunca relatou, salvo um ou outro episódio da juventude, os mais amargos momentos que passou ao longo de uma vida de 50 anos no mar, embarcado em navios por vezes decrépitos, onde esteve em risco de naufragar várias vezes.

Mas felizmente, não é esse o caso do Capitão Valdemar Aveiro, que publica agora o seu terceiro livro (*), o último de um tríptico magistral, contado quase sempre na primeira pessoa, composto de tábuas pintadas de saborosa e colorida literatura.  Essas tábuas são narrativas que formam, sem dúvida, o mais completo políptico sobre a gesta incomensurável da pesca do bacalhau escrita até hoje por quem, na verdade, a viveu. 

Outros o têm feito, mas quase sempre como espectadores privilegiados, como Bernardo Santareno, ou Alan Villiers, por exemplo.

Os narradores gostam de começar as histórias com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos factos, a menos que essas histórias se refiram a experiências autobiográficas.  É isso que acontece nestes livros de Valdemar Aveiro, permitindo-lhe imprimir a sua marca nas narrativas, como o oleiro na argila do vaso, recheando-as com um cunho de verdade, de saudade, de solidariedade... falando em tons sempre adequados à natureza de cada estória.

Este, é o seu Terceiro Livro, como diz o autor, mas é nele que se encontra o alfa e o ómega desta soberba trilogia:  No começo, o retrato do autor enquanto jovem, abrindo as pétalas da vida no despontar da manhã que o traria até estas estórias.  No final, a homenagem serena e plena de gratidão àqueles em cujos ombros soube apoiar-se, e que o ajudaram a crescer nos princípios da verticalidade que lhe permitiram estar naquela vida, maior entre os maiores, enfrentando temporais de inveja e mesquinhez, mais traiçoeiros que a ventania no oceano, notavelmente relatadas neste último episódio.

Neste livro, e no espaço intermédio entre a primeira e a última narrativas, outros episódios se vêm somar ao acervo contido nos livros anteriores, pejados da mesma graça, e aguçada escrita, abundante de termos por vezes estranhos, apelando à consulta do glossário.

(Continua) (**)

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Guiné 63/74 - P12724: Parabéns a você (692): António Eduardo Carvalho, ex-Cap Mil da CCAÇ 3 e CCAÇ 19 (Guiné, 1974)

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12715: Parabéns a você (691): Senhora Dona Clara Schwarz, Grã-Tabanqueira, mãe do nosso amigo Pepito, que a partir de hoje fica a um pequeno passo do seu centenário