quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15469: Memórias de Gabú (José Saúde) (57): “Djubi”, crianças simpáticas. Na hora de matar a sede. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 

“Djubi”, crianças simpáticas
Na hora de matar a sede

Revejo, ainda hoje, com uma nostalgia gigantesca os nossos tempos como militares enviados para as frentes de combate de além-mar. Coube-nos, em sorte, que os nossos destinos fosse o então território colonial da Guiné.

Em território guineense constatámos as mais vis e ortodoxas situações que o ser humano nas suas plenas faculdades mentais e físicas jamais ousou experimentar. Reconhece-se, contudo, que a máquina humana é possuidora de engrenagens complexas que quando necessárias corresponderam às suas solicitações dizem, pomposamente, presente.

Conhecemos situações de todo impensáveis. Conhecemos, repito, o teor de uma guerra que não dava tréguas. Visualizámos imagens que farão eternamente parte dos nossos “baús” como antigos combatentes.

Compreendo que não será por certo censurado que um velho combatente debite narrativas onde os nossos quotidianos cruzaram gerações. As realidades coincidiram e os factos, esses mesmos, são verdades comuns que transcendem inquestionáveis orientações geracionais.

Ora, não falarei, presentemente, dos tempos de uma guerrilha cujo puzzle passava pelo cosmos das armas. Falarei, sim, por momentos ímpares onde a simpatia de um “djubi”, crianças simpáticas, se predispunham a uma preciosa ajuda ao militar lusitano.

Algures na região de Gabu, após alguns quilómetros palmilhados pelo denso mato e quando o cantil já reclamava um profícuo recarregamento e a elevada temperatura se definhava por um saciar de gargantas entretanto já ressequidas pelas agruras de um tórrido calor, eis que em pleno mato me deparei com uma criança que afoitamente retirava água de um poço.

O arcaico reservatório ostentava saberes que só as etnias indígenas sabiam desfrutar. Recordo que o brotado líquido apresentava uma cor insípida, creio que barrenta, mas divinal para aqueles que ambicionavam algo que lhe gotejasse as suas efémeras necessidades.

E foi assim que na hora de matar a sede que um “djubi” amigo se predispôs a satisfazer carências que o tempo de guerra impôs a jovens soldados enviados para as frentes de combate.

Fica a imagem.


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P15468: Recortes de imprensa (78): O colonialismo (suave) nunca existiu... Leopoldo Amado, atual diretor do INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, entrevistado em Bissau por Joana Gorjão Henriques ("Público", 6/12/2015, série "Racismo em português")

Excerto da reportagem de Joana Gorjão Henriques  (texto, em Bissau, Bafatá e Cacheu), Adriano Miranda (fotos) e Frederico Batista (vídeo). Série: Racismo em português

Público, 06/12/2015 - 00:00 


1. Excerto da reportagem, com a devida vénia, destacando as declarações do Leopoldo Amado, que é membro da nossa Tabanca Grande [, tem mais de 6 dezenas de referências no nosso blogue; foi cronologicamente  um dos 30 primeiros membros da Tabanca Grande (*)]:


Leopoldo Amado ma Feira do Livro de Lisboa, em 2012,
posando ao lado da Alice Carneiro, do Luís Graça
e do João Graça. Foto de LG
(...) Leopoldo Amado, historiador, director do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) [, desde 13 de janeiro de 2015], lembra a época em que um apito dava ordens de entrada e saída da população negra na cidade. Bissau começou a desenvolver-se a partir do porto e no porto havia um muro para separar as populações africanas dos moradores, que eram os comerciantes portugueses.

 “Em 1940, este muro ainda existia, foi derrubado quando o nacionalismo começou a despertar”, no final dos anos 1950, explica. “Nesse território com o muro em Bissau, na pequena cidadela, alguém usava um apito às seis da tarde e os africanos sabiam que era hora de saíram daquele espaço, a urbe colonial. Voltava-se a apitar às seis da manhã para entrarem e darem início aos trabalhos domésticos. A presença dos negros era admitida apenas para os trabalhos domésticos” ou de baixa qualificação.

A época colonial de que Fodé Mané, 50 anos, se lembra é a do governador António de Spínola (1968-73), altura em que estava em marcha a política Por Uma Guiné Melhor (que ficaria registada em livro, 1970). “Já não havia a implementação da segregação do indígena”, comenta. Era a política de criar mais escolas, mais infra-estruturas para travar a luta de libertação que estava a crescer. “Mas uma revogação não desaparece da mentalidade das pessoas”, continua. “Vivemos a diferenciação entre os que tinham beneficiado do estatuto do indigenato, dos que não tinham a possibilidade de ser assimilados e de ter o estatuto de cidadãos com plenos direitos, e aqueles que eram filhos de funcionários públicos e podiam estudar nas escolas do Estado. Para estudar, a pessoa tinha de ter registo ou certidão de nascimento ou um conjunto de documentos que o grosso da população não tinha.” (...)

Com pouco mais de 1,6 milhões de habitantes, a Guiné-Bissau foi a primeira colónia portuguesa a obter a independência em 1973, fruto da luta de libertação liderada por homens como Amílcar Cabral, iniciada no princípio dos anos 1960. Tem uma história marcada pela resistência, orgulho de muitos guineenses. Tendo feito parte do Império Mali e do Reino Gabu, a Guiné-Bissau nunca seria ocupada totalmente pelos portugueses. Historiadores como Leopoldo Amado defendem que a colonização efectiva durou apenas de 1936 (a data oficial do final das campanhas de pacificação) até ao despertar do nacionalismo, por volta dos anos 1960.

A Guiné foi administrada por Cabo Verde até 1879 como Guiné de Cabo Verde e até à descolonização eram os cabo-verdianos que formavam o grosso da administração pública colonial — daí dizer-se que a Guiné era uma colónia da colónia.

Com mais de 30 etnias, a língua portuguesa é falada por uma minoria de 14%, vigorando o crioulo. A política colonial portuguesa usou a divisão étnica a seu favor, criando cisões e adoptando aliados como os fula.

(...) Leopoldo Amado (n. 1960) é hoje um dos mais conhecidos e respeitados historiadores bissau-guineenses e é ele quem afirma: a partir de determinada altura, a Guiné era um fardo para o sistema colonial português. É uma terra com tradição guerreira que não permitiu que a colonização fosse efectiva e há relatórios que, a dada altura, mostram Portugal a ter mais despesa do que lucros com o país. Portugal não se desfez da Guiné apenas porque o império colonial era tido como um todo: se a Guiné-Bissau caísse, as restantes colónias tentariam seguir-lhe os passos, acredita.

Como Portugal tinha muito poucos meios, usou o sistema de “engavetamento étnico”: inventou etnias; dividiu para melhor reinar. “Houve casos em que os portugueses tiveram o desplante de colocar fulas a dirigir manjacos, manjacos a dirigir bijagós, provocando movimentações de etnias com o propósito de os dividir, e colocando sobre eles uma autoridade a que chamavam Assuntos Indígenas.”

No colonialismo existiam quatro categorias raciais, contextualiza: os grumetes (permaneciam na tradição, viviam à beira das cidades), tangomãos (participavam no comércio e eram uma espécie de assimilados), os brancos, e os lançados, os filhos da terra (brancos que nasceram na Guiné-Bissau). “Um dos factores de submissão foi exactamente a interiorização no negro da sua inferioridade pela via da separação”, sublinha. Por isso usavam o muro de Bissau, por exemplo. “Não que os portugueses fossem mais racistas que os outros, mas tinham de utilizar isso como método, a ideia de inferioridade para levarem avante os seus propósitos. Tudo isso foi feito num ambiente em que os portugueses, eles próprios, assimilavam valores africanos. Os colonos que se deixavam levar pela cultura africana e viviam com os africanos eram considerados ‘cafre’, o termo para classificar as pessoas que se tinham degenerado, e eram considerados do ponto de vista religioso como almas perdidas porque se submetiam à forma de estar do africano — aliás, criou-se o termo ‘cafrealização’. (...)

Como estratégia, os portugueses aproximaram-se dos fula, criaram exércitos de fula, de balanta, de outras etnias, com o objectivo de acicatar as diferenças. Com o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, criado em 1945, forneciam-se elementos ao poder político para melhor compreender as dinâmicas étnicas. “O contrário do racismo é exactamente isso, trazer à nossa convivência, viver com eles, permitir que tenham acesso à escola, à saúde, que melhorem as condições de vida. Na Guiné-Bissau isso não aconteceu: as poucas infra-estruturas só foram construídas porque havia necessidade de dar vazão às questões da guerra.”

Apesar de tudo, o sistema dava oportunidade de ascensão social a alguns guineenses. O pai de Leopoldo Amado, por exemplo, era director dos correios, posição à qual chegou no final da carreira, “não sem problemas pelo meio”, sendo “alvo de discriminação de todo o tipo”. A ideia era o sistema colonial usar uma parte ínfima da população como intermediária entre os seus interesses e as populações.

Depois apareceu uma literatura colonial etnográfica para estudar a psique do negro, adianta o historiador. “O negro praticava a gula, o pecado dos cristãos, logo era preciso civilizá-lo. O negro é um ente que tem uma potência sexual acima da média, quase boçal, quase um animal, que tem atitudes animalescas. Todas estas ideias foram reproduzidas nesta literatura colonial. Reproduziu-se também a ideia de que o negro é um irresponsável, propenso a bebedeira; no caso das mulheres, são lascivas, têm propensão para promiscuidade sexual, vivem na degenerescência moral. A par de tudo quanto era racismo, criava-se uma ideologia para poderem continuar com a empresa da colonização.”

A teoria do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre (1900-1987) suportou a ideologia do Estado Novo sobre a excepcionalidade portuguesa de estar nos trópicos, baseada na cordialidade, miscigenação, capacidade de adaptação e assimilação. Tem, para Leopoldo Amado, “algum substrato” porque “há uma maneira particular de ser português”: mas “isso não isenta de maneira nenhuma” o “ser racista”. “Salazar e Marcelo precisavam de uma teoria como a de Gilberto Freyre. A tese de Salazar era a de que havia portugueses de outra cor, mas isto era para consumo externo, porque entre os portugueses de outra cor existia o trabalho forçado, o sistema que substituiu a escravatura.” (...)


Ler aqui o resto do excelente trabalho de investigação jornalística de Joana Gorjão Henriques

Vd. também os vídeos de Frederico Batista, que estão disponibilizados no portal do Público Multimédia, com os diferentes entrevistados (onde se incluem alguns dos melhores e promissores quadros guineenses como o sociólogo e diretor executivo da ONGD Tiniguena,  Miguel Barros, o historiador Leopoldo Amado, diretor do INEP, o antropólogo Fodé Mané, a arquiteta Djamila Gomes, o sociólogo Dautarin Costa, o escritor Abdulai Sila, o investigador e doutorando Saico Baldé, o economista e político Mário Cabral (, velho militante do PAIGC), a Augusta Henriques, neta de colono português, fundadora da ONG Tiniguena, o gestor Mamadu Baldé, a jurista Samantha Fernandes, etc.:  No tempo em que ser guineense não era suficiente para ser cidadão  (**).

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P159: Tabanca Grande: Leopoldo Amado, guinense, historiador, novo membro da nossa tertúlia 

(...) Caríssimo Leopoldo:

Fui com alegria que, ao chegar de férias, vi na minha caixa do correio a sua mensagem. Começo por dizer-lhe que as suas palavras me sensibilizaram. De facto, eu e a generalidade dos meus camaradas, ex-combatentes da guerra colonial (ou do Ultramar, como outros preferem dizer), que vivemos quase dois anos das nossas vidas na Guiné, sentimo-nos guineenses e nada do que se lá passou (e até do que se lá passa hoje) nos é indiferente. É impossível não amar a Guiné e o povo guineense. E nessa medida todos somos guineenses, de alma e coração… A história aproximou-nos e afastou-nos. O nosso modesto contributo, através dos nossos escritos na Net, visam de algum modo manter e se possível fortalecer os laços (que são sobretudo culturais e afectivos…) que nos unem às gentes da Guiné.

Leopoldo: O seu nome e alguns dos seus escritos já não nos eram desconhecidos. Fico entusiasmado ao saber que tem um longo trabalho de investigação sobre os aspectos políticos e militares da guerra colonial na Guiné, e que está é está a ultimar uma tese sobre este tópico. O que é ainda mais interessante (e inédito) é a sua dupla abordagem da guerra, vista pelos dois lados. Além disso, você era djubi nesse tempo (tal como o nosso amigo de tertúlia o José Carlos Mussá Biai, natural do Xime) e, como criança, foi uma vítima especial da guerra, tal como nós fomos actores.

É, por isso, que me sinto honrado em aceitá-lo na nossa tertúlia. Falo, em meu nome pessoal. Mas creio também interpretar o sentir dos restantes membros da tertúlia (que já são quase treze dezenas). Seja bem vindo. Temos muito que conversar. Um abraço e até breve. Luís Graça (...) (***)




(**) Último poste da série > 13 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15361: Recortes de imprensa (77): Recensão ao livro "Nacionalismo, Regionalismo e Autoritarismo nos Açores Durante a I República", da autoria do Professor Carlos Cordeiro, por Santos Narciso, incluída em Leituras do Atlântico, no Jornal Atlântico Expresso

(***) Vd. também entrevsita de Leopoldo Amado ao semanário O Democrata, de 29/9/2014: "Grandes comandantes do PAIGC estavam com a PIDE".

(...) O PAIGC nunca teve mais de cinco mil homens em armas e nos picos da guerra o exército português chegava aos 40 mil homens. Mas o partido que nunca chegou mais de cinco mil homens criou uma estrutura de Estado, fez uma guerra exemplar e do ponto de vista diplomático fez uma guerra extraordinária, dado que conseguiu convencer até os aliados dos portugueses na altura a se colocarem do lado dele. Foi o caso da Dinamarca que passou a apoiar o PAIGC e as Agências das Nações Unidas já colaboravam com o PAIGC. (...)

Guiné 63/74 - P15467: Lembrete (15): Lançamento do livro "História(s) da Guiné Portuguesa", da autoria de Mário Beja Santos, com apresentação do Prof. Eduardo Costa Dias e Dr. António Duarte Silva, amanhã dia 10 de Dezembro, 5.ª feira, pelas 18 horas, no Palácio Conde de Penafiel, Rua de S. Mamede ao Caldas, n.º 21 - Lisboa

LEMBRETE para o lançamento do livro HISTÓRIA(S) DA GUINÉ PORTUGUESA, da autoria de Mário Beja Santos, com apresentação do Professor Eduardo Costa Dias, do ISCTE, e Dr. António Duarte Silva, investigador, amanhã dia 10 de Dezembro, 5.ª feira, pelas 18 horas, no Palácio Conde de Penafiel, Rua de S. Mamede ao Caldas, n.º 21 - Lisboa.



Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos:

A todos os meus amigos, 
As "História(s) da Guiné Portuguesa" procuram avançar com mais hipóteses que venham no futuro a ser consideradas com alguma pertinência pela equipa de historiadores que meter ombros nessa tremenda lacuna da nossa cultura que é a ausência de uma história da Guiné Portuguesa. 
O meu livro procura introduzir dados novos que a moderna historiografia tem vindo a considerar, entre outros: a presença dos judeus na região da Senegâmbia; a natureza do tráfico de escravos na região; o impacto das guerras de pacificação, do século XIX para o século XX, na natureza de uma Guiné transformada em colónia-modelo; mais alguma iluminação sobre a natureza dos movimentos nacionalistas e o desenvolvimento da luta de libertação. 
Carreei, em sequência cronológica, muita documentação que não utilizei no livro a quatro mãos que escrevi em 2014 "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro". Pedi a dois investigadores eméritos, Eduardo Costa Dias e António Duarte Silva, que na sessão de apresentação procedessem a um debate sobre as lacunas existentes e o modo de as preencher. 
Havendo hoje tanta investigação sobre o período colonial, tantas obras referentes à guerra colonial da Guiné, não se conhece nenhum estudo que abarque os quatros anos da governação de Arnaldo Schulz. 
Conto com a vossa companhia nesta sessão de lançamento e dentro das vossas possibilidades agradeço-vos a mais ampla divulgação possível. 

O reconhecimento e a cordialidade do 
Mário

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15379: Lembrete (14): Lançamento do livro "O Fedelho Exuberante", da autoria do Mário Beja Santos, dia 18 de Novembro, pelas 18 horas, no Auditório do Museu da Farmácia, Rua Marechal Saldanha, n.º 1, ao Calhariz, em Lisboa

Guiné 63/74 - P15466: (In)citações (82): Em dez anos, desde 2005, visitei os meus amigos guineenses cinco vezes... E estão-me sempre a perguntar "quando voltas"... Até 1990 não queria sequer ouvir falar da Guiné... Hoje sinto-me também um guineense (Parte II) (José Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos)



Foto nº 8 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > Tabanca Lisboa > 2005 > O José Teixeira com o chefe da tabanca e a sua lindíssima filha. "Um feliz reencontro. Regresso às origens em 2005. Encontro com um Português da Guiné, antigo paraquedista, que tem uma linda história para ser contada, pelo que sofreu e como consegui iludir o PAIGC para sobreviver à chacina de antigos combatentes portugueses".



Foto nº 9 > Guiné-Bissau, Regiãod e Tombali, março de 2008


Foto nº 10 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > O Zé Teixeira com a Cadidjatu Candé.



Foto nº 11 > O Zé Manel da Régua [, José Manuel Lopes,] num regresso emocionado a Mampatá (?), em 2009



Foto nº 12 > Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xitole > 1 de maio de 2013 > "O Francisco Silva mais um antigo guerrilheiro do PAIGC, procurando localizar pontos de guerra comuns". [ Companheirop de viagem do Zé Teixeira, em 2013 (**), o Franscisco, hoje cirurgião, esteve no Xitole, como laf mil, ao tempo da CART 3942 / BART 3873 (1971/73), antes de ir comandar o Pel Caç Nat 51, Jumbembem, em meados de 1973]



Foto nº 13 > Guiné-Bissau, 2013


Foto  nº 14 > O Zé Teixeira, em 2013, em Djufunco, chão felupe,com as crianças que representam a esperança e o futuro da Guiné Bissau



Foto nº 14 > Mais um encontro emocionado: Xitole, 2008, o João Rocha (ex-alf mil, Pel Rec Inf / CCS / BCAÇ 2852, Bambadinca,  1968/70) com a sua antiga lavadeira (1)



Foto nº 15 > Mais um encontro emocionado: Xitole, 2008, o João Rocha (ex-alf mil, Pel Rec Inf / CCS / BCAÇ 2852, Bambadinca,  1968/70) com a sua antiga lavadeira (2)

Voltar à Guiné-Bissau, por terra, porque não ? A primeira vez foi em fins de 2005, com o Xico Allen. Que aventura mais linda!... Em 2008, repeti!,,, Aqui ficam mais algumas imagens dessas viagens, do Porto a Bissau, atravesssando Espanha, Marrocos, Mauritânia, Senegal e Guiné-Bissau... Sem legendas, que uma imagem vale por mil palavras!... São fotos comigo e com outros camaradas: o Francisco Silva, o José Manuel Lopes, o João Rocha...(JT)

Fotos (e legendas): © José Teixeira (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

Fotos do álbum de José Teixeira, um dos régulos da Tabanca de Matosinhos, ex-1.º Cabo Aux Enf, CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70)
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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de dezembro de  2015 > Guiné 63/74 - P15461: (In)citações (81): Em dez anos, desde 2005, visitei os meus amigos guineenses cinco vezes... E estão-me sempre a perguntar "quando voltas"... Até 1990 não queria sequer ouvir falar da Guiné... Hoje sinto-me também um guineense (José Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos)

Guiné 63/74 - P15465: Antropologia (23): “Portugal Romântico”, com texto de Frederic P. Marjay, edição de 1955 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2015:

Queridos amigos,
Este livro tem consigo uma chave explicativa para a imagem que se pretendia dar ao estrangeiro sobre o Portugal dos meados da década de 1950: os tesouros da História, a ordem por toda a parte, a doce harmonia entre os tesouros preservados dos nossos ancestrais e a construção de infraestruturas modernas.
Um país com espécimenes incontornáveis da arte românica e gótica, um país com moinhos, fiadeiras, com fontes e tranquilidade. O país de Aljubarrota e da viagem de Vasco da Gama, um país virado para o mar, com belíssima praias, com excelente vinho, sargaceiros, cruzeiros, com beatitudes da natureza, campinos, o Navio-Escola Sagres, a cal das casas alentejanas, as amendoeiras em flor, a epopeia das pescas.
Este o Portugal romântico, esvaído nas brumas da memória, com fotografias impressionantes, a rivalizar, e nalguns casos a ultrapassar o que que cá vieram fazer génios da fotografia como Sir Cecil Beaton e Henri Cartier Besson.

Um abraço do
Mário


O Portugal fabuloso da década de 1950

Beja Santos

Encontrar na Feira da Ladra, com preço altamente abordável, que nada tem a ver com os preços a que a obra se vende nos leilões, o “Portugal Romântico”, com texto de Frederic P. Marjay, edição de 1955, foi dia em que se bateu com a biqueira do sapato no chão e saiu pepita de ouro. Frederic P. Marjay, basta ir ao Google, escreveu que se fartou obras de bom grafismo e de apresentação de Portugal sobre múltiplas facetas. Naquele ano, resolveu olhar para Portugal, para aquela gente ordenada, sorridente, amante da casa portuguesa com certeza, o Portugal marítimo, das igrejas românicas do Norte, do Mosteiro da Batalha, do Mosteiro dos Jerónimos, de uma rapariga alentejana fotografada em estúdio, do tempo em havia pesca do atum no Algarve e o corridinho era uma delicadeza etnográfica só para o mercado interno. Um Portugal fabuloso, de gente crente, pobrete mas alegrete.


Marjay, diga-se em abono da verdade, era exigentíssimo na escolha das imagens, iremos encontrar neste álbum com texto em inglês e em português fotografias, entre outros, de Artur Pastor, Domingues Alvão, Amadeu Ferrari, Otto Auer Júnior, Horácio Novais e António Rosa Casaco.


Que será que, em Portugal, nos atrai com tal intensidade, desde o primeiro instante? Temos o tempo histórico, o país que desabrochou a partir do Condado Portucalense, um rei esforçado e aí o autor lançou-se desbragadamente na fábula, entrou na lenda da Batalha de Ourique, ora vejam: “Livre em relação aos castelhanos, D. Afonso Henriques lança-se contra os sarracenos e infligi-lhes a derrota de Ourique, a mais bela vitória alcançada pelos cristãos contra os infiéis. Nessa batalha, 13 mil portugueses derrubaram 400 mil árabes. Cinco reis mouros foram vencidos ao mesmo tempo. Foi no Campo de Ourique que Cristo apareceu, segundo a lenda, a D. Afonso Henriques, prometendo-lhe a derrota dos mouros e a sua proteção a Portugal. Desde então, a pátria portuguesa ficou sob a proteção de Cristo”.


As margens do Douro, a linda ponte sobre o Rio Lima, a Igreja de Rates, o Mosteiro de S. Pedro de Roriz, isto é o Norte, onde as mulheres de Mogadouro fiam e os Pauliteiros de Miranda revelam o fascínio pela sua dança artística e original. Cá mais a baixo, ali bem perto de Peniche, há esta fortaleza que pouco serviço bélico prestou mas que hoje é um encanto, encastrada em paisagem protegida, garanto-vos que só para chegar aqui vale a pena esperar pelo mar calmo e contemplar património construído dentro de um exótico património natural.


Estes livros eram para ser comprados por turistas com posses, eram distribuídos nos centros do turismo de Portugal espalhados por bastantes países, e eram oferecidos pelo SNI e departamentos oficiais aos convidados. Todas estas imagens são marcantes, intrigam ou assombram.


O mar é destino de Portugal, somos um país de marinheiros, o nosso mar conhece ondas gigantescas, inventámos a caravela, ou quase, e fomos pelo mundo fora. E escreve o autor que os portugueses venceram todas as violências das águas infinitas. A sua audácia, a sua coragem, o seu heroísmo, dominaram todas as dificuldades que se lhes opuseram. Estamos ligados ao Atlântico, é este o nosso destino e a nossa sorte. E temos o peixe, que é do melhor, já fomos grandes consumidores dele, da costa Norte, passando por Sesimbra e quase todo o Algarve, o peixe foi riqueza e deu indústria grada, a das conservas, durante as guerras a nossa sardinha enlatada matou muita fome, consolou muito estômago em casas particulares, em submarinos e nas frentes de combate.


Há os belos templos e há essa profunda religiosidade. O autor lembra-nos Fátima como resposta direta ao ateísmo do século XX. E porque o livro se destina a turistas deixa-se uma informação pertinente: “Pelo menos metade dos visitantes pertence à classe média de todo o mundo. Senhoras da sociedade sueca e norueguesa, engenheiros alemães, sábios franceses, arquitetos americanos, médicos de toda a parte, até professores universitários lá vão. Cada um deles tem o seu desgosto, a sua dor, a sua preocupação ou a sua doença, talvez incurável. Vão ali orar e arrepender-se”.


Há os castelos, as raparigas castiças, as pontes romanas e medievais, as serras, as barcas, os mosteiros, os acontecimentos gloriosos como Aljubarrota que deu o Mosteiro da Batalha, há a religiosidade e há o homem português, do antes quebrar que torcer, o rosto de centúrias, o protótipo do português capaz de grandes feitos, todo ele identidade da terra e do mar. Todos estes livros visavam um entrelaçamento entre os pontos obrigatórios do turismo, a riqueza folclórica e as figuras típicas, imemoriais, como acontece aqui, um rosto tirado de um romance de Camilo.


As gentes que habitam para lá das fragas, que pastoreiam nas penedias e nos lameiros também fazem parte do Portugal romântico imaginado por Frederic Marjay. Não é só mar que é distinto de Portugal, o mar do Infante D. Henrique, de Vasco da Gama, nem a história começou com o Castelo de S. Jorge, o país é rico porque é compósito e nesta década de 1950 muito mais de metade da população vive dependente desta agricultura humilde. Para lá desta imagem, neste preciso instante, estes camponeses começam a sair a salto, o primeiro destino é França, mais tarde a Alemanha, a Suíça, o Luxemburgo e outras irradiações. O que aqui se fixa é que os portugueses trabalham e têm uma moral sólida como o granito das casas, são pastores exímios.


Um dos triunfos de António Ferro consistiu na divulgação do folclore, genuíno ou processado. Recordo um episódio que o meu padrinho viveu em Londres, em 1937. Pediram-lhe na Casa de Portugal para acompanhar um grupo de Pauliteiros, salvo erro o das Duas Igrejas, que vinham participar no Royal Albert Hall no Festival Mundial de Folclore. O grupo deu brado, saiu medalhado. E o meu padrinho contava sempre o que era andar no metro de Londres com aqueles pauliteiros com meias de renda, botifarras, chapéu florido, bigodaças e um garrafão de vinho, foi um espetáculo irresistível. Vendemos a imagem dos nazarenos, do corridinho algarvio, das chulas do Alto Minho e os mirandeses. O cante alentejano ficou para muito mais tarde.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de março de 2013 Guiné 63/74 - P11251: Antropologia (22): O Korá: Elementos essenciais para a sua compreensão (Braima Galissá / Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15464: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (40): "A colónia onde todas as Fatumata tinham de se chamar Maria" -Guiné Bissau (Sobre a reportagem do jornal Público)

1. Mensagem do Antº Rosinha

[, foto à esquerda: emigrou para Angola nos anos 50, foi  fur mil em 1961/62; saiu de Angola com a independência, emigrou para o Brasil e finalmente foi topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979/93;  é um "ex-colon e retornado", como ele gosta de dizer com a sabedoria, bonomia e o sentido de humor de quem tem várias vidas para contar; é membro sénior da Tabanca Grande]: 


Data: 8 de dezembro de 2015 às 00:09

Assunto: A colónia onde todas as Fatumata tinham de se chamar Maria - Guiné Bissau (Sobre a a reportagem do jornal Público)


Luís e Carlos, só se não houver inconveniente...

Interessantíssima esta reportagem que Carlos Vinhal enviou para  conhecimento do pessoal da Tabanca Grande [ "A colónia onde todas as Fatumata tinham de se chamar Maria", de Joana Gorjão Henriques (texto), Adriano Miranda (fotos) e Frederico Batista (vídeo), Público, 6 de dezembro de 2015 (Série especial: Racismo português)].

Esta reportagem pouco traz de novo para quem antigamente ouvia as emissoras rádio Pequim, rádio Moscovo, rádio Praga, Deutsche Welle, etc., em programas em português do MPLA,  PAIGC e FRELIMO.

A maior diferença de discurso, está entre o anti-colonialismo primário e demagógico daqueles movimentos, e aqui sobressai apenas a crítica aos defeitos da colonização portuguesa.

O que é mais estranho é que as pessoas, filhos das "vítimas" do colonialismo, africanos dos PALOP em geral, continuem passivamente a não se descolonizarem mais radicalmente, ao ponto de abusarem, hoje, cada vez mais de "perucas" e a viver em cubatas de vários pisos ( Prédios enormes no caso de Luanda). A preferir viver em andares sem quintal, sem a antiga tradicional qualidade de vida familiar africana,

Não resisto a respigar uns tópicos dessa reportagem e entre parênteses fazer os meus comentários um tanto levianamente, porque colaborei e vi fazer essa tão má e tão pouco intensa colonização (parece que se diz "colonização suave"). 

Aliás, se qualquer colonização fosse boa, ninguém queria ser descolonizado, antes pelo contrário. Era caso para dizer vai chamar pai a outro, de um lado , ou vai chamar filho a outro, do outro lado E como sei que se foi difícil ser colonizado, também muito difícil era colonizar.
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A prova que era difícil colonizar, é que os Europeus desistiram bem cedo dessa colonização, e com certeza aos olhos de muitos africanos antigos, até teria sido cedo demais, que pensam isso mas não dizem.

Então lá vão os tópicos que me chamaram mais a atenção, nessa grande reportagem, e que alguns são bem genuínos, outros "assim-assim". (Entre parênteses é explicação minha, que fui cólon em Luanda muitos anos)

A colónia onde todas as Fatumata tinham de se chamar Maria. (Também se chamavam Domingas ou Segunda, talvez inspirados no inglês Robinson Crusoe com o seu Fryday)

Nos tempos do colonialismo português, o guineense tinha de vestir-se como um europeu para provar que tinha direito a ser cidadão.(Aqui haveria mesmo discriminação, ficavam isentas dessa obrigação as bajudas bijagós com as saias de palha? )

As mulheres tinham de desfrisar o cabelo, desfazer as tranças africanas. (Era o colono a ditar moda.)

A separação entre os guineenses e portugueses era real. (Só na praça o guineense não podia viver, porque na tabanca o português entrava e saía quando queria.)

Ninguém podia atravessar descalço a fronteira que dava acesso a Bissau.
(Chapa Bissau)(eram manias de colonos que na terrinha até andavam sempre descalços.)

Num exemplar da Caderneta do Indígena vêem-se várias folhas, cada uma com itens que alguém preencheria: as características, o imposto indígena, a contribuição braçal, castigos e condenações…(Era um autêntico cartão de cidadão com registo criminal.)

Os velhos contam que, quando se abriam as estradas, as pessoas eram obrigadas a ir trabalhar. (Com a agravante de só os brancos é que tinham automóvel.),

Quem eram os administradores? Raramente eram os lisboetas, os minhotos — muitas vezes eram os cabo-verdianos. (Pois, como além de administradores, também os dirigentes do PAIGC, Amílcar e os outros eram berdianos, imagina-se a indignação dos guineenses, não serem pioneiros nem na colonização nem na descolonização.) 

Não fez uma única amiga nesse tempo. Quando ia de férias para o Norte, o pai guiando o seu Cadillac, havia sempre uma pequena multidão de curiosos atrás, tinham de fechar os vidros :"olha o preto, olha o preto, olha o preto", gritavam. Eram os anos 1960, a época de um "Portugal tacanho". E ignorante. A mentalidade dos portugueses na Guiné-Bissau não era muito diferente. (Refere-se aos tugas colonos que tínhamos abandonado as cabrinhas, vindo a escorregar por uma tábua, embarcámos em Alcântara num porão de navio e regressámos de Cadillac, com uma prole mestiça, hoje já não somos ignorantes e vamos para Bissau via Dakar de Jeep e para Luanda de avião e vimos sem Cadillac e sem prole.... E se fosse agora não se dizia "olha o preto" dizia-se "olha mais um escarumba".)

A maior parte do tempo o mestiço está a ter de provar que é tão guineense como os pretos. (O racismo dos pretos chegou ao ponto de em Luanda, no 25 de Abril,  dizerem que os brancos vão para a terrinha, os mestiços não têm terra, vão para o mar.)

A teoria do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre (1900-1987) suportou a ideologia do Estado Novo sobre a excepcionalidade portuguesa de estar nos trópicos. (Ideologia do Estado Novo, do Estado velho, de Marquês de Pombal, de António Vieira, de Sá da Bandeira e continuará cada vez mais.)

P.S. - Não menciono o nome dos vários entrevistados nesta reportagem, para não aumentar muito o poste

Cumprimentos

Antº Rosinha


Angola >  Agosto de 1935 > Visita à Fazenda Tentativa,  no âmbito do 1º Cruzeiro de Férias às Colónias de Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Princípe e Angola, uma inciativa da revista O Mundo Português, que juntou cerca de duas centenas de "estudantes, professores, médicos, engenheiros, advogados, artistas, escritores, industriais e comeriantes"...

O director cultural do cruzeiro foi o  prof doutor Marcelo Caetano (1906-1980), então um jovem entusiasta do Estado Novo e doutrinador do corporativismo.(Será comisário da Mocidade Portuguesa em 1940 e ministro das colónias em 1944, até chegar a sucessor de Salazar, de 1968 a 1974).

Esta "revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais" era dirigida pro Augusto Cunha, sendo propriedade da Agência Geral das Colónias e do Secretariado da Propaganda Nacional.

Fonte: O Mundo Português, vol II, nºs 21-22, setembro-outubro de 1935 (Exemplar oferecido ao nosso blogue por Mário Beja Santos; foto da autoria de Sam Payo, digitalizada e editada por L.G.; reproduzida com a devida vénia).
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Guiné 63/74 - P15463: Notas de leitura (785): “O Fedelho Exuberante”, por Mário Beja Santos, Âncora Editora, 2015 (2) (Mário Vitorino Gaspar)

1. Relembrando a mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 27 de Novembro de 2015:

Caros Camaradas
Como fui ao Lançamento do Livro do Camarada Mário Beja Santos resolvi fazer um rascunho sobre o livro.
Não é uma crítica. Faço um passeio pelo livro. Zonas e casos que conheço, até por ter a minha mulher e filhos terem frequentado a Escola Primária, uma excelente Escola. Depois é o percurso pelo Campo Grande, muito embora o Camarada diga Alvalade – Campo Grande pertence agora à Freguesia de Alvalade.
Nota-se a afeição que o Camarada tem pelo “Bairro das Caixas”. E é este passeio que faço com o Camarada.
Obrigado Mário, tens um bom livro, muito embora seja suspeito por habitar e ter frequentado todo este percurso, e continuar a habitar.

Abraço
Mário


“O Fedelho Exuberante” – Mário Beja Santos -2

Mário Vitorino Gaspar

Em 1967 estava em Ganturé, chegara a 19 de Janeiro a Gadamael Porto (…). “… Em Março de 1967 chegou a convocatória, no mês seguinte teria que me apresentar na Escola Prática de Infantaria” e… “aquela guerra não me pertencia, já que a ela era obrigado faria o possível por me preparar bem, queria regressar inteiro”. “… Falei com a Mãezinha… chorou amargamente… “... Depois resignou-se, olhou-me com ternura, um olhar intenso e disse-me: “Faça-se a vontade do Senhor”.

O Camarada Beja Santos resolve não narrar a sua participação na Guerra: Um semestre em Mafra e outro na Ilha de S. Miguel. Fez a Guerra. Dois anos depois voltei… Cedo tomei a decisão de guardar aquele tormento para mim. Quando cheguei da Guiné pensei: é um problema que tenho de resolver. Não resultou… Acresce a sua participação na defesa do consumidor. E o Camarada Mário merece este prémio, o resumo da sua história… A importância da mãezinha.

“Dois anos depois, voltei … “cedo, tomei a decisão de guardar aquele tormento para mim. A guerra levara-me amigos, o meu querido Carlos Sampaio morreu no norte de Moçambique no início de Fevereiro de 1970… (…). “…era a defesa do consumidor; acresce que, em 1978, aceitei o convite para colaborar regularmente com o Fernando Balsinha no telejornal e o João Soares Louro convidou-me a fazer programas televisivos, a partir do outono desse ano, fui afastado da televisão em 1981, e havia duas filhas pequenas para zelar e acarinhar. (…). Aquela África marcara-as indelevelmente. “O leitor que me desculpe, mas só a título excepcional vou até à guerra da Guiné, onde combati de 1968 a 1970, no Leste. A exuberância, então, era outra. Durante os primeiros dezasseis meses, de Agosto de 1968 a Novembro de 1969, comandei dois destacamentos no regulado do Cuor, no chamado sector de Bambadinca. Eu vivia a maior parte do tempo com sede em Missirá, aqui tinha as transmissões, os morteiros e as viaturas, aqui assentava a logística, incluindo a secretaria. Mal chegado, apercebi-me que era extremamente difícil ir conhecendo os soldados um-a-um, falavam regra geral crioulo, grande parte das palavras eram, então, ininteligíveis. (…). “…

No fim do jardim erguem-se azinhagas, casebres e algumas casas de veraneio. Manadas correm pelo Campo Grande fora, vão em direcção ao Mercado Geral de Gados. O Campo Grande está rodeado, do lado direito, de habitação muito antiga, começa-se pela vivenda da esquadra, na confluência com a Rua Aboim Ascensão, um das saídas do Bairro Social de Alvalade para o Campo Grande, segue-se uma enfiada de moradias, entra-se por degraus de pedra, assim se chega à Avenida da Igreja, do outro lado há uma correnteza de casas operárias, terão vivido aqui os trabalhadores e famílias da fábrica de têxteis, mais tarde quartel e hoje Universidade Lusófona, até à Igreja dos Reis Magos há construções com alguma solenidade, nos sobrados existem serviços de carvoaria, barbearia, consertos de bicicleta, coisas assim; temos a Igreja e chegamos à Avenida Alferes Malheiro, deambulamos raramente por aí, é enorme, não temos malta com quem jogar à bola, só mais tarde iremos jogar ao Pote d’Água. Desce-se o Campo Grande, há para ali uma casa apalaçada, com gradeamento, depois o Retiro do Quebra Bilhas, já ao tempo se diz tratar-se do último retiro de Lisboa, depois alguns prédios, por detrás expande-se um bairro da lata, a seguir ao quartel, que é daquele tempo, há o asilo D. Pedro V, hoje remodelado e com outros objectivos, a seguir o Museu Rafael Bordalo Pinheiro, mais alguma construção simplória e estamos no Campo Grande.

Do outro lado, há um palácio fechado, hoje o Museu da Cidade, seguem-se hortas até chegar a uma vivenda num descampado, é o edifício da Junta de Freguesia do Campo Grande, com mais hortas em frente mas também construções dentro de azinhagas, o lajedo de todas estas acessibilidades é em paralelepípedos, as linhas do elétrico estão também em paralelepípedos, há para ali umas fábricas, lembro-me que um ano, estávamos no Colégio Moderno, ouvimos a estridência das sirenes dos bombeiros, tinham ido apagar um fogo na fábrica Nally, tinham o creme Benamor que a Mãezinha partilhava com os cremes da Madame Campos; junto à linha do eléctrico há vivendas, umas com traça e conservação, outras com qualidade, as lojas são livrarias frequentadas pelos estudantes de Letras sinais de que se caminha para a derrocada. (…). “… Também a roupa é cara, viram-se os casacos, remenda-se, pesponta-se, andamos todos com cotoveleiras nas camisolas, levamos ao sapateiro o calçado para cardar, dura mais”. “Amolam-se tesouras, pode consertar-se um chapéu-de-chuva e um desses amola-tesouras até deita pingos de solda em fervedores e tachos. Há alguma venda ambulante, a leiteira vem a casa e é escusado voltar a referir os vendedores de fascículos e as suas intermináveis versões da freira do subterrâneo.

E assiste-se à alvorada da sociedade de consumo. Há um tanque em cimento na varanda anexa à cozinha. Ao princípio, faz-se a saponária, um trabalho muito ingrato no inverno. O pessoal feminino queixa-se das mãos ásperas. Depois surgiu a Lever Portuguesa, trouxe uns flocos para a roupa mais delicada, e depois de uma guerra entre o Tide e o Omo, este último triunfou, faz parte das minhas obrigações trazer um pacote de Omo quando vou à mercearia da Rua de Entrecampos. É verdade que o granel pontifica, os vendedores ambulantes vêm em triciclos, trazem frutas e legumes, as suas balanças rudimentares e regressamos com cartuchos a casa. Mas mesmo antes de chegarmos a 1960 o produto empacotado é indicativo que as indústrias alimentares ganharam peso: bolachas, açúcar, lacticínios; e depois os enlatados, até aí só conhecíamos praticamente as conservas de peixe. Alguém que tenha hoje 20 ou 30 anos não faz a menor ideia do que é o significado da limpeza doméstica naquele tempo: remover e pôr cera, usar enceradora ou dar brilho com panos, desliza-se com um pano em cada pé o tempo que for necessário para que aquele chão de madeira fique a brilhar; se está bom tempo, a roupa da cama fica a arejar à janela, sacodem-se as mantas, há mesmo espanadores para bater o colchão, ainda de barbas de milho, os de algodão virão mais tarde e é necessário virá-los de dois em dois dias para não dormirem num colchão com covas; é do senso comum que não há máquinas de lavar roupa nem louça, esta requer esfregão ou palha-de-aço, felizmente que em meados da década de 1950 começam também a surgir detergentes, bem-vindos, lavar a bateria de cozinha não tem graça nenhuma. E há as operações semanais de remoção de poeiras por cima dos móveis, a lavagem dos ladrilhos nas casas de banho e cozinha. São tempos da lixívia, da soda cáustica, da solarina, da terbentina, é a caça ao micróbio, aos maus cheiros, há que pôr os metais a brilhar, tirar nódoas, passa-se imenso a ferro, apanho a transição do ferro de crítica praticada com discrição, é certo, embora constasse que aquele ou aqueloutro vizinho pertenciam à PIDE ou à Legião. (…). “… João Crisóstomo proclamou: “Que ninguém tema a morte”. (…). “… ente, como se formou a geração que foi à guerra e daqui partiu para os anos de paz e os sonhos que teimamos em conservar. Ámen.

Assim termina Mário Beja Santos. A parte final. Vi livros terminarem com o Ámen.
A sua visão do Bairro de Alvalade. Anteriormente todo este espaço pertencia à Freguesia de Campo Grande.
Narrada muita história. A Guerra… Entra… Sai. A riqueza das palavras, o Amor pela “mãezinha”.
Faltou descrever a liberdade em que viviam os perus e galinhas no período do Natal, e Circos e a venda de pinheiros.
Faço a pergunta: – Quem orientou todo o trabalho no Jardim do Campo Grande, e o abatimento de árvores? E por que razão ficaram eucaliptos?
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Nota do editor

Poste anterior de 8 de Dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15460: Notas de leitura (784): “O Fedelho Exuberante”, por Mário Beja Santos, Âncora Editora, 2015 (1) (Mário Vitorino Gaspar)

Guiné 63/74 - P15462: Parabéns a você (997): Amaro Samúdio, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 3477 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15457: Parabéns a você (996): Jorge Teixeira (Portojo), ex-Fur Mil Art do Pel Canh S/R 2054 (Guiné, 1968/70)

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15461: (In)citações (81): Em dez anos, desde 2005, visitei os meus amigos guineenses cinco vezes... E estão-me sempre a perguntar "quando voltas"... Até 1990 não queria sequer ouvir falar da Guiné... Hoje sinto-me também um guineense (José Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos)


Foto nº 1 


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4

Foto nº 5


Foto  nº 6



Foto nº 7

Voltar à Guiné-Bissau, por terra, porque não ? A primeira vez foi em fins  de 2005, com o Xico Allen (e o António Canilo). Que aventura mais linda!... Em 2008, repeti!,,, Aqui ficam algumas imagens dessas viagens, do Porto a Bissau, atressando Espanha, Marrocos, Mauritânia, Senegal e Guiné-Bissau... Sem legendas, que uma imagem vale por mil palavras! (JT)


Fotos (e keggenda): © José Teixeira (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

1. Mensagem do José Teixeira,  um dos régulos da Tabanca de Matosinhos, ex-1.º Cabo Aux Enf,  CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70): 

Data: 2 de dezembro de 2015 às 17:23
Assunto: voltar à Guiné.

Voltar à Guiné e por terra, porque não? (*)

Regressei da Guiné em maio de 1970. Recordo-me vagamente que quando entrei no Niassa de má memória, me voltei para terra e disse para mim:
- Adeus, Guiné, até nunca mais.

De facto, até cerca de 1990.  nem queria ouvir falar da Guiné. Diz o meu filho que me apanhou várias vezes a chorar quando via filmes “tipo vietname”. Para eles,  parece que ia contando algumas histórias do que vivi na Guiné, mas francamente, não me lembro. Evitei contatos com camaradas e,  se alguma vez os encontrei, era proibido falar da guerra.

Depois,  a saudade começou a mexer comigo. Procurei formas de localizar os camaradas da Companhia e organizei o primeiro convívio, que se tem repetido todos os anos.

A partir de 2000 comecei a sonhar num regresso à Guiné, para matar saudades. Em fins de 2004 topei com o Xico Allen e toca a abalar, por terra. que aventura mais linda! [, foto nº 5; na foto nº 5, vê-se também o Camilo e o seu jipe]

Em 2008 repeti. Os amigos que tinha lá deixado aproximaram-se. Outras amizades foram nascendo e crescendo. A descoberta das realidades locais e a forma como era recebido criaram em mim raízes tão profundas que hoje me sinto um filho da Guiné, sem deixar de ser português. 

Em 10 anos, visitei os meus amigos guineenses cinco vezes. O diálogo via mail e facebook é permanente e a pergunta é sempre esta:
- Quando voltas?

Arranjei tios, primos, irmãos e sobrinhos, como fosse um natural da Guiné. Não me pedem nada, a não ser amizade.

Como um fotografia vale mais que mil palavras, junto algumas [, que irão ser publicadas em dois postes distintos] (**)

Zé Teixeira
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Guiné 63/74 - P15460: Notas de leitura (784): “O Fedelho Exuberante”, por Mário Beja Santos, Âncora Editora, 2015 (1) (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 27 de Novembro de 2015:

Caros Camaradas
Como fui ao Lançamento do Livro do Camarada Mário Beja Santos resolvi fazer um rascunho sobre o livro.
Não é uma crítica. Faço um passeio pelo livro. Zonas e casos que conheço, até por ter a minha mulher e filhos terem frequentado a Escola Primária, uma excelente Escola. Depois é o percurso pelo Campo Grande, muito embora o Camarada diga Alvalade – Campo Grande pertence agora à Freguesia de Alvalade.
Nota-se a afeição que o Camarada tem pelo “Bairro das Caixas”. E é este passeio que faço com o Camarada.
Obrigado Mário, tens um bom livro, muito embora seja suspeito por habitar e ter frequentado todo este percurso, e continuar a habitar.

Abraço
Mário


“O Fedelho Exuberante” – Mário Beja Santos -1

Mário Vitorino Gaspar

No dia 18 de Novembro de 2015 foi Lançado o livro do nosso Camarada Beja Santos no Museu da Farmácia. Depois se sermos homens e termos passado por todas, e muitas fases, voltamos a ser meninos, é como uma subida íngreme e uma queda. E a infância, que é o início, fica sempre gravada na memória.

Com Beja Santos, ele voltou e nós voltámos a ser meninos. E as recordações da juventude ficam mais presentes que as recentes. Ao ler este livro – e afastei-me da leitura já há muitos anos, só poesia leio – mas este livro que deve ter sido para o Camarada uma ida ao Parque Infantil do Campo Pequeno – chamou-me a atenção após verificar anos, locais e coisas mais que tive a oportunidade de conhecer. Após a passagem por territórios do seu nascimento “olhando em todas as direcções, com uma vontade imensa de andar à procura de indícios de poeira que se tenha acumulado no pós-guerra”. E escreve a determinado momento a passagem por locais que uns recordam, e outros não sabem. Os cinemas Rex; Promotora; Lys; Pathé; Salão Lisboa; Ideal; Max e Cine Oriente. Recorda aquela zona histórica, e via entrarem na Avenida Almirante Reis Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e Amílcar Cabral – a Casa dos Estudantes do Império. Fala de Alvalade e da sua ida para ao Bairro Social de Alvalade, em Março de 1952. E descreve com minúcia, inclusive a renda a pagar, 620$00. É uma quantia elevada. Na Rua Alberto de Oliveira uma casa Tipo 3 pagava 360$00. E é chegado o momento de chegar a zonas e datas que não confundo. Aqui volto a reencontrar esta Escola Primária N.º 151, onde estudaram a minha mulher e os meus dois filhos. E como o Mário Beja Santos descreve Alvalade: – “ Era um espaço rural, havia pastores, carros de bois, passarinhos… (…) “… Vivemos na Rua António Patrício… (…)… “visitas à Avenida da Igreja para ver passar jogadores de futebol gloriosos que vivem no bairro ou redondezas, como o Travassos ou o Vasques”.

Também lá vivia o Canário jogador do Sporting e autor de letras de fados, que bem conheci – para além de Travassos e Vasques, estabelecidos na então freguesia de São João de Brito. O autor entra no pormenor: – “ A leiteira passava de manhã cedo, fervia-se o leite e eu bebia-o com um aromatizante...”. Fala naquilo que a memória falha do Milo”… “Assim se construiu uma linha protectora deste lado do Bairro Social de Alvalade, ele está incólume, resiste ao tempo, os condóminos fazem obras, o Palácio dos Coruchéus, na Rua Alberto de Oliveira, que conheci ao abandono e armazém dos equipamentos dos varredores desta área da cidade…”.

E recorda: – “. “Quando cheguei ao Bairro Social de Alvalade, junto da Lisboa das Avenidas Novas, em 1952, era fácil ver as marcas do passado, olhar o consumo no presente, perceber que havia uma nova civilização a irromper. O bairro estava cercado de quintas, tinha olival, a dois passos estava o formoso e cuidado jardim do Campo Grande, descendo um enorme estradão, onde então se construía a Avenida dos Estados Unidos da América, havia a Rua de Entrecampos, com as suas cocheiras, moradias, umas modestas, outras graciosas e mais outras espampanantes, havia uma mercearia onde se podia comprar azeite a granel, uma quarta de banha, torresmos, grão e feijão metidos num cartuxo e pesados em medidas de madeira com a rasoira. Vi nascer a Avenida dos Estados Unidos da América com arquitectura aparatosa para a época, depois surgiram as sopas e os caldos Knorr, a seguir os detergentes, os produtos empacotados foram ganhando uma progressiva importância. Naquele tempo, havia poucos carros, Telheiras era feita de azinhagas, uma verdadeira área rural e de ócio, criavam-se coelhos e galinhas nos quintais, Lisboa estava cheia de figueiras e nespereiras, as varinas apregoavam o peixe, o amola-tesouras era um indicativo, omnipresente e claro de que naquele mundo os objectos eram reparáveis. Porque só há banalização do efémero no consumismo. Nos anos de 1960, a realidade mudou. As classes médias urbanas transfiguraram as necessidades deste país que vivia com hábitos regrados e brandos costumes”. E o Camarada Mário Beja Santos aviva a nossa memória: – “… Comecei a dar vazão às consultas no dicionário do Torrinha, era o que eu tinha à mão…”.“... A mãe diz: – “Mário habitua-te a distinguir a verdade da mentira, a pensar com a tua cabeça, há casos em que as verdades de hoje são as mentiras de amanhã. Vais crescer e ter a tua opinião sobre o que vês, o teu pensamento tem que ser livre, não te deixes escravizar pela propaganda política. Há o verso e o reverso, nunca te esqueças”.

Mais recordações, incluindo a Livraria Barata (a antiga), onde comprei alguns livros proibidos, por baixo do balcão: – “Todas as casas eram propriedade de Caixas de Providência, a nossa pertencia à Caixa de Providência dos Empregados da Assistência, os prédios ao lado pertenciam à Caixa de Providência dos Médicos e à Caixa dos Empregados da CUF. Na década de 1960, a prosperidade fez-se sentir de muitas maneiras. (…). “… As minhas recordações encaminham-se para outra direcção, os quintais. Todos os prédios têm quintais, nuns pequenas hortas vão satisfazendo os locatários nostálgicos que aprenderam a amanhar a terra, antes de chegar à cidade; noutros aparecem barracões, pombais, havia gente que carpinteirava ou usava o seu espaço de quintal para depósito. O que interessa é que a petizada se deslocava à vontade por esses terrenos baldios, ali se jogava às escondidas, se encontrava terreno para o jogo do berlinde e para dar uns chutos na bola. Usei muitas vezes a placa por cima do túnel que levava ao quintal, saltava da varanda da cozinha e fazia os meus espectáculos para na vizinhança e para a malta que convidava”. E… Ainda não tinham chegado as novelas à rádio”; “Recordo que aí por 1962 entrei na Livraria Barata, então com as suas portadas de modesta loja de bairro, como se fosse uma papelaria ou um cabeleireiro. Havia estantes pejadas de livros encostadas às paredes e um espaço central que estabelecia um diálogo perfeito com quem quisesse andar ali a catar as novidades. (…)

Surgem as radionovelas, e o Tide, o Omo, o Rex, Lys, Pathé, Imperial e o Império, muitos filmes estreados e logo retirados pela PIDE. E os pseudos, ditos intelectuais? – “…A primeira rádio novela era conhecida pelo “teatro Tide”, nome da marca de um detergente em pó que viria a ser destronado pelo Omo. Era um dramalhão de todo o tamanho, emitido depois de almoço”… “Teatro Laura Alves e é hoje loja de roupa), o Pathé, depois chamado Imperial, e mais tarde discoteca… “… a rua dos Condes, onde havia o Olympia e mais adiante o Coliseu; “sessões de verão do Capitólio e do Chiado Terrasse, em plena adolescência”. “…Cinema Estúdio, criado dentro do Cinema Império, e passámos a frequentar os cineclubes que se espalhavam pelo Jardim Cinema, Ávila, Roma, e outros espaços”. “Aparece um festival no Cinema Alvalade, uma sala deslumbrante, é um cinema moderno como o Império, mais pequeno mas muito acolhedor... e me habituo a ler jornais. O Século e o Diário de Notícias, interessam-me os seus suplementos culturais.

Surge a guerra. Diz a mãezinha: – “Tenho dúvidas que tudo isto se vá resolver depressa. Vê se estudas, vê se te aplicas, vê se preparas o teu futuro e tens a profissão que desejas. Nem quero pensar que um dia terás que fazer uma guerra. Nem quero pensar, já tive a minha dose de desgostos e sobressaltos. Os teus irmãos há muito que partiram, estou a envelhecer cheia de doenças, evita-me mais sofrimentos, estuda muito. Não pensemos mais nesta guerra. Oxalá tudo se resolva depressa, e tu fiques a bom recato”. (…).” E pela primeira vez oiço falar de episódios sobre fugas a salto. Os portugueses aventuram-se e passam fronteiras, é a fuga à guerra. O Camarada foca um período com história, repleto de acontecimentos. E é a libertação dos presos políticos em vários locais, neste caso Peniche. Em Janeiro de 1960, com o apoio de um Guarda Republicana fogem Álvaro Cunhal. Francisco Miguel, Jaime Serra, Carlos Costa. E fala de Fátima e ouviu: – “… o pai do Eduardo parecia espumar de raiva: “Ó rapaz, aquilo é um negócio monstruoso. Há um livro do Tomás da Fonseca que desmascara a burla do princípio ao fim. As crianças analfabetas foram induzidas a acreditar que tinham visto uma senhora que se passeava de branco e que era a mãe de Deus. (…).

A velha Livraria Barata, e é apaixonante o que descreve o Mário após ter sido apresentado a Senhor Barata: –“Ainda hoje estou para saber porquê, pedi ao senhor Barata para me vender um livro de Karl Marx, pedi num sussurro, não queria que ninguém mais ouvisse, sei lá se por timidez se por vergonha”.(…). “… E a Índia, o motim em Beja, o Paquete Santa Maria assaltado. Continua, sem esquecer o que afirmou Francisco Canto e Castro: – “… Ah, qualquer dia este regime sinistro vai abaixo, mesmo com a mordaça da imprensa, as pessoas já não escondem o descontentamento! Ah, vem aí a revolução!”. Descubro as reuniões dos católicos progressistas, guardo recato de que assisto a estas reuniões. Numa delas fiquei estupefacto, alguém, em tom compungido, disse que era preciso que os cristãos se manifestassem contra a guerra colonial, Angola não era nossa, era um território de exploração, os naturais tinham direito à autodeterminação.

Os Anos de 61/62 e 63 – Importantes e com história. Mário Beja Santos conseguiu um emprego, mas não esquece a malfadada guerra: “e em 1961, houve quem pensasse que a rebelião em Angola fosse flagelo de pouca dura, em 1962 havia já necessidade de mais efectivos, a guerrilha dispersava, depois, ao nível do topo político, sabia-se que a guerrilha iria explodir na Guiné, cada vez mais unidades militares chegavam a Bissau, a guerrilha eclodiu em Janeiro de 1963…

No Bairro de Alvalade, quando a malta se encontra a primeira notícia que se dá é de que o Zé Manel, o Chico, o Demétrio já embarcaram, ofereceram-se para os fuzileiros. (…). “A febre de cinema e inscrevo-me no ABC Cineclube, no Cineclube Católico, no Universitário, no Imagem, arrasto-me do ciclo Hitchcock para o ciclo Erich von Stroheim e daqui para o ciclo René Clair, é uma euforia contínua. (…).

O encontro de Mário Beja Santos, com o Nelo que narra a realidade daquela guerra. É nisto que num fim de tarde, no verão de 1966, caminhava para casa quando dei de frente com o Nelo”. Foi para os fuzileiros… ”e estava na Guiné, disse-me que tivera 35 dias de férias na metrópole. Fiquei impressionado com o desgaste, o rosto dessorado, a gesticulação nervosa, a fala precipitada, parecia-me ter envelhecido. E convidou-me: “Ainda bem que nos encontrámos, és a pessoa ideal para me ouvir. Preciso de desabafar, vem beber comigo qualquer coisa ali à Nova Iorque, tens de ter paciência e escutar-me”. Não pude recusar, o Nelo era um excelente rapaz, tínhamos um passado comum de brincadeiras de índios e cowboys, pontapés na bola, idas ao cinema naquelas inesquecíveis tardes de domingo, senti que o Nelo tinha coisas para dizer, estava mortinho por desembuchar. E fui, brindámos com uísque o reencontro (“Eh pá, a malta lá na guerra ou bebe cervejola ou um uísque!”), torneei o que me tinha a dizer contando-lhe como levava uma vida sonhadora, na estúrdia de espectáculos sem fim, que entrara num curso universitário mas estava sem pressa. E pela primeira vez vi acender-se o sinal de perigo, o Nelo não teve para mais contemplações, esporeou-me e depois gritou o seu sofrimento: “Olha, antes falar de mim, quero dizer-te que tens que te pôr a pau, ou estudas ou em breve vais malhar com os ossos na guerra. Toma conta do que te estou a dizer, é conselho de amigo. Serás oficial miliciano, mas não penses que é muito diferente da vida de soldado. Provavelmente cabe-te a tropa macaca, ficas metido num quartel lá no mato, talvez com pretos e famílias à mistura, a apanhar uns fogachos e de vez em quando vais fazer umas operações, arriscando minas e emboscadas. Bem podias estudar, fazer o teu curso direitinho, sempre eram mais uns anos de adiamento, talvez esta merda da guerra conheça outra solução. Não sabes o que estou a viver, ser fuzileiro é uma forma de tropa especial, um barco larga-nos de madrugada junto de um arrozal, às vezes enganam-se nas marés, andamos a patinhar na lama até às partes, há gajos que chegam a perder as armas no meio daquele lodo todo, depois avançamos para uma vegetação onde rasgamos a roupa e nos ferimos, e a seguir, se não levamos com uma emboscada nos cornos logo à chegada vamos à procura dos turras, somos capazes de encontrar velhos, mulheres e crianças numas barracas, disparamos rajadas, é um inferno. Levo dez meses nestas operações, aquilo está cada vez pior, os gajos vivem dentro de florestas densas, têm bom armamento e lá têm as suas razões para acreditar naquela guerra. Quando me ofereci como voluntário era só para despachar, até pensei que se ficasse na Marinha teria uma boa profissão. Estou numa grande angústia, pá. Vou voltar e todas aquelas cenas vão repetir-se, desembarques, tiros, morteiradas, bazucadas. E há os nossos mortos e os nossos feridos, não te passa pela ideia o que é trazermos às costas um gajo todo rasgado, tivemos um caso em que um camarada meu só pedia que o matássemos, não queria voltar para a mulher naquele estado. E estou confuso, pá. Aqui ninguém percebe o que andamos a fazer, o que ali penamos, parece que aquelas guerras não existem, cada vez que eu falo na minha vida sinto que as pessoas ficam mal dispostas, parece que eu estou a desencaminhá-las, que aquilo tudo é uma desconversa. Não sabes como é que eu me sinto, faltam-me palavras. Já chega de falar de mim. Cuida de ti, e já agora ficas com o meu SPM, de vês em quando escreve-me, preciso de falar com pessoas a quem eu posso contar o que me vai na alma, dás-me essa ajudinha, prometes?”. Claro que prometi, e até cumpri, dei-lhe um grande abraço, despedi-me do Nelo que seguiu cabisbaixo para casa. Não retive o sinal de perigo que o Nelo me transmitira. Leviano, a saborear as delícias do cosmopolitismo, arredei o espectro da guerra para trás das costas, tudo teria o seu tempo. Acontece que já tinha ido à inspecção militar, ficara apurado para todo o serviço.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de Guiné 63/74 - P15455: Notas de leitura (783): “Sem Papas na Língua”, Joaquim Letria em conversa com Dora Santos Rosa, Âncora Editora, 2014 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15459: O Relógio de Ponto e as Rondas nocturnas (António Tavares, ex-Fur Mil do BCAÇ 2912)

1. Mensagem do nosso camarada António Tavares (ex-Fur Mil da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72), datada de 23 de Novembro de 2015 lembrando o famoso relógio de ponto que controlou a vida a tanta gente:


Relógio de Ponto

Camarigos,
 "Em 20 de Novembro de 1888 William Bundy, joalheiro nova-iorquino, inventa o 1.º Relógio de ponto”, quando li esta efeméride recordei o relógio de ponto que conheci quer na tropa quer na vida civil.

Numa Unidade Militar do Norte, onde estive, cada ronda ao quartel demorava uma hora certa. Os Cabos Milicianos faziam a ronda com um relógio de ponto parecido com o da imagem.
A chuva, o frio e o nevoeiro eram o nosso inimigo nas noites de um impiedoso Inverno de 1969. O ano de um terramoto em Portugal Continental.
Certa noite encontrei uma sentinela a dormir dentro de uma guarita. Tirei-lhe a G3 e passados uns momentos acordei-o. Atrapalhado pela falta da arma esqueceu-se da contra senha.
Naquele tempo a senha e a contra senha eram importantes mas a falta da arma é que era o problema. Depois de verificar que o Homem estava bem acordado disse-lhe onde estava a arma.

Também encontrei um soldado com uma “menina” no local de vigilância à sua responsabilidade. Naquela noite a “menina” dormiu sob um tecto. Havia tantas “meninas” à volta do quartel para ganhar uns Escudos.

Nunca participei qualquer ocorrência. Qualquer delas era grave especialmente num quartel onde tinham furtado uma pistola. Em Agosto de 1971 encontrei um Alferes Miliciano, num voo da TAP, Bissau – Lisboa, e o caso da arma de imediato foi conversa.

Na manhã seguinte o Oficial de Dia verificava o registo do relógio e caso houvesse anomalias de imediato havia inquéritos oficiais. Geralmente eram ultrapassados pelas artimanhas aprendidas pelos utilizadores do relógio.

 Foto: domínio público a circular na NET

Quando o relógio de ponto avariava era “noite santa” no quartel. Eu não saía do quarto.

Nas matas do leste do CTIGuiné as rondas, dentro do quartel de Galomaro, sem relógio de ponto, por vezes, tinham por companheira uma lanterna nas noites escuras como breu. Um dos inimigos especialmente para os militares continentais.

Uma História e não Estória que um relógio, utilizado, num quartel, recorda.

Na vida civil o relógio de ponto era um dos nossos pensamentos durante a vida activa de trabalho.

Abraço
António Tavares
Foz do Douro, Domingo 22 de Novembro de 2015
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Guiné 63/74 - P15458: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (32): De 25 de Abril a 5 de Maio de 1974

1. Em mensagem do dia 6 de Dezembro de 2015,  o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a sua 32.ª Memória, coincidente com o dia que ia ditar o fim da Guerra do Ultramar, 25 de Abril de 1974.

CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

32 - De 25 de Abril a 5 de Maio de 1974

25 de Abril de 1974 – (quinta-feira): A Revolução de Abril

A Revolução de 25 de Abril de 1974 que calha agora referir, bem como as circunstâncias em que me surpreendeu nos matos da Guiné, vem no seguimento cronológico das narrativas que venho escrevendo no nosso Blogue e apenas por isso o faço. Pelo seu simbolismo e como marco histórico dos mais importantes do século XX para todos os portugueses e, ainda, por ser um tema que me é caro, nunca o trataria com duas penadas de pendor memorial. Nem este é o espaço e nem este é o tempo para o fazer. O que se segue é, por isso, apenas narração com base em pequenas notas ou cartas da época.

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A notícia da acção do Movimento das Forças Armadas que derrubou o governo em Lisboa, foi-me dada em pleno mato onde me encontrava emboscado ao longo da estrada, algures entre Nhala e Buba. Eram três ou quatro horas da tarde quando apareceu uma Berliet com uma escolta e um furriel “periquito” dos grupos que reforçavam a Companhia de Nhala, aos berros, muito eufórico, para que regressássemos porque a guerra ia acabar. Na Metrópole tinha havido uma revolução! Cheguei-me à estrada, ainda atónito, e disse-lhe para repetir, pois a brusca sacudidela nos meus neurónios roubara-me o entendimento. Era como se ele dissesse que a terra começara a girar ao contrário e estivéssemos de novo na alvorada. Mas ele insistiu e disse que prenderam os pides. “Prenderam os pides!”. Não havia dúvidas, houvera uma revolução e dera-se no sentido certo, porque há muito que eu admitia, com os meus botões, que houvesse uma revolução para depor Marcelo Caetano, mas de sentido contrário, desencadeada pelos seus detractores da extrema-direita. Fiquei apopléctico, o coração desordenado, a comoção a perturbar-me.

O pessoal subiu alegre para as viaturas, mas algo contidos, sem terem percebido o alcance do que acontecera. Eu e o furriel, pelo contrário, sentámo-nos no capô da Berliet e fizemos grande parte do trajecto a agitar as armas e a berrar para o ar. Os soldados riam-se com estes excessos e com a perplexidade de uma faceta que me desconheciam: eu também era maluco... Se acaso houvesse um grupo de guerrilheiros a observar-nos a passagem, em tal propósito, por certo ficariam bloqueados de acção e compreensão. Talvez até fugissem para a fronteira...

Chegámos ao aquartelamento e estava tudo em grande confusão, agarrados aos rádios, muitos a alvitrar mas, de concreto, pouco mais se adiantava ao que já sabíamos da lacónica mensagem enviada à Unidade: “Agências noticiosas informam Governo Professor MARCELO CAETANO derrubado por movimento forças armadas”. (Teor revelado recentemente pelo meu amigo e camarada, 1.º Cabo Cripto da minha Unidade, José Carlos Gabriel). No geral, todos se mostravam radiantes, porque a expectativa, fosse lá o que fosse o golpe dos militares, era que acabasse a guerra e pudessem regressar a casa. Com a falta de informação e a noção do que aconteceria a seguir, também não era possível fazer juízos e ter outras reacções. Retirar interpretações políticas dos acontecimentos, muito menos, tal era o grau de despolitização geral.

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Entramos no mês de Maio sem que se saiba muito mais do que se passa em Lisboa. A nossa actividade operacional, para já, mantém-se com toda a normalidade, entre patrulhamentos e contra penetrações mas sem sinais da guerrilha. A História da Unidade refere na “situação geral” relativa ao mês de Maio: “A actividade violenta IN foi nula em todo o Sector, não tendo mesmo sido assinaladas quaisquer colunas entre o UNAL e INJASSANE”. De facto, cumpríamos as missões como antes mas, essa acção nula do inimigo e uma certa esperança no futuro, fazia-se notar já num certo desplante, (ver foto 1), ainda que sempre na defensiva. As obras da estrada prosseguiam também normalmente, com a diferença de que o Destacamento de Engenharia N.º 1 deixou os trabalhos da frente de A. Formosa, (excepto alcatroamento), passando a abrir a estrada A. FORMOSA/PATE EMBALO/RIO CORUBAL e a fazer a reparação e alcatroamento da pista de A. Formosa, logo interrompidos no dia 4 por falta de alcatrão.

Foto 1: Maio de 1974 - Grupo de graduados escoltando uma carroça de arroz a caminho de Nhala. Eu venho armado com minha poderosa pressão-de-ar de calibre 5,5mm com mira telescópica.


5 de Maio de 1974 – (domingo): notícias de Bissau

As notícias da Metrópole escasseiam. Ao contrário, as notícias de Bissau correm céleres dando conta de situações de alguma gravidade. Os nativos da cidade estão agressivos para com os brancos em geral e para com os pides em particular. Tem havido problemas todos os dias e os rebentamentos nas ruas sucedem-se. Um grupo de negros enfurecidos apanhou na rua junto ao mercado de Bissau a mulher de um pide e despiu-na completamente. A tropa interveio e impediu acções certamente mais graves. Aparentemente a guerra arrefeceu depois do dia 25 passado, mas receia-se que, a demorarem as resoluções sobre o ultramar, as coisas se compliquem ainda mais.


Histórias marginais (6): Uma luzinha perturbadora

Estava uma noite tranquila e fresca, depois de uma tarde chuvosa. Ainda era cedo e eu estava sentado à cabeceira da cama a ler o Erico Veríssimo, da mini biblioteca que tinha dele.

Ouço uma rajada de G-3 a partir do posto de sentinela ali próximo da messe, o posto mais alto do aquartelamento. C’os diabos!... Tinha o grupo de serviço. Pus os pés de fora da cama e fiquei um bocado a aguardar. Dois toques na porta e aparece o furriel a dizer:
- Desculpa lá, mas tenho que te dizer que a sentinela aqui deste posto viu uma luz na mata e fez fogo. Já estive lá em cima com ele no posto e, o que é estranho, é que a luz voltou a aparecer. Disse-lhe para não fazer mais disparos e que te vinha chamar.
- Mas não estás a pensar que está lá alguém no mato com uma lanterna e que se deixa ficar mesmo depois de levar com uma rajada, ou estás?! - Perguntei, enquanto me calçava.
- Não sei, mas é um bocado esquisito.
- Ainda mais essa!... - Disse eu já a ficar irritado.

Subimos ao posto e vi o soldado com os olhos focados na mata do lado da caserna do 2.º grupo. Apontou e disse: - É ali. - Mas “ali” era escuro como o breu e só se enxergavam as árvores da orla, apesar do potente projector de halogénio que, do arame farpado, apontava naquela direcção. Olhei um bocado e, realmente, vi uma luz pequena mas com uma refulgência intensa, mas que logo se apagou, reaparecendo para de novo se apagar. Por vezes mantinha-se algum tempo acesa. Na minha cabeça foi surgindo uma hipótese simples que poderia explicar aquilo. E, nos instantes em que ali estive, não vi mais hipótese nenhuma. Disse ao soldado para avisar os postos próximos de que, eu e o furriel iríamos sair do arame farpado naquela direcção, e ficámos até ao regresso do soldado a apreciar aquela estranheza. Não me abri, denunciando o que era apenas uma suspeita.

Caminhámos atentos, de G-3 apontadas, pela zona descapinada em direcção à mata, parando sempre que a luz se apagava e avançando quando se acendia, de modo a não perder o sítio do foco. Já próximos da orla da mata, compreendi que a luz não provinha do chão, descartando desde logo a hipótese que mentalmente admitira, mas sim de uma altura aproximada de um metro e meio. Ao entrar na mata, sempre com a atenção concentrada no ponto luminoso intermitente, avancei mais rápido e... Fiquei apenas com um ramo de folhagem frente à cara.

Esbocei um sorriso ao perceber a origem do fenómeno, mas confesso que fiquei um pouco perplexo: na concha de uma pequena folha, que oscilava com a aragem, estava uma gotinha de água. Apenas. Dela refulgiam reflexos a devolver a intensa luz do projector. Muitas outras folhas, porventura, teriam a sua gotinha da chuva da tarde, mas apenas aquela apanhava no ângulo certo a luz do projector, de modo a estragar-nos parte da noite. Fomos explicar isso mesmo ao soldado. Afinal não eram reflexos de vidros espalhados pelo chão, como admitira.

Foto 2: Uma luzinha perturbadora.
Texto e fotos: © António Murta

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15435: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (31) (2): Dia 24 de Abril de 1974, corte da estrada Nhala-Buba