quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15463: Notas de leitura (785): “O Fedelho Exuberante”, por Mário Beja Santos, Âncora Editora, 2015 (2) (Mário Vitorino Gaspar)

1. Relembrando a mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 27 de Novembro de 2015:

Caros Camaradas
Como fui ao Lançamento do Livro do Camarada Mário Beja Santos resolvi fazer um rascunho sobre o livro.
Não é uma crítica. Faço um passeio pelo livro. Zonas e casos que conheço, até por ter a minha mulher e filhos terem frequentado a Escola Primária, uma excelente Escola. Depois é o percurso pelo Campo Grande, muito embora o Camarada diga Alvalade – Campo Grande pertence agora à Freguesia de Alvalade.
Nota-se a afeição que o Camarada tem pelo “Bairro das Caixas”. E é este passeio que faço com o Camarada.
Obrigado Mário, tens um bom livro, muito embora seja suspeito por habitar e ter frequentado todo este percurso, e continuar a habitar.

Abraço
Mário


“O Fedelho Exuberante” – Mário Beja Santos -2

Mário Vitorino Gaspar

Em 1967 estava em Ganturé, chegara a 19 de Janeiro a Gadamael Porto (…). “… Em Março de 1967 chegou a convocatória, no mês seguinte teria que me apresentar na Escola Prática de Infantaria” e… “aquela guerra não me pertencia, já que a ela era obrigado faria o possível por me preparar bem, queria regressar inteiro”. “… Falei com a Mãezinha… chorou amargamente… “... Depois resignou-se, olhou-me com ternura, um olhar intenso e disse-me: “Faça-se a vontade do Senhor”.

O Camarada Beja Santos resolve não narrar a sua participação na Guerra: Um semestre em Mafra e outro na Ilha de S. Miguel. Fez a Guerra. Dois anos depois voltei… Cedo tomei a decisão de guardar aquele tormento para mim. Quando cheguei da Guiné pensei: é um problema que tenho de resolver. Não resultou… Acresce a sua participação na defesa do consumidor. E o Camarada Mário merece este prémio, o resumo da sua história… A importância da mãezinha.

“Dois anos depois, voltei … “cedo, tomei a decisão de guardar aquele tormento para mim. A guerra levara-me amigos, o meu querido Carlos Sampaio morreu no norte de Moçambique no início de Fevereiro de 1970… (…). “…era a defesa do consumidor; acresce que, em 1978, aceitei o convite para colaborar regularmente com o Fernando Balsinha no telejornal e o João Soares Louro convidou-me a fazer programas televisivos, a partir do outono desse ano, fui afastado da televisão em 1981, e havia duas filhas pequenas para zelar e acarinhar. (…). Aquela África marcara-as indelevelmente. “O leitor que me desculpe, mas só a título excepcional vou até à guerra da Guiné, onde combati de 1968 a 1970, no Leste. A exuberância, então, era outra. Durante os primeiros dezasseis meses, de Agosto de 1968 a Novembro de 1969, comandei dois destacamentos no regulado do Cuor, no chamado sector de Bambadinca. Eu vivia a maior parte do tempo com sede em Missirá, aqui tinha as transmissões, os morteiros e as viaturas, aqui assentava a logística, incluindo a secretaria. Mal chegado, apercebi-me que era extremamente difícil ir conhecendo os soldados um-a-um, falavam regra geral crioulo, grande parte das palavras eram, então, ininteligíveis. (…). “…

No fim do jardim erguem-se azinhagas, casebres e algumas casas de veraneio. Manadas correm pelo Campo Grande fora, vão em direcção ao Mercado Geral de Gados. O Campo Grande está rodeado, do lado direito, de habitação muito antiga, começa-se pela vivenda da esquadra, na confluência com a Rua Aboim Ascensão, um das saídas do Bairro Social de Alvalade para o Campo Grande, segue-se uma enfiada de moradias, entra-se por degraus de pedra, assim se chega à Avenida da Igreja, do outro lado há uma correnteza de casas operárias, terão vivido aqui os trabalhadores e famílias da fábrica de têxteis, mais tarde quartel e hoje Universidade Lusófona, até à Igreja dos Reis Magos há construções com alguma solenidade, nos sobrados existem serviços de carvoaria, barbearia, consertos de bicicleta, coisas assim; temos a Igreja e chegamos à Avenida Alferes Malheiro, deambulamos raramente por aí, é enorme, não temos malta com quem jogar à bola, só mais tarde iremos jogar ao Pote d’Água. Desce-se o Campo Grande, há para ali uma casa apalaçada, com gradeamento, depois o Retiro do Quebra Bilhas, já ao tempo se diz tratar-se do último retiro de Lisboa, depois alguns prédios, por detrás expande-se um bairro da lata, a seguir ao quartel, que é daquele tempo, há o asilo D. Pedro V, hoje remodelado e com outros objectivos, a seguir o Museu Rafael Bordalo Pinheiro, mais alguma construção simplória e estamos no Campo Grande.

Do outro lado, há um palácio fechado, hoje o Museu da Cidade, seguem-se hortas até chegar a uma vivenda num descampado, é o edifício da Junta de Freguesia do Campo Grande, com mais hortas em frente mas também construções dentro de azinhagas, o lajedo de todas estas acessibilidades é em paralelepípedos, as linhas do elétrico estão também em paralelepípedos, há para ali umas fábricas, lembro-me que um ano, estávamos no Colégio Moderno, ouvimos a estridência das sirenes dos bombeiros, tinham ido apagar um fogo na fábrica Nally, tinham o creme Benamor que a Mãezinha partilhava com os cremes da Madame Campos; junto à linha do eléctrico há vivendas, umas com traça e conservação, outras com qualidade, as lojas são livrarias frequentadas pelos estudantes de Letras sinais de que se caminha para a derrocada. (…). “… Também a roupa é cara, viram-se os casacos, remenda-se, pesponta-se, andamos todos com cotoveleiras nas camisolas, levamos ao sapateiro o calçado para cardar, dura mais”. “Amolam-se tesouras, pode consertar-se um chapéu-de-chuva e um desses amola-tesouras até deita pingos de solda em fervedores e tachos. Há alguma venda ambulante, a leiteira vem a casa e é escusado voltar a referir os vendedores de fascículos e as suas intermináveis versões da freira do subterrâneo.

E assiste-se à alvorada da sociedade de consumo. Há um tanque em cimento na varanda anexa à cozinha. Ao princípio, faz-se a saponária, um trabalho muito ingrato no inverno. O pessoal feminino queixa-se das mãos ásperas. Depois surgiu a Lever Portuguesa, trouxe uns flocos para a roupa mais delicada, e depois de uma guerra entre o Tide e o Omo, este último triunfou, faz parte das minhas obrigações trazer um pacote de Omo quando vou à mercearia da Rua de Entrecampos. É verdade que o granel pontifica, os vendedores ambulantes vêm em triciclos, trazem frutas e legumes, as suas balanças rudimentares e regressamos com cartuchos a casa. Mas mesmo antes de chegarmos a 1960 o produto empacotado é indicativo que as indústrias alimentares ganharam peso: bolachas, açúcar, lacticínios; e depois os enlatados, até aí só conhecíamos praticamente as conservas de peixe. Alguém que tenha hoje 20 ou 30 anos não faz a menor ideia do que é o significado da limpeza doméstica naquele tempo: remover e pôr cera, usar enceradora ou dar brilho com panos, desliza-se com um pano em cada pé o tempo que for necessário para que aquele chão de madeira fique a brilhar; se está bom tempo, a roupa da cama fica a arejar à janela, sacodem-se as mantas, há mesmo espanadores para bater o colchão, ainda de barbas de milho, os de algodão virão mais tarde e é necessário virá-los de dois em dois dias para não dormirem num colchão com covas; é do senso comum que não há máquinas de lavar roupa nem louça, esta requer esfregão ou palha-de-aço, felizmente que em meados da década de 1950 começam também a surgir detergentes, bem-vindos, lavar a bateria de cozinha não tem graça nenhuma. E há as operações semanais de remoção de poeiras por cima dos móveis, a lavagem dos ladrilhos nas casas de banho e cozinha. São tempos da lixívia, da soda cáustica, da solarina, da terbentina, é a caça ao micróbio, aos maus cheiros, há que pôr os metais a brilhar, tirar nódoas, passa-se imenso a ferro, apanho a transição do ferro de crítica praticada com discrição, é certo, embora constasse que aquele ou aqueloutro vizinho pertenciam à PIDE ou à Legião. (…). “… João Crisóstomo proclamou: “Que ninguém tema a morte”. (…). “… ente, como se formou a geração que foi à guerra e daqui partiu para os anos de paz e os sonhos que teimamos em conservar. Ámen.

Assim termina Mário Beja Santos. A parte final. Vi livros terminarem com o Ámen.
A sua visão do Bairro de Alvalade. Anteriormente todo este espaço pertencia à Freguesia de Campo Grande.
Narrada muita história. A Guerra… Entra… Sai. A riqueza das palavras, o Amor pela “mãezinha”.
Faltou descrever a liberdade em que viviam os perus e galinhas no período do Natal, e Circos e a venda de pinheiros.
Faço a pergunta: – Quem orientou todo o trabalho no Jardim do Campo Grande, e o abatimento de árvores? E por que razão ficaram eucaliptos?
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Nota do editor

Poste anterior de 8 de Dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15460: Notas de leitura (784): “O Fedelho Exuberante”, por Mário Beja Santos, Âncora Editora, 2015 (1) (Mário Vitorino Gaspar)

Guiné 63/74 - P15462: Parabéns a você (997): Amaro Samúdio, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 3477 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15457: Parabéns a você (996): Jorge Teixeira (Portojo), ex-Fur Mil Art do Pel Canh S/R 2054 (Guiné, 1968/70)

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15461: (In)citações (81): Em dez anos, desde 2005, visitei os meus amigos guineenses cinco vezes... E estão-me sempre a perguntar "quando voltas"... Até 1990 não queria sequer ouvir falar da Guiné... Hoje sinto-me também um guineense (José Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos)


Foto nº 1 


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4

Foto nº 5


Foto  nº 6



Foto nº 7

Voltar à Guiné-Bissau, por terra, porque não ? A primeira vez foi em fins  de 2005, com o Xico Allen (e o António Canilo). Que aventura mais linda!... Em 2008, repeti!,,, Aqui ficam algumas imagens dessas viagens, do Porto a Bissau, atressando Espanha, Marrocos, Mauritânia, Senegal e Guiné-Bissau... Sem legendas, que uma imagem vale por mil palavras! (JT)


Fotos (e keggenda): © José Teixeira (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

1. Mensagem do José Teixeira,  um dos régulos da Tabanca de Matosinhos, ex-1.º Cabo Aux Enf,  CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70): 

Data: 2 de dezembro de 2015 às 17:23
Assunto: voltar à Guiné.

Voltar à Guiné e por terra, porque não? (*)

Regressei da Guiné em maio de 1970. Recordo-me vagamente que quando entrei no Niassa de má memória, me voltei para terra e disse para mim:
- Adeus, Guiné, até nunca mais.

De facto, até cerca de 1990.  nem queria ouvir falar da Guiné. Diz o meu filho que me apanhou várias vezes a chorar quando via filmes “tipo vietname”. Para eles,  parece que ia contando algumas histórias do que vivi na Guiné, mas francamente, não me lembro. Evitei contatos com camaradas e,  se alguma vez os encontrei, era proibido falar da guerra.

Depois,  a saudade começou a mexer comigo. Procurei formas de localizar os camaradas da Companhia e organizei o primeiro convívio, que se tem repetido todos os anos.

A partir de 2000 comecei a sonhar num regresso à Guiné, para matar saudades. Em fins de 2004 topei com o Xico Allen e toca a abalar, por terra. que aventura mais linda! [, foto nº 5; na foto nº 5, vê-se também o Camilo e o seu jipe]

Em 2008 repeti. Os amigos que tinha lá deixado aproximaram-se. Outras amizades foram nascendo e crescendo. A descoberta das realidades locais e a forma como era recebido criaram em mim raízes tão profundas que hoje me sinto um filho da Guiné, sem deixar de ser português. 

Em 10 anos, visitei os meus amigos guineenses cinco vezes. O diálogo via mail e facebook é permanente e a pergunta é sempre esta:
- Quando voltas?

Arranjei tios, primos, irmãos e sobrinhos, como fosse um natural da Guiné. Não me pedem nada, a não ser amizade.

Como um fotografia vale mais que mil palavras, junto algumas [, que irão ser publicadas em dois postes distintos] (**)

Zé Teixeira
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Guiné 63/74 - P15460: Notas de leitura (784): “O Fedelho Exuberante”, por Mário Beja Santos, Âncora Editora, 2015 (1) (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 27 de Novembro de 2015:

Caros Camaradas
Como fui ao Lançamento do Livro do Camarada Mário Beja Santos resolvi fazer um rascunho sobre o livro.
Não é uma crítica. Faço um passeio pelo livro. Zonas e casos que conheço, até por ter a minha mulher e filhos terem frequentado a Escola Primária, uma excelente Escola. Depois é o percurso pelo Campo Grande, muito embora o Camarada diga Alvalade – Campo Grande pertence agora à Freguesia de Alvalade.
Nota-se a afeição que o Camarada tem pelo “Bairro das Caixas”. E é este passeio que faço com o Camarada.
Obrigado Mário, tens um bom livro, muito embora seja suspeito por habitar e ter frequentado todo este percurso, e continuar a habitar.

Abraço
Mário


“O Fedelho Exuberante” – Mário Beja Santos -1

Mário Vitorino Gaspar

No dia 18 de Novembro de 2015 foi Lançado o livro do nosso Camarada Beja Santos no Museu da Farmácia. Depois se sermos homens e termos passado por todas, e muitas fases, voltamos a ser meninos, é como uma subida íngreme e uma queda. E a infância, que é o início, fica sempre gravada na memória.

Com Beja Santos, ele voltou e nós voltámos a ser meninos. E as recordações da juventude ficam mais presentes que as recentes. Ao ler este livro – e afastei-me da leitura já há muitos anos, só poesia leio – mas este livro que deve ter sido para o Camarada uma ida ao Parque Infantil do Campo Pequeno – chamou-me a atenção após verificar anos, locais e coisas mais que tive a oportunidade de conhecer. Após a passagem por territórios do seu nascimento “olhando em todas as direcções, com uma vontade imensa de andar à procura de indícios de poeira que se tenha acumulado no pós-guerra”. E escreve a determinado momento a passagem por locais que uns recordam, e outros não sabem. Os cinemas Rex; Promotora; Lys; Pathé; Salão Lisboa; Ideal; Max e Cine Oriente. Recorda aquela zona histórica, e via entrarem na Avenida Almirante Reis Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e Amílcar Cabral – a Casa dos Estudantes do Império. Fala de Alvalade e da sua ida para ao Bairro Social de Alvalade, em Março de 1952. E descreve com minúcia, inclusive a renda a pagar, 620$00. É uma quantia elevada. Na Rua Alberto de Oliveira uma casa Tipo 3 pagava 360$00. E é chegado o momento de chegar a zonas e datas que não confundo. Aqui volto a reencontrar esta Escola Primária N.º 151, onde estudaram a minha mulher e os meus dois filhos. E como o Mário Beja Santos descreve Alvalade: – “ Era um espaço rural, havia pastores, carros de bois, passarinhos… (…) “… Vivemos na Rua António Patrício… (…)… “visitas à Avenida da Igreja para ver passar jogadores de futebol gloriosos que vivem no bairro ou redondezas, como o Travassos ou o Vasques”.

Também lá vivia o Canário jogador do Sporting e autor de letras de fados, que bem conheci – para além de Travassos e Vasques, estabelecidos na então freguesia de São João de Brito. O autor entra no pormenor: – “ A leiteira passava de manhã cedo, fervia-se o leite e eu bebia-o com um aromatizante...”. Fala naquilo que a memória falha do Milo”… “Assim se construiu uma linha protectora deste lado do Bairro Social de Alvalade, ele está incólume, resiste ao tempo, os condóminos fazem obras, o Palácio dos Coruchéus, na Rua Alberto de Oliveira, que conheci ao abandono e armazém dos equipamentos dos varredores desta área da cidade…”.

E recorda: – “. “Quando cheguei ao Bairro Social de Alvalade, junto da Lisboa das Avenidas Novas, em 1952, era fácil ver as marcas do passado, olhar o consumo no presente, perceber que havia uma nova civilização a irromper. O bairro estava cercado de quintas, tinha olival, a dois passos estava o formoso e cuidado jardim do Campo Grande, descendo um enorme estradão, onde então se construía a Avenida dos Estados Unidos da América, havia a Rua de Entrecampos, com as suas cocheiras, moradias, umas modestas, outras graciosas e mais outras espampanantes, havia uma mercearia onde se podia comprar azeite a granel, uma quarta de banha, torresmos, grão e feijão metidos num cartuxo e pesados em medidas de madeira com a rasoira. Vi nascer a Avenida dos Estados Unidos da América com arquitectura aparatosa para a época, depois surgiram as sopas e os caldos Knorr, a seguir os detergentes, os produtos empacotados foram ganhando uma progressiva importância. Naquele tempo, havia poucos carros, Telheiras era feita de azinhagas, uma verdadeira área rural e de ócio, criavam-se coelhos e galinhas nos quintais, Lisboa estava cheia de figueiras e nespereiras, as varinas apregoavam o peixe, o amola-tesouras era um indicativo, omnipresente e claro de que naquele mundo os objectos eram reparáveis. Porque só há banalização do efémero no consumismo. Nos anos de 1960, a realidade mudou. As classes médias urbanas transfiguraram as necessidades deste país que vivia com hábitos regrados e brandos costumes”. E o Camarada Mário Beja Santos aviva a nossa memória: – “… Comecei a dar vazão às consultas no dicionário do Torrinha, era o que eu tinha à mão…”.“... A mãe diz: – “Mário habitua-te a distinguir a verdade da mentira, a pensar com a tua cabeça, há casos em que as verdades de hoje são as mentiras de amanhã. Vais crescer e ter a tua opinião sobre o que vês, o teu pensamento tem que ser livre, não te deixes escravizar pela propaganda política. Há o verso e o reverso, nunca te esqueças”.

Mais recordações, incluindo a Livraria Barata (a antiga), onde comprei alguns livros proibidos, por baixo do balcão: – “Todas as casas eram propriedade de Caixas de Providência, a nossa pertencia à Caixa de Providência dos Empregados da Assistência, os prédios ao lado pertenciam à Caixa de Providência dos Médicos e à Caixa dos Empregados da CUF. Na década de 1960, a prosperidade fez-se sentir de muitas maneiras. (…). “… As minhas recordações encaminham-se para outra direcção, os quintais. Todos os prédios têm quintais, nuns pequenas hortas vão satisfazendo os locatários nostálgicos que aprenderam a amanhar a terra, antes de chegar à cidade; noutros aparecem barracões, pombais, havia gente que carpinteirava ou usava o seu espaço de quintal para depósito. O que interessa é que a petizada se deslocava à vontade por esses terrenos baldios, ali se jogava às escondidas, se encontrava terreno para o jogo do berlinde e para dar uns chutos na bola. Usei muitas vezes a placa por cima do túnel que levava ao quintal, saltava da varanda da cozinha e fazia os meus espectáculos para na vizinhança e para a malta que convidava”. E… Ainda não tinham chegado as novelas à rádio”; “Recordo que aí por 1962 entrei na Livraria Barata, então com as suas portadas de modesta loja de bairro, como se fosse uma papelaria ou um cabeleireiro. Havia estantes pejadas de livros encostadas às paredes e um espaço central que estabelecia um diálogo perfeito com quem quisesse andar ali a catar as novidades. (…)

Surgem as radionovelas, e o Tide, o Omo, o Rex, Lys, Pathé, Imperial e o Império, muitos filmes estreados e logo retirados pela PIDE. E os pseudos, ditos intelectuais? – “…A primeira rádio novela era conhecida pelo “teatro Tide”, nome da marca de um detergente em pó que viria a ser destronado pelo Omo. Era um dramalhão de todo o tamanho, emitido depois de almoço”… “Teatro Laura Alves e é hoje loja de roupa), o Pathé, depois chamado Imperial, e mais tarde discoteca… “… a rua dos Condes, onde havia o Olympia e mais adiante o Coliseu; “sessões de verão do Capitólio e do Chiado Terrasse, em plena adolescência”. “…Cinema Estúdio, criado dentro do Cinema Império, e passámos a frequentar os cineclubes que se espalhavam pelo Jardim Cinema, Ávila, Roma, e outros espaços”. “Aparece um festival no Cinema Alvalade, uma sala deslumbrante, é um cinema moderno como o Império, mais pequeno mas muito acolhedor... e me habituo a ler jornais. O Século e o Diário de Notícias, interessam-me os seus suplementos culturais.

Surge a guerra. Diz a mãezinha: – “Tenho dúvidas que tudo isto se vá resolver depressa. Vê se estudas, vê se te aplicas, vê se preparas o teu futuro e tens a profissão que desejas. Nem quero pensar que um dia terás que fazer uma guerra. Nem quero pensar, já tive a minha dose de desgostos e sobressaltos. Os teus irmãos há muito que partiram, estou a envelhecer cheia de doenças, evita-me mais sofrimentos, estuda muito. Não pensemos mais nesta guerra. Oxalá tudo se resolva depressa, e tu fiques a bom recato”. (…).” E pela primeira vez oiço falar de episódios sobre fugas a salto. Os portugueses aventuram-se e passam fronteiras, é a fuga à guerra. O Camarada foca um período com história, repleto de acontecimentos. E é a libertação dos presos políticos em vários locais, neste caso Peniche. Em Janeiro de 1960, com o apoio de um Guarda Republicana fogem Álvaro Cunhal. Francisco Miguel, Jaime Serra, Carlos Costa. E fala de Fátima e ouviu: – “… o pai do Eduardo parecia espumar de raiva: “Ó rapaz, aquilo é um negócio monstruoso. Há um livro do Tomás da Fonseca que desmascara a burla do princípio ao fim. As crianças analfabetas foram induzidas a acreditar que tinham visto uma senhora que se passeava de branco e que era a mãe de Deus. (…).

A velha Livraria Barata, e é apaixonante o que descreve o Mário após ter sido apresentado a Senhor Barata: –“Ainda hoje estou para saber porquê, pedi ao senhor Barata para me vender um livro de Karl Marx, pedi num sussurro, não queria que ninguém mais ouvisse, sei lá se por timidez se por vergonha”.(…). “… E a Índia, o motim em Beja, o Paquete Santa Maria assaltado. Continua, sem esquecer o que afirmou Francisco Canto e Castro: – “… Ah, qualquer dia este regime sinistro vai abaixo, mesmo com a mordaça da imprensa, as pessoas já não escondem o descontentamento! Ah, vem aí a revolução!”. Descubro as reuniões dos católicos progressistas, guardo recato de que assisto a estas reuniões. Numa delas fiquei estupefacto, alguém, em tom compungido, disse que era preciso que os cristãos se manifestassem contra a guerra colonial, Angola não era nossa, era um território de exploração, os naturais tinham direito à autodeterminação.

Os Anos de 61/62 e 63 – Importantes e com história. Mário Beja Santos conseguiu um emprego, mas não esquece a malfadada guerra: “e em 1961, houve quem pensasse que a rebelião em Angola fosse flagelo de pouca dura, em 1962 havia já necessidade de mais efectivos, a guerrilha dispersava, depois, ao nível do topo político, sabia-se que a guerrilha iria explodir na Guiné, cada vez mais unidades militares chegavam a Bissau, a guerrilha eclodiu em Janeiro de 1963…

No Bairro de Alvalade, quando a malta se encontra a primeira notícia que se dá é de que o Zé Manel, o Chico, o Demétrio já embarcaram, ofereceram-se para os fuzileiros. (…). “A febre de cinema e inscrevo-me no ABC Cineclube, no Cineclube Católico, no Universitário, no Imagem, arrasto-me do ciclo Hitchcock para o ciclo Erich von Stroheim e daqui para o ciclo René Clair, é uma euforia contínua. (…).

O encontro de Mário Beja Santos, com o Nelo que narra a realidade daquela guerra. É nisto que num fim de tarde, no verão de 1966, caminhava para casa quando dei de frente com o Nelo”. Foi para os fuzileiros… ”e estava na Guiné, disse-me que tivera 35 dias de férias na metrópole. Fiquei impressionado com o desgaste, o rosto dessorado, a gesticulação nervosa, a fala precipitada, parecia-me ter envelhecido. E convidou-me: “Ainda bem que nos encontrámos, és a pessoa ideal para me ouvir. Preciso de desabafar, vem beber comigo qualquer coisa ali à Nova Iorque, tens de ter paciência e escutar-me”. Não pude recusar, o Nelo era um excelente rapaz, tínhamos um passado comum de brincadeiras de índios e cowboys, pontapés na bola, idas ao cinema naquelas inesquecíveis tardes de domingo, senti que o Nelo tinha coisas para dizer, estava mortinho por desembuchar. E fui, brindámos com uísque o reencontro (“Eh pá, a malta lá na guerra ou bebe cervejola ou um uísque!”), torneei o que me tinha a dizer contando-lhe como levava uma vida sonhadora, na estúrdia de espectáculos sem fim, que entrara num curso universitário mas estava sem pressa. E pela primeira vez vi acender-se o sinal de perigo, o Nelo não teve para mais contemplações, esporeou-me e depois gritou o seu sofrimento: “Olha, antes falar de mim, quero dizer-te que tens que te pôr a pau, ou estudas ou em breve vais malhar com os ossos na guerra. Toma conta do que te estou a dizer, é conselho de amigo. Serás oficial miliciano, mas não penses que é muito diferente da vida de soldado. Provavelmente cabe-te a tropa macaca, ficas metido num quartel lá no mato, talvez com pretos e famílias à mistura, a apanhar uns fogachos e de vez em quando vais fazer umas operações, arriscando minas e emboscadas. Bem podias estudar, fazer o teu curso direitinho, sempre eram mais uns anos de adiamento, talvez esta merda da guerra conheça outra solução. Não sabes o que estou a viver, ser fuzileiro é uma forma de tropa especial, um barco larga-nos de madrugada junto de um arrozal, às vezes enganam-se nas marés, andamos a patinhar na lama até às partes, há gajos que chegam a perder as armas no meio daquele lodo todo, depois avançamos para uma vegetação onde rasgamos a roupa e nos ferimos, e a seguir, se não levamos com uma emboscada nos cornos logo à chegada vamos à procura dos turras, somos capazes de encontrar velhos, mulheres e crianças numas barracas, disparamos rajadas, é um inferno. Levo dez meses nestas operações, aquilo está cada vez pior, os gajos vivem dentro de florestas densas, têm bom armamento e lá têm as suas razões para acreditar naquela guerra. Quando me ofereci como voluntário era só para despachar, até pensei que se ficasse na Marinha teria uma boa profissão. Estou numa grande angústia, pá. Vou voltar e todas aquelas cenas vão repetir-se, desembarques, tiros, morteiradas, bazucadas. E há os nossos mortos e os nossos feridos, não te passa pela ideia o que é trazermos às costas um gajo todo rasgado, tivemos um caso em que um camarada meu só pedia que o matássemos, não queria voltar para a mulher naquele estado. E estou confuso, pá. Aqui ninguém percebe o que andamos a fazer, o que ali penamos, parece que aquelas guerras não existem, cada vez que eu falo na minha vida sinto que as pessoas ficam mal dispostas, parece que eu estou a desencaminhá-las, que aquilo tudo é uma desconversa. Não sabes como é que eu me sinto, faltam-me palavras. Já chega de falar de mim. Cuida de ti, e já agora ficas com o meu SPM, de vês em quando escreve-me, preciso de falar com pessoas a quem eu posso contar o que me vai na alma, dás-me essa ajudinha, prometes?”. Claro que prometi, e até cumpri, dei-lhe um grande abraço, despedi-me do Nelo que seguiu cabisbaixo para casa. Não retive o sinal de perigo que o Nelo me transmitira. Leviano, a saborear as delícias do cosmopolitismo, arredei o espectro da guerra para trás das costas, tudo teria o seu tempo. Acontece que já tinha ido à inspecção militar, ficara apurado para todo o serviço.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de Guiné 63/74 - P15455: Notas de leitura (783): “Sem Papas na Língua”, Joaquim Letria em conversa com Dora Santos Rosa, Âncora Editora, 2014 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15459: O Relógio de Ponto e as Rondas nocturnas (António Tavares, ex-Fur Mil do BCAÇ 2912)

1. Mensagem do nosso camarada António Tavares (ex-Fur Mil da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72), datada de 23 de Novembro de 2015 lembrando o famoso relógio de ponto que controlou a vida a tanta gente:


Relógio de Ponto

Camarigos,
 "Em 20 de Novembro de 1888 William Bundy, joalheiro nova-iorquino, inventa o 1.º Relógio de ponto”, quando li esta efeméride recordei o relógio de ponto que conheci quer na tropa quer na vida civil.

Numa Unidade Militar do Norte, onde estive, cada ronda ao quartel demorava uma hora certa. Os Cabos Milicianos faziam a ronda com um relógio de ponto parecido com o da imagem.
A chuva, o frio e o nevoeiro eram o nosso inimigo nas noites de um impiedoso Inverno de 1969. O ano de um terramoto em Portugal Continental.
Certa noite encontrei uma sentinela a dormir dentro de uma guarita. Tirei-lhe a G3 e passados uns momentos acordei-o. Atrapalhado pela falta da arma esqueceu-se da contra senha.
Naquele tempo a senha e a contra senha eram importantes mas a falta da arma é que era o problema. Depois de verificar que o Homem estava bem acordado disse-lhe onde estava a arma.

Também encontrei um soldado com uma “menina” no local de vigilância à sua responsabilidade. Naquela noite a “menina” dormiu sob um tecto. Havia tantas “meninas” à volta do quartel para ganhar uns Escudos.

Nunca participei qualquer ocorrência. Qualquer delas era grave especialmente num quartel onde tinham furtado uma pistola. Em Agosto de 1971 encontrei um Alferes Miliciano, num voo da TAP, Bissau – Lisboa, e o caso da arma de imediato foi conversa.

Na manhã seguinte o Oficial de Dia verificava o registo do relógio e caso houvesse anomalias de imediato havia inquéritos oficiais. Geralmente eram ultrapassados pelas artimanhas aprendidas pelos utilizadores do relógio.

 Foto: domínio público a circular na NET

Quando o relógio de ponto avariava era “noite santa” no quartel. Eu não saía do quarto.

Nas matas do leste do CTIGuiné as rondas, dentro do quartel de Galomaro, sem relógio de ponto, por vezes, tinham por companheira uma lanterna nas noites escuras como breu. Um dos inimigos especialmente para os militares continentais.

Uma História e não Estória que um relógio, utilizado, num quartel, recorda.

Na vida civil o relógio de ponto era um dos nossos pensamentos durante a vida activa de trabalho.

Abraço
António Tavares
Foz do Douro, Domingo 22 de Novembro de 2015
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Guiné 63/74 - P15458: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (32): De 25 de Abril a 5 de Maio de 1974

1. Em mensagem do dia 6 de Dezembro de 2015,  o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a sua 32.ª Memória, coincidente com o dia que ia ditar o fim da Guerra do Ultramar, 25 de Abril de 1974.

CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

32 - De 25 de Abril a 5 de Maio de 1974

25 de Abril de 1974 – (quinta-feira): A Revolução de Abril

A Revolução de 25 de Abril de 1974 que calha agora referir, bem como as circunstâncias em que me surpreendeu nos matos da Guiné, vem no seguimento cronológico das narrativas que venho escrevendo no nosso Blogue e apenas por isso o faço. Pelo seu simbolismo e como marco histórico dos mais importantes do século XX para todos os portugueses e, ainda, por ser um tema que me é caro, nunca o trataria com duas penadas de pendor memorial. Nem este é o espaço e nem este é o tempo para o fazer. O que se segue é, por isso, apenas narração com base em pequenas notas ou cartas da época.

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A notícia da acção do Movimento das Forças Armadas que derrubou o governo em Lisboa, foi-me dada em pleno mato onde me encontrava emboscado ao longo da estrada, algures entre Nhala e Buba. Eram três ou quatro horas da tarde quando apareceu uma Berliet com uma escolta e um furriel “periquito” dos grupos que reforçavam a Companhia de Nhala, aos berros, muito eufórico, para que regressássemos porque a guerra ia acabar. Na Metrópole tinha havido uma revolução! Cheguei-me à estrada, ainda atónito, e disse-lhe para repetir, pois a brusca sacudidela nos meus neurónios roubara-me o entendimento. Era como se ele dissesse que a terra começara a girar ao contrário e estivéssemos de novo na alvorada. Mas ele insistiu e disse que prenderam os pides. “Prenderam os pides!”. Não havia dúvidas, houvera uma revolução e dera-se no sentido certo, porque há muito que eu admitia, com os meus botões, que houvesse uma revolução para depor Marcelo Caetano, mas de sentido contrário, desencadeada pelos seus detractores da extrema-direita. Fiquei apopléctico, o coração desordenado, a comoção a perturbar-me.

O pessoal subiu alegre para as viaturas, mas algo contidos, sem terem percebido o alcance do que acontecera. Eu e o furriel, pelo contrário, sentámo-nos no capô da Berliet e fizemos grande parte do trajecto a agitar as armas e a berrar para o ar. Os soldados riam-se com estes excessos e com a perplexidade de uma faceta que me desconheciam: eu também era maluco... Se acaso houvesse um grupo de guerrilheiros a observar-nos a passagem, em tal propósito, por certo ficariam bloqueados de acção e compreensão. Talvez até fugissem para a fronteira...

Chegámos ao aquartelamento e estava tudo em grande confusão, agarrados aos rádios, muitos a alvitrar mas, de concreto, pouco mais se adiantava ao que já sabíamos da lacónica mensagem enviada à Unidade: “Agências noticiosas informam Governo Professor MARCELO CAETANO derrubado por movimento forças armadas”. (Teor revelado recentemente pelo meu amigo e camarada, 1.º Cabo Cripto da minha Unidade, José Carlos Gabriel). No geral, todos se mostravam radiantes, porque a expectativa, fosse lá o que fosse o golpe dos militares, era que acabasse a guerra e pudessem regressar a casa. Com a falta de informação e a noção do que aconteceria a seguir, também não era possível fazer juízos e ter outras reacções. Retirar interpretações políticas dos acontecimentos, muito menos, tal era o grau de despolitização geral.

****** 

Entramos no mês de Maio sem que se saiba muito mais do que se passa em Lisboa. A nossa actividade operacional, para já, mantém-se com toda a normalidade, entre patrulhamentos e contra penetrações mas sem sinais da guerrilha. A História da Unidade refere na “situação geral” relativa ao mês de Maio: “A actividade violenta IN foi nula em todo o Sector, não tendo mesmo sido assinaladas quaisquer colunas entre o UNAL e INJASSANE”. De facto, cumpríamos as missões como antes mas, essa acção nula do inimigo e uma certa esperança no futuro, fazia-se notar já num certo desplante, (ver foto 1), ainda que sempre na defensiva. As obras da estrada prosseguiam também normalmente, com a diferença de que o Destacamento de Engenharia N.º 1 deixou os trabalhos da frente de A. Formosa, (excepto alcatroamento), passando a abrir a estrada A. FORMOSA/PATE EMBALO/RIO CORUBAL e a fazer a reparação e alcatroamento da pista de A. Formosa, logo interrompidos no dia 4 por falta de alcatrão.

Foto 1: Maio de 1974 - Grupo de graduados escoltando uma carroça de arroz a caminho de Nhala. Eu venho armado com minha poderosa pressão-de-ar de calibre 5,5mm com mira telescópica.


5 de Maio de 1974 – (domingo): notícias de Bissau

As notícias da Metrópole escasseiam. Ao contrário, as notícias de Bissau correm céleres dando conta de situações de alguma gravidade. Os nativos da cidade estão agressivos para com os brancos em geral e para com os pides em particular. Tem havido problemas todos os dias e os rebentamentos nas ruas sucedem-se. Um grupo de negros enfurecidos apanhou na rua junto ao mercado de Bissau a mulher de um pide e despiu-na completamente. A tropa interveio e impediu acções certamente mais graves. Aparentemente a guerra arrefeceu depois do dia 25 passado, mas receia-se que, a demorarem as resoluções sobre o ultramar, as coisas se compliquem ainda mais.


Histórias marginais (6): Uma luzinha perturbadora

Estava uma noite tranquila e fresca, depois de uma tarde chuvosa. Ainda era cedo e eu estava sentado à cabeceira da cama a ler o Erico Veríssimo, da mini biblioteca que tinha dele.

Ouço uma rajada de G-3 a partir do posto de sentinela ali próximo da messe, o posto mais alto do aquartelamento. C’os diabos!... Tinha o grupo de serviço. Pus os pés de fora da cama e fiquei um bocado a aguardar. Dois toques na porta e aparece o furriel a dizer:
- Desculpa lá, mas tenho que te dizer que a sentinela aqui deste posto viu uma luz na mata e fez fogo. Já estive lá em cima com ele no posto e, o que é estranho, é que a luz voltou a aparecer. Disse-lhe para não fazer mais disparos e que te vinha chamar.
- Mas não estás a pensar que está lá alguém no mato com uma lanterna e que se deixa ficar mesmo depois de levar com uma rajada, ou estás?! - Perguntei, enquanto me calçava.
- Não sei, mas é um bocado esquisito.
- Ainda mais essa!... - Disse eu já a ficar irritado.

Subimos ao posto e vi o soldado com os olhos focados na mata do lado da caserna do 2.º grupo. Apontou e disse: - É ali. - Mas “ali” era escuro como o breu e só se enxergavam as árvores da orla, apesar do potente projector de halogénio que, do arame farpado, apontava naquela direcção. Olhei um bocado e, realmente, vi uma luz pequena mas com uma refulgência intensa, mas que logo se apagou, reaparecendo para de novo se apagar. Por vezes mantinha-se algum tempo acesa. Na minha cabeça foi surgindo uma hipótese simples que poderia explicar aquilo. E, nos instantes em que ali estive, não vi mais hipótese nenhuma. Disse ao soldado para avisar os postos próximos de que, eu e o furriel iríamos sair do arame farpado naquela direcção, e ficámos até ao regresso do soldado a apreciar aquela estranheza. Não me abri, denunciando o que era apenas uma suspeita.

Caminhámos atentos, de G-3 apontadas, pela zona descapinada em direcção à mata, parando sempre que a luz se apagava e avançando quando se acendia, de modo a não perder o sítio do foco. Já próximos da orla da mata, compreendi que a luz não provinha do chão, descartando desde logo a hipótese que mentalmente admitira, mas sim de uma altura aproximada de um metro e meio. Ao entrar na mata, sempre com a atenção concentrada no ponto luminoso intermitente, avancei mais rápido e... Fiquei apenas com um ramo de folhagem frente à cara.

Esbocei um sorriso ao perceber a origem do fenómeno, mas confesso que fiquei um pouco perplexo: na concha de uma pequena folha, que oscilava com a aragem, estava uma gotinha de água. Apenas. Dela refulgiam reflexos a devolver a intensa luz do projector. Muitas outras folhas, porventura, teriam a sua gotinha da chuva da tarde, mas apenas aquela apanhava no ângulo certo a luz do projector, de modo a estragar-nos parte da noite. Fomos explicar isso mesmo ao soldado. Afinal não eram reflexos de vidros espalhados pelo chão, como admitira.

Foto 2: Uma luzinha perturbadora.
Texto e fotos: © António Murta

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15435: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (31) (2): Dia 24 de Abril de 1974, corte da estrada Nhala-Buba

Guiné 63/74 - P15457: Parabéns a você (996): Jorge Teixeira (Portojo), ex-Fur Mil Art do Pel Canh S/R 2054 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 5 de Dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15446: Parabéns a você (995): José Pereira, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 5 (Guiné, 1966/68) e Manuel Carvalho, ex-Fur Mil AP Inf da CCAÇ 2366 (Guiné, 1968/70)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15456: (In)citações (80): Quem se lembra deste fado, cantado pelos páras do BCP 12, em Cacine, em junho de 1973, na altura da batalha de Gadamael, com música dos "Amores de Estudante" ?... "Quero, quero ir para Lisboa, / Ai, ai, eu quero, / Nem que seja de canoa, /Eu quero ir / P'ra terra santa querida, / Dizer adeus a esta merda / P'ro resto da minha vida." (recolha de Abílio Magro)

1. Escreveu há tempos o Abílio Magro (ex-fur mil amanuense (CSJD/QG/CTIG, 1973/74), na sua série  "Um Amanuense em Terras de Kako Baldé" (*):


(,,,) Decorria o mês de junho de 1973. Eu ainda era muito "pira", não tinha completado ainda 3 meses de Guiné. Vinha do "ar condicionado" e encontrava-me em Cacine, no meio de grande confusão, tropas pára-quedistas, fuzileiros, Marcelino da Mata, etc.

Felizmente em Cacine não faltava nada. Não faltava cerveja morna, não faltava uma pedra de gelo, por cabeça, às refeições, não faltava o arroz de "rolhas" (arroz com muito colorau e meia dúzia de rodelas de salsicha), etc., eyc..

A CCAÇ 3520 era um companhia farta. Farta de ali estar, farta de comer arroz de "rolhas", farta de esperar pela rendição. Julgo que não cheguei a completar 4 semanas de "férias" naquela "estância balnear", mas foi o suficiente para imaginar uma estadia de 23 meses!

Tenho ideia de só ter comido arroz de "rolhas" durante aquele período. Posso estar enganado.
Comecei a dar mais valor ao "pessoal do mato". Antes 527 serviços de Sargento da Guarda!

O major Leal de Almeida lá continuava a fazer incursões por Gadamael e levava habitualmente consigo o outro Furriel. O major, além de me ter pedido, no início, para lhe dar um jeito no "estaminé", pouco mais me pediu para fazer. Apenas um ou outro "mail" para Bissau.

E eu..., andava por ali a ver as "bajudas"!... (...) Entretanto, eu ia jogando a "lerpa", bebendo umas "bejecas" mornas e convivendo com os sargentos paraquedistas (ah gente do "catano"!).

Recordo-me bem de um convívio noturno na "messe" de sargentos. Houve de tudo! Aguardente, fados, poesia, etc., tudo a roçar o "hard-core", claro! Gente espetacular, camaradagem excelente e com uma disciplina extraordinária, nomeadamente com o armamento.

Guardei na memória alguns versos de um fado cantado pelos "páras" com música do hino académico "Amores de Estudante" e que, salvo erro, rezavam assim:

Quero, quero ir para Lisboa,
Ai, ai, eu quero,
Nem que seja de canoa,
Eu quero ir
P'ra terra santa querida,
Dizer adeus a esta merda
P'ro resto da minha vida.

Pára-quedistas, homens nobres,

Tanto ricos como pobres,
Avançando pela mata (...)

(e de mais não me recordo)

  

[Guiné, algures, s/d.,foto do nosso  camarada Manuel Peredoex-fur  mil paraquedista, que é o primeiro do lado direito, armado de RPG-2, seguido do sagento Carmo Vicente e do Fernandes, caboverdiano, fur mil, todos do 4º Gr Comb da CCP 122 / BCP 12, Brá, Bissalanca, 1972/74; do Carmo Vicente, hoje srgt mor paraquedista ref , DFA, escritor, ler e ouvir aqui o seu testemunho, na primeira pessoa, à RTP1, eobre a sua participação no 25 de novembro de 1975, ]


Ficou-me também na retina a imagem do 1º Sargento pára-quedista [António Carmo] Vicente, evacuado para Cacine, vindo de Gadamael, com um tiro numa perna, a aguardar evacuação para Bissau e com quem tinha convivido alegremente naquela noite.

A minha "guerra" lá foi continuando com a "lerpa", "as bejecas" mornas, o convívio com os "páras" e a excelente qualidade das instalações, nomeadamente o "balneário" de arrojado design e equipamento de conceituadas marcas. (...)


2. Comentário do editor (**):

Alguém se lembra de ter ouvido (ou de ter lido) a letra (e a música) deste fado (parodiado), ao que parece criação de alguém do BCP 12, e mais provavelmente da CCP 122 que estava em Cacine, na altura em que o furriel amanuense Abílio Magro também lá esteve, em junho de 1967, apoiando o major Leal de Almeida,em plena guerra de Gadamael ?

Talvez o Manuel Peredo (que vive em França e é nosso grã-tabanqueiro) se lembre do resto da letra...  Ou o próprio Carmo Vicente ou o Delgadinho Rodrigues (hoje capitão pára reformado  e furriel em junho de 73). Ou outros camaradas paraquedistas do BCP 12 que honram, com a sua presença,  a nossa Tabanca Grande, depois de terem honrado a pátria, enquanto bravos combatentes, como é o caso o  Vitor Tavares (CCP 121),  o Manuel Rebocho (CCP 123) ou o António Dâmaso (CCP 122 e 123).

E outros há que, não sendo formalmente (ainda) nossos grã-tabanqueiros são por nós referidos e acarinhados: por exemplo, o Manuel Carneiro, da Tabanca de Candoz, e que pertenceu à CCP 121 (1972/74), ou o Avelar de Sousa (que foi cmdt da CCP 123, em 1970/71, não sendo portanto contemporâneo dos camaradas acima referidos, e que é hoje maj gen pára ref, frequentador da Tabanca da Linha).

Recorde-se aqui a letra e a múscia da canção coimbrã "Amores de Estudante", cujo refrão diz o seguinte:

(...) Quero, ficar sempre estudante,
P'ra eternizar
A ilusão de um instante.
E sendo assim,
O meu sonho de Amor
Será sempre rezado,
Baixinho dentro de mim. (...) 


A letra parodiada pelos páras faz parte integrante do nosso Cancioneiro, o Cancioneiro da Guiné, dizendo muito sobre o "estado de espírito" e o "moral" das NT no terrível período dos três G (Guileje, Gadamael, Guidaje), em maio/junho de 1973. Todos estavam fartos daquela  "merda" (sic), não se vendo qualquer luzinha no fim do túnel... O poder político, na altura,   usou e abusou da extraordinária capacidade de sofrimento, abnegação, coragem e patriotismo do soldado português. E não  esteve decididamente à altura da história!...
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Notas do editor:

(*) Vd poste de 20 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11125: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (5): Curtas férias em Cacine, CCAÇ 3520 (2)

(**) Último poste da série > 30 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15424: (In)citações (79): Comer crocodilo que comeu homem, é canibalismo? Felupes de São Domingos dizem que 'crocobife' é bom... (Patrício Ribeiro, Bissau)

Guiné 63/74 - P15455: Notas de leitura (783): “Sem Papas na Língua”, Joaquim Letria em conversa com Dora Santos Rosa, Âncora Editora, 2014 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Fevereiro de 2015:

Queridos amigos,
Trata-se de uma entrevista soberba, Joaquim Letria tem uma memória poderosa, desfia com grande vivacidade o mundo das notícias e da política durante meio século, ilumina a comunicação social e deixa bem claro que é, ainda hoje, uma figura incontornável da criatividade jornalística.
É no confronto entre a figura do político fascista e os galeirões que se projetam no mundo mediático de hoje que ele conta uma história passada na Guiné, com César Moreira Baptista.
Acho que vale a pena ler... e meditar.

Um abraço do
Mário


Joaquim Letria, César Moreira Baptista e a Guiné: estamos em guerra

Beja Santos

“Sem papas na língua”, é uma memorável lição de jornalismo de Joaquim Letria em conversa com Dora Santos Rosa, Âncora Editora, 2014. Letria é um nome obrigatoriamente associado à inovação em jornalismo, tanto na vertente de reportagem, como na criação de suplementos, jornais e revistas. Esta entrevista é uma longa viagem, com ponto de partida no diário de Lisboa, na Associated Press, no Rádio Clube Português, na BBC, na RTP, em O Jornal, de novo na RTP, na revista Sábado, colunista, no polémico programa “Cobras e lagartos na RTP”, como assessor de Ramalho Eanes…

Trata-se de um olhar penetrante, lúcido, esclarecido de um mestre do jornalismo que recupera a vida nas redações nos anos de 1960 e que comenta o espetáculo mediático do nosso tempo, não sem alguma amargura. Falando das suas relações com o poder ao tempo de Marcelo Caetano, recorda uma saborosa história que ele viveu durante a viagem que Américo Thomaz fez à Guiné. Vale a pena reproduzi-la na íntegra. Pergunta-lhe a jornalista:
“Teve mais alguma chamada de atenção por parte do poder?”, Letria responde: “Já que falámos em César Moreira Baptista, conto-lhe um outro episódio. Começou com uma viagem ótima, no paquete Funchal, a acompanhar uma visita a África do Almirante Américo Thomaz. No apogeu da guerra colonial fomos à Guiné e a todas as ilhas de Cabo Verde. Eu tinha ido com instruções expressas para não escrever uma linha: o Diário de Lisboa era contra a guerra e portanto não ia fazer notícia. Só ia para o caso de acontecer alguma coisa: de matarem o Américo Thomaz ou de haver um atentado. Mas no Mindelo recebi um telegrama e fiquei sem perceber o que se passava”. A entrevistadora questiona-o sobre a natureza do programa: “Vinha assinado pelo diretor geral e dizia: ‘Não compreendemos seu silêncio. Favor enviar serviço imediatamente’. Isto ao fim de 15 dias. Não percebi nada, pois era o contrário do que estava combinado. Mas pus-me a escrever que nem um doidinho e lá mandei o primeiro serviço. E a partir daí comecei a mandar sempre, convencido que estavam a publicar. Entretanto, no desembarque do presidente da República na Guiné, há um ataque e morrem 11 soldados portugueses1. Isto acontece muito perto do sítio onde estávamos, a uns 9 ou 10 quilómetros. Consegui ter toda a informação através de um médico militar: disse-me quantas eram as baixas, onde tinha sido o ataque, tudo. Aquilo, claro, era notícia: presidente da República desembarca e a 9 quilómetros um ataque mata 11 soldados. Mandei a matéria para a redação do Diário de Lisboa. Ou melhor: julguei que tinha mandado…”. A entrevistadora quer saber mais, e ele esclarece: “Tinha escrito a história em terra, em Bissau, e ido aos correios, às oito da noite, para a mandar por telégrafo. Paguei o envio e fui à minha vida, descansado. Nesse dia havia um banquete oficial no palácio do Governador, onde estava toda a gente, de Arnaldo Schulz até César Moreira Baptista. Um pouco antes da meia-noite aparece-me um jipe no Hotel de Bissau, com um funcionário da Secretaria, de smoking, a dizer que o Dr. Moreira Baptista queria falar comigo. Fui para o palácio e nessa altura tenho uma altercação um pouco violenta com o Secretário Nacional da Informação, por causa da notícia que eu julgava que tinha mandado para Lisboa, mas que afinal não tinha saído de Bissau, por ter sido apreendida pela censura militar”. A jornalista quer saber mais sobre os termos da altercação, e ele esclarece: “Foi uma discussão muito exaltada, aos gritos. Ele dizia-me que eu estava a ajudar os inimigos de Portugal ao escrever histórias como aquela. E eu dizia-lhe que tinha a certeza absoluta de que tudo o que tinha escrito era verdadeiro e que não estava ali para fazer propaganda, mas sim para escrever notícias. E aquilo que tinha acontecido era notícia! Conto-lhe este episódio porque há uma coisa que acho muito curiosa e que talvez hoje as pessoas não tenham bem noção dela: era possível falarmos assim com os fascistas. Era possível discutir-se com eles e as regras do jogo eram muito claras. Cada pessoa sabia qual era o seu papel: ele estava no dele e eu no meu e não foi por causa daquela discussão, aos berros, que me mandaram prender. É verdade que entretanto foi publicada uma notícia no Brasil, no jornal “Estado de São Paulo” a dizer que um jornalista – que era eu – estava a ferros no paquete Funchal. Era tudo mentira, claro, mas julgo que a ideia terá surgido no seguimento da discussão com o Moreira Baptista”.

Para quem ler um relato vivacíssimo da transição do jornalismo daqueles anos 60 de máquinas de escrever, de correspondentes que se socorriam obrigatoriamente do telefone, do que foi a comunicação social a seguir ao 25 de Abril e como um decano do jornalismo vê o nosso tempo com o desencanto de se sentir preterido pela sua independência, recomendo sem nenhuma hesitação esta soberba entrevista. Como observa, em nota prévia, outro grande repórter, Fernando Dacosta: “Portugal permite o luxo (o escândalo), de ver afastar-se um dos maiores profissionais de comunicação social. Joaquim Letria é um ser que sabe encontrar caminhos próprios, afirmar-se diferente; que tem na sensibilidade e na criatividade, na liberdade e na comunicabilidade balizas inamovíveis”.

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Notas do editor:

1 - Sublinhado da responsabilidade do editor

2 - A propósito dos supostos 11 soldados mortos referidos pelo Jornalista Joaquim Letria, o editor contactou o autor da recensão, Mário Beja Santos, em 16FEV2015:

Caro Mário
Confesso que não sou um seguidor muito fiel do Joaquim Letria.
Face ao texto e à sua suposta afirmação de que aquando da visita do Presidente Tomás à Guiné (julgo que em 02FEV68), muito perto de onde estava a comitiva (não sabe o local, um jornalista tão informado?) houve um ataque do PAIGC que matou 11 dos nossos, consultei os registos dos mortos nesses dias.
Encontrei 1 morto no dia 3 perto de Bissássema; 1 morto no dia 4 em Buba e 1 morto em Dugal; 1 morto no dia 5 em Contuboel; 1 morto no dia 9 em Cachete; 1 morto no dia 12 em Nova Lamego, etc. Não vale a pena procurar mais porque nessa altura o Presidente já devia estar em Lisboa. No mês de Fevereiro houve um total de 15 mortes. Não achas que ter havido 11 só num dia era desgraça a mais?
Pergunto. Vamos publicar aldrabices? Era esta a (des)informação que corria para justificar o não à guerra?
À tua consideração.
Carlos

Do nosso camarada Mário Beja Santos recebi esta resposta em 17FEV2015:

Caríssimo, 
Muito obrigado pela tua observação, de imediato contatei o editor para fazer chegar a Joaquim Letria. Vamos esperar uma semana pela resposta. Não havendo resposta, sugiro publicação do meu texto e do teu comentário. Penso que o que escreves ficará beneficiado da eliminação da tua apreciação do trabalho dele, na 1.ª linha. 
Agora, vou verificar se houve outra ida do Thomaz à Guiné, o Letria fala do Schulz, o que ainda torna a coisa mais enredada…
Um abraço do 
Mário

Até hoje não houve qualquer notícia do jornalista Joaquim Letria a confirmar ou a rectificar o que declarou na sua conversa com a autora do livro.

Carlos Vinhal
Co-editor deste Blogue
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15444: Notas de leitura (782): “Radiografia Militar”, por Manuel Barão da Cunha, Âncora Editora, 2015 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15454: Agenda cultural (444): Integrada no 14.º Ciclo das Tertúlias Fim do Império, dia 9 de Dezembro, pelas 15 horas, apresentação dos livros "Angola Terra d'Úganda", de Luís Vieira da Silva e "Missões de um Piloto de Guerra", de Rogério Lopes, no Palácio da Independência, em Lisboa (Manuel Barão da Cunha)

1. Em mensagem do dia 3 de Dezembro de 2015, o nosso camarada Manuel Barão da Cunha, Coronel de Cav Ref, que foi CMDT da CCAV 704/BCAV 705, Guiné, 1964/66, dá-nos conta da próxima tertúlia do Fim do Império, a levar a efeito no próximo dia 9 no Palácio da Independência, em Lisboa:


14.º CICLO DAS TERTÚLIAS FIM DO IMPÉRIO 

LISBOA/SHIP/Palácio da Independência (perto do Metro/Rossio, entrada livre

20% das vendas revertem para a SHIP)

No próximo dia 09 de Dezembro de 2015 (por causa do Natal), 4.ª feira, às 15h00, 127ª tertúlia com a apresentação dos livros "Angola, Terra d’Uanga", de Comandante Luís Vieira da Silva (piloto em Moçambique e na ponte aérea; obra já apresentada no Porto); e "Missões de um Piloto de Guerra", de Comandante Piloto-Aviador Rogério Lopes, com autor e General da Força Aérea Aurélio Aleixo Corbal.



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Nota do editor

Último poste da série de 4 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15443: Agenda cultural (443): Já saiu o livro do Juvenal Amado, "A tropa vai fazer de ti um homem! - Guiné 1971-1974"... Data e local da sessão de lançamento oficial: 23/1/2016, Livraria Chiado, Clube Literário, Fórum Tivoli, Avenida da Liberdade, Lisboa

Guiné 63/74 - P15453: Memória dos lugares (325): Cabo Verde, Ilha de São Vicente, Mindelo: o N/M Uíge em janeiro de 1967, no meu regresso a Lisboa (Virgínio Briote, ex-alf mil cav, CCAV 489, Cuntima; e ex-alf mil comando, cmdt do Grupo Diabólicos, Brá, 1965/67)


Foto nº 1 >  Cabo Verde, Ilha de São Vicente,  Mindelo > Janeiro de 1967 > Baía do Porto Grande, Marina do Mindelo  e Monte Cara, ao fundo 



Foto nº 2 >  Cabo Verde, Ilha de São Vicente Mindelo > Janeiro de 1967, o N/M Uíge, na Baía do Porto Grande... Ao fundo o Monte Cara


Foto nº 3 > Cabo Verde, Ilha de São Vicente Mindelo > Janeiro de 1967 > O N/M Uíge, na Baía do Porto Grande... Ao fundo, o Monte Cara


Foto nº 4 > Cabo Verde, Ilha de São Vicente, Mindelo > Janeiro de 1967 > O N/M Uíge, na Baía do Porto Grande... Ao fundo, o Ilhéu dos Pássaros, 


 Foto nº 5 > Cabo Verde, Ilha de São Vicente, Mindelo > Janeiro de 1967 >  Uma rua "tipicamente portuguesa"...



Fotos: © Virgínio Briote (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]


1. Texto e fotos de nosso camarada, grã-tabanqueiro e editor (jubilado por razões de saúde) Virgínio Briote (ex-alf mil cav,  CCAV 489, Cuntima e ex-alf mil comando,  cmdt do Grupo Diabólicos, Brá,  1965/67)

(...) "Uma noite daquelas, já se deviam ver as ilhas de Cabo Verde, o comandante do Uíge informou-os que teriam que escalar S. Vicente. Atracariam no Mindelo, só o tempo para meterem águas. Como é possível, para meter águas? Não as meteram antes, só agora é que se lembraram que lhes está a faltar água? Nunca mais chego a Lisboa.

Metade de um dia no Mindelo. Tanta vontade de partir dali, que nem saiu do navio. Ficou-se aquele tempo todo no barco, a olhar para a cidade, para os montes, clicks na Ricoh até acabar o rolo. Leva a máquina, tira umas fotos por mim, Black.

Mais horas do que lhes tinham dito, finalmente tiraram as amarras, outra vez o navio em boa rota.


Nem acreditava, devia estar a sonhar, um ponto ao longe primeiro, uma recta de pontos uns minutos depois, uma curva cada vez maior a olhar para ele, o Tejo a levá-lo até Lisboa, desde a manhã cedo desse dia, 27 de Janeiro [de 1967].

Dois anos! Tinha embarcado em Lisboa em 10 de Janeiro de 1965, pôs os pés pela primeira vez em Bissau em 19 do mesmo mês e ano. Embarcou em Bissau em 19 de Janeiro de 1967, exactamente dois anos depois." (...) (*)

2. Comentário do editor LG ao poste P15439 (*):

Vb, as fotos que publicaste são "preciosas"... A da Academia Militar, c. 1963, já ta conhecia, e já a havíamos divulgado aqui no blogue... Mas as de Cabo Verde, ou melhor, Mindelo, ilha de São Vicente, merecem um destaque especial...

Reconheço o Monte Cara (nas duas primeiras) e o Ilhéu dos Pássaros (na última), além de uma rua "tipicamente portuguesa" do Mindelo.. O "meu velho" fez 26 meses no Mindelo, em 1941/43, como "expedicionário", e eu passei a minha infância a folhear o seu álbum... de tal maneira o usei que o desmembrei e restam-me hoje algumas escassas dezenas de fotos, amarelecidas, desbotadas, maltratadas...

Essas tuas imagens do Mindelo dizem-me muito, a mim e aos nossos amigos cabo-verdianos... Tens mais fotos desse tua rápida passagem pelo Mindelo ? Se sim, envia. De qualquer modo, vou fazer umn poste, com as tuas fotos do Mindelo, para a série "Memória dos lugares"... O Mindelo é um dos sítios do nosso imaginário... Eu nunca lá fui, quis lá ir com o meu velho ainda em vida, mas a saúde dele não me deixou concretizar esse sonho... Foi já lá o meu filho, por nós os três (**)... Ab. Luis


3. Resposta do Virgínio Briote, de 5 do corrente:

Olá Luís,

Agradeço as tuas palavras de incentivo que me levaram a “reescrever” o Tantas Vidas. Sem a vossa ajuda eu não iria voltar a pegar no assunto. Ainda tenho algumas páginas de anexos que, talvez, tenham algum interesse.

Em relação às fotos do Mindelo, as que tenho foram as que enviei e mais esta [,foto nº 1], que não sei se já foi publicada, mas que é idêntica a outra que foi editada.

Naquela altura a minha vontade era ver-me em Lisboa, nem sequer desembarquei no Mindelo. Dei a máquina ao Black para ele tirar algumas fotos, se quisesse. E estou arrependido de não ter retratado a chegada a Lisboa, com aquela gente toda cá em baixo, aos abraços ao pessoal que ia desembarcando.

Um abraço

V Briote

domingo, 6 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15452: (Ex)citações (303): Eu e o marinheiro a bordo de um avião da TAP, a caminho de Lisboa... Um conto do vigário: o 'negócio chorudo' das fotografias do deserto do Sara... (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)

1. Comentário do Valdemar Queiroz ao poste P15445 (*)


[Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; , foto à esquerda, em Contuboel, 1969]


Viva, caro Juvenal Amado.

Este teu conto do vigário foi muito 'contado' e 'cotado', naqueles anos em que havia tantos filhos na guerra colonial. Era fácil ao vigário — o que faz as vezes do outro — burlar os pais, principalmente as mães, que só queriam o melhor para os seus filhos.

Mas, o que se passou comigo brada aos céus dos contos do vigário. Brada aos céus por ser o mais totó, o mais naif, o mais inocente dos contos do vigário. Senão vejamos.

Vinha no avião da TAP, passar as minhas férias a Lisboa, quando se avistou, nas janelas do lado direito do avião, o deserto do Saara. Todos fomos ver, cá de cima, o deserto lá em baixo e até houve fotografias do deserto. 

O deserto do Sara visto de satélite. Foto da NASA, imagem do domínio
público. Cortesia da Wikimedia Commons.
Acabou o visionamento do deserto e eis que chega ao pé e mim um tropa, com uma máquina fotográfica, dizendo:
— Não vendo estas fotos a ninguém!.

Sentando-se ao meu lado,  propôs-me logo um negócio garantido:
— Tirei umas fotos ao deserto que são vendidas como água. 
—  Se calhar... —, respondi eu.
 — Eu sou marinheiro, vou de férias e se o... o furriel avançar já com mil pesos para se fazer, em Lisboa, muitas cópias que são facilmente vendidas...  — dizia ele. — E eu também regresso à Guiné, daqui a um mês, depois das férias... Vamos ganhar um dinheirão e logo fazemos contas.
— Pois é, não digas isso a ninguém, o que a rapaziada mais gosta é fotos do deserto, e é pena não teres do oceano Atlântico — disse eu,  e lá seguimos até Lisboa sem mais conversa.

Evidentemente, que no regresso de férias, a Bissau, do marinheiro/fotógrafo nem pó. Mas, esta das fotografias do deserto é boa e não lembra ao diabo num conto do vigário. (**)

Guiné 63/74 - P15451: Libertando-me (Tony Borié) (46): O Bairro de Ironbound, Newark, N.J. - USA

Quadragésimo sexto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.




“We Speak English”

Cada País tem o seu idioma oficial, todavia em alguns, praticam-se diversos, mas, por vezes, pelo menos por aqui, tirando a normal conversação entre pessoas que se querem compreender, pelo menos nós emigrantes, ao ouvir esta frase, vinda da boca de algumas personagens em certas ocasiões, mostra um pouco de, “arrogância”, “xenofobismo”, “querer ser mais”, “mostrar que a pessoa com quem se fala, não tem suficiente educação escolar”, ou única e simplesmente, “querer mostrar-se”.

Nas novas gerações, em qualquer País, é normal falar inglês e, claro, sem o perceberem, estão a esquecer o idioma da sua Pátria, todavia, não é o caso dos emigrantes que viveram ou ainda vivem no Bairro do Ironbound, na histórica cidade de Newark, do lado de lá do rio Hudson, no estado de Nova Jersey.

Muito antiga, fundada no ano de 1666, a cidade de Newark é a cidade com mais habitantes no estado de Nova Jersey e, dada a sua localização, é uma das principais cidades da região metropolitana de Nova Iorque, além de centro comercial, industrial e financeiro, que é a Baía do Rio Passaic que abriga um dos maiores portos de mar, inaugurado no ano de 1831, onde chegava o carvão das minas do estado de Pensylvania para sustentar as unidades fabris da região. Também aqui está localizado o segundo principal aeroporto que é o conhecido mundialmente, o Aeroporto Internacional de Newark, que movimenta quase 30 milhões de passageiros anualmente.

Mas hoje companheiros, não estamos aqui para falar das potencialidades da cidade, mas sim de nós, portugueses, emigrantes do século passado, onde quase todas as conversações entre nós era, trabalho, trabalho e quase só trabalho, onde a palavra “yes”, (sim), ou “overtime”, que neste caso, quer dizer mais ou menos “horas extrordinárias”, era sempre uma das primeiras que se aprendia.

Portanto, cá vai.

Existe por aqui o tal bairro operário chamado Ironbound, mais conhecido pelo bairro português, no qual existe grande concentração de portugueses, onde a principal rua é a Ferry Street, cujo segundo nome é “Portugal Avenue”, ou seja Avenida de Portugal.


À medida que os emigrantes Portugueses foram chegando à cidade, atraídos pela concentração de indústria que existia na altura, principalmente no tal bairro do Ironbound, que quer dizer mais ou menos “rodeado de ferro”, com intensa actividade comercial e industrial, cercado de linhas férreas, era um lugar muito atractivo, para quem tinha desejos de trabalhar, onde estes homens e mulheres, de descendência portuguesa, com a sua força física e dedicação, por vezes destruindo a sua própria saúde, compensavam a falta de educação escolar.

As raízes portuguesas na área são profundas, com os primeiros emigrantes, talvez chegados na década de 1910, mas o grande afluxo de portugueses veio na década de sessenta e setenta do século passado, porque hoje, a emigração de Portugal é praticamente inexistente, mas o idioma português mantém-se estável e, se voltássemos àquelas décadas do século passado, podíamos ver e ouvir, em qualquer rua do bairro do Ironbound, este cenário:
“...a Gracinda, casada com o Manuel Murtosa, que é encarregado de uma “gang” de construção de valas para esgoto, homem robusto e respeitado, até tem “pic-up” da companhia, onde todos os dias, por volta das quatro ou cinco horas da manhã, pois o trabalho é longe, lá para os lados de Riverville, transporta os outros cinco companheiros do seu grupo. Hoje é domingo, eles, os homens, estão para a “Ferry Street”, foram ouvir o relato e beber uns copos, ela, a Gracinda, neste momento de domingo à tarde, está sentada nas escadas de entrada do edifício onde residem, num compartimento de cave, que repartem com a Ermelinda e o João de Verdemilho, anda sempre vestida de preto, gosta desta cor, às vezes, quando vai à missa, até põe qualquer coisa de outra cor, especialmente uma blusa branca, que uma vizinha lhe trouxe da “fábrica da costura”, onde trabalha, está sol, começou por pentear-se, desfez, tornando a fazer as tranças, deu-lhe duas voltas, fazendo um “carrapito”, os dedos das suas mãos, já estão um pouco tortos, é dos calos, tem que falar com a Nazaré, que trabalha na “fábrica das peles”, para lhe trazer umas luvas, pois ela, trabalha na “fábrica dos colchões”, ganha mais que as outras, compete com os homens, trabalha à peça, monta o esqueleto dos colchões, encaixa as molas, “tudo a pulso”, ali, em frente ao “boss”, que é o seu chefe, mas é “cheap”, pois não lhe dá, lá muito “overtime”.
Ali sentada, entretem-se a falar com a Ermelinda, está um pouco enjoada, pois comeu uns chocolates que a Alzira lhe trouxe, aquela das “ilhas”, que trabalha na “fábrica dos chocolates”, parece que lhe “caíram” mal, vai remendando umas meias do seu Manuel, até nem precisava, pois tem mais três pares, que lhe trouxe a Manuela, aquela rapariga alta, que tem cara de homem, pois dizem que corta o bigode, que trabalha na “fábrica das meias”, mas está a guardá-las para levar para Portugal, quando lá for, por altura das vindimas, pois a sua casa, que ela diz a todos que é uma pequena “mansão”, lá em Portugal, precisa de ser aberta e arejada e, talvez necessite de pintura, pois à beira do mar, o vento e a chuva, às vezes traz sal”.

E continuando, diz: Porra, Caral.., que já me espetei na agulha, Santíssima Nossa Senhora de Fátima me perdoe que hoje é “Sunday”, (Domingo), e estou a dizer asneiras, já me esquecia, lembra-me por favor, o meu Manuel tem que chamar o Eurico, aquele da Agência, que fala muito bem inglês, para ir com ele terça-feira ao aeroporto, para “grab” (agarrar) o José Maricas, que foi a Portugal, creio que lhe morreu um irmão, pois ele não sabe o caminho e, já agora, tu sabes se a Filomena, aquela solteirona, que anda “in love” (apaixonada) com aquele “bonitinho”, que anda a estudar, que trabalha em “part-time” (meio tempo) na farmácia, ainda trabalha na fábrica da “meat” (carne), em Jersey City, queria ver se ela ”bring” (trazer) umas chouriças italianas, o meu Manuel “like” (gosta muito) fod.-.., caral.. que já me espetei outra vez, olha, precisamos de uma panela maior para cozinhar as batatas, couves e a carne de porco salgada, tu sabes, caldo e conduto ao mesmo tempo, para todos nós, vamos falar com a Isaura, aquela que trabalha na “fábrica das cafeteiras”, para ver se nos arranja uma, das grandes, o meu Manuel já tem quase cinquenta garrafões vazios, daquele vinho da Califórnia “Paisano”, que parece português, para “send” (mandar) para Portugal, quando houver lugar no Contendor da agência do Eurico, que sai do porto de Newark, pelo menos quatro vezes ao ano, tu sabes que o Orlando da mercearia, na Ferry Street, já não põe as coisas em “vegas” (cartuchos) de papel, que eram tão jeitosas, eu até andava a guardá-las para levar para Portugal, agora usa “vegas” de plástico, aquela merda rompe-se toda.

Voltando aos dias de hoje, esta linguagem era corrente e comum, as ditas “asneiras” eram normais, o bairro do Ironbound é um bairro onde o idioma inglês é pouco ouvido, sendo superado pelo idioma português, com palavras em inglês pelo meio, ou mesmo espanhol, tornando-se num bairro famoso, chegando a ser considerado uma das maiores concentrações de portugueses, fora de Portugal, aqui existia tudo o necessário para se poder viver, falava-se, e ainda se fala em alguns lugares, português com sotaque do Minho ao Algarve, com algumas palavras de inglês pelo meio, nos restaurantes, bares, casas de mercearia, alfaiatarias, sapatarias, peixarias, galinheiros, padarias, lojas de fruta, farmácias, lojas de ferramentas, consultórios de doutores, dentistas ou advogados, hospital local e agências de viajem. Construiu-se uma igreja, ao domingo havia e continua a haver, missa em português, oficinas mecânicas e venda de carros e, muito mais, em algumas ruas, em alguns estabelecimentos, onde só viviam portugueses havia letreiros, dizendo: “WE SPEACK ENGLISH”.

Pois às vezes, também por lá passava uma pessoa de origem americana.

Tony Borie, Dezembro de 2015.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15422: Libertando-me (Tony Borié) (45): Antes éramos cowboys

Guiné 63/74 - P15450: Blogpoesia (426): No meio da Ponte (Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728)

1. Em mensagem de 5 de Dezembro, o nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), enviou-nos este poema com o título "No Meio da Ponte"


No meio da ponte…

Como um tolo no meio da ponte.
Sem saber se seguir em frente ou recuar.
Vim procurar uma lufada de ar corrente
Espevitasse esta secura de morrer.

Vim ver se encontro versos
Em faúlhas das que passam
Se vão pelas alturas.

Todas apagadas.
Olho ao fundo.
Nem uma só formiguinha vejo a mexer.
Naquele labirinto de gente,
Que não pára, frenética,
Como se amanhã fosse o derradeiro dia.

Todos querem levar para casa
Mais um saco do supermercado,
Esquecido do que já têm.

É a vertigem de comprar…

Ali vai um iate.
No isolamento.
Casca de noz
Que uma onda ligeira
Põe em perigo.
Ali vai para a solidão do mar.
Fugindo da multidão.

E aquele paquete gigante.
Um planeta vivo em combustão,
Que procura ele?
Lá vai sonolento e firme,
Pejado de gente faminta
Da felicidade,
Procurá-la sobre o mar…
Porque na terra não.


Ouvindo André Rieu e os seus espectáculos fulminantes de cor e som

Berlim, 5 de Dezembro de 2015
17h48m
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15421: Blogpoesia (425): Eminente e inesgotável (Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf)