terça-feira, 3 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15320: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (27): De 01 a 31 de Março de 1974

1. Em mensagem do dia 31 de Outubro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 27.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

27 - De 01 a 31 de Março de 1974

Março de 1974 – Não podendo dispor dos meus registos de memórias desta época, pelas razões já aqui expressas várias vezes, socorro-me de breves passagens da correspondência enviada para a Metrópole, mas, principalmente socorro-me do valioso documento memorial que é a História da Unidade do meu Batalhão, como um filme daquela curta mas tão marcante etapa da minha vida. Rebobino o “filme” para o mês em apreço e está lá tudo o que preciso saber, desde os factos de que não tenho a mínima memória, - ou de que nunca tivera conhecimento -, aos factos que, embora ainda vagamente lembrados, jamais conseguiria datar e localizar com precisão. Outros, é certo, estão bem vivos na memória e limito-me a confirmar no “filme” o rigor do que está gravado. Dizia um antigo presidente americano, - Abraão Lincoln, creio -, que a memória é como um aço muito duro, difícil de gravar, mas depois de gravado, jamais se apagará. Mais ou menos nestas palavras.

Este mês de Março ficou marcado por alguns acontecimentos empolgantes, para variar, como a ligação de Nhala à estrada nova Aldeia Formosa-Buba e a visita da Presidente do Movimento Nacional Feminino, Cecília Supico Pinto. Sobretudo esta visita, trouxe uma animação inusitada às tropas de Nhala – e do Sector -, mas não se pode dizer que tivesse, também, quebrado a monotonia e a rotina, simplesmente porque naquela época, o que tínhamos menos era monotonia e rotina, tal era a actividade operacional. Esta actividade continuava virada para a protecção às obras da estrada como até aí, mas, a partir de agora, também para a protecção exclusiva das máquinas, paradas à noite, em zonas cada vez mais afastadas dos aquartelamentos, implicando dormidas no mato junto delas. Para além disto, todo o Sector era “vasculhado” constantemente, em acções desencadeadas pelos alarmantes sinais – no terreno e não só -, de que a guerrilha estava um pouco por todo o lado: ora deixavam pegadas, ora lançavam very-lights, ora faziam tiros de RPG que se ouviam nas matas afastadas. Por várias vezes apareceram mesmo, dispostos ao confronto: logo no início do mês interceptaram dois soldados do Pel Caç Nat 55 que andavam à caça, matando um deles; na estrada Mampatá-Colibuia tentaram aproximar-se dos pontões, possivelmente para os destruir, mas foram repelidos pelo GrComb da CART 6250 de Mampatá que lá estava emboscado; no dia 15, a tropa de Buba, da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 que se deslocava para a protecção às obras da estrada, foram emboscadas, (pela segunda vez) por cerca de 50 elementos. Em carta para a Metrópole, dei conta: “Hoje, mais uma vez, uma coluna vinda de Buba para a frente trabalhos, entre aquela base e Nhala, foi atacada na estrada. Mesmo nas nossas barbas, mas sem consequências”. Foi em 15 de Março/74, uma sexta-feira. Ainda nessa carta, como curiosidade, informo: “Há dias foi colocada uma bomba dentro de um café que eu costumava frequentar quando de passagem por Bissau”. Estava assim o ambiente geral.

Anteriormente, no dia 7 já noite, vimos subir nos céus de Nhala, mesmo à nossa frente, um very-light verde, silencioso e belo, como num resto de romaria minhota. Estávamos sentados no alpendre da messe, cada um com o seu copo na mão em amena cavaqueira, mas a reacção imediata não foi esperar pelo rufar dos tambores e acordes de gaita-de-foles, mas sim largar tudo e correr para o que tinha de ser feito. Toda a iluminação desligada, em pouco tempo o morteiro 81 estava no espaldão a bater a zona em frente. Todo o pessoal nas valas, expectante, sem saber o que aconteceria a seguir. Eu e a equipa do morteiro 60 do meu grupo, corremos para o extremo da tabanca, do lado da picada para Buba, para bater uma possível retirada por esse lado. Disto lembro-me perfeitamente. Colocámo-nos num espaço exíguo entre a vala de defesa e uma palhota. Enquanto ali estivemos, quase encostados à palhota, eu ouvia no seu interior um tossir de mulher de idade, pareceu-me, numa tosse persistente e cavernosa que picava num peito já sem energia. Não sei se estaria acompanhada mas, apesar do barulho das saídas do morteiro quase ao pé da porta, ninguém veio espreitar ou indagar daquelas necessidades de incomodar quem precisava de descansar. Nunca mais esqueci este episódio. No dia seguinte fizemos uma batida na zona, mas apenas encontramos pegadas de dois indivíduos.


10 de Março de 1974 – (domingo) – A visita da Cilinha

Cecília Maria de Castro Pereira de Carvalho Supico Pinto (1921 – 2011), Cilinha, como gostava de ser tratada, (diminutivo que lhe vinha da infância), era descendente de aristocratas e uma Senhora do Regime. Não precisa de grandes apresentações porque sobre ela quase tudo já foi dito. Muito antes de a ter conhecido em Nhala, já tinha por ela uma elevada consideração e um grande respeito, pela sua coragem, tenacidade e coerência. Durante treze anos, de 1961 a 1974, foi presidente do MNF que ela fundou, tendo em vista acções de sensibilização da sociedade portuguesa para a defesa das colónias ultramarinas, o seu Ultramar. Tudo fez nesse sentido, desdobrando-se em iniciativas na Metrópole e calcorreando as colónias, tentando dar alento a tropas desmotivadas e politicamente amorfas.

Era por ser assim, e não pelos seus objectivos, que a admirava e a minha consideração elevou-se depois de a ter conhecido. Porque, sendo coerente com as suas convicções, saiu do seu confortável cantinho e dos salões solenes e elegantes, e veio para o terreno com o seu camuflado pôr na prática aquilo em que acreditava, correndo riscos e sofrendo privações. E via-se que gostava do que fazia, exibindo uma alegria contagiante e uma disponibilidade total, atributos que passavam para quem a via e ouvia, por a reconhecerem como “um deles”. Politicamente, eu estava nos antípodas. Para mim, a Cilinha, pelas suas ideias e acções e pela sua proximidade (intimidade) com o Regime, representava o Regime.

Politicamente, portanto, eu era contra a sua filosofia de manutenção das colónias, contra tudo o que dizia e fazia nesse sentido, que era, um pouco do que já fizera na sua juventude em prol da caridadezinha.

Paradoxo, incoerência da minha parte? Não. Repito que, como pessoa, tinha por ela o meu maior respeito e consideração. Aliás, soube já depois da sua morte que, nesse aspecto de respeitar o “outro” mesmo não concordando com “ele”, ela não era muito diferente de mim. Dois exemplos: Foi sempre amiga, desde a infância, da Sofia de Mello Breyner, mesmo estando em campos políticos opostos; uma vez disse, revelando nobreza de carácter: “Admiro Cunhal pela sua coerência”. Para terminar, lamento que após o 25 de Abril e até à sua morte, tenha sido desprezada pela esquerda e ostracizada pelos seus correligionários de direita. Tudo apanágios de gente de baixa índole. Sei que nunca foi hostilizada, ainda assim, merecera mais consideração.

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À chegada a Nhala, a Cilinha foi alvo de calorosa recepção por parte da tropa e de alguma população, sobretudo crianças. Mais pelo inédito da situação e pela curiosidade por esta mulher branca que se aventurava no mato para chegar perto deles, com estímulos e uma palavra amiga. Almoçou na messe de oficiais após uns descontraídos aperitivos, mais para pôr a conversa em dia. Vinha acompanhada pelo Comandante do Batalhão, Ten Cor Carlos Alberto Ramalheira e por um séquito de outros oficiais que foi arrastando por onde passou. Após o almoço (ou antes?) houve tempo para falar aos soldados, cantar o fado e, até, dançar com alguns. Depois partiu rumo a Mampatá, após demoradas e sentidas despedidas. Admito que foi o acontecimento do mês, mas não poderia adivinhar que o mês seguinte traria acontecimentos muito mais importantes e marcantes do que este, efémero e superficial.

Seguem-se algumas fotografias que seleccionei dessa visita.


Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: A Cilinha rodeada por alguns oficiais num momento de descontracção durante os aperitivos.

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: A Cilinha a dialogar com o Comandante do Batalhão Carlos Ramalheira. Em primeiro plano o Cap. João Brás Dias, Comandante da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 de Buba.

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: Messe de oficiais de Nhala. O Comandante do Batalhão diz umas palavras de circunstância.

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: Ajuntamento de alguns militares e nativos para ouvir a Presidente do MNF.

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: A assistência vai-se chegando, mas alguns parecem hesitantes...

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: Após a visita, a Cilinha é acompanhada até às viaturas para o regresso. À sua esquerda o Comandante da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 de Nhala, Cap Braga da Cruz. À frente, o Comandante do Batalhão em diálogo com um homem grande da tabanca.

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: A Cilinha troca umas palavras com o Cap Braga da Cruz.

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: Cilinha sorridente, num meio que lhe é familiar: a tropa.

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: A Cilinha olha directamente para a objectiva (corte da fotografia anterior).

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: Finalmente o embarque.

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: A Cilinha e o Comandante do Batalhão acomodam-se por cima de sacos de areia.
 
Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: Última despedida do Cap Braga da Cruz.

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: A Cilinha despede-se de um Alferes que não consigo identificar.

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: Últimas recomendações? A mim pareceu-me mal que a Cilinha e o Comandante tivessem seguido à cabeça da coluna numa Berliet rebenta-minas.

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: Vista geral do aparato que envolveu a visita da Cilinha.

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: Último adeus da Cilinha ao pessoal de Nhala. Em segundo plano, de frente com a mão na cintura, vê-se o Fur Mil Manuel Casaca.

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: A coluna embica pela velha picada rumo a Mampatá. Mas em frente já é possível ver-se o troço que, ao cimo, entronca na estrada nova: à direita para Buba, e à esquerda pata Mampatá e Aldeia Formosa.

Nhala, 1974-03-10 – Visita da Cilinha: O pó foi sempre uma constante, mas agora agravado pelo revolver dos terrenos pelas máquinas da Engenharia. Não o apanhar de frente, é uma vantagem de quem segue na viatura rebenta-minas. Ou talvez por isso...

(Continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Poste anterior da série de 27 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15297: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (26): De 29 de Janeiro a 26 de Fevereiro de 1974

Guiné 63/74 - P15319: (Ex)citações (298): Um peso era manga de patacão... para a bajuda de Mansoa (César Dias, ex-fur mil sapador, CCS/BCAÇ 2885, 1969/71)





Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCS/BCAÇ 2885 (1969/71) > Bajuda no pilão...

Fotos: © Sousa de Castro (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]



1. Mensagem, com data de ontem, 2/11/2015, às 19h13, do César Dias, ex-fur mil sapador da CCS/BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71)



Luís, respondendo ao inquérito de opinião desta semana... cheguei á conclusão que 1 peso era manga de patacão (*).

Vagueando pela tabanca de Mansoa com a máquina em punho, vê a diferença das fotos.

(i) a foto nº 1 (uma bajuda a pilar) foi tirada por mim;

(ii)  depois chegou o alf Montezuma do meu pelotão, ofereceu-lhe 1 peso e olha a diferença... (**)

Um abraço

César



Moedas de 1 peso (escudo da Guiné)... Coleção do Joaquim Almeida, o Custóias

[O Joaquim, que esteve na CCAÇ 817, Porto Gole, 1965/67, guarda "religiosamente" estas duias moedas , recuperadas na sequência  do assalto a um acampamento do PAIGC na bolanha de Porto Gole, na zona de Mansoa, em 3 de julho de 1965, operação onde teve o baptismo de fogo. A moeda de baixo foi emitida, em 1946, por ocasião do V Centenário da Descoberta da Guiné].
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 31 de outubro de  2015 > Guiné 63/74 - P15309: Historiografia da presença portuguesa em África (59): Cem pesos era "manga de patacão" para o camponês guineense, produtor de mancarra... Era por quanto venderia um saco de 100kg ao comerciante intermediário... Em finais de 1965 o governo de Lisboa garante a compra pela metrópole da totalidade da produção exportável da mancarra guineense e fixa o preço por quilo em 3$60 FOB (Free On Board)

(**) Último poste da série > 29 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15302: (Ex)citações (297): Quem disse que "100 pesos era manga de patacão" no nosso tempo? Em 1960, mil escudos (da metrópole) valiam hoje 428 euros; e em 1974, 161 euros, ou seja, uma desvalorização de c. 266 %... Recorde-se por outro lado que 100 pesos só valiam 90 escudos...

Guiné 63/74 - P15318: Parabéns a você (981): António Martins de Matos, Tenente General Pilav Ref, ex-Tenente Pilav da BA 12 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 2 de Novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15313: Parabéns a você (980): Abílio Magro, ex-Fur Mil Amanuense no CSJD/QJ/CTIG (Guiné, 1973/74)

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15317: Os nossos seres, saberes e lazeres (122): No meu tempo chamava-se Pão Por Deus, hoje chamam Halloween, não sei por alma de quem (Juvenal Amado)

1. Em mensagem de ontem, 1 de Novembro de 2015, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), fala-nos do Pão Por Deus de ontem em contraponto com o Hallween de hoje.

No meu tempo chamava-se Pão Por Deus, 
Hoje chamam Halloween, não sei por alma de quem

Nos Casais dos Chãos da Mendiga este dia era de festa.

Fazia a minha avó paterna anos e era dia de Todos Os Santos que para mim e minha irmã se traduzia no dia de Pão por Deus.

Íamos no dia anterior à tarde de camioneta dos Claras até Porto de Mós, onde esperávamos por um autocarro que seguia para a Mendiga e que nos deixava no Cruzeiro, onde estava o meu avô à nossa espera com uma candeia com que alumiava o caminho. Era um carreiro de terra onde as pedras, algumas enormes, o tornavam mais próprio para as cabras do que para as pessoas.

Andávamos bem mais de meia hora, carregados com mercearias que eram difíceis de comprar na aldeia. Só havia uma loja chamada de “ferro-ó-bico”, que vendia coisas pouco mais primárias como velas, petróleo, tabaco, café e café de cevada, etc. Era uma loja pequeníssima, onde as coisas se amontoavam num equilibrismo duvidoso e mesmo assim, muito isolada e afastada do povoado. Não vou jurar, mas penso que se acarretavam os géneros de mula, pois não me recordo de ver caminho suficiente largo para lá passar um carro mesmo que de bois. Na aldeia também havia uma taberna de um tio do meu pai, que foi assassinado com um tiro de caçadeira nas costas por se negar a vender um copo de vinho ao um homem, que já estava demasiado bêbado no seu entender. Coisas de todos os tempos como se sabe.

Mas era assim que se vivia naquela terra agreste onde a maior riqueza era a azeitona e onde as terras, para serem amanhadas, se tinha de retirar pedra e mais pedra. Dizia o meu pai com o humor muito dele, que “aquilo é que era uma terra boa para agricultura, até dava pedra sem ser semeada”.

Na maioria das casas, de pedra nua por fora, criava-se um porco que dava arranjo para um ano inteiro após morto e metido na salgadeira.

Mas eu e a minha irmã, ansiávamos por aquele dia. Logo de manhã muito cedo bebíamos café que sabia a fumo, comíamos pão praticamente com oito dias, grelhado nas brasas e abalávamos de saca às costas com um rancho de garotos, que inicialmente desconfiados logo nos aceitavam de bom modo. Corríamos a aldeia e as aldeias todas da região batendo a todas as portas, pedindo pão por Deus e salvo raras excepções ninguém nos negava as nozes, os figos e as brandeiras de erva doce e azeite que faziam as minhas delicias. Está claro que primeiro no nosso caso, que éramos de fora, tínhamos que responder invariavelmente a um pequeno inquérito tal como “donde és menino”? Eu respondia então que era neto da Maria Cordeiro e do Lino Amado e que vinha de Alcobaça. Antecipava-me assim à próxima pergunta e recuperava do atraso. Logo um sorriso se abria, pois ali eram quase todos primos e primas e acabavam com umas palavras sacramentais tais como, “infalivre estão muito bem informados”.

A palavra “Infalivre” servia praticamente para todas as situações. Exemplos: Infalivre está muito gordo, infalivre está muito magro, ou alto, ou se o tempo estava bom ou mau, etc. Enfim, o termo procedia quase tudo.

As madrinhas faziam uns bolos maiores e mais elaborados para oferecer aos afilhados/as de véspera. Eram de farinha diferente com limão e algum açúcar e depois de cozidas faziam-lhe desenhos com açúcar em calda que lhes conferia um aspecto diferente e muito bonito.

Mas lá íamos nós cantando “Pão Por Deus à magalona saco cheio vamos embora” e “aqui cheira a rosas, aqui moram as formosas”.

Quando alguém não nos abria a porta a cantilena já era outra, “aqui cheira a nabos, aqui moram os diabos”.

Entretanto crescemos e já não parecia bem andarmos ao pão por Deus, a menos que quiséssemos passar pela vergonha de nos oferecerem uma rapariga no saco, dando assim a entender que já éramos demasiado espigadotes.

Avô Lino, avó Maria, Natálio, Cremilde e Manuela

Tenho mais dez anos de idade que a minha irmã e mais dezassete que o meu irmão mais novo. O facto dos meus avós acabarem por irem viver para Alcobaça, ditou um longo interregno sobre a nossa ida aos Casais. Quando lá voltei, a aldeia estava mais triste e abandonada onde os caminhos, as casas e cisternas, continuavam na mesma.

Só tinham ficado os velhos e as crianças. Quem podia abalou para as “franças” em busca de vida melhor deixando os filhos com os pais já demasiado idosos para também se porem ao caminho.

Entretanto as minhas tias venderam a casa e as terras, e eu só lá voltei quando regressei da Guiné. As casas pareciam mais pequenas as ruas mais estreitas, mas em contrapartida havia novas construções de casas de regressados da estranja e a suinicultura abundava bem como o cheiro quase insuportável e nauseabundo, contrastava com alguma abundância e bem estar daquelas gentes. “Infalivre” o Pão Por Deus deve ter por lá continuado a praticar-se, mas não era o mesmo da minha infância.

Hoje os meus sobrinhos-netos vão ao Halloween, mascaram-se e dizem “doçura ou travessura” como se vê na América.

Fomos colonizados até nas mais pequenas coisas e é pena, pois trocou-se uma tradição por uma prática e moda, que nada tem a haver com este povo de quase mil anos.

“Infalivre” estamos em risco de desaparecer culturalmente, salvam-se as bifanas de Vendas Novas para fazer frente aos hamburgers.

Um abraço e faço votos que tenham tido um bom Pão Por Deus que aqui em Fátima se chama o “bolinho”.

Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15300: Os nossos seres, saberes e lazeres (121): Entre Antuérpia e as Ardenas, e algo mais (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15316: Historiografia da presença portuguesa em África (65): Do Hospital colonial (1902) ao Hospital do Ultramar (1958) e ao Hospital Egas Moniz (1974)

1. Temos aqui falado pouco (ou quase nada) da história dos serviços de saúde militares, na metrópole e "além-mar"...

Há na "Revista Militar" uma resenha cronológica com a sua evolução desde há 200 anos (1801-2012). Para os interessados, merece uma leitura o artigo de Rui Pires de Carvalho, ten cor - Factos relevantes da saúde militar nos últimos 200 anos" (Revista Militar, nº 2544, janeiro de 2014). Curiosamente, e certamente por lapso, não há uma referência à criação do Hospital Colonial de Lisboa, em 1902. O facto relevante desse ano é a criação a “Escola de Medicina Tropical”, instalado na Cordoaria, precursora do Instituto de Higiene e Medicina Tropical.

Provavelmente para o autor o "Hospital Colonial de Lisboa" era considerado um hospital civil. E, no entanto, as duas instituições estão ligadas, pelo seu nascimento comum em 1902, por lei de 24 de abril. O Hospital Colonial de Lisboa destinava-se expressamente ao "tratamento dos oficiais militares e praças de pré que regressa(vam) do ultramar". Junto a este estabelecimento, provisoriamente instalado na (Real) Cordoaria, é "criado o ensino teórico e prático da medicina tropical" (base 7ª). Também podiam ser tratados neste hospital os empregados civis e eclesiásticos das províncias ultramarinas (como então se dizia, e não colónias...).

A direção e o serviço clínico eram assegurados por "pessoal técnico" da Repartição de Saúde da Direção Geral do Ultramar. Entretanto, por decreto de 28 de fevereiro de 1903 (Ministerio da Marinha e Ultramar — Diario do Governo, n.° 85, de 20 de abril) é  aprovado o regulamento do Hospital Colonial de Lisboa.

As preocupações com a saúde súplica e a medicina tropical fazem parte do discursos dos dirigentes (e da elite médica) das potências  coloniais de então. Em 1899, são criadas as Escolas de Medicina Tropical de Liverpool e de Londres. E, na Alemanha, surge no ano seguinte a escola de Hamburgo. Em 1906 é fundada em Bruxelas a "École de Médecine Tropicale”, com a missão de preparar os médicos e enfermeiros  destinados às colónias belgas. Patrick Manson, fundador da London School of Tropical Medicine, em 1899, tinha sido nomeado dois anos antes como conselheiro médico do "Colonial Office" pelo primeiro ministro Joseph Chamberlain.

Um dos grandes nomes da medicina portuguesa do virar do século, Miguel Bombarda, proferia as seguintes palavras,  em 26 de outubro de 1901, numa comunicação à Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa:

"(....) A colonialização não é somente uma questão social e económica, mas ainda uma questão de higiene e uma questão de patologia. A prosperidade e a riqueza de uma colónia dependem primeiro que tudo das facilidades de vida que lá podem encontrar os elementos colonizadores. Desgraçado povo aquele que das sua colónias só pode arrancar ouro à custa de sangue! Desgraçadas riquezas aquelas que se conquistarem à custa do depauperamento da metrópole pelas vidas ceifadas e pelas existências mutiladas! Todos os dispêndios empregados em salvar vidas não podem senão redundar em riqueza e prosperidade nacionais. O remédio para os graves riscos que importa uma colonialização empreendida às cegas está na intervenção da medicina, com os altamente poderosos recursos de que dispõe na actualidade. A Inglaterra, a Alemanha e a França acabam de o reconhecer pela criação de centros de estudo e de ensino que hão-de simplesmente converter-se em facilidades colonizadoras e em prosperidade colonial" (...).

No entanto, Portugal tem pergaminhos a defender nesta como noutras áreas do saber. O  nosso Garcia da Orta (Castelo de Vide, c.1501-Goa, 1568) é considerado um precursor da medicina tropical, bem como da botânica e da farmacopeia orientaism enquanto autor do tratado "Colóquio dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia", editado em Goa em 1563.

Mas já em meados do se´c. XIX tinha sido apresentado um  projecto de lei, em 1855,  sobre o ensino da medicina tropical, da autoria  de Pinheiro Chagas. Mas foi a Escola Naval que seria pioneira no ensino da medicina tropical, em 1887, promovida por lei de 25 de agosto desse ano, de Henrique Barros Gomes, filho do capitão de fragata médico naval Bernardino Barros Gomes. Quatro anos depois, em 1901, é de destacar, pelo seu pioneirismo, a missão do sono a Angola, chefiada por  Aníbal Bettencourt, director do então Real Instituto Bacteriológico.

Não se pode falar do Hospital Colonial sem, antes, evocar o grande Hospital Real de Todos os Santos, inaugurado em 1504 por D. Manuel I, e que, de acordo com o seu regulamento, tinha também por missão acolher todos os "doentes do mar" (!), ou seja, todos os nossos marinheiros, soldados e exploradores  que chegavam de viagem a Lisboa (Vd. aqui artigo de Luís Graça, na sua página pessoal, Saúde e Trabalho: refira-se  também aqui a existência de mão de obra-escrava, de origem africana, exercendo funções de ajudante de lavadeira e  com direito apenas a pagamento em géneros: alimentação, alojamento e vestuário).
















Fonte: Portugal > Assembleia da República > Legislação régia > Lei, 24 de abril de 1902 > "Lei (Ministerio da Marinha e Ultramar — Diario do Governo, n.° 98, de 3 de maio) auctorizando o Governo a criar um hospital colonial e o ensino da medicina especial dos climas tropicaes, segundo certas bases (Erratas no Diario do Governo, n.º 100)".


2. Este hospital (1902) vai estar na origem do Hospital do Ultramar (1957), mais tarde Hospital Eghas Moniz, hoje integrado no CHLO - Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, EPE. Do sítio oficial, na Net, do CHLO, tomamos a liberdade de reproduzir o seguinte excerto,  com a devida vénia;


 História do Hospital Egas Moniz

(...) "A independência do Brasil, em 1822, veio desferir um rude golpe no Império Colonial Português, que até à data, e passado o período dos descobrimentos, fizera Portugal alicerçar a sua economia na riqueza daquela colónia. Havia pois que encontrar 'novos Brasis'.

"O que restava do Império não eram territórios desprezíveis na sua dimensão. Mas do ponto de vista económico e do seu desenvolvimento não tinham qualquer expressão. Os 'Domínios Asiáticos' constavam das parcelas de Salsete, Bardês, Goa, Damão, Diu, dos estabelecimentos de Macau e das ilhas de Solor e Timor, constituindo, no seu todo, um único governo geral. Os 'Domínios Africanos' consistiam num conjunto de territórios espalhados pelas áreas Africano-Atlântica e Índica, constituindo, no seu todo, três governos gerais o de Cabo Verde e Guiné, o de Angola e o de Moçambique e um governo particular o de São Tomé e Príncipe e São João Baptista de Ajudá.

"A viragem a África, já que do Oriente pouco havia a esperar, toma corpo com o projecto global de fomento ultramarino impulsionado por Sá da Bandeira. Nessa linha, iniciam-se as viagens de exploração, como as de Capello e Ivens, e tomam-se medidas conducentes à efectiva exploração e desenvolvimento desses territórios. Para tal, e dada a resistência oferecida pelas tribos locais, iniciam-se campanhas militares com vista à sua pacificação e que vão progressivamente envolver contingentes militares significativos.

"A nível internacional a Europa 'acorda' para África, passando a repartir o continente entre as grandes potências de então: Inglaterra, Alemanha, França, Bélgica e Itália.

"Um movimento que se cristaliza na Conferência de Berlim, na qual se abandona o argumento histórico, em que Portugal sempre alicerçara os seus direitos, e se adopta o princípio da ocupação efectiva. Doravante, toda a nação europeia que tomasse posse de uma zona da costa africana ou nela estabelecesse um 'protectorado', teria que notificar esse facto aos restantes signatários, para que as suas pretensões fossem ratificadas. Além disso, o ocupante deveria provar que dispunha de 'autoridade' suficiente para fazer respeitar os direitos vigentes e, se fosse o caso, a liberdade de comércio e de trânsito. Por outro lado, o Tratado Anglo-Alemão de 1886 introduziu a noção de 'esferas de influência', à qual se acrescentava a de 'hinterland', que permitia a ocupação de áreas interiores ilimitadas às nações possuidoras das correspondentes áreas costeiras.

"A este contexto internacional, Portugal via a sua acção dificultada por uma crise interna, de natureza política, social e económica. Tendo visto negado o seu projecto do 'Mapa Cor de Rosa', unindo as duas costas africanas entre Angola e Moçambique, concentrou-se então na efectiva ocupação e desenvolvimento dos territórios que lhe foram reconhecidos internacionalmente.


"O Hospital Colonial de Lisboa sob a égide do Ministério das Colónias foi criado por Carta de Lei de 24 de Abril de 1902 e inicialmente ficou instalado no Edifício da Cordoaria, onde também funcionava o Instituto de Medicina Tropical.



"Tinha como objectivo dar assistência médica funcionários civis e militares, que regressavam do Ultramar em condições físicas deploráveis com doenças infecciosas.

"Em 1919 o Estado adquire a Quinta do Saldanha à Junqueira para aí construir um Pavilhão de Internamento, que foi inaugurado em 1925 e que, por ter sido construído a expensas de Macau recebeu o seu nome.

"Nos edifícios existentes da quinta funcionava a enfermaria tropical que se destinava a tratar indigentes vindos do Ultramar.

"Em 1948, por despacho do Sr. Ministro do ultramar (tinha-se entretanto mudado o nome do Ministério, o que consequentemente mudou também o nome do Hospital), decidiu-se aumentar o Hospital do Ultramar com serviço de cirurgia, pavilhão de doenças infecto-contagiosas, radiologia e análises clínicas.

"Em 1953 concluiu-se o Pavilhão de Doenças Infecto- Contagiosas que ficou separado do edifício principal. Actualmente está ligado ao restante Hospital por um corredor de acesso que designamos por 'manga'.

"Em 1957 é inaugurado o Hospital do Ultramar com a conclusão das obras do edifício de Medicina e Cirurgia e restantes serviços. A sua construção aproveitou o então pavilhão de Macau que actualmente não é visível.

"O Hospital ficou organizado por serviços de 1.ª, 2.ª e 3.ª Classe, por um Pavilhão de Doenças infecto-contagiosas e pela Enfermaria Tropical (Tropical Homens e Tropical Mulheres). O Hospital tinha como objectivo não só o tratamento dos doentes, mas também, em colaboração com o Instituto de Medicina Tropical dedicava-se à investigação e ao ensino pós- graduado em doenças tropicais e infecciosas, para os médicos que se deslocavam para o Ultramar.

"Em finais da década de 60 o Hospital do Ultramar já não conseguia corresponder às muitas solicitações, pelo que se decidiu construir um novo edifício de 8 pisos, que ligado ao edifício velho fez desaparecer a sua entrada.

"Este edifício entrou em actividade em 06/03/1975 e por força da extinção do Ministério do Ultramar passou para a dependência do Ministério dos Assuntos Sociais - DL 506- B/75- tendo passado a designar-se por Hospital de Egas Moniz (portaria 623/74) uma vez que, nesse ano, ocorria o centenário do Prof. Egas Moniz.

"Em 2002 através do decreto-lei n.º 278/2002 de 9 de Dezembro o hospital é transformado em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, com a designação de Hospital de Egas Moniz, S.A.
"Em 29 de Dezembro de 2005, o hospital foi integrado no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, E.P.E., juntamente com os Hospitais de Santa Cruz e de S. Francisco Xavier." (...)

Texto e fotos: Cortesia de CHLO - Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, EPE > História do Hospital Egas Moniz

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Nota do editor:

Último poste da série > 31 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15309: Historiografia da presença portuguesa em África (59): Cem pesos era "manga de patacão" para o camponês guineense, produtor de mancarra... Era por quanto venderia um saco de 100kg ao comerciante intermediário... Em finais de 1965 o governo de Lisboa garante a compra pela metrópole da totalidade da produção exportável da mancarra guineense e fixa o preço por quilo em 3$60 FOB (Free On Board)

Guiné 63/74 - P15315: Notas de leitura (772): “Dois Amigos, Dois Destinos”, por José Alvarez, Âncora Editora e DG Edições, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2015:

Queridos amigos,
Trata-se de um romance invulgar, e não vale a pena dizer que envereda pelo drama clássico de dois seres que vivem uma nobre amizade e vão ser separados por uma guerra em que cada um vai estar do seu lado da barricada.
O autor condimenta com rigor o seu romance histórico que se inicia em Cabo Verde, de onde partirá um casal para a Guiné e o filho desse mesmo casal irá estudar em Lisboa onde se vive a crise académica de 1962. Eduardo, o guineense, partirá para Conacri, onde será assessor de Amílcar Cabral. Tomás, desencantado com o seu curso no Técnico, vai para a Marinha e conhecerá a guerra, sobretudo no Sul.
Um livro a não descurar, singular e bem urdido.

Um abraço do
Mário


Dois amigos, dois destinos, por José Alvarez (1)

Beja Santos

A literatura sobre a guerra da Guiné manifesta-se incansável. Nos últimos anos, o leque de subgéneros parece apertar-se, polariza-se no género memorial e no romance. Ao que parece, estes sexagenários e septuagenários que andaram aos tiros entre lalas e florestas herméticas sentem-se mais libertos, desatam a língua com o quanto basta de pudor, espanejam as recordações sem azedumes, põem de lado preconceitos, aproveitam as suas vivências e condimentam-na de histórias com maior ou menor percentagem de ficção.

“Dois Amigos, Dois Destinos”, por José Alvarez, Âncora Editora e DG Edições, 2014, é um romance singular, com boa tessitura, tem por detrás o estudo e o reconhecimento direto de ambientes, situações, trajetórias. O autor fez o serviço militar na Guiné, primeiro no comando numa Lancha de Fiscalização e mais tarde chefiando a secretaria do Comando da Defesa Marítima da Guiné, tendo igualmente sido Ajudante-de-Campo de dois Comodoros, isto entre 1971 e 1973. E praticou râguebi, modalidade desportiva que vai ter relevo na narrativa dos acontecimentos antes, durante e depois.

Meticuloso, apercebemo-nos de como travejou a sua escrita pelo que escreve nas notas:  
“Comandando uma Lancha de Fiscalização Pequena, pude conhecer em detalhe a bacia hidrográfica dos rios Buba, Cacine e Cacheu, bem como as localidades de Bolama, Empada e Buba, onde encontrei gente conhecida, designadamente os fuzileiros do meu CFRON (Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval) e o comandante do aquartelamento de Buba, meu amigo e antigo colega do Liceu Camões, Filipe Moreira Lopes. Com ele, Buba voltou a conhecer tempos mais tranquilos, rompendo com um passado negro de ataques e emboscadas. Na secretaria do Comando Naval da Guiné tive acesso a documentos classificados sobre a atividade do inimigo, nomeadamente do seu líder Amílcar Cabral, sem dúvida uma das personagens incontornáveis da História de África, razão pela qual figura também como personagem deste romance. Procedimento idêntico utilizei em relação a Nino Vieira. Para descrever Bolama foi preciosa a ajuda do meu amigo Engenheiro Fernando Tabanez Ribeiro. Ao Engenheiro Luís Pires de Moura, velho amigo dos tempos de râguebi e meu companheiro da Guiné com experiência no mato como oficial do Destacamento de Fuzileiros Especiais 4, devo a ajuda que permitiu descrever a ação de um grupo de combate. Uma referência em especial a Agnelo Vieira de Andrade, atual proprietário de Tchada Lapa, na ilha do Fogo, Cabo Verde, que me abriu as portas da sua casa para que eu sentisse aquele ambiente, ajudando-me ainda na pesquisa do passado da ilha, facultando-me fotografias de São Filipe nos anos 30”.

É pois um romance que abraça várias gerações, tudo começa em Cabo Verde, nos anos 30. Vicente Filipe veio ao mundo na ilha do Fogo, corria o ano de 1918, fruto dos amores clandestinos de Barbosa e de uma crioula de São Filipe. Vicente enamora-se de Eduarda, filha de senhora fidalga em fase de profunda decadência. Toda esta tensão é entremeada por descrições de fomes e saques, festas em São Filipe com as cavalhadas e um ágape bem próprio da terra: “Na mesa destacavam-se garrafas de vinho tinto e branco de Chão das Caldeiras. Mulheres negras trouxeram balaios com fruta, melão, papaia e manga para a sobremesa. Na parte mais recata do pátio, havia uma mesa com queijos frescos de cabra, bolos de fécula de milho, doces de leite e bebidas espirituosas com destaque para as garrafas de grogue e ponche de Santo Antão”. Enquanto os amores de Vicente Filipe e Eduarda se confirmam, o pai Barbosa caminha para a ruína e Vicente é bem-sucedido na procura de emprego em Mindelo. Eduarda decide partir para se encontrar com Vicente e vão refazer a sua vida na Guiné. Desse amor entre um mulato bastardo e uma fidalga branca irá nascer na Guiné Eduardo, um dos dois amigos.

Estamos agora em Portugal, em 1962, um grupo de estudantes discute a guerra colonial, entre eles Tomás e Joana, e ficamos a saber que Eduardo vive na Casa dos Estudantes do Império, acabara de receber convite para integrar o PAIGC. A amizade entre Tomás e Eduardo faz-se no râguebi, jogam no Estádio Universitário o Técnico contra o CDUL. Para comemorar a vitória do Técnico vão ao Quebra Bilhas, o último retiro que resta em Lisboa, ai no Campo Grande. Estamos a caminhar para a crise universitária, vai haver uma manifestação na cantina. Eduardo que escuta as emissões da BBC ouviu a notícia da prisão de Rafael Barbosa, Mamadu Turé e Albino Sampa. Na manifestação de 24 de Março a polícia de choque atua, Eduardo e Joana enfiam-se pelos balneários do estádio e conseguem escapulir-se. Eduardo descobre que o seu colega, o guineense Salin Bari não aguentou o interrogatório da PIDE e prestou declarações, Eduardo chamou-lhe cobardolas. Joana e Eduardo vivem o seu romance e contrariedades não faltam, a começar pela animosidade da mãe de Joana. Eduardo e Joana encontram-se numa casa da Praia das Maçãs. Eduardo é levado pela PIDE, nada confessa e é levado para os calabouços do Aljube. É nesta detenção que Eduardo rememora a sua infância em Bolama. José, pai de Tomás, consegue a libertação de Eduardo. Este encontra-se com Joana que está grávida dele, e comunica-lhe que vai partir para lutar no PAIGC, é um encontro dilacerante, Joana prefere não lhe dizer que está grávida. Em Outubro, Eduardo envia uma carta a Joana: “Magoei-te profundamente ao recusar a tua companhia nesta nova fase da minha vida. Fi-lo, porém, com plena consciência das dificuldades que me esperam e sobretudo pelo muito que te quero. Ao recordar a minha infância na Guiné e aquilo que a minha mãe sofreu, como companheira de um marido revolucionário, decidi não repetir o mesmo contigo, ainda que soubesse que te perderia para sempre”. E após uma fuga aventurosa, Eduardo parte para Conacri e encontra-se com Amílcar Cabral, de quem se tornará assessor. A sua primeira missão será em Dakar, terá um acolhimento hostil dos cabo-verdianos, nada interessados numa hipotética unidade entre a Guiné e Cabo Verde. Encontra-se com Senghor, discutem política africana, apercebe-se das sérias reticências que o líder senegalês tem de Sékou Touré e os seus sonhos expansionistas. E em 1963 começa a guerra na Guiné e Joana começa a trabalhar em Lisboa.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15304: Notas de leitura (771): “Tráfico no Rio Geba”, por Estevão Sousa, Edições Vieira da Silva, Dezembro de 2014 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15314: Blogues da nossa blogosfera (70): Um sítio que merece uma (re)visita: "Entre Fogo Cruzado", do nosso camarada Henrique Cabral, ex-fur mil at inf, CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Fulacunda, Mansoa, Braia, Encheia, Uaque, Jugudul, Bissorã, K10, Olossato, Cutia, K3 e Mansabál (1965/67)



Entre Fogo Cruzado > Arroz > Homem arando a terra com um instrumento manual (“kbindé”), construindo assim as “cordas” onde será plantado o arroz. Para manobrar o “kbindé” é necessária uma aptidão física excelente. Ao longe e perpendicularmente às “cordas” vê-se um dique intermediário (“perike”) que faz parte de um complexo sistema de regulação das marés e das águas salgada e doce com o dique principal (“ourique”) e as comportas (“bombas”). O pequeno caranguejo (“cacre”) que habita estes lugares não dá descanso ao homem, fazendo galerias e pondo em perigo o seu esforçado trabalho.


Entre Fogo Cruzado > Bajudas > Transportando a água em “fiminhas” (potes).




Entre Fogo Cruzado> Pesca > Mulheres regressando da pescaria.


Fotos (e legendas): © Henrique Cabral  (2007). Todos os direitos reservados. (Edição: LG)


O autor... em 1965
1."Entre Fogo Cruzado (...) Gente que viveu sob dois fogos, dividida entre agradar a gregos e troianos,  ... com o esfuziante pôr do sol no rio..., pelos caminhos atravessando infindáveis 'bolanhas', ... por entre capim verde e alto, ... ou no emaranhado e traiçoeiro 'tarrafe' (...)".

(...) "Foi mais um a chegar… dos muitos atiradores integrado numa Companhia de Caçadores de tropa-macaca mas trazia na bagagem um “kodak” e a cabeça cheia de ideias.

Andava sempre por aí… só desaparecendo às vezes quando o chamavam para dentro do aquartelamento para 'fazer os serviços'

Mas voltava… voltava sempre com a mesma curiosidade de nos conhecer. Por vezes as coisas não lhe corriam bem mas nunca o deixava transparecer… antes aproveitando o que de bom esta terra tinha para lhe oferecer: o pôr do sol esfuziante, não fora a deprimente época das chuvas; o verde das matas e seus sons inesquecíveis, não fora os perigos que escondem; a água quente dos rios, não fora algum dos seus habitantes menos agradáveis; as noites claras de lua cheia e cruzeiro do sul, não fora os indesejáveis mosquitos.

"Usou 3 máquinas fotográficas que sucessivamente se foram avariando devido às péssimas condições a que eram sujeitas, tendo “disparado” cerca de 3000 vezes." (,,,)

"Entre Fogo Cruzado" é um sítio criado e mantido pelo  Henrique Cabral, ex-fur mil  at inf, CCAÇ 1420/BCAÇ 1857 (1965/67), membro da nossa Tabanca Grande desde 9/12/2007, e que andou por meia Guiné: regiões de Quínara (Fulacunda), e Oio (Mansoa, Braia, Encheia, Uaque, Jugudul, Bissorã, K10, Olossato, Cutia, K3 e Mansabá). Era de rendição individual e, tanto quanto sabemos, mora hoje em Queluz.


... em 2007
(...) "Passados 40 anos decide mostrar parte do seu espólio fotográfico apenas com o intuito de partilhar, com todos, essas recordações. A guerra não é o tema central mas como realidade bem dura que foi, não pode ser omitido. Propositadamente são excluídas certas imagens e não são referidos nomes de pessoas ou lugares, tentando apenas fazer um “filme a preto e branco” do dia-a-dia da gente, em qualquer “chão” guineense. No entanto, outros anos e locais poderão também ser documentados com fotos e legendas cedidas por vós." (...) 

2. Páginas deste sítio (que merece uma visita e já teve perto de 74 mil  visitas desde 18 de novembro de 2007, e várias centenas de comentários]:


Como já tivemos ocasião de o dizer, a grande maioria de nós não tinha tempo, vagar, pachorra, curiosidade, e sobretudo conhecimento e sensibilidade socioantropológicas para nos darmos conta de aspetos da vida, das condições de vida e de trabalho, das populações com que víviamos... Ao  fim e ao cabo, apartados, eles nas suas tabancas, nós nos nossos aquartelamentos... Não éramos turistas nem etnógrafos, estudiosos dos seus usos e costumes... Um ou outro tirou fotos e tomou notas de certas aspetos da organização social e económica dessas populações... Estamos gratos ao Henrique Cabral  pela excelente documentação fotográfica  que ele quis partilgar connosco. Mas um álbum como o seu,  com 3 mil fotos, mereceria porventura maior destaque: as fotos poderiam e deveriam ser publicadas com maior resolução (, sugerimos o 0, 5 MB) e em formato extra-large. (As fotos, a preto e branco, de grande qualidade,  tiradas pelo Henrique Cabral estão em resolução muito baixa e em formato médio).

O Henrique tem, à sua disposição, o nosso  blogue para publicar uma série, selecionada, das suas fotos sobre estes aspetos mais etnográficos da população da Guiné do nosso tempo. Fica aqui o convite e o desafio.

O Henrique Cabral é também autor e editor da página Rumo a Fulacunda (que tem cerca de 80 mil visitas).

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Guiné 63/74 - P15313: Parabéns a você (980): Abílio Magro, ex-Fur Mil Amanuense no CSJD/QJ/CTIG (Guiné, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15310: Parabéns a você (979): José Carlos Gabriel, ex-1.º Cabo Op Cripto do BCAÇ 4513 (Guiné, 1973/74)

domingo, 1 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15312: Libertando-me (Tony Borié) (41): O passado é o início do futuro

Quadragésimo primeiro episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 28 de Outubro de 2015.



O passado é o início do futuro! É quase uma afirmação de que, tudo o que de novo se inicia nas nossas vidas, teve origem num passado.

Gostávamos de falar do nosso Portugal, mas infelizmente não recebemos muita formação escolar durante a nossa juventude, sabemos só o básico, portanto, às vezes, contamos coisas da região de Águeda e outras povoações por onde passámos, pelo menos no serviço militar, portanto amigos companheiros, não fiquem pensando que “isto são americanisses”, falamos daqui, que é onde vivemos e onde recebemos alguma educação superior.

Cá vai a história de hoje.
Viajávamos no estado de Kansas, na estrada rápida número 70, no sentido Oeste, quando nos surge uma placa de sinalização dizendo “Fort Wallace”, não pensámos duas vezes, seguindo a estrada estadual número 40, passado algum tempo, depois de viajar por planícies sem fim, surge-nos Fort Wallace, que tem um passado importante na história da imigração para o oeste.

Tudo começou por volta do ano de 1865, quando foi considerada como a melhor rota não só para correio como para caravanas a partir de Atchison, no estado de Kansas, para Denver, no estado do Colorado, onde começaram a nascer estações, aproximadamente de 15 em 15 milhas de distância e, uma estação era uma "casa" que alimentaria os viajantes, fornecia feno aos animais, e onde também poderiam trocar as mulas, ou cavalos, por animais mais frescos. A área era um hostil território de índios Cheyennes, que não apreciavam a invasão dos colonos brancos, e claro, os ataques tornavam-se demasiado frequentes, chegando ao ponto de cada caravana ter, pelo menos, 20 ou mais vagões e 30 homens armados.

Muitas destas paragens eram pequenas fortalezas, com poucas condições de sobrevivência, que eram palco de frequentes ataques, quase só abrindo as suas portas quando recebiam as caravanas de colonos. Assim surgiu um posto avançado com mais segurança a que deram o nome de Stage Station Pond Creek, ou seja Acampamento de Pond Creek, sendo este o maior acampamento daquela rota, portanto logo se tornou no maior alvo dos índios Cheyennes, pois viam naquele acampamento um forte motivo do avanço dos colonos brancos, atacando-o frequentemente, os ataques dos índios eram tão numerosos por esta altura, que o negócio tornou-se inútil, ou seja, os colonos estavam quase a desistir do avanço para oeste, chegando ao ponto do governo intervir, instalando um Acampamento Militar bem próximo, a mais ou menos milha e meia de distância, a que deram o nome de Fort Wallace, em honra de WHL Wallace, um general que morreu na batalha de Shiloh.


Neste forte estavam estacionados à volta 350 militares, chegou a ser designado como “Fightin’est Fort in the West”, ou seja mais ou menos, o forte onde se praticaram as maiores lutas do Oeste. Numa altura em que o búfalo era o mais importante meio de sobrevivência, tanto para os índios Cheyennes, como para os colonos em trânsito, era o principal motivo de guerras, pois os índios viam nos animais o seu sustento única e simplesmente, controlando o seu abate, que era feito consoante a necessidade, enquanto que alguns colonos, além de sustento, viam o lucro na comercialização da sua pele. Vimos vestígios do passado dizendo-nos que por aqui passaram nomes históricos como General George Armstrong Custer, que aqui teve a primeira batalha com os índios, o grandes homens de fronteira como George Forsyth, Buffalo Bill Cody ou Wild Bill Hickok.

Mas o que nos “tocou” mais foram as sepulturas no cemitério da área, onde as placas dizem coisas como por exemplo: “L. Frey, idade 35, veio da Prússia, morreu de desinteria, família, não há conhecimento”; “Campa 42, nome, não se sabe, idade, não se sabe, causa da morte, não se sabe”; “H. T. Wyatt, veio de Missouri, morreu em 1868, assassinado por um tiro de pistola às mãos de Wm. Comstock”; “John Etcher, idade 60, veio de Inglaterra, encontrado morto, gelado, próximo de Wallace”; “Sand Callahan, idade, não se sabe, morreu de profundos ferimento das setas dos índios, próximo ribeiro Rose”; “Philip Cory, assassinado em Pond Creek Station, não tinha família”; “Charles Walker, idade, não se sabe, assassinado com tiros de pistola em Pond Creek”; “sepultura 24, nome, não se sabe, foi encontrado na planície, próximo da estrada militar, família, não se sabe”; “John Drier, idade, não se sabe, assassinado a tiro de pistola em Sheridan, Kansas”; “William McDonald, idade, não se sabe, morreu de acidente, caindo da carroça onde seguia na caravana, próximo de Sheridan, Kansas”; “nome, não se sabe, morreu pelo escalpe, arrancado ainda vivo, por índios, a oito milhas oeste da planície”; “Miss Katie Runey, idade 2 anos, morreu com a doença da cólera, próximo do campo de Fort Wallace”; “John Langford, idade 22, enforcado numa árvore pelos “vigilantes”, perto de Pond City, Kansas”; “G. H. Brownell, idade não se sabe, morto por índios perto da Estação de Timbers”.

Estes são exemplos da odisseia, da aventura dos colonos a caminho do Oeste, para onde seguiam pessoas das mais variadas origens, procurando novos rumos, para onde alguns levavam na sua mente o tal espírito de aventura, que todos nós temos, que às vezes é só “querer estar onde não estamos”.

Tony Borie, Outubro de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15288: Libertando-me (Tony Borié) (40): Isto é a Flórida

Guiné 63/74 - P15311: Manuscrito(s) (Luís Graça ) (68): O nosso livro dos mortos

Lembrando os nossos queridos fiéis defuntos, os nossos familiares, amigos  e camarada, no seu dia, segundo a tradição cristã... E exorcisando também os fantasmas da morte que perseguem todos os homens em todas as culturas, de há milénios a esta parte... Os homens são os únicos animais que fazem o culto dos mortos. LG

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The End

por © Luís Graça



Está tudo previsto,
que o fim é uma palavra seca e breve,
um monossílabo que mal se escreve.
E tão seca e breve que não dá sequer
para gerar um sentimento,
por pequeno e ténue que seja,
de tristeza, mágoa, saudade,
ou  até perplexidade.



Nunca gostei da palavra fim,
nem quando era criança,
nem na vida, nem no cinema,
nem quando me pediste o divórcio
num hotel de Ipanema,
naquela viagem
- lembras-te ? -
em que depositavas tanta esperança
e a que chamavas a tua segunda lua de mel…
Bobagem,
- disse-te eu -
não há mel sem fel,
nem amor morno,
nem amor eterno.

Não há fim, há apenas o eterno retorno…



Podes ficar descansada, agora,
no teu último dia à superfície da terra,
a caminho da tua última morada,
da tua metacidade,
do reino de Osíris,
como tu gostavas de chamar.
Uma estranha paz sucedeu à guerra
das células cancerígenas,
em total liberdade,
devastando o teu corpo,
que eu tanto amei outrora.



Sempre te ouvi dizer
que o não-stresse era a ausência da vida,
daí o abafado silêncio a que chamamos morte,
a tua casa vazia, a esta hora,
a porta arrombada do cofre-forte,
o teu testamento escrito ironicamente
em falsos hieróglifos egípcios,
os móveis subitamente cobertos de pó,
as teias de aranha,
a árvore de Natal
que não chegou a ser desmontada,
os ponteiros do relógio parado,
os olhos fechados das tuas bonecas,
o teu ursinho de peluche que hibernou,
as megeras das tuas irmãs
com a sua cara seca de abutres,
as toalhas de linho
com que a tua filha cobriu
os sofás e as cadeiras,
a cor desbotada
dos teus falsos tapetes persas,
os livros que nunca chegaste a ler,
à espera da tua reforma dourada,
os teus pincéis, 

o teu cavalete, 
os teus quadros a óleo,
as lágrimas sinceras
da tua empregada caboverdiana
que te acompanhou nestes últimos anos,
a ti e aos teus gatos…



A agência funerária toma conta de ti,
arranja-te o bouquet de flores
com os protesto de eterna saudade
do teu ex-marido e da tua filha.
Tive dificuldade em escolher-te as flores,
hesitei  entre as rosas e os espinhos,
o cor de rosa e o vermelho.
Sempre gostaste de rosas,
mas não de todas as rosas,
nem dos espinhos das rosas vermelhas.
Enfim, concederam-me esse pequeno privilégio,
a mim que sou um ex,
um ex-qualquer qualquer coisa de ti,
amante, marido, vítima,
amigo, gestor, cliente.



Encomendei-te a missa de corpo presente,
mesmo sabendo que tu nunca foste lá muito católica:
só agora descobri
o teu secreto culto de Osíris.
Fi-lo por descargo de consciência,
como quem puxa o autoclismo,
por um qualquer automatismo,
por que me disseram que era bonito,
que fazia todo o sentido,
que não fazia nem bem nem mal,
e que até estava na moda,
que era que o se fazia em Portugal,
o pequeno retângulo da Europa,
em que afinal
me obrigaste a viver
por amor, a ti, e à tua janela,
que desenhaste recortada sobre o mar.



Ah!, a missa,
perguntou-me a tua velha mana,
de todas elas a mais tagarela.
Ah!, sim, foi também por esmola,
por caridade, 

por desfastio, 
por moleza,
por me ter dado na real gana,
para te querer fazer uma última surpresa,
por mor do padre da freguesia
que já não casa nem batiza nem catequisa ninguém,
por falta de clientela.



De repente lembrei-me do sino da igreja
da tua aldeia de pedra
que já não existe.
E tive um estúpido princípio de comoção.
Apeteceu-me chorar, por ti, por mim,
pelos teus mortos e pelos meus.
Pelos que cá ficam.
Pelos que virão.



Fica descansada
que a agência providencia tudo,
incluindo as amenidades,
os pequenos detalhes
a que tu davas tanta importância,
sempre gostaste dos Hotéis NH
por um questão de detalhes…
De repente, só me lembro de ti,
à janela de um NH, em Barcelona,
quando eu lá ia em negócio…
De repente, só me lembro de ti
em detalhes,
em momentos de lazer e de ócio,
como se a vida fosse uma boia,
ou um balão de ar quente,
e flutuássemos à tona,
na deriva do dolce far niente
da nossa decrépita classe média,
alta, acrescentarias tu.



Além do cafezinho e dos biscoitos
Osíris, o deus egípcio do além,
do mundo subterrâneo e dos mortos,
mas também o deus da vida e
da ressurreição... Fonte: Wikipedia

para os velhos da família que vieram de longe,
e que eram do ramo pobre,
transmontano,
da tua aldeia de pedra,
e que ficaram na noite de velamento.
Velamento ou velório ?
Desculpa, não tenho aqui à mão o dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa,
nem o portátil para consultar o Ciberdúvidas.




De qualquer modo,
fiz bem em não me preocupar,
a agência tem garantia de qualidade
e está certificada
segundo a ISO nove mil e tal.
Disseram-mo logo,
quando telefonei para o número verde grátis,
que a satisfação do cliente era
a sua preocupação nº 1
e por isso toda a organização
fora desenhada de raiz
em prol desse objetivo.



Ah!, como eu gosto das empresas ISO nove mil e tal,
que põem o cliente sentado na cadeira do presidente,
e que têm uma missão,
e que sabem defini-la,
e que têm passado, presente e futuro.
Chama-lhe deformação profissional
ou idiotice de um catalão,
com costela de fenício e de judeu,
obcecado pelo organizacional.



Que não te choque esta linguagem
dos gatos pingados:
eles fazem pela vida,
como tu, coitada, fazias pela tua,
quando por cá andavas, penosamente,
a caminho do IPO.

O cliente, real ou virtual
(que eu não sei, afinal,
se és tu ou se sou eu,)
é acompanhado por um técnico da empresa,
com CAP reconhecido no espaço comunitário.
Agora já se pode morrer
em qualquer parte do mundo
que até na morte há assistência,
como deve ser.
Profissional.
Eu diria que já se pode morrer descansado,
sem perturbar muito a vidinha dos vivos,
a vidinha safada
dos que estão na próxima lista para morrer.



D
ez anos…
Foi uma guerra longa com os teus bichos,
e a gente a pensar que o pior já tinha passado.
O que passou foi a vida, minha amiga,
foram os anos,
só sobraram os que não viveste.
Uma luta inglória contra a doença,
contra um temível predador,
disse o teu médico.
Abandonou-te, o sacana, o estupor,
quando percebeu que a partida estava perdida.
Nunca gostei dele,
mesmo sendo durante anos o meu parceiro de xadrez
e o meu compincha do Jerez.



Esta noite, querida, vais ficar na câmara frigorífica,
como mandam agora
as regras da nova saúde pública.
E depois da missa, às 10 horas,
segues para o Alto de São João.
Os teus amigos, poucos mas bons, lá estarão,
serão os teus barqueiros de Caronte.



Permite-me uma última inconfidência:
recorri ao crédito da agência,
vou pagar a tua mumificação
em suaves prestações.
Sei que concordarias comigo, velho forreta,
se estivesses cá, chez les vivants,
neste lado do mundo.
Mesmo discordando desta e de outras tuas bizarrias,
vou ter que a cumprir,
por minha honra e da tua filha,
como teu executor testamentário.
Sempre ouvi dizer que nunca se diz não
à última vontade de um defunto,
e que quem gasta dinheiro com os mortos
não é perdulário.



Não te esqueças, por fim,
das palavras que terás de proferir
quando a tua alma penetrar nos mundos do além.
(São extraídas do Livro dos Mortos,
o teu último livro de cabeceira,
que agora estou a folhear):
Salve, Osíris, Touro do Amenti,
Eis que Tot, príncipe da eternidade,
Fala pela minha boca!
Na verdade, eu sou o grande deus
Que acompanha, na sua navegação,
a barca celeste...



Lisboa, 31/1/2007. Revisto em 1/11/2015

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Guiné 63/74 - P15310: Parabéns a você (979): José Carlos Gabriel, ex-1.º Cabo Op Cripto do BCAÇ 4513 (Guiné, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15301: Parabéns a você (978): Mário Vasconcelos, ex-Alf Mil TRMS do BCAÇ 4612/72 (Guiné, 1973/74)