quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16395: Os nossos seres, saberes e lazeres (169): Eu fui ao Faial e não vi os Capelinhos (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2016:

Queridos amigos,
Ainda me pedem colaboração para as coisas que têm a ver com a política dos consumidores. Sempre que reclamam a minha presença dos Açores, não sei dizer que não, forjou-se uma ligação profunda desde que por li andei a dar recrutas, entre 1967 e 1968. Fiz grandes amizades e gosto muito da afabilidade açoriana. Foi mesmo uma "visita de médico", mas deu para registar impressões que me são muito gratas e aqui estou a partilhá-las convosco. Hoje em dia não há maior satisfação que me pedirem sugestões sobre o quer ver nessas ilhas de bruma, de verde constante e acachoada das ondas em fragas e penedios, e poder desfiar propostas para visitas e passeios, não escondo que sou um cicerone altamente comprometido com estas venturas e desventuras arquipelágicas.

Um abraço do
Mário


Eu fui ao Faial e não vi os Capelinhos (1)

Beja Santos

Tratou-se de uma visita de médico, só faltou ida e volta no mesmo dia. O pretexto foram as comemorações do Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, a celebrar na Horta. Com os organizadores, acordei em partir de Lisboa ao nascer do dia, já que havia paragem obrigatória de algumas horas em Ponta Delgada, aqui vivi seis meses, fiz amigos, tenho lembranças indestrutíveis. Decorre uma exposição de um dos meus escultores preferidos, Ernesto Canto da Maya, um modernista sem rival, deixou-nos pares amorosos inultrapassáveis. Era segunda-feira, esperava encontrar o Núcleo de Santa Bárbara aberto, a deceção foi mais que muita, ainda pedinchei uma visita excecional, negada. Pude comprar imagens de obras expostas, vejam, caso não conheçam, como este senhor que triunfou em Paris lavrou obras-primas em terracota. À entrada do núcleo de Santa Bárbara imortalizaram um dos seus referenciais em bronze. Para que conste.




Quanto a Canto da Maya, missão cumprida. Houvesse tempo e ia visitar a exposição sobre a história do chá em S. Miguel, pelo livro que comprei é evento cultural com várias estrelas. E atiro-me à cidade, recordo o aspirante a oficial miliciano que calcorreou estas ruas, que se enamorou destes sítios onde predomina a rocha vulcânica que dá estas harmonia de preto e branco dos passeios elaborados ao melhor gosto da calçada portuguesa.



Mudei de passeio atraído pelo anúncio de uma refeição a 2€ em tempos de crise. Estou habituado a ver sopa e sandes a 3,40€, o fast food a cerca de 5€, este é o menu mais barato que até hoje vi.


Atalhei por uma transversal a caminho da Igreja Matriz, era um dia de céu forrado, se tem muitos inconvenientes tem também a vantagem de olharmos para os interiores dos prédios e ressalta o seu conteúdo. Umas boas décadas atrás que eu não via este vitral, associado ao nome de uma empresa lendária da região, a Corretora. Bisbilhotei para o interior dos escritórios, uma bela arquitetura cheia de vidro e latão, tudo fechado, oxalá que um dia reapareça para fruição pública, eu estava ali especado a pensar nos dias prósperos destes escritórios, com guichês e balcões bem ataviados e lembrei-me da redação do jornal O Século, outra beleza, felizmente intacta, no edifício que é hoje o Ministério do Ambiente.



Outra lembrança perdurável é a flora, há pouco menos de meio século só pude conhecer a micaelense, deslumbrante nos seus jardins e parques. É certo que estamos em Março, que aqui chove abundantemente e humidade não falta, aqui são-se perfeitamente as árvores, os arbustos e as plantas de quase todo o mundo. Era um dia baço mas as flores estavam resplendentes para me receber.



Há também arquitetura religiosa manuelina noutros locais, caso de Vila Franca do Campo, mas a Matriz de Ponta Delgada tem direito ao que há de mais significativo. Estes elementos exteriores excedem em importância todo o miolo do tempo que tem, no entanto, um pequeno e atrativo museu, quando disponho de tempo ali vou em revisitação, não sei que por artes ali estão expostas uma casula e uma dalmática que vieram de Inglaterra, ao tempo em que o protestantismo triunfou. Virei-me no Largo da Matriz, mesmo em frente à porta lateral, não havia visita a Ponta Delgada que eu não visitasse um camarada da Guiné muito especial, o oftalmologista José Luís Bettencourt Botelho de Melo, foi ele que me limpou os olhos depois de uma mina anticarro em que andei em bolandas, em Outubro de 1969. Olhei com nostalgia, já não há consultório em frente a esta porta lateral, há muito que ele me dobrou os 80 anos, não tenho coragem de lhe ir bater à porta na rua Bruno Tavares Carreiro, era uma insensatez e indelicadeza sem limites dizer-lhe que venho com os minutos contados.


E pronto, regressei ao aeroporto, espera-me um voo Lajes-Horta, mas não resisto em fixar esta azálea, um verdadeiro cíclame, passa-se algo de estranho e labiríntico nas minhas recordações, neste preciso instante em que tirava a fotografia lembrei-me de um juramento de bandeira, nos Arrifes, em Dezembro de 1967, mandaram-me fazer o discurso e falei das criptomérias e nas azáleas, na doçura da natureza açoriana, tratei as coisas militares como meras adjacências. A verdade é que o amor incondicional às terras açorianas já estava entranhado. E para todo o sempre.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16377: Os nossos seres, saberes e lazeres (168): Visita à Igreja do Convento de Jesus, de Setúbal (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P16394: Parabéns a você (1119): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metralhadora da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 16 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16391: Parabéns a você (1118): Armando Faria, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16393: Facebook...ando (40): Sou açoriano, nasci em janeiro de 1955, fui à inspeção em dezembro de 1970, com 15 anos... Em abril de 1971 fui para a tropa, e em setembro, com apenas 16 anos, parti para o CTIG... (ex-1º cabo Alcides, da CCÇ 3476, "Bebés de Canjambari", Canjambari e Dugal, 1971/73; emigrante no Canadá, desde junho de 1974)


Guiné > Região do Oio > Farim >  Canjambari > CCAÇ 3476 (Canjambari e Dugal, 1971/73) >  Os "Bebés de Canjambari" era uma companhia açoriana...

Foto: © Manuel Lima Santos (2013). Todos os direitos reservados.


1. O nosso editor de serviço, Carlos Vinhal, mandou-nos, em 14 do corrente a seguinte mensagem, com conhecimento a alguns colaboradores permanentes do blogue:


Camaradas

Grande novidade para mim.

Conheciam este caso ou semelhante?

Esta mensagem caiu no facebook da Tabanca Grande Luís Graça (**):


Caro amigo e ex-combatente, eu escrevo pouco em português, porque só tirei a 4ª classe.

O meu comentário é a respeito do Fernando Andrade Sousa (*), que não sabia que se podia para ir para o exército com menos de 18 anos. Pois eu fui à inspeção para a tropa em dezembro de 1970, e só tinha 15 anos. Fiquei apurado para todo o serviço Militar, e em abril de 1971 fui para a tropa, em setembro de 1971 fui para a Guiné, com a  CCac 3476, "Bebés de Canjambari" [Canjambari e Dugal, 1971/73]. 

Hoje estou no Canadá, razão de ir voluntário e tão novo. Meus Pais imigraram para aqui e o governo português disse que eu não podia vir sem cumprir o serviço militar, foi a razão de ir mais cedo. Em dezembro 1973 regressei da Guiné com 18 anos, livre do serviço militar, que como vês aqui eu sou de janeiro de 1955. 

Em junho de 1974 vim para o Canadá. e aqui me encontro, continuo a trabalhar porque sou tenho 61 anos e me sinto com saúde.

Eu fui Primeiro Cabo, talvez o mais novo do exército! 

Um bem haja para ti e toda a equipa da Tabanca Grande!
O [Manuel] Lima Santos [, membro da Tabanca Grande,] foi meu Furriel do meu Pelotão [, foto atual à direita], só para se quiseres confirmar, e podes ver o meu álbum da tropa!

Bem Haja,
Alcides.


2. Comentário do António José Pereira da Costa no mesmo dia:

Olá,  Camaradas

Desconhecia esta ou outra situação similar. Estava convencido que só se poderia ser voluntário aos 18 anos.  Recebi na minha companhia um miúdo com essa idade que ficou com essa alcunha por isso mesmo. Mas só a lei do tempo o poderá confirmar.

Um Ab.
Tó Zé


3. Comentário do editor

Em contacto telefónico com o camarada Lima Santos, este disse que se lembra perfeitamente do Alcides, com quem ainda hoje mantém contacto. Disse ainda que julga ter havido mais duas situações semelhantes na Companhia, combatentes com 18 anos ou menos, assim com provavelmente o mesmo se terá passado com a Companhia irmã, a CCAÇ 3477 (Gringos do Guileje).
Os mancebos açorianos, para poderem mais rapidamente juntar-se aos pais, emigrados por terras do continente americano, ofereciam-se como voluntários para servirem o exército antes da idade normal.

Guiné 63/74 - P16392: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (5): O diagnóstico

Adão Cruz com meninos de Bigene
Foto: © Adão Cruz


1. Memória enviada pelo nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), relatando uma consulta com diagnóstico bem difícil, tal a dificuldade de comunicação entre médico e doente.


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

5 - O DIAGNÓSTICO

(Mais um conto da Guiné. Espero que saboreiem como eu saboreei)

O sol baixava a sua fogueira comendo a sombra à medida que a luz crescia. Como sempre, meti o corpo dentro de uma velha bata branca e dirigi-me ao posto de socorros, onde me aguardavam soldados e nativos para a consulta matinal. Hora respeitada. Ritual.
Logo que cheguei, os olhos caíram-me na figura de uma velha, cuja idade mirrara na secura das carnes. A pele parecia colada aos ossos, e a silhueta nem sombra dava. Os sorrisos esqueceram-se para lá da boca, e dois ninhos de rugas guardavam os olhitos faiscantes.
O “Manjaco”, nome da etnia de que era originário, um dos meus ajudantes nestas tarefas clínicas, alto e desengonçado, sempre feliz e afável, surgia acima de todas as cabeças.

- Manjaco, vamos ao trabalho.
- Dotô, manga pessoal, manga chatice!

Quando chegou a vez da velha, o Manjaco torceu o nariz, dando a perceber que era de língua difícil e de terra sem lugar, lá onde acabam bolanhas e começam mangueiros e coqueiros. Por universal defeito de raças e linguagens, as nossas falas não se cruzaram. O Manjaco olhou em volta, procurando intérpretes para aquele resto de corpo. Bateu o pé no chão para espantar a pequenada, debruçada na curiosidade.
- Maldita canalha, maldita velha qui só vem no chateanço. Tu, vem cá, e tu.

Os dois rapazes entreolharam-se como se mutuamente se desconfiassem. Um deles era mandinga e o outro não me lembro.
Puseram a velha a queixar-se. Ela sacudiu os ossos em imitação de tosse, ao mesmo tempo que apertava entre os dedos a pele seca da garganta. Numa espécie de dança, mexia o corpo para a frente e para trás baloiçando a magreza. Agitava-se em tremuras fingidas, emitindo uma espécie de grunhidos salpicados de baba, enquanto as mãos apanhavam o baixo-ventre ou se espalmavam nas hipotéticas ancas. O Manjaco ia observando toda aquela mímica com ar enfastiado:
- Ché! A velha é maluca!

Olhou de maneira inquisidora os dois moços, apontou para a velha, e já com a paciência a apagar-se, exclamou:
- Fala pá, fala maleita di velha.

Os dois esquinaram o olhar, torceram a boca, e a aflição somou as duas caras. O primeiro virou-se para o segundo e disse numa lenga-lenga:
- blá, blá, blá.
O segundo voltou-se para o Manjaco e traduziu:
-blé, blé, blé.

O manjaco encolheu os ombros, esboçou o gesto de quem nada percebeu, olhou-me de soslaio e exclamou:
- Dotô, isto estar grande merda!

De novo solicitada, a velha repetiu a cena escorrendo as palmas das mãos pelas pernas abaixo, esboçou um espasmo figurativo de dor, enroscou-se num ar felino e cravou os olhos desafiadores na cara do Manjaco. Disso é que ele não gostou. Com ar zangado, agarrou os dois rapazes pelos ombros, e numa última tentativa interpelou de novo:
- Tu ca sabi pá, tu ca sabi puto língua di velha, puxa por mimória, pá.

O primeiro virou-se para o segundo e disse:
- Blá, blá, blá.

O segundo voltou-se para o Manjaco e traduziu:
- Blé, blé, blé.

O Manjaco não atingiu e enraivou o anterior desabafo, espaçando as palavras:
- Dotô,… isto… estar… grande… merda!

Caracoleou então por entre queixas e deixas, desmontou os arrebiques da velha, denunciou a incapacidade dos intérpretes, e bufou de furor e impaciência. Tomou ele a iniciativa. Ensaiou uma cantoria zombeteira e atirou à cara da velha uma autêntica algaraviada. Furiosa, a mulher fez assomar ao nariz uma lágrima de ranho, fincou no chão os pés calçados de lama seca, olhou os dois intérpretes, fulminou o Manjaco, calou uns segundos de silêncio e voltou aos mesmos gestos e grunhidos, com força redobrada e descrição veloz, como cena de filme a correr em acelerado. Parou de repente, fitou de maneira desafiadora os circunstantes e cravou pela primeira vez os olhos em mim, como que a dizer: Então, já percebeste?

O Manjaco estava desorientado. Começou a dar uns passos curtos e outros compridos, rodopiou sobre si mesmo, volveu os olhos ao céu, e a despeito da vontade de estrangular a velha, voltou-se calmamente para mim e disse:
- Olha Dotô, corpo de ela tá todo fodido.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16381: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (4): Joãozinho, nunca na vida te deixarei sozinho

Guiné 63/74 - P16391: Parabéns a você (1118): Armando Faria, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16375: Parabéns a você (1117): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63) e Tomás Carneiro, ex- 1.º Cabo Condutor Auto da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16390: Notas de leitura (870): "Guiné-Bissau, Reconstrução Nacional", fotografias de Michel Renaudeau, Éditions Delroisse, Paris, 1978 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Setembro de 2015:

Queridos amigos,
Trata-se de uma chamada edição de prestígio, boa encadernação, bom papel, fotografias exemplares. Fica-se com a ideia de que aquele país está no bom caminho, que tem um povo feliz, cada vez mais serviços sociais, que as fábricas fabricam, desde sumos e compotas a automóveis.
Dou comigo a pensar se este álbum poderá ser classificado como material auxiliar para interpretar um tempo, mas estou convicto que o povo retratado, passado este tempo todo, é aquele que continua a votar na esperança por melhores dias. E estão ali os rostos de reis e de princesas, por ali perpassa a imagem da dignidade, estão ali os traços fundos e profundos de uma especificidade cultural que nos assombrou quando passámos de meninos a homens.

Um abraço do
Mário


A Guiné-Bissau pelo fotógrafo Michel Renaudeau

Beja Santos

Em 1978, com financiamento do Banco Nacional da Guiné-Bissau, as Éditions Delroisse, Paris, publicavam um luxuoso álbum intitulado Guiné-Bissau, Reconstrução Nacional, com texto em quatro línguas, sendo óbvios os objetivos de apresentar aos investidores aspetos aliciantes de uma promissora Guiné-Bissau aberta a diferentes formas de cooperação internacional.

O texto é simples e corresponde ao pensamento da época: a Guiné é apresentada como um país essencialmente agrícola onde preside um princípio de justiça social, já que a população rural fora a classe mais explorada durante a dominação colonial; faz-se o enquadramento geográfico dos recursos naturais, alude-se aos elevados índices de florestação, à qualidade das suas madeiras e enumeram-se culturas onde o país parecia estar em vantagem: arroz, mancarra, coconote e caju; quanto aos recursos naturais diz-se explicitamente que são constituídos por depósito de bauxite de uma capacidade estimada em mais de 250 milhões de toneladas métricas de mineral e mencionam-se os indícios de presença de petróleo nas zonas costeiras, bem como de ferro, minerais calcários e fosfatos, Aqui e acolá, no luxuoso álbum há uma certa tentação em empolar as notas da propaganda. Um exemplo:

“Não existe uma informação segura sobre a população do país, havendo contudo dados básicos para uma estimativa. A última realizada em 1970 nas áreas então ocupadas pelo exército colonial atingia 350 mil pessoas, segundo um censo preliminar realizado em 1974. Considerando as fontes e os números acima indicados e supondo uma taxa de crescimento anual de 2% e ainda o retorno de cerca de 70 mil refugiados desde a libertação completa do nosso território em 1974, a população estimada é de cerca de 930 mil habitantes”.

É apresentada a forma de organização política e administrativa do Estado, na órbita do PAIGC: este é a força política dirigente da sociedade na Guiné e em Cabo Verde, com um papel na definição e de direção política em relação a todas as atividades sociais, elenca-se em seguida a estrutura do partido, os três congressos do PAIGC então realizados e os órgãos do poder político: Assembleia Nacional Popular, Conselho de Estado e Conselho dos Comissários de Estado.

Estamos chegados à estratégia de desenvolvimento, utiliza-se uma linguagem suave para referir uma lógica de regime totalitário: 
 
“O elemento essencial da estratégia de desenvolvimento consiste em dirigir de preferência o processo de acumulação de capital para o setor agrário onde se encontra mais de 90% da população ativa do país.

A modernização das estruturas produtivas das zonas rurais permitirá elevar rapidamente o excedente agrícola e incrementar simultaneamente o rendimento do trabalho rural. O excedente agrícola comercializado deverá permitir, a médio prazo, reduzir substancialmente as importações de bens alimentares. A crescente interpenetração entre o campo e cidade constitui o núcleo essencial do processo de desenvolvimento futuro. Sobre ele deverá articular-se o desenvolvimento industrial, o das infraestruturas e dos serviços básicos, devendo também definir-se sobre essa base a organização institucional do Estado, os sistemas de distribuição e os chamados setores sociais (Educação e Saúde) estima-se que os aumentos de exportações conseguido em 1977 deverá continuar num ritmo acelerado nos próximos anos. Será dada ênfase no que se pode caraterizar como um modelo de desenvolvimento para dentro, fundamentado na progressiva ampliação do mercado interno e na integração campo-cidade. A concretização a médio prazo desta estratégia de desenvolvimento implica amplo recurso à ajuda externa. Esta ajuda externa será, na medida do possível, orientada para o desenvolvimento da infraestrutura económica e social, da importação e produção industrial de meios de produção para a agricultura e da importação e produção de bens de consumo popular. A necessidade de se atingir a fase de crescimento autossustentado na base da estratégia desenhada impõe a superação do atual período de transição pós-colonial”.

Em 1976, o PNB era estimado em 3780 milhões de pesos guineenses, o que representava um rendimento per capita de 123 dólares. Segue-se a enumeração dos setores produtivos (agricultura e pesca, indústria, energia, transportes e telecomunicações). Falando do comércio interno, são referenciados os Armazéns do Povo, assim apresentados:  

“Nas zonas libertadas do país foram criados em 1964 os Armazéns do Povo, entidade comercial cujo objetivo era manter o abastecimento dos bens essenciais nas referidas zonas. Ao mesmo tempo, os Armazéns do Povo absorviam parte da produção gerada pelo setor agrícola. Após a libertação, os Armazéns do Povo, passaram a constituir a principal empresa do país, estendendo a sua atividade a todo o território nacional. De 20 postos comerciais em 1974, os Armazéns do Povo passaram atualmente a 129”.

O álbum faz igualmente referência a salários e preços, comércio externo, situação fiscal, dívida externa e situação monetária.

Beneficiando já de uma impressionante ajuda externa, é natural que a publicação desse destaque à cooperação internacional, e mais uma vez se incensa a política de não alinhamento e a diversidade de formas de cooperação internacional. Na primeira linha, os países socialistas, depois a assistência sueca, a seguir a CEE no quadro da Convenção de Lomé, seguindo-se países europeus e os EUA e tece-se uma consideração para o que há de determinante nesta cooperação:

“O governo da Guiné-Bissau, consciente das dificuldades económicas inerentes ao atual período de transição, atribui uma grande importação à manutenção, durante os próximos anos, destes fluxos de assistência internacional, que deverão continuar a desempenhar um papel equilibrador das relações económicas internacionais do país a fim de permitir que se reúnam as condições para um crescimento económico autónomo”.

É um tanto ocioso descrever o que aqui se sonhou e fantasiou e as derrocadas que tomaram conta desses sonhos, as atividades económicas que se soçobraram, as infraestruturas que perderam préstimo, as fábricas que fecharam. O que fica de palpitante são estas de fotografias de Michel Renaudeau, rostos que saem do papel, arte africana de incomparável beleza, a atmosfera nostálgica de Bolama já em fase de irreversível decadência, gente na labuta, a cor de bauxite. Não sei se este álbum passará à história como material auxiliar de um tempo de aspirações que em breve se transformou em desilusões. Sei que esta gente é transmissora da boa-fé e era portadora de uma esperança que, como se vê em sucessivos atos eleitorais, ainda não murchou. Este fotógrafo pode gabar-se de ter alcançado imagens únicas de um povo que teima em sonhar.



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Nota do editor:

Último poste da série de 12 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16383: Notas de leitura (869): "Memória de elefante", a literatura de guerra, por António Lobo Antunes (Mário Beja Santos)

domingo, 14 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16389: Manuscrito(s) (Luís Graça) (90): Ó Praia de Paimogo da minha infância!...


Lourinhã. Praia da Areia Branca, a caminho de Paimogo > 30 de julho de 2016 > Caprichosa "escultura" escavada na rocha, por efeito da erosão do mar, da chuva, da areia e do vento.



L;ourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII)


L;ourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) >  Lado sul


L;ourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Lado norte


Lourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Vista para o lado sul


Lourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Vista (deslumbrante) para o lado sul... Mas o forte assenta num morro com problemas geológicos... Desde há muito que se teme a sua derrocada...  Seria uma perda irreparável a desaparição deste forte... que é património de todos nós.



Lourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Interior


Lourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Interior



Lourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Escadaria para o terraço



Lourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Vista do terraço


Lourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Cisterna



Lourinhã > Paimogo > Forte de Paimogo (séc. XVII) > Cisterna




Lourinhã> O Mar do Cerro, a sul de Paimogo > Vista das imediações do Forte de Paimogo


Lourinhã> Praia de Paimogo > Emseada > Vista do Forte


Lourinhã> Praia de Paimogo > Vista do Forte

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Lourinhã> Praia do Caniçal (entre a praia de Paimogo e a praia do Vale de Frades) > Vista do Forte de Paimogo


Fotos (e legendas): © Luís Graça(2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Ó Praia de Paimogo da Minha Infância

por Luís Graça


Não preciso de ser geólogo
para te amar,
ó praia de Paimogo
da minha infância.
Nem de ser paleontólogo
para desenhar na areia
as pegadas da tua errância
de dinossauro do Jurássico Superior.
Nem muito menos biólogo ou sociólogo
para te conhecer aí onde
se alimenta o recolector-caçador,
e o polvo, o povo, se esconde
nas marés vivas de lua cheia.

Fugi de terramotos e tempestades,
procurei abrigo na tua enseada,
domei as ondas e o vento,
desfiz lendas e mitos,
adorei divindades,
vendi a alma ao diabo,
esculpi a esfinge alada
que guarda a porta do teu templo.
Andei na pesca ao candeio,
fui pescador de lagosta,
camponês, 
jornaleiro, 
camarada,
andarilho de costa a costa,
negociante de peixe,
almocreve,
apanhador de algas,
caçador submarino,
amigo do fado e da boémia,
poeta, pirata e frade,
mulher e fêmea,
viúva de vivo e de morto,
Zé-Ninguém, cidadão, clandestino
.


Vim da Bretanha em barcos a vapor,
remei do estuário do Tejo,
em bateiras,
costa acima,
e avieiro fui nos teus longos meses de verão,
na pesca da raia.
Fui fenício, cartaginês, romano,
visigodo, bérbere, moçárabe,
português do mundo em cada porto.
Fui moço de convés nas caravelas e naus dos Descobrimentos,
armei navios, enriqueci, trafiquei,
de escravos fui senhor,
e dono de engenhos nos Brasis,
feitorias e pontas na Guiné, 
roças e fazendas em Angola.
Embarcadiço e capitão do norte,
aventureiro e explorador colonial,
bandeirante, roceiro e garimpeiro,
prostituta e proxeneta,
e até de príncipes fui conselheiro.


Carreguei vinho em barris
no bojo da nossa Nau Catrineta,
para a corte russa, imperial.
Naufraguei em ilhas longínquas, polinésias,
adubei as inférteis terras
com o limo do mar dos sargaços.
Fiz o meu ninho de ave de rapina
no alto das tuas falésias,
fui presa e predador,
dos contrabandistas segui, à noite, os passos.
Lavrei o mar,  semeei a morte,
sobrevivi a mil e uma guerras,
e os meus mortos enterrei
nas tuas areias.


Vigiei o mar, o céu e a terra
do alto setecentista do teu forte.
Tive visões, vi monstros, seduzi sereias,
fugi das garras dos terópodes,
escapei dos mandíbulas dos crocodilos,
lutei contra muitas outras feras,
fiz a paz, fiz a guerra,
e ao teu seio retornei,
minha Mátria, Frátia, Pátria amada.
Da vida conheci todo os estilos,
fui condenado às galeras
e quase devorado por gigantes gastrópodes,
peguei de caras o auroque e o minotauro,
estive cativo do mouro
nas longínquas Mauritânias,
choquei os teus ovos de dinossauro,
construí castros, citânias, 
andei à deriva dos continentes,
fui maçarico, checa e periquito
nas guerras coloniais,
sobrevivi à fome, à cólera e à peste
(e ao bispo da nossa terra!)
aos vulcões e aos tsunamis,
andei a monte, fugi a salto,
lutei pela liberdade,
pus os pontos nos ii
das letras do nosso alfabeto,
pela lei e pela grei gritei bem alto,
de norte a sul, de leste a oeste,
e o teu chão te defendi,
contra todos os invasores e usurpadores,
piratas e corsários.

A verdade, a verdade,
é que cobiçada por muitas gentes,
desejada por muitos senhores,
nunca nenhuma armada invencível te venceu,
ó Praia de Paimogo da minha infância.
Se te perdeste,
se alguma vez te perdeste,
foi só por amores.
Quando eu era criança,
quando eu tive a sorte de ser criança
como diria o Fernando Pessoa,
as sardinhas voltavam sempre,
em frágeis cardumes de prata e luar,
à praia onde haviam desovado.
Quando eu era menino e moço,
no tempo em que ainda partiam soldados
para as nossas índias, para as nossas goas,
havia uma princesa, moura, encantada,
numa das tuas grutas submarinas,
o corpo coberto de ágar-ágar.
Era fonte de água pura, quente e doce,
alimentando mares interiores e lagoas,
donde bebiam os ofegantes cavalos alados,
com as suas enormes narinas.
E o vento, a nortada,
nas velas dos barcos e dos moinhos,
falavam-me da tragédia antiga,
mas ainda viva,
da filha do teu capitão
que se havia matado do alto da arriba,
dizem que por amor e solidão
.

No antigo reino mouro,
e. depois franco e fero, da Lourinhã,
também os búzios me diziam
que à noite as luzinhas,
a sul das ilhas das Berlengas,
eram as alminhas
dos que morriam
no mar, sem sepultura cristã.
Pobres náufragos,
marinheiros, pescadores,
poetas loucos, errantes, noctívagos,
imigrantes clandestinos,
desterrados, degredados das guinés e dos timores,
soldados perdidos das batalhas da Roliça e do Vimeiro,
corsários, contrabandistas, 
pecadores, mariscadores.
à deriva,
sem um ui nem um ai,
agarrados às tábuas do barco Deus é Pai.

Hoje não acredito mais
nessas lendas das alminhas
que eu ouvia aos ceguinhos das feiras,
vendedores de letras de fado
e do Borda-d’Água:
afinal essas luzinhas,
lá longe e ali tão perto,
nada têm de fétiche,
são apenas as traineiras,
ao largo do Mar do Cerro,
que andam atrás dos cardumes de sardinhas,
e depois regressam a Peniche.

Lourinhã, 12/8/2004

Versão 11, 14 ago 2016



Lourinhã > Vimeiro > 8 de agosto de 2011 > Monumento comemorativo e centro de interpretação da Batalha do Vimeiro > Azulejo alusivo ao desembarque das tropas luso-britânicas, na Praia de Paimogo, em 19 de Agosto de 1808... A batalha do Vimeiro desenrolou-se em 21 de Agosto de 1808. Azulejo desenhado e pintado à mão por Salvador (2000). (*)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados.

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Notas de LG:

Deus é Pai - O concelho da Lourinhã também tem a sua quota-parte na história trágico-marítima deste país. Entre 1968 a 2000, foram contabilizados seis naufrágios de barcos de pesca onde morreram três dezenas de filhos da terra, com especial destaque para as gentes de Ribamar (fora outros acidentes de trabalho mortais, cujo número se desconhece). 

Um desses naufrágios foi o do barco Deus é Pai, em 26 de março de 1971, ao largo do Cabo Carvoeiro. Os restantes foram os do Certa (15 de maio de 1968), Altar de Deus (6 de novembro de 1982), Arca de Deus (17 de fevereiro de 1993), Amor de Filhos (25 de julho de 1994) e Orca II (antigo Porto Dinheiro) (19 de julho de 2000). Entre estes homens há parentes meus, da grande família Maçarico, de Ribamar, donde era oriunda a minha bisavó paterna (nascida em 1864).

Fonte: Cipriano, Rui Marques (2001) – Vamos falar da Lourinhã. Lourinhã: Câmara Municipal da Lourinhã.

[Dizia-se na época que o barco Deus é Pai fora cortado ao meio à noite por um cargueiro russo, e que os náufragos teriam sido levados, vivos,  para aquele país da "cortina de ferro", na altura a URSS... Em vão esperaram por notícas deles, as "viúvas dos vivos",  vestidas de preto... Os únicos destroços que deram à praia terão ao sido restos de redes  e a tabuleta com os dizeres "Deus é Pai".]

Dinossauros - A região do Oeste (e em particular o concelho da Lourinhã) é rica em vestígios paleontológicos dos dinossauros do Jurássico Superior (c. 150 milhões de anos). Em 1993, foi descoberto na zona de Paimogo aquilo que viria a ser considerado o maior ou um dos maiores  ninhos de ovos de dinossauro do mundo. Segundo o jovem paleontólogo e meu amigo, o Doutor Octávio Mateus, a jazida de Paimogo tem cerca de 120 ovos. “Existem ovos ou cascas de ovos mais antigos, mas o ninho de Paimogo é a mais antiga estrutura de nidificação. É o único com embriões na Europa e possui os mais antigos ossos com embriões do mundo (150 milhões de anos)”. Além disso, misturados com os ovos de dinossauro, “descobriram-se três ovos de crocodilo, os mais antigos do mundo". Essa ocorrência, conclui o jovem cientista lourinhanense, "permite-nos pensar numa relação de comensalismo entre dinossauros e crocodilos durante o Jurássico”. [Vd. Museu da Lourinhã > Paleontologia]

Mariscadores - Em agosto de 2005 foi lançado um livro interessante sobre A Apanha Artesanal de Recursos Marinhos Costeiros no Concelho da Lourinhã, da autoria da bióloga marinha Ana Silva, natural do concelho da Lourinhã. Esta actividade, embora complementar (da agricultura, da pesca, etc.), ainda hoje é um dos traços da identidade cultural das gentes ribeirinhas deste concelho. A edição do livro é da Câmara Municipal da Lourinhã (2005).

Paimogo -  A presença humana em Paimogo está documentada por vestígios arqueológicos, remontando pelo menos ao Calcolítico. A região da Lourinhã também foi habitada por povos como os iberos, os fenícios, os gregos, os túrdulos e os cartagineses. A passagem mais marcante foi, todavia, a dos romanos e, depois, a dos mouros. Na reconquista destas terras, D. Afonso Henriques foi ajudado por cavaleiros francos (isto é, oriundos da antiga Gália), entre eles D. Jordão [Jourdain, em francês], que irá ser o primeiro donatário da Lourinhã.

O Forte de Paimogo, construído em 1674, durante a regência do príncipe D. Pedro, futuro rei D. Pedro II, “fazia parte de uma linha defensiva da costa portuguesa, que começava na Praça Forte da vila de Peniche e se estendia até ao Forte de São Francisco de Xabregas, na cidade de Lisboa” (Cipriano, 2001.143).  Embora classificado como imóvel de interesse público pelo Decreto nº 41191, de 18 de Julho de 1955, encontrava-se até há uns largos anos  em estado de ruína. Foi, entretanto, objeto de recuperação pela Câmara Municipal da Lourinhã, mas está novamente em estado de abandono... (**)
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Guiné 63/74 - P16388: Blogoterapia (280): Amizades e Memórias que o tempo vai esfumando (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Foto: Com a devida vénia à Câmara Municipal do Porto


1. Em mensagem do dia 11 de Agosto de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos das Amizades e Memórias que o tempo vai apagando.

 
AMIZADES E MEMÓRIAS QUE O TEMPO VAI ESFUMANDO

Já quase no final da minha caminhada, no Parque da Cidade do Porto, fui abordado por um cavalheiro, que vinha em sentido contrário, que me perguntou educadamente pela minha naturalidade. Eu disse-lhe qual era e ele disse-me que se lembrava de mim depois muitos anos já passados, talvez cinquenta e cinco, e que eu o tinha iniciado na aprendizagem da língua francesa, e para minha surpresa começou a contar em francês: un, deux, trois, quatre, cinque...

Era um homem afável, de estatura média, que denotava além de uma boa dieta alimentar, cuidados físicos para manter a forma. Quis corresponder à simpatia demonstrada por ele e ao apelo que fazia à minha memória, mas para meu desgosto e dele possivelmente, não me fazia lembrar ninguém do meu passado.

Para avivar a minha memória ele disse-me que me tinha conhecido na Vila, na casa de uma tia dele, irmã da mãe, casada com um alfaiate onde eu estava “ aboletado”, foi o termo que ele usou, quando eu estudava no colégio. Eu teria catorze ou quinze anos e ele, pela diferença de idades de que falamos depois, teria sensivelmente metade da minha idade.

Ele, numa tentativa de acordar a minha memória adormecida, ainda me disse que era o Emílio e que a mãe dele se chamava Luísa.
Tinha seguido a carreira militar, tendo entrado na Academia Militar onde ainda estava quando aconteceu o 25 de Abril e a independência das colónias. Atingiiu o posto de coronel, actualmente já está reformado.

Eu que por um preconceito comum na nossa sociedade, justificado ou não pelo comportamento dos oficiais superiores, distantes e autoritários por formação, ou deformação, profissional mesmo quando abandonam a vida militar, fiquei muito sensibilizado por ver um coronel despir a farda militar, calçar as sapatilhas e vestir os calções de garoto, para me cumprimentar, a mim que sou um civil desalinhado e sem condecorações, e fui oficial miliciano por um acidente da história. Falámos doutras circunstâncias das nossas vidas e despedimo-nos com um até breve, numa próxima caminhada no Parque da Cidade, que ele também frequenta com assiduidade.

Abandonei o Parque da Cidade pesaroso e consternado por não ter correspondido às expectativas dessa amizade prolongada, que eu esqueci e que esse menino, hoje coronel reformado, conservou para sempre. Pus-me a contar em francês, nessa língua que eu sempre amei, como quem reza, a pedir perdão pelas falhas da minha memória traiçoeira.

Nas horas e nos dias seguintes procurei forçar a minha memória relapsa, para me abrir caminho através do nevoeiro dos dias cinzentos, dos dias tristes e dos dias escuros do meu passado. A revelação aconteceu e voltei a rever esse rapazinho, simpático e curioso, que me adoptou como o irmão mais velho, com mais conhecimentos do que ele, pois já estudava francês, uma outra forma de falar com palavras diferentes. Palavras tão diferentes que ele iria inscrever na memória para a vida inteira, associadas a esse adolescente de catorze anos que lhe tinha dedicado alguma atenção e era tão alto como o pai dele.

As crianças gravam para uma vida inteira nas folhas brancas da sua alma os conhecimentos que elas misturam com os afectos que recebem dos pais, dos avós, dos irmãos e dos amigos .

Tudo é real menos os nomes do coronel reformado e da mãe dele. Para ele e para a mãe, que recordo como uma senhora simples, simpática e delicada e que ainda é viva, conforme ele me contou, desejo uma longa vida com muita saúde.

Este episódio, na falha de memória que assinala, é semelhante a outros que me têm acontecido nos últimos anos quando comecei a despertar com nostalgia na procura dos meus velhos camaradas e amigos da Guiné. Alguns que eu tinha esquecido e não consigo lembrar, lembram-se de mim com pormenores que eu já tinha esquecido.
Um deles com quem convivi diariamente pelo menos dois meses e que encontrei num almoço da companhia 44 anos depois, cumprimentou-me com muita familiaridade e eu disse-lhe que nunca o tinha conhecido. Ele disse-me que se lembrava bem de mim e que eu nesse tempo usava bigode. Não me lembrava de alguma vez ter usado bigode. No ano seguinte, noutro almoço ofereceu-me uma fotografia onde estávamos os dois entre outros oito ou dez a jantar e eu com um bigode, que não era de cavalaria mas de infantaria para não renegar a minha Arma.
Noutro caso sou eu que me lembro muito bem de um alferes de outra companhia que reforçou a minha durante dois meses, que dormiu no meu quarto durante esse tempo, com quem tive uma boa relação de amizade. Para meu desgosto, ele apagou-me completamente da memória sem se dar conta pois ele era um bom camarada e acredito que pela vida fora conservou as boas qualidades que lhe reconheci, quando jovem.

Ao camarada do destacamento de fuzileiros com quem falei por telefone este ano, e que me disse que se lembrava bem de mim, das muitas refeições que fizemos na messe, não tive coragem de lhe dizer que não me lembrava nada dele e menti-lhe.

Enfim quando estivemos em África, ao tempo na chamada província portuguesa da Guiné, não trouxemos a imagem de elefantes vivos, que já não havia, nem a sua memória prodigiosa. Viemos com o cérebro esturricado e zonzo pelo sol ardente dos trópicos, pelo calor do álcool que o adormecia, pelo estrondo das granadas e das bombas e pelo matraquear das metralhadoras.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de agosto de 2016 Guiné 63/74 - P16384: Blogoterapia (279): A odisseia da minha prótese (Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728)

Guiné 63/74 - P16387: Blogpoesia (465): "Pianista mágica" e "Vou para a minha janela falar com a lua", por J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Dois belíssimos poemas do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), dos que nos vai enviando ao longo da semana, e que nós publicamos com prazer:


Pianista mágica

É mágica esta pianista!

Saem-lhe pelos dedos,
sem uma nota ou pauta à frente,
tão belos e longos concertos
de piano.

Nos confundem e enlevam
aqueles toques firmes,
muito precisos sobre as teclas.

Inefáveis, maviosos bailarinos,
ora pretas ora brancas,
num cortejo imenso gracioso.

Descrevem arcos.
Voos picados, rumo ao céu
e logo ao abismo.

E sua fronte. O seu rosto
como uma estrela,
esparze ininterruptas centelhas
incandescentes
que inflamam
as almas das plateias.

Sozinha enfrenta orquestras numerosas,
desfiando os gigantescos génios:
Schuman, Rachmaninov, Lizt, Brahms
e tantos mais
que os conceberam no silêncio.

Que graça e donaire exala seu corpo,
uma obra prima,
na banqueta, frente ao piano preto
de caixa aberta!...

Ouvindo Katya Buniatishvili tocando Brahms

Tapada de Mafra, 13 de Agosto de 2016
8h21m

esplendoroso amanhecer de sol

Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes

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Vou para a minha janela falar com a lua

Há tanto não sei dela.
A noite é escura.
Até as estrelas se esconderam.
Que é feito do seu luar?

Preciso saber os seus segredos.

A terra é bela.
Porque anda louca a humanidade?

Até o sol a flagela.

Tanto incêndio!...
Tanta dor!...

Donde vem este delírio?
Para onde aquela harmonia da Natureza,
Quando tudo surgia à hora,
Em dose certa?

Luar de Agosto.
Que estios bons.
Invernos brandos.

Até os rios se continham nos seus caminhos.

Era verde o verde
Das searas loiras.

E os rebanhos livres
Saboreavam paz!

Agora é guerra e fome.
A dor impera.
Parece até que o Criador supremo
Esqueceu a sua obra...

Tapada de Mafra, 10 de Agosto de 2016
9h47m

lindo dia de sol, muito quente ao pé do mar

Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16365: Blogpoesia (464): "De andarilho" e "O mês de Agosto...", por J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 63/74 - P16386: Álbum fotográfico de Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089, ao tempo do BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto, 1971/73) - Parte IX: Março de 1972, Cacheu... "Pintado de branco, o forte / que defendeu a velha feitoria. / Aqui, o negro evitava a morte / tornando-se mercadoria"


Foto nº 47 > Guiné > Região do Cacheu > Cacheu > Março de 1972 > Forte da feitoria, junto ao rio; "Pintado de branco, o forte / que defendeu a velha feitoria. /Aqui, o negro evitava a morte / tornando-se  mercadoria"...


Foto nº 46 > Guiné > Região do Cacheu > Cacheu > Março  de 1972 >  Monumento ao Infante D. Henrique: "O Infante das Descobertas / também aqui é lembrado / em pedra, de vistas abertas, /astrolábio e texto lavrado"... "Mas é o fresco camarão / o rei destas memórias",


 Foto nº 46A > Guiné > Região do Cacheu > Cacheu > Março  de 1972 >  Monumento em homenagem do "V Centenário da Morte do Infante Dom Henrique"...."Mas é o fresco camarão / o rei destas memórias, /pretexto de um belo serão / com suculentas histórias"...


Foto nº 45 > Guiné > Região do Cacheu > Cacheu > Março de 1972 > Avenida de entrada na vila,.. "Uma pequena avenida / à entrada da povoação. / De tão erma e contida / era de escassa admiração"


 Fotos (e legendas): © Francisco Gamelas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089 (Teixeira Pinto, 1971/73), adido ao BCAÇ 3863 (1971/73) (*).

Francisco Gamelas, que é engenheiro eletrotécnico de formação, quadro superior da PT Inovação reformado, vive em Aveiro, e publicou recentemente "Outro olhar - Guiné 1971-1973" (Aveiro, 2016, ed. de autor, 127 pp. + ilust; preço de capa 12,50 €). Os interessados podem encomendá-lo ao autor através do seu email pessoal franciscogamelas@sapo.pt. O design é da arquiteta Beatriz Ribau Pimenta, a partir da foto. nº 29. Tiragem: 150 exemplares. Impressão e acabamento: Grafigamelas, Lda, Esgueira, Aveiro.

Do poema " Memórias do Cacheu" (pp. 117/119) retirámos alguns versos que completam as legendas... Com a devida vénia... (LG).


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