terça-feira, 31 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17920: (D)o outro lado do combate (14): a odisseia do português, da Murtosa, Rodrigo Rendeiro: uma viagem atribulada, de cerca de mil km, de 3 a 26 de setembro de 1963, de Porto Gole, onde tínha um estabelecimento comercial e era casado com uma senhora mandinga, de linhagem nobre, Auá Seidi, e tinha cinco filhos,até ao Senegal (Samine, Ziguinchor e Dacar), unindo ocasionalmente o seu detino ao do PAIGC... Relatório, assinado por ele, mas de autenticidade duvidosa...



Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72 > Vista (parcial) da tabanca de Bambadinca, com o  Rio Geba ao fundo, e a saída para leste (no sentido de Bafatá)... Em primeiro plano, lado nordese do quartel e um dos abrigos, sobranceiros à tabanca, e a morança do comerciante português Rodrigo Rendeiro, do outro lado do arame farpado... Ficava do lado direito, quando se subia, vundo de Bafaté e do rio Geba,  a famosa rampa de acesso ao quartel e posto administrativo de Bambadinca.

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Portal Casa Comum > Instituição:Fundação Mário Soares

Pasta: 07075.147.042 [Clicar aqui para ampliar]

Título: Relatório sobre o ingresso de Rodrigo Rendeiro no PAIGC

Assunto: Relatório assinado por Rodrigo Rendeiro, remetido ao Secretário Geral do PAIGC, sobre a sua saída de Porto Gole até ao ingresso no PAIGC.

Data: Quinta, 26 de Setembro de 1963

Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios XI 1961-1964.

Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral

Tipo Documental: Documentos

Direitos:
A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

Arquivo Amílcar Cabral > 04. PAI/PAIGC > Relatórios/Directivas


Citação:
(1963), "Relatório sobre o ingresso de Rodrigo Rendeiro no PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41411 (2017-10-30)


Transcrição:

Dacar, 26 de setembro de 1963

Relatório ao Exmo. Sr. Secretário do PAIGC sobre a minha saída de Porto Gole, até ao ingresso nas fileiras nacionalistas (PAIGC)

No dia 3 de setembro de 1963, cerca das 7 horas da tarde, chegou a Porto Gole para libertação desta pequena vila da Guiné, dita Portuguesa, uma força nacionalista comandada pelo camarada Caetano Semedo,  e que não encontrou resistência por parte da população civil, visto esta comungar da mesma ânsia de liberdade do jugo colonialista português comandado por Salazar.

Quando o camarada Semedo chegou à minha casa comercial, convidou-me para abrir a porta da residência, com palavras e gestos corteses, o que logo me cativou e mais ainda fez luz no meu espírito[:] que os nacionalistas combatem por, e com, um ideal elevado, ou seja, a independência da sua terra do jugo capitalista e opressão salazarista, e não são indivíduos de baixos instintos, como diz a propaganda imperialista.

O camarada Semedo sabia perfeitamente que eu tinha conhecimento da sua base em [Baradoulo e não Barradul, vd. mapa de Mamboncó], povoação biafada, a 10 km de Porto Gole, e que da minha loja partia[m] os abastecimentos para os seus camaradas de luta. O meu empregado José Duarte Pinto era o responsável dos civis militantes em Porto Gole, [e] a quem eu dizia sempre que estivesse tranquilo, que da minha parte jamais haveria traição alguma, não só por viver na Guiné, dita Portuguesa, onde labutava [h]á vinte anos, mas também por encontrar nessa Guiné a mulher, de raça mandinga, e os nossos  cinco filhos, que são a minha principal família.

O camarada entendeu, como eu estava colaborando com eles, e para não sofrer [represálias](*) da parte das autoridades portuguesas, levar-me para a base de[ Baradoulo, e não Barradul] e depois para lugar seguro. Assim começou a minha viagem até à fronteira do  Senegal, passando pelas bases de Mansodé [, a sudoeste de Mansabá] e Morés, onde estive 14 dias, sendo tratado com todos os pergaminhos (sic) de delicadesa por parte do camarada Osvaldo Máximo Vieira e de seus camaradas de luta.

Parti do Morés no dia 17 do corrente, pelas 4 horas da tarde, para a fronteira do Senegal, jantando na povoção de [Fajonquito, a sul do Olossato] (**), comandada pelo camarada Mamadu Indjai, pessoa de trato afável que me dispensou todas as atenções. Depois de jantar nesta base, partimos para a povoação de Lete [, ou melhor, Leto, a sudoeste do Tancroal], onde cheguei aproximadamente às 3 horas da madrugada do dia 18. Descansámos nesta povoação até cerca das 4 horas da tarde. Donde partimos para a travessia [do rio Cacheu e não do rio Farim...] que já se fez de noite, devido à vigilância duma vedeta colonialista. 

Cerca das duas horas da manhã [, do dia 19,] chegámos à povoação fronteiriça de Jiribã [e não Giribam], já [no] Senegal, onde descansámos até  às 7 horas da manhã. De seguida partimos para [Ierã, em português, e não Eran], onde o guia nos antecedeu, partindo para Samine [, a leste de Ziguinchor, capital de Casamansa, e não Zinguichor]. Devido a má interpretação deste guia, as autoridades senegalesas tomaram-nos {por] prisioneiros de guerra, pelo que fomos detidos e algemados. 

À nossa chegada, o camarada Lourenço [Gomes], responsável do Partido em Samine, protestou junto das autoridades senegalesas, fazendo-as ver que não éramos prisioneiros mas sim refugiados que vínhamos pedir asilo no seio do PAIGC. Então fomos desalgemados e conduzidos ao lar dos camaradas,  onde almoçámos. Após o almoço seguimos para Ziguinchor, ainda detidos,  onde o camarada Lourenço [Gomes] nos antecedeu para tratar da nossa [libertação](***). 

Mas em Ziguinchor,  ainda durante [os] 4 dias [em]  que lá estivemos, continuámos detidos,  devido a [má] comunicação, com a gendarmaria, de Samine [e de] Ziguinchor, como prisioneiros. Após estes 4 dias, saímos de Ziguinchor para Dacar no dia 23, onde chegámos somente por volta das 8 horas da noite do [dia] 25, devido a uma avaria na viatura que nos transportava.

Como os nossos camaradas de Dacar, que têm como responsável o camarada [Pedro] Pires, não soubessem da nossa chegada, tivemos que dormir na prisão até  ao dia seguinte.  Depois de termos contacto como o camarada [Pedro] Pires, este dirigiu-se ao ministério do Interior, tratou dos nossos interesses e fomos postos em liberdade. Dirigi-me para o lar dos camaradas, onde me encontro desde o dia 25 do corrente.

Com o vivo protesto de saudações para o nosso partido, e que a nossa luta contra os colonialistas portugueses alcance em breve o seu fim.

[Assinatura, legível] Rodrigo Rendeiro,


 Revisão, fixação de texto e notas: Luís Graça

*No original, repressões; **  No original, Feijão Quito; *** No original, liberdade.


Parte final do relatório, datilografado, de 2 páginas, com a assinatura do comerciante português Rodrigo Rendeiro, datado de Dacar, 26 de setembro de 1963... 


1. Das vezes (duas ou três, pouco mais) que estive na sua casa, em Bambadinca, convidado para os seus famosos almoços de frango de chabéu, em geral aos domingos ou feriados, entre julho de 1969 e março de 1971, ele nunca me falou desta "odisseia" nem muito menos do seu passado de eventual militante ou simpatizante do PAIGC. 

Nem poderia falar, obviamente,  estando na presença de militares portugueses, alferes e furriéis milicianos aquartelados em Bambadinca (CCAÇ 12, CCS/BCAÇ 2852, CCS/BART 2917...), com quem gostava de conversar, aproveitando para matar saudades de Portugual e da sua terra, Murtosa,  e, eventualmente, saber coisas da tropa e da guerra...

Só muito mais tarde, depois do 25 de Abril, é que alguns de nós viemos a saber que o Rendeiro tinha sido  "informador" da PIDE/DGS (*), e que inclusive teria tido problemas na terra da sua amada esposa, Auá Seidi, mandinga, de linhagem nobre, e dos seus queridos filhos. (Sou testemunha do amor que ele tinha aos filhos, embora ele nunca os tenha apresentado  a n+os, tal como nunca nos mostrou a esposa).

Dando como certo o relato destes acontecimentos, mas pondo em causa a "sinceridade" do Rendeiro que, de um dia para o outro, se vê "apanhado" pela teia do PAIGC, os dados biográficos a seu respeito batem certo com o que  dele conhecíamos:

(i) o seu nome completo era Rodrigo [José[ Fernandes Rendeiro, natural da Murtosa, onde de resto iria falecer, tendo o seu funeral ocorrido em 10/9/2011, conforme relato do nosso camarada Leopoldo Correia, de quem era amigo desde os tempos da Guiné (##);

(ii) em Bambadinca, tratávamo-lo simplesmente pelo apelido, Rendeiro; era um homem discreto, polido, magro de cara, moreno, que pouco falava de si; e eu da sua terra, só conhecia a ria de Aveiro e o ensopada de enguias, tinha lá ido de comboio em 1963, com 16 anos numas férias grandes;

(iii) em Banmbadinca era nosso vizinho e, de certo modo, nosso "protegido"; além disso, tinha negócios com a tropa (aluguer de viaturas para transporte de material);

(iv) em 1963, o Rendeiro já estava na Guiné há 20 anos, ou seja desde os seus 17 anos; deve ter emigrado, portanto, em plena II Guerra Mundial (c. 1942/1943), e pelas nossas contas deve ter nascido por volta de 1925/1926, e não em 1920, como eu supunha, teria portanto 44 anos quando eu conheci em Bambadinca;

(v) tal como consta do seu "depoimento" acima transcrito, casou com uma senhora, de etnia mandinga /(, de seu nome Auá Seidi), de que tinham 5 filhos (à data dos acontecimentos);

(vi) nesse ano de 1963 deve ter nascido o seu filho Rodrigo Fernandes que viria a morrer, aos 53 anos de idade,  em 24 de abril de 2016 (, conforme notícia necrológica que encontrámos na Net); residia em Pardelhas, Murtosa, e era "irmão de Maria Libânia, Joaquim Carlos, Joana Maria, Álvaro Henrique, João Herculano, Maria Paula e Hilário, todos com os apelidos Fernandes Rendeiro,  e de Ana Maria Fernandes Rendeiro Bernard, já falecida" [, licenciada em direito, procuradora da República, em Lisboa];

(vii) o comandante Caetano Semedo, aqui citado, devia ser da família de  Inácio Semedo (,conhecido agricultor de Bambadinca, velho nacionalista, de quem Amílcar Cabral foi padrinho de casamento,  e foi um dos históricos do PAIGC); é uma história a aprofundar, com mais tempo e vagar...

2. Tenho dúvidas sobre a "vontade sincera e espontânea" do Rendeiro em pedir a adesão ao PAIGC e ficar em Dakar. Ele terá sido "obrigado" pelas circunstâncias a "colaborar" com o o PAIGC... Era comerciante em Porto Gole, em 1963, e vivia das boas relações com a população indígena, mas também não podia dar-se ao luxo de entrar em rota de colisão com as autoridades portuguesas. Afinal, a Guiné era a sua segunda terra e era lá que ele queria criar os seus filhos e dar-lhes um futuro.  

Lendo com atenção o documento que  acima se transcreve, parece-nos que o comteúdo e a forma não poderiam ser da lavra do Rendeiro... Alguém quis (talvez o "camarada Caetano Semedo" pou talvez o Lourenço Gomes, que estava no Senegal) mostrar bom serviço ao secretário-geral do PAIGC. A "conquista" de Porto Gole  e a "adesão" de um comerciante branco à "luta de libertação" eram dois "grandes roncos", em meados de 1963, com seis meses de guerra...

O documento está escrito em bom português, com um erro ou outro de ortografia, que corrigimos, mas é seguramente muito melhor do que o português da maior parte dos comandantes operacionais do PAIGC.

O Rendeiro, casado com uma senhora mandinga, de linhagem nobre, devia ser pessoa considerada pelos militantes e simpatizantes do PAIGC, e pela população indígena em geral. No relatório é citado o famigerado Mamadu Indjai, mandinga, que irá pôr o setor L1 (Bambadinca) a ferro e fogo em meados de 1969... Acredito que, por razões de sobrevivência, o Rendeiro tenha sido obrigado a colaborar no abastecimento da guerrilha da base de Barradul, a 10 km a norte  de Porto Gole.

Só o seu amigo (e nosso camarada) Leopoldo Correia (##), a par dos seus filhos (que devem viver em Portugal, na Murtosa), pode esclarecer este período obscuro e dramático da vida do Rendeiro. Ele regressou a casa, mas não sabemos quando. E provavelmente nessa altura deve-se ter estabelecido em Bambadinca onde eu e outros camaradas o conhecemos em meados de 1969.

Enfim, mais um episódio para a série "(D)o outro lado do combate" (###). Pode ser que o Jorge Araújo, nosso colaborador permanente e conhecedor do Arquivo Amílcar Cabral,  queira e possa acrescentar ainda  novos dados sobre este caso. O Jorge teve ter tido oportunidade de conhecer o Rendeiro, em Bambadinca, nos anos em que esteve no Xime, Enxalé e depois Mansambo (entre 1972 e 1974).

Também a nossa amiga Maria Helena de Carvalho, filha do Pereira do Enxalé, é capaz de saber algo mais sobre esta história. O Rendeiro, em Porto Gole, e o Pereira,no Enxalé, eram amigos e talvez amigos... O Pereira fixou-se em Bissau, com a família, em 1962. O Reneiro ficou. Não haveria muitos mais brancos em redor, no início da década de 1960.


3. Tentando reconstituir (e estimar o tempo de) o percurso feito pelo  Rendeiro (e a sua escolta), calculamos que ele terá feito cerca de mil km, de Porto Gole (partida a 4/9/1963) a Dacar (chegada a 25/9/1963). É uma estimativa grosseira, com base nas estradas de hoje.

O Rendeiro fez pelo menos 160 km a pé, de Porto Gole até à fronteira senegalesa, entre Bigene e Guidaje:

(i) partiu de Porto Gole no dia 4 de setembro, possivelmente logo de manhã, passando pela base de Mansodé e chegando ao Morés possivelmente no dia seguinte;

(ii) aqui ficou 14 dias, partiu no dia 17, pelas 4 horas da tarde, a caminho da fronteira;

(iii) jantou na povoção de Fajonquito, a sul do Olossato;

(iv) depois do jantar, partiu para a povoação de Leto, a sudoeste do Tancroal, aonde chegou aproximadamente às 3 horas da madrugada do dia 18;

(v) descansa nesta povoação até cerca das 4 horas da tarde do dia 18,  partindo de seguido para a travessia do rio  Cacheu, o  que já se fez de noite, para ilkudir vigilância da marinha portuguesa;

(vi) cerca das duas horas da manhã  do dia 19, chegou à povoação fronteiriça de Giribam, já no Senegal; aqui descansou até  às 7 horas da manhã;

(vii) partiu depois, em viatura, para Ierã e Samine onde foi detido pela gendarmaria;

(viii) depois do almoço, seguiu para Ziguinchor, onde ficou mais 4 dias detido;ix)

(ix) esclarecida a sua situação e o seu novo estatuto, seguiu de Ziguinchor para Dacar no dia 23, aonde chegou somente por volta das 8 horas da noite do dia 25, devido a uma avaria na viatura que o transportava (, a ele e à sua escolta).

Em resumo, as forças do PAIGC levariam normalmente entre  4 a 5 dias, do centro da Guiné (Porto Gole, na margem direita do rio Geba) até à fronteira (,corredor de Sambuiá), fazendo uma média de 30/40 km por dia. Um ferido grave, levado para o hospital de Ziguinchor, morreria fatalmente pelo caminho,,,
____________


(...) Infelizmente já não está entre nós, pois foi sepultado na sua terra natal [, Murtosa,] em 10/09/2011, tendo eu assistido ao funeral e tido contacto com toda a " ínclita geração", os filhos de Fernandes Rendeiro / Auá Seide, da qual só tenho a dizer bem. A que estudava em Coimbra, era licenciada em direito e era magistrada: faleceu também há cerca de 5 anos. Era juíza do Ministério Público em Lisboa. (...)

/###) Último poste da série > 25 de outubro de  2017 > Guiné 61/74 - P17905: (D)o outro lado do combate (13): Jovens recrutas do PAIGC... (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P17919: Dossiê Guileje / Gadamael (30): O Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje (2) (Coutinho e Lima)

Guiné - Região de Tombali - Guileje - Foto n.º 42 do Álbum fotográfico do Cor Inf Ref Jorge Parracho. Vista aérea, geral, do aquartelamento e tabanca.

1. Segunda parte do trabalho subordinado ao nunca esgotado dossiê Guileje/Gadamael, da autoria do nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Ref (ex-Cap Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), enviado ao nosso Blogue em 27 de Outubro de 2017, que devido a ser um pouco extenso foi publicado em dois postes.


O Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje

4. Reunião de Comandos realizada em 15MAI73

Em 15MAI73, realizou-se no Quartel-General do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, uma Reunião de Comandos, presidida pelo Sr. Comandante-Chefe, Sr. General ANTÓNIO DE SPÍNOLA, estando presentes o Sr. Comandante-Adjunto Operacional, Sr. Brigadeiro LEITÃO MARQUES (viria pouco tempo depois a ser nomeado Oficial da Polícia Judiciária Militar, encarregado de me instaurar auto de corpo de delito, na sequência da Retirada de Guileje), Senhores Comandantes-Adjuntos, Comodoro ANTÓNIO HORTA GALVÃO DE ALMEIDA BRANDÃO, Comandante da Defesa Marítima da Guiné; Brigadeiro ALBERTO DA SILVA BANAZOL, Comandante Territorial Independente da Guiné; Coronel GUALDINO MOURA PINTO, Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné. Tomaram igualmente parte na reunião, o Chefe do Estado-Maior do Comando-Chefe, Coronel do Corpo de Estado-Maior (CEM) HUGO RODRIGUES DA SILVA e os Chefes das Repartições de Informações e Operações do QG do Comando-Chefe, respectivamente Tenente-Coronel de Infantaria ARTUR BATISTA BEIRÃO e Tenente-Coronel do CEM MÁRIO MARTINS PINTO DE ALMEIDA.

Nos trabalhos de pesquisa para escrever o meu livro A RETIRADA DE GUILEJE, encontrei, no Arquivo Histórico-Militar do Exército, a ACTA dessa Reunião de Comandos, com 62 páginas. Dessa acta, transcrevo o que considero mais significativo, no que se relaciona com Guileje.
 
4.1 - Da intervenção do Sr. Comandante Adjunto Operacional, Sr. Brigadeiro LEITÃO MARQUES: 
“(...). No mínimo, e disso não restam quaisquer dúvidas, o In está a preparar as necessárias condições para conquista e destruição de guarnições menos apoiadas por dificuldade de acesso (GUIDAGE, BURUNTUMA, GUILEJE, GADAMAEL, etc), a fim de obter os êxitos indispensáveis à sua propaganda internacional e manobra psicológica - isto está já ao alcance das suas possibilidades militares. Quanto às vantagens para manobra psicológica In, não podemos esquecer que qualquer êxito pode conduzir à captura de prisioneiros em número tal que possa constituir um elemento de pressão psicológica sobre a Nação Portuguesa. A dar-se este facto e aceitando que a orientação comunista prevalecerá, tal elemento será aproveitado ao máximo para desmoralizar a retaguarda e manter-se-á até serem atingidos os objectivos finais em todas as PU. Assisti ao pressionamento psicológico do povo americano por causa dos seus prisioneiros no Vietname do Norte durante quatro anos; e senti em toda a sua profundidade o efeito desmoralizador desse pressionamento, o qual, em larga medida, juntamente com o elemento económico, levou à agitação interna das massas e à capitulação, apesar de todo o poderio militar americano. 
O que acontecerá se tivermos de enfrentar situação semelhante? (...). O In não perderá a oportunidade e tem experiência técnica para a aproveitar ao máximo. É aqui na Guiné onde o problema é mais agudo e o In sabe isso; o seu esforço será aqui realizado. (...)”

(Nota – os sublinhados são meus).

 4.2 - Da intervenção do Sr. Chefe da Repartição de Informações (REP/INFO), Sr. Ten. Cor. de Infª BATISTA BEIRÃO:
“Na ZONA SUL, (...) o In ameaça directamente as guarnições de GADAMAEL e GUILEJE a partir da REP GUINÉ, para o que concentrou meio sobre a fronteira dentre os quais se destacam os carros de combate referenciados em KANDIAFARA, a cuja acção aquelas guarnições se apresentam particularmente expostas. 
(...)
No imediato, julga-se que o IN:
(...)
- intente uma acção de tipo convencional com carros de combate contra GADAMAEL,GUILEJE e/ou BURUNTUMA, tirando partido da vulnerabilidade destes pontos a esse tipo de acções e visando o aniquilamento ou captura das guarnições.
(...)
Num futuro próximo, prevê-se ainda que o In
(...)
- tente a eliminação sistemática das guarnições mais expostas sobre a fronteira, em acções de tipo convencional.
(...)
Resta referir, a finalizar, que o quadro dispersivo do largo potencial referenciado e a elevada capacidade de manobra do In não permitem, como se desejaria, uma melhor objectivação do esforço do In atenta a fluidez com que se revelam e o quadro geral que se desenha; e apenas pode concluir-se por uma situação na qual todo o TO, sem qualquer exclusão, acaba por constituir uma vasta zona de preocupação, na qual dificilmente se podem, de momento, visualizar priorizações”.

(Nota – os sublinhados são meus)

Este último parágrafo é incoerente com o que consta nas transcrições anteriores. Vamos ver se nos entendemos: se não se podem visualizar priorizações, como se afirma as intenções do In, no imediato e num futuro próximo?

4.3 - Da intervenção do Sr. Chefe da Repartição de Operações (REP/OPER), Sr. Ten. Cor. do CEM - PINTO DE ALMEIDA
“(...). Assim, considera-se essencial: 
a. reforçar os efectivos das guarnições mais isoladas ou às quais o In tem maior facilidade de impedir a chegada de reforços, em particular as situadas sob a fronteira. 
Para este reforço computam-se as necessidades em: 
Sector Sul
(...)
3 Companhias
(...)
3. (...). Se não forem concedidos os reforços solicitados (...) julga-se que será necessário remodelar o dispositivo, reforçando guarnições que sob o ponto de vista militar se consideram essenciais. (...)”

Certamente que o Sr. Chefe da REP/OPER, de acordo com as transcrições feitas, tinha em mente, entre outras, a guarnição de Guileje.

5. O que se esperava que o Comando-Chefe fizesse, face ao constante na Acta da Reunião de Comandos de 15MAI73 

5.1 - Considerando as intervenções: 
- Do Sr. Brigadeiro Leitão Marques:
“(...) o In está a preparar as necessárias condições para conquista e destruição de (...). Guileje. (...). Isto está já ao alcance das suas possibilidades militares...”

- Do Sr. Chefe da REP/INFO:
No imediato, julga-se que o IN:
(...)
“- intente uma acção de tipo convencional com carros de combate contra... GUILEJE... visando o aniquilamento ou captura da guarnição...”

- Do Sr. Chefe da REP/OPER:
“a. reforçar os efectivos das guarnições mais isoladas ou às quais o In tem maior facilidade de impedir a chegada de reforços, em particular as situadas sob a fronteira”.

5.2 - O Comando Chefe, ao constatar, em 18MAI73, quando o IN iniciou as flagelações a Guileje, que se concretizava a sua intenção de um ataque em força, que conhecia desde 27DEZ72 (Relatório de Interrogatório n.º 108, referido atrás), deveria, de imediato accionar o conveniente reforço da guarnição de Guileje, conforme preconizara o Sr. Chefe da REP/OPER e não se argumente que o Comando-Chefe não tinha meios para reforçar o COP 5, porque se assim fosse revelava uma incompetência total.

Para accionar o reforço imediato, dispunha da Companhia de Paraquedistas n.º 121, que segundo as declarações do Sr. Chefe da REP/OPER, (quando ouvido como testemunha em 27AGO73, como testemunha), “encontrava-se em Bissau em descanso”, desde 20ABR73. Esta Companhia podia embarcar na noite de 18MAI, chegando a Gadamael na manhã do dia 19 e a Guileje no mesmo dia. Esteve a reforçar Guidage, desde 23 a 30MAI (mesma informação do Chefe da REP/OPER); possivelmente não seguiu para Guileje, porque já estava “prometida” ao COP 3 (Guidage)!... Além disso, estavam na Península do Cantanhez, outras 2 Companhias de Paraquedistas que, com facilidade poderiam deslocar-se directamente, por terra, para Guileje; estas Companhias foram mais tarde reforçar Gadamael. Não tenho a certeza de que se o COP 5 tivesse sido reforçado, em tempo oportuno, isso resolveria o problema. Não tenho qualquer dúvida que, se esse reforço tivesse sido accionado, não teria decidido a retirada.

O não reforço só poderá entender-se, com grande esforço de boa vontade, se o Sr. Chefe da REP/OPER, estivesse à espera das 3 Companhias, vindas da Metrópole, para reforçar o Sector Sul. Se foi assim, bem podia esperar sentado...

O Sr. Comandante-Chefe decidiu deixar à sua sorte a guarnição de Guileje, demonstrando total insensibilidade, relativamente a centenas de pessoas, cujas vidas estavam em perigo e desresponsabilizando-se da sua obrigação, passando toda a responsabilidade para o Comandante do COP 5, que teve que decidir o que fazer.


6. Conclusão 

O que se passou em Guileje, com início em 18MAI73, foi da inteira responsabilidade do Comando-Chefe e do seu Estado-Maior.

Na verdade, ao tomar conhecimento da intenção o In sobre Guileje (Relatório de Interrogatório de 27 DEZ73) e, não tendo levado em consideração essa intenção, nem tão-pouco informando desse facto o Comandante do COP 5, quando esse foi criado, permitiu que o PAIGC tivesse preparado a sua acção contra o aquartelamento de Guileje, durante vários meses (conforme se soube mais tarde), sem que houvesse, da parte das NT, qualquer iniciativa que a dificultasse. Se o Comando-Chefe e o seu Estado-Maior tivessem actuado como era sua obrigação: confirmar o conteúdo do relatório, accionar o patrulhamento ofensivo por forças especiais e informar o COP 5 (quanto mais não fosse, porque “homem prevenido vale por dois”), possivelmente não teria impedido que o IN tivesse desencadeado o ataque; este, seguramente, não teria tido a intensidade e a duração que se verificou; é esta a minha convicção.

Mesmo depois de ter solicitado por mensagem, em 20MAI às 03.20 horas, o reforço de uma Companhia de Tropa Especial e no mesmo dia, ao fim da tarde, ter apresentado idêntico pedido, pessoalmente ao Sr. General Spínola, não me foi atribuído qualquer reforço. E o que fez então o Sr. Comandante-Chefe? Para responder a esta pergunta, socorro-me do depoimento do Sr. Coronel Para Rafael Durão, quando ouvido, como testemunha em 03JUN73, no processo que me foi instaurado.

“(...). No dia 21 recebi directamente de Sua Excelência o General Comandante-Chefe ordem para manter a todo o custo o destacamento de GUILEJE, naquele local, para o que devia verificar as necessidades em meios para lá colocar os abastecimentos de toda a ordem, mais de 200 toneladas que se encontravam em GADMAEL e CACINE e outros ainda a chegar de BISSAU. Efectivamente fui nomeado Comandante da Zona Sul, ficando o COP 5 sob o meu Comando”.

O meu pedido de reforços foi ignorado pelo Sr. Comandante-Chefe e era o Sr. Coronel Durão que iria verificar as necessidades em meios. Devo referir que o Sr. Coronel Durão nunca tinha estado no Sul da Província e, além disso, a colocação dos abastecimentos em Guileje, naquele momento era secundário; o que interessava era, como primeira prioridade, aliviar a pressão do IN, além de criar as condições mínimas de vida em Guileje, que passavam por assegurar o abastecimento de água e outras funções primárias. Acresce que, tendo chegada às matas de Mejo, (mensagem da REP/INFO do dia 20MAI, às19.00 horas) o 3.º Corpo de Exército do PAIGC, admitindo a possibilidade de actuar sobre Guileje, havia grande probabilidade de o Sr. Coronel Durão, na sua deslocação apeada de Gadamael para Guileje (se fosse essa a sua intenção) ser interceptado pelo IN.

Tendo-se iniciado o ataque do IN em 18MAI, só passados 3 dias (21MAI) é que o Sr. General Spínola nomeou o Sr. Coronel Durão para resolver a situação, demonstrando assim a sua pouca preocupação pelo problema, estando em grande risco centenas de vidas humanas: militares, milícias e população de Guileje.

É também de realçar a missão que o Sr. Coronel Durão recebeu directamente do Sr. General Comandante-Chefe “para manter a todo o custo o destacamento de Guileje, naquele local”. A defesa a todo o custo significa resistir até ao último homem. É altamente discutível se, naquelas circunstâncias, face ao poderio do Inimigo, se devia exigir tal missão.

Regresso à acta da reunião de 15MAI73 (3 dias antes do início da acção inimiga), para transcrever outra parte da intervenção do Sr. Brigadeiro leitão Marques.

“Quanto às vantagens para manobra psicológica In, não podemos esquecer que qualquer êxito pode conduzir a captura de prisioneiros em número tal que possa constituir um elemento de pressão psicológica sobre a Nação Portuguesa... Tal elemento será aproveitado ao máximo para desmobilizar a retaguarda e manter-se-á até serem atingidos os objectivos finais em todas as PU... O que acontecerá se tivermos de enfrentar situação semelhante?”

Se não tivesse tomado a decisão de retirar, haveria grande probabilidade de se verificar o que previa o Sr. Brigadeiro (captura de grande número de prisioneiros) e, neste caso, Guileje poderia ter sido o “Dien Bien Phu Português”.

Lembro que a Batalha de Dien Bien Phu, travada entre o Viêt Minh e o Corpo Expedicionário Francês no Extremo Oriente, entre 13 de Março 7 de Maio de 1954, foi a última batalha da guerra da Indochina.

Após 8 semanas de duros combates, as tropas do Vietname do Norte, uma força de cerca de 80.000 homens, que sofreu 7900 mortos e 15.000 feridos, venceram as tropas da União Francesa. Os Franceses registaram 2293 mortos e 5193 feridos; 11.721 soldados foram feitos prisioneiros e a maioria não sobreviveu ao cativeiro, tendo sido repatriados apenas 3290.

Comandava o Exército Popular Vietnamita o General GIAP; o Exército da União francesa era comandado pelo Coronel CHRISTIAN DE CASTRIES (nomeado General durante a batalha).

Para concluir, devo referir que o autor material da Retirada de Guileje fui eu, mas o autor moral foi o Comando-Chefe e o seu Estado-Maior.

Alexandre da Costa Coutinho e Lima
(único Comandante do COP 5, em Guileje – JAN a MAI 73)
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Nota do editor

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segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17918: Dossiê Guileje / Gadamael (29): O Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje (1) (Coutinho e Lima)


Guiné - Região de Tombali - Guileje - Foto n.º 42 do Álbum fotográfico do Cor Inf Ref Jorge Parracho. Vista aérea, geral, do aquartelamento e tabanca.


1. Em mensagem do dia 27 de Outubro de 2017, o nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Ref (ex-Cap Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), enviou-nos mais um trabalho seu subordinado ao nunca esgotado dossiê Guileje/Gadamael, desta feita com uns considerandos sobre o Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje, que devido a ser um pouco extenso vamos desenvolver em dois postes.


O Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje 

1 . Antecedentes remotos 

O Sr. General António de Spínola iniciou as suas funções de Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné em 20 MAI 68. Sucedeu ao Sr. General Arnaldo Schulz, na mesma função.

O Sr. General Spínola encontrou, na fronteira Sul com a Rep. da Guiné Conacry, o seguinte dispositivo, ocupado por tropas do Exército Português:
Aldeia Formosa - uma Companhia
Gandembel - uma Companhia (destacamento em Ponte Balana)
Gadamael - uma Companhia (destacamento em Ganturé)
Sangonhá - uma Companhia (destacamento em Cacoca)
Mejo - uma Companhia
Cacine - uma Companhia (destacamento em Cameconde)

Desta forma, a fronteira Sul estava ocupada com aquartelamentos, desde Aldeia Formosa até Cacine; destes destaca-se o estacionamento de Gandembel/Ponte Balana, mesmo em cima do chamado “corredor de Guileje”, que o Sr. General Arnaldo Schulz, então Comandante-Chefe, determinara a sua ocupação em 08ABR68. Em minha opinião, esta decisão fora acertada, porquanto pelo dito corredor, o PAIGC introduzia cerca de 70% dos abastecimentos para toda a província. A Companhia que guarnecia essa posição é que sofreu as respectivas consequências, pois o PAIGC reagiu fortemente, desde o início, deslocando para a zona vário bigrupos, para permitir a circulação das suas colunas de reabastecimento.

Seis dias depois de ter iniciado as suas funções, o Sr. General Spínola fez uma primeira visita a Gandembel, determinando de imediato o reforço da Companhia com um Pelotão de Artilharia e outras Armas Pesadas, o que deveria ter sido accionado desde a ocupação. Mais tarde, ordenou o reforço temporário com Paraquedistas, o que aliviou, de certa maneira, a grande pressão a que estava sujeita a Companhia.

Em 28JUL68, foi publicada Directiva 20/68, em que o Sr. Comandante-Chefe determinava:
“Transferir em fase ulterior os estacionamentos de Guileje e Gandembel para Salancaur e Nhacobá, devendo proceder-se, desde já, ao estudo da localização e das vias de comunicação”.

Desta forma, o esforço de contra-penetração passava mais para Oeste, sendo constituído pelos aquartelamentos de Mejo, Salancaur (6 Kms a Norte) e Nhacobá (4 kms a Norte de Salancaur).

A intenção constante na Directiva indicada não foi concretizada e, mais tarde, o Sr. General Spínola fez uma remodelação do dispositivo militar, determinando o abandono dos seguintes aquartelamentos:

Gandembel /Ponte Balana
Ganturé (destacamento de Gadamael)
Sangonhá/Cacoca
Mejo
Madina do Boé e Beli (únicos estacionamentos da região do Boé - Leste da Província)

O Sr. Comandante-Chefe tinha toda a legitimidade para determinar a remodelação do dispositivo que entendeu, como também, obviamente, assumia a responsabilidade dessa remodelação.

No que se refere ao abandono de Gandembel/Ponte Balana, sem concretizar o que determinara na Directiva 20/68 de 28JUL68, diminuiu drasticamente o esforço de contra-penetração no “corredor de Guileje”, assim “facilitando” a vida ao PAIGC, o que, seguramente, não era essa a intenção do Sr. Comandante-Chefe. Ao determinar o abandono de Mejo, deixou o aquartelamento de Guileje sem qualquer apoio, dependendo exclusivamente da ligação por estrada a Gadamael. Foi pena que, enquanto esteve ocupado o quartel de Mejo, não tivesse sido explorada a ligação fluvial a Cacine, quanto mais não fosse como alternativa à ligação terrestre Guileje/Gadamael. E isso podia ser apoiado por um Destacamento de Fuzileiros, sediado em Cacine.

O abandono de Ganturé, e principalmente Sangonhá/Cacoca, deixou uma grande área sem controlo pelas Nossas Tropas, o que, mais uma vez, “facilitou” a vida ao Inimigo, permitindo se assim entendesse, o acesso directo ao Cantanhez.

Abandonando Madina do Boé e Beli, deixou a região do Boé sem qualquer presença militar portuguesa, o que foi aproveitado mais tarde, pelo PAIGC, para ali proclamar a independência, antes do final da guerra.


2. Antecedentes próximos

2.1 - Aparecimento dos mísseis terra-ar 

No dia 25MAR73(Domingo), o aquartelamento de Guileje foi flagelado pelo In em pleno dia, das 13.00 às 14.30 horas, contrariamente ao que sucedera até essa data, em que as flagelações decorriam durante a noite. Tal como estava determinado, foi pedido, de imediato, Apoio Aéreo (AE) à Base Aérea n.º 12, sediada em Bissau. 

Passado pouco tempo, apareceu um Avião FIAT G-91 (de ataque ao solo); o Piloto entrou em contacto rádio e foi informado da direcção e distância estimada donde partira a flagelação, voando de seguida nesse rumo, não tendo estabelecido nenhuma ligação rádio posterior, nem tão pouco se tenha notado algo de anormal. Passados cerca de 15 minutos, apareceu o 2.º avião (a normalidade o AE era feito por dois aviões, voando em parelha), cujo Piloto foi informado do que havia sucedido com o 1.º; este 2.º avião sobrevoou a área indicada e após algum tempo, verificou que o 1.º tinha sido abatido; mais tarde constatou-se que fora atingido por um míssil terra-ar; o Piloto, apercebendo-se da situação conseguiu ejectar-se e o avião despenhou-se no meio do arvoredo. Ao ser sobrevoado pelo 2.º avião, conseguiu lançar um “very- light” , assinalando assim a sua presença. Devido ao facto de já ser quase noite, só foi possível recuperar o Ten. Pil. Av. MIGUEL PESSOA, que além do mais tinha um pé partido, devido à queda, feita a pouca altitude, no meio do denso arvoredo.

Foi este o 1.º avião FIAT G-91 abatido, como se veio a verificar por um míssil terra-ar, de fabrico soviético, fornecido pela Rússia ao PAIGC. A flagelação, em pleno dia, foi o chamariz que provocou a vinda dos aviões, que o In sabia que iria acontecer e que foi um êxito para o In.


2.2 – Restrições ao Apoio Aéreo 

Face ao aparecimento dos mísseis terra-ar, o Apoio Aéreo sofreu várias restrições, como não podia deixar de ser. As Forças Terrestres passaram assim a não poder contar com a preciosa colaboração da Força Aérea, (FA) que passou a ser feita de maneira diferente, voando os aviões a uma altitude maior, empregando no ataque ao solo bombas com maior potência.

No que respeita a Guileje, a FA deixou de fazer evacuações e de prestar outros apoios, como o acompanhamento das colunas de reabastecimento Guileje/Gadamael, com um avião no ar. Resumindo, Guileje não mais viu os aviões aterrarem na sua “pista”, nem tão pouco sobrevoarem o aquartelamento, a não ser em circunstâncias especiais.


2.3 – Deserção do Milícia ALIU BARI 

Em 10MAI73, o Soldado Milícia ALIU BARI saiu do quartel, sem autorização, levando a Espingarda Mauser, que lhe estava atribuída; disse a um outro Milícia que ia à caça. Quando se verificou que não voltara, o Pelotão de Milícia de Guileje saiu em patrulhamento pela estrada para Mejo, com a finalidade de encontrar o referido Milícia, por se pensar que lhe teria acontecido algo de anormal. Nesse patrulhamento, foi detectada uma mina anti-carro, com o invólucro de madeira e de modelo desconhecido, implantada pelo In; quando procediam ao despoletamento da mina, esta rebentou, provocando a morte imediata de dois elementos da Milícia - CAMISA CONTÉ e SATALA COLUBALI, dois Comandantes de Secção e dos mais válidos milicianos. 

Este triste acontecimento provocou um forte impacto negativo no moral de todo o pessoal. O desaparecimento do ALIU BARI (mais tarde soube-se que tinha sido aprisionado pelo In, junto à fonte onde se fazia o reabastecimento de água para o quartel) foi sentido pela população, porque ele podia indicar ao In o local das suas lavras, o que aumentava as suas preocupações. Para os militares também causou grande desconforto, porquanto podia fornecer informações ao In, relativamente ao dispositivo existente no quartel, bem como outras, tal como as relativas à actividade operacional.


2.4 – Visita do Sr. General Comandante-Chefe, em 11MAI73 

Em 11MAI73, o Sr. General SPÍNOLA fez uma visita a Guileje. Falou às tropas, em formatura geral na pista, dizendo que se esperava um agravamento da situação, que a Força Aérea não podia executar as missões de rotina como até então mas que, numa situação difícil, apoiaria as Nossas Tropas voando mais alto e utilizando bombas mais potentes; referiu também que, no caso de feridos muito graves, seria feita a sua evacuação a partir de Guileje


3. O que o Comando-Chefe sabia sobre as intenções do Inimigo 

Na folha 608 do auto de corpo de delito que me foi instaurado (tenho uma cópia integral), pode ler-se :
EXTRACTO DO RELATÓRIO DE INTERROGATÓRIO N.º 108 271800DEC72

De: MÁRIO MAMADU BALDÉ - Sexo: MASCULINO - Idade: 25 ANOS Grupo Étnico: FULA  -Naturalidade: CACINE - Estado: Solteiro
(...)

INTENÇÕES DO IN 
(...)

a. NA FRONTEIRA: 

Refere que o IN pretende fazer um ataque com bastante força a GUILEJE, porque pretende obter uma maior liberdade de movimentos logísticos e de pessoal no corredor de GUILEJE. Para isso, ficaram em KANDIAFARA alguns elementos que vieram recentemente dum estágio de artilharia na Rússia, para fazerem reconhecimentos na área de GUILEJE e preparar esta acção.

MODOS DE ACTUAÇÃO

Os chefes sabem que as flagelações aos aquartelamentos não têm obtido resultados compensadores e por isso resolveram mandar vários elementos ao estrangeiro receber uma instrução mais adiantada de Artilharia.

Esses elementos ficam a saber trabalhar com cartas topográficas, para poderem determinar com precisão as distâncias de tiro. Aprendem também a trabalhar com goniómetros-bússolas e outros aparelhos, assim como ficam a saber através da regra do milésimo converter as correcções métricas em direcção, em correcções angulares. Estes elementos ficarão normalmente em observadores avançados durante as flagelações, ligados por telefone às bocas de fogos, dirigindo a acção e regulando o tiro. (...)”

Este documento merece-me os seguintes comentários:

- Ao que se sabe, o Estado-Maior do Comando-Chefe (nomeadamente a Repartição de Informações -(REP/INFO), não lhe “ligou nenhuma importância”, esquecendo uma regra básica das Informações, que é não desprezar nada, por mais inverosímil que pareça. A REP/INFO tinha a obrigação de confirmar ou informar o seu conteúdo, tanto mais porque, os “modos de actuação” faziam todo o sentido, nomeadamente para os Artilheiros (que não era o caso do Sr. Chefe da REP/INFO, que era oriundo da Arma de Infantaria, mas que poderia e deveria, se tivesse dúvidas (que não deve ter tido), consultar os seus camaradas sobre o assunto.

- O Comando-Chefe e o seu Estado-Maior, nada fizeram para impedir, ou no mínimo dificultar, que o IN fizesse os reconhecimentos no sentido de preparar a acção de concretizar “um ataque com bastante força a GUILEJE”.

- A REP/INFO não informou o Comandante do COP 5, que era eu, sobre o conteúdo do documento transcrito atrás, o que foi inconcebível, para não utilizar um adjectivo mais violento. Se eu tivesse sido informado, como deveria ter sido, seguramente afirmaria, junto do Sr. Comandante-Chefe, que o COP 5 não tinha meios para contrariar a intenção do In, pelo que necessitava de ser convenientemente reforçado; mesmo que não me fosse atribuído qualquer reforço, não me esqueceria do que me esperava e, com os parcos meios de que dispunha, tudo faria para contrariar o que o IN preparava, nomeadamente através de patrulhamentos adequados.

O que é certo é que, tudo o que consta no Relatório de Interrogatório n.º 108 de 27 de Dezembro de 1972 (antes da criação do COP 5), se veio a confirmar mais tarde, pelo Comandante do PAIGC, Sr. OSVALDO LOPES DA SILVA, em artigo publicado no jornal Público em 26 de Julho de 2004, (pág. 358 a 361 do meu livro), em que descreve, com pormenor, o trabalho de reconhecimento e levantamento topográfico realizado durante vários meses, iniciado no final de 1972 e que culminou com o ataque em força sobre Guileje, a partir de 18MAI73, com total surpresa da minha parte, por falta de informação, INEXPLICÁVEL, da parte do Comando-Chefe.

Ainda acerca do documento transcrito atrás, pode perguntar-se porque foi incluído no processo que me foi instaurado.

Durante o tempo em que estive preso preventivamente, fiz vários requerimentos.

Em 30 de Julho de 1973, enviei um requerimento dirigido ao Senhor General Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, solicitando, nos termos da Art.º 411.º do Código de Justiça Militar, o fornecimento de cópias de diversos documentos, constantes de uma grande lista, também incluída no citado requerimento. A consulta dos documentos destinava-se à organização e devida fundamentação da defesa e desde já das novas declarações que for autorizado a prestar no corpo de delito e era essencial para o exercício do direito de defesa.

O despacho de 2 de Agosto de 1973, do Sr. General Comandante-Chefe, foi do seguinte teor:

“Forneçam-se os elementos solicitados com os seguintes condicionamentos:
- Os documentos classificados devem ser entregues ao oficial de polícia judiciária militar para serem apensos ao auto de corpo de delito, devendo o Major Coutinho e Lima deles tomar conhecimento através daquele oficial.

- O relatório e elementos relativos à operação “Ametista Real”, não devem ser fornecidos por não dizerem respeito aos factos que estão na origem do auto de corpo de delito.

- A documentação solicitada que não se encontre já elaborada ou não tenha sido difundida pelas repartições, não deve ser fornecida por estar fora das atribuições das repartições a sua elaboração, mormente numa situação de manifesta carência de pessoal.

- Os documentos classificados já apensos ao corpo de delito, como é óbvio, não devem ser fornecidos.”

Em 08AGO73, o Sr. Chefe de Estado-Maior do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, através de uma Guia de entrega, enviou ao Sr. Oficial da Polícia Judiciária Militar (PJM), Sr. Brigadeiro Leitão Marques, 124 documentos, para serem juntos ao auto do corpo de delito, o que aconteceu em 10AGO73.

O Sr. Oficial da PJM - Sr. Brigadeiro Leitão Marques, nem sequer cumpriu o que o Sr. General Comandante-Chefe determinara: “...Os documentos classificados... devendo o Major Coutinho e Lima deles tomar conhecimento através daquele oficial”. Foi mais uma prepotência que o Sr. Brigadeiro entendeu tomar. De facto, não me foi dado conhecimento do documento referido (só o li quando tive acesso ao processo), pois se o tivesse conhecido, nessa altura, não deixaria de fazer mais um requerimento, em termos contundentes, como se impunha, a solicitar explicações sobre o assunto.

O Extracto do Relatório de Interrogatório n.º 108, transcrito atrás, era o n.º 105 lista de entrega referida. Não se percebe que, tal documento, altamente comprometedor para o Comando-Chefe e seu Estado-Maior, pelas razões indicadas nos comentários que fiz sobre o seu conteúdo, tenha sido junto ao processo. Em minha opinião isso aconteceu, pela forma negligente como foi elaborado o auto o corpo de delito, pois nem o Sr. Chefe do Estado-Maior, Int.º, Sr. Tenente Coronel do CEM do CTIG, António Hermínio de Sousa Monteny, (que autenticou a cópia daquele documento), nem o Sr. Chefe do Estado-Maior do Comando-Chefe (que assinou a guia de entrega), nem o Sr. Oficial da PJM (que ordenou a sua junção após autos), se devem ter apercebido do seu conteúdo; se alguma das entidades indicadas o tivesse feito, seguramente teria sido retirado daquela lista de 124 documentos: Com efeito, se eu tivesse sido julgado (e isso não aconteceu, apenas por ter sucedido o 25 de Abril de 1974), o meu Advogado, Sr. Dr. Manuel João da Palma Carlos, (que se deslocou a Bissau), requereu em 18 de Fevereiro de 1973 autorização para consultar o processo (o que foi autorizado), seguramente tomou conhecimento do já referido “Relatório de Interrogatório” e no julgamento não deixaria de exigir explicações sobre o conteúdo do mesmo, o que causaria grande desconforto ao Comando-Chefe e seu Estado-Maior, que seriam responsabilizados pelo que não fizeram (e deviam ter feito), no que ao tal documento dizia respeito.

Do mesmo modo se pode entender a amnistia, que permitiu o arquivo do processo e poderia não ter sido, bastando por exemplo limitar a sua aplicação a crimes cuja moldura penal não excedesse 2 anos de prisão.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16218: Dossiê Guileje / Gadamael (28): A situação de Gadamel, ao tempo da CCÇ 2796 (1970/72), que teve dois grandes comandantes, Cap Op Esp Fernando Assunção Silva e Cap Art António Carlos Morais Silva (Vasco Pires, (ex-Alf Mil Art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72)

Guiné 61/74 - P17917: Notas de leitura (1009): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

Há alguns anos atrás, por entreposta pessoa, pedi para conversar com António Fragoso Allas, anunciei previamente a questão primordial para o encontro: as eventuais ligações da PIDE/DGS com o assassinato de Amílcar Cabral. Almoçámos em Algés, numa atmosfera de grande amenidade e saí desse encontro com a garantia de que não houvera um mínimo de envolvimento da polícia política no conflito que separava abissalmente guinéus e cabo-verdianos.
Perguntei a Fragoso Allas por que não escrevia tão importantes memórias e tais aspetos clarificadores. Disse-me que mais tarde ou mais cedo tudo iria aparecer numa entrevista.
Como acaba de acontecer.

Um abraço do
Mário


De leitura obrigatória: o diretor da PIDE/DGS na Guiné, no tempo de Spínola, na primeira pessoa (1)

Beja Santos

“A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar, Edições Colibri, 2017, é um documento impressionante, uma investigação de altíssima qualidade, um frente a frente entre uma investigadora de mérito, com obra consagrada, e um inspetor da PIDE/DGS que percorreu os diferentes territórios coloniais em guerra. Entrevista vastíssima, abrangente, abarcando as questões mais controversas desde a Operação Mar Verde até ao assassinato de Amílcar Cabral. Fragoso Allas vai para a Guiné substituir Matos Rodrigues com quem Spínola se incompatibilizara, chegara mesmo a pensar prendê-lo, ameaçara também suprimir a delegação da PIDE/DGS em Bissau se não ocorresse a sua substituição. A pressão é feita a seguir ao insucesso da invasão de Conacri, Allas só toma conta do lugar em meados de 1971.

Deixa bem claro que nunca recebeu diretivas de Lisboa por parte da PIDE/DGS, recebeu instruções muito genéricas do Ministério do Ultramar. Porquê a animosidade de Spínola, que queria terminar com a DGS na Guiné? Allas responde:

“Eu não sei com certeza, mas presumo que o jornal deve ter sabido que a DGS da Guiné fazia relatórios que enviava para Lisboa, dos quais não dava conhecimento ao governador. O General Spínola em várias ocasiões tem falado em desentendimentos importantes com a PIDE/DGS”.

Spínola pretendia que Allas aderisse ao seu projeto “Por uma Guiné Melhor”, e decidiu que ele passaria a assistir ao briefing diário na Amura, o que veio a acontecer. Allas refere as suas primeiras ações na Guiné logo o assassinato de um tenente senegalês por um capitão português, sublinha a recetividade da política da Guiné melhor, o programa da africanização das tropas, e emite parecer sobre a morte dos três majores, em Abril de 1970, dizendo:

“As mortes terão sido executadas por indivíduos vindos de Conacri para o efeito e, pelo menos, os chefes guinéus envolvidos nas negociações terão sido fuzilados. O assassinato dos majores produziu um maior desentendimento entre os guineenses e os cabo-verdianos porque eram guineenses os que estavam a negociar o regresso dos guerrilheiros à revelia dos comandos do PAIGC. Foram denunciadas as conversas com os militares portugueses, o comando do PAIGC mandou matar os majores e depois fuzilar os chefes dos guerrilheiros envolvidos na negociação”.

A sua grande preocupação era montar uma rede de informadores na Guiné, depois de ter avaliado a situação, reorganizou o gabinete do centro de cifra, seguiu-se a rede de informadores, os postos mais importantes da DGS estavam perto do Senegal, era o caso de Pirada, Bigene e Guidage, para a Guiné Conacri só havia o posto de Buruntuma. Explica a importância de Pirada:

“Estava localizado mesmo junto à fronteira com o Senegal. O posto estava dentro da casa de um comerciante. O agente da DGS ali colocado vivia dentro da casa do tal comerciante. Mas o que sucedia na prática era que o comerciante era mais agente da DGS que o próprio agente; 90% das vezes era o comerciante que atendia o rádio. Converteu-se num agente duplo. O comerciante chamava-se Mário Soares. Era habilidoso, tinha boas relações com as autoridades portuguesas e tinha bons contactos, também, com as do Senegal. Teve atuações muito importantes para nós. O Mário Soares era útil como agente de contrainformação. Quando queríamos enviar informações falsas ao PAIGC dizíamos-lhe que era muito secreto e então ele ia logo transmiti-las. As informações que ele fornecia sobre o PAIGC quase não serviam, porque nós sabíamos que ele também trabalhava para eles. Quando cheguei à Guiné, o General Spínola estava muito zangado com ele e queria mesmo expulsá-lo da província, mas isso não seria conveniente porque o posto da PIDE estava dentro da sua casa, pelo que me interessei para que ele continuasse na sua atividade”.

Fala-se de outro comerciante que também prestava informações à PIDE, Rodrigo Fernandes Rendeiro.

A conversa desliza para a infiltração do PAIGC. A rede interna era constituída por informadores e alguns dissidentes. Explica que uns por dinheiro, outros por frustração e despeito com o PAIGC. Eram 20 infiltrados. Não havia em Conacri informadores da DGS:

“Eram os nossos homens de ligação que falavam com elementos da estrutura do PAIGC em Conacri e davam-nos as informações. Aproveitavam-se as dissensões já existentes entre guinéus e cabo-verdianos, os maiores colaboradores eram de etnia Fula. Explica que Inocêncio Cani, tal como Momo Turé, nunca foram colaboradores da DGS, todos os documentos que referem nomes como Aristides Barbosa, Mamadu Turé e outros mais são documentos falsificados. Refere e incompatibilidade entre Rafael Barbosa e Amílcar Cabral. Fragoso Allas diz que nunca subornou Rafael Barbosa. Adianta que havia contactos com Nino Vieira: “Não era um contacto direto, eu nunca falei com ele, tinha pessoas que falavam com ele. Tentava-se trazer de volta. Ele tinha interesse em voltar mas tinha um problema: tinha sido condenado por crime penal e tinha fugido. Aquilo que estava a negociar connosco era voltar, mas não vir para a prisão. Esta ação era tratada através de mensageiros”.

A rede de informações de Fragoso Allas assentava primordialmente em djilas. Aliás, quando o jornalista José Pedro Castanheira consultou os arquivos da PIDE em Bissau à procura de conexões entre a polícia política e os assassinos de Amílcar Cabral não encontrou qualquer documento mas descobriu diversos relatórios de djilas que se movimentavam com grande facilidade sobretudo no Senegal. Com a Guiné Conacri era diferente:

“Havia indivíduos do PAIGC na Guiné Conacri que vinham à Guiné Portuguesa visitar as famílias e diziam que estavam cansados de estar lá. Se depois a família viesse dizer que se tinham apresentado não os prendíamos, mas aproveitava-se o contacto através da família para os captar”.

Afloram-se os contactos com a oposição a Sékou Touré, o agente Marcelo Almeida, os grupos especiais da DGS (GE/DGS), e os esforços para o estabelecimento de contatos com o Senegal. A conversa agora inflete para os encontros de Cap Skirring, Fragoso Allas pretende corrigir que só houve duas reuniões e não três, que nunca se falou em Amílcar Cabral nem em nenhuma hipotética entrevista entre este e Spínola, e antes de abordar o assassinato de Amílcar Cabral faz alusão à proposta feita ao Coronel Vaz Antunes pelo agente “Padre”:

Era já na fase em que os guinéus se recusavam a combater, em Junho de 1973. Em consequência havia umas centenas de guerrilheiros guinéus do PAIGC que se queriam entregar e com os quais foi estabelecido contacto em Farim, na fronteira, através do referido agente”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17908: Notas de leitura (1008): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (6) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17916: Manuscrito(s) (Luís Graça) (126): O fogo que nos redime

O fogo que nos redime

por Luís Graça


O teu país ardeu

e tu não deste conta.

O pinhal d’El-Rey ardeu
e tu não deste conta.



O fogo devorou a tua casa e o teu quintal
e tu não deste conta de nada.

O pregador da tua igreja
já há muito que te ameaçara, do púlpito e do altar:
que era pelo fogo
que o mundo um dia iria acabar.

Havia o partido do fogo
e o dos que o combatiam,

mas tu nunca deste conta desta bipolaridade.
Como nunca ligaste às profecias antigas
do louco pregador da tua cidade.

Alguém vociferou, nas redes sociais,
que era preciso aplacar a ira de deus
e a do seu povo
e a dos seus demagogos,
mas tu nunca não te deste conta de nada.

O pinhal d’El-Rey,
cheio de bidões de gasolina,
estava pronto para arder
no verão quente de 1975,
e tu na altura até te deste conta.

Hoje sabes, como nas tragédias da Grécia antiga,
que é preciso que alguém morra,
física e simbolicamente falando,
para que tu possas por fim fazer o luto
e dormir tranquilo
sem a maçada de teres que chorar,
nem que sejam lágrimas de crocodilo.

Chorar pelos nossos mortos,
hoje, os de Pedrógão Grande,
ontem os da guerra colonial,
mais os de sempre, os do mar salgado,
todos os mortos de Portugal.

Chorar pelo teu país que ardeu,
pelo pinhal d'El-Rey,
pelo verde pinho, ai, ai,
pelo teu vizinho que ficou carbonizado.

Não vês televisão,
o teu país ardeu,
e tu não deste conta,
mas, apesar do teu autismo,
tu sabes que somos um povo de santos inquisidores,
de encenadores de autos de fé,
de ateadores de fogueiras,
de plantadores de eucaliptos,
somos, enfim,  um povo antigo e trágico e exangue
que periodicamente se redime pelo fogo e pelo sangue.

Alfragide, 22/10/2017

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domingo, 29 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17915: Fotos à procura de... uma legenda (94): O emboscador emboscado... Ou então: que pena eu não ter sido antes repórter de guerra...










Sem legenda... ou à procura de uma... Avance.se com esta; O emboscador emboscado... Ou que pena eu não ter sido antes repórter de guerra...Teria sido um bom repórter ? Não me parece: fui um mau soldado, seria um pior repórter de guerra...

Fotos: © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
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Guiné 61/74 - P17914: Blogpoesia (535): "Ao ritmo das marés...", "O lobo-pastor..." e "Nunca arrefeça...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Mar ao largo da Praia da Boa Nova - Leça da Palmeira
Foto: © Carlos Vinhal

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) três belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Ao ritmo das marés…

(ouvindo Frederico Chopin – valsa da Primavera)

Meu pêndulo está no mar....
Me dita o ritmo.
Cadência milimétrica infalível dos meus passos.
Nele ficam contidas as alegrias e tristezas
Com os limites da razão.
Me espraio ao sol no mar da liberdade.
Aspiro a brisa suave e ardente que me enleva e leva às alturas, donde a terra e o mar se assemelham a um par apaixonado.
Ali crio os meus sonhos.
Meu alimento inesgotável do dia-a-dia.
Quem me dera deles nunca acorde…

Berlim, 24 de Outubro de 2017
8h25m
Jlmg

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O lobo-pastor…

Chegam dos astros baladas tão tristes.
Sobem aos ares preces de paz.
Reina por cá a total confusão.
Dum dia para o outro,
Surpresas cortantes rasgaram certezas.
Golpes fatais trucidaram os sonhos.
A esperança crescia prometendo riqueza.
Estatelou-se no chão a fé no pastor.
Pregava concórdia, espalhava abraços.
Brindava com todos, vestido de príncipe.
Se banhava no mar ignorando as ondas.
Limpava os sapatos à vista de todos.
O engraxa a seus pés sorria feliz.
Andava de noite distribuindo o caldo.
O sem-abrigo ficava a olhar.
Foram tamanhos e tantos os gestos que engaram a todos.
Tresmalhou-se o rebanho.
Afinal, a hora pensada, ainda estava p’ra vir.
Do lobo-pastor.

Berlim, 26 de Outubro de 2017
16h38m
Jlmg

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Nunca arrefeça…

Não morra a chama que te ascendeu e arde.
A fé crescente no dia D.
O sonho lindo que despertou um dia
e prendeu a mente.
Sem sonho, a vida é noite.
O sol não nasce.
O dia é triste.
Viver é fel.
Arrefece o corpo.
O amor não vem.
Sem luz nem cor.
A alma gela.
Para quê viver?
Viver é morte.
Para que nasce um rio
Se não chega ao mar?...

Ouvindo Out of Africa de A.Mozart
Berlim, 29 de Outubro de 2019
8h13m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17893: Blogpoesia (534): "O que vejo da minha janela..."; "Os vira-casacas" e "O Tratado da Insolência", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P17913: (Ex)citações (326): CCAÇ 17, uma companhia da "nova força africana", baseada em pessoal manjaco


Guiné > Região do Cacheu > Binar >  CCAÇ 17 )1972(74) > O cap mil Antómo Acílio Azevedo onversando com o major Dick Daring, responsável pela base do PAIGC no Choquemone, localizada cerca de 5/6 quilómetros a noroeste de Binar e que ali veio várias vezes.

 Foto do álbum do António Acílio Quelhas Antunes Azevedo, ex-cap mil, cmdt  da 1.ª CCAV/BCAV 8320/72 (Bula) e da CCAÇ 17 (Binar), 1973/74.


1. Uma das mais antigas (e raras) referências à CCAÇ 17, no nosso blogue, remonta a 2006!...

Ficamos a saber que era uma companhia de manjacos e que em 1970 foi posta a fazer segurança aos trabalhos de construção da estrada Mansabá-Farim, portanto fora do seu "chão"... Estiveram em Bironque e houve um princípio de motim, obrigando à intervenção do Spínola...

Aqui vai um excerto do poste do Vitor Junqueira [, ex-alf mim

(...) A primeira aproximação que tivemos com a guerra a sério e àquilo que iria ser o nosso estilo de vida nos meses vindouros, ocorreu a partir de um ponto localizado no mapa entre Mansabá e o K3, onde antes da guerra existira uma pequena povoação, chamada Bironque.

Para o Destacamento Temporário do Bironque segue em 1 de dezembro de 1970 um Gr Comb da CCAÇ 2753, tendo os restantes chegado a intervalos de uma semana e ficando a operação concluída em 21 de dezembro de 1970. Com a chegada da CCAÇ 2753, a CCAÇ 17 retirou!

Algum tempo antes, tinha havido uma espécie de motim com cenas de tiros entre os oficiais e sargentos daquela Companhia e os seus elementos nativos, de etnia maioritariamente manjaca. Estes, fartos de bordoada, recusaram-se a sair para o mato, alegando que a terem de levar porrada forte e feia, preferiam apanhá-la defendendo o seu Chão. O general Spínola resolveu o contencioso através de umas despromoções e da transferência da Companhia para Bula. (...)

Falta-nos a ficha de unidade desta companhia, falta-nos gente desta companhia, faltam-nos fotos e histórias,

2. Comentário do nosso editor:

Até há pouco, não tínhamos qualquer referência à CCAÇ 17!... Graças ao António Acílio Azevedo, o último ou um dos seus últimos comandantes, sabemos um pouco mais do seu historial. Mas é insuficiente... Nâo há história da unidade ? Por exemplo, não sabemos   os nomes dos militares desta companhia africana que foram fuzilados depois da independênc

É um serviço útil que o Acílio nos podes prestar a todos!...

As companhias africanas, baseadas no recrutamento local (enquadradas, em geral, por metropolitanos) têm um tratamento desigual no nosso blogue, a avaliar pelo nº de referências ou de marcadores (a seguir, entre parêntesis):

CCAÇ 3 (46)

CCAÇ 5 (133)

CCAÇ 6 (98)

CCAÇ 11 (37) / CART 11 (83)

CCAÇ 12 (380)

CCAÇ 13 (42)

CCAÇ 14 (18)

CCAÇ 15 (18)

CCAÇ 16 (26)

CCAÇ 17 (5)

CCAÇ 18 (26)

CCAÇ 19 (24)

CCAÇ 20 (4)

CCAÇ 21 (23)


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sábado, 28 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17912: Recortes de imprensa (89): A Guiné na revista Panorama, pelo escritor Castro Soromenho, 1941 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 10 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,
António Ferro concebeu a revista Panorama para revelar aos portugueses os portentos artísticos, as belezas naturais da metrópole e do império.
A Guiné suscita muita curiosidade, até os livros escolares falam na babel negra, numa colónia rasgada por cursos de água, verdejante; os estudos não escondem a terra luxuriante, as aptidões agrícolas, mas continuam a faltar investidores, os empreendimentos agrícolas, regra-geral, soçobra, é o que leio em toda a documentação emanada do BNU na Guiné.
Soromenho conhecia a Angola, ficará com uma referência literária e os seus trabalhos de etnógrafo ainda guardam alguma frescura.
Este seu aprontamento guineense revela o seu talento jornalístico, deixou um soberbo convite a turistas e aficionados da caça.

Um abraço do
Mário


A Guiné na revista Panorama, pelo escritor Castro Soromenho, 1941

Beja Santos

Panorama, revista portuguesa de arte e turismo, foi empreendimento de António Ferro com a colaboração de grandes artistas do seu tempo, como Almada Negreiros, Bernardo Marques, Ofélia Marques, Tomás de Melo, Paulo Ferreira. A revista iniciou-se em 1941 e acompanhou a vida do regime, mas de facto o seu período áureo teve a chancela de António Ferro e o grafismo das grandes figuras do modernismo, com Bernardo Marques na proa. Bernardo Marques além de grande gráfico, e de ter deixado capas de livros de grande gabarito, ganhou a vida a fazer publicidade, como tantos outros artistas. Panorama vendia-se por dois escudos e meio ao número, tinha publicidade de prestígio: Livraria Luso-Espanhola, a Kodak, o Hotel Suisso Atlântico, o Avis Hotel, as canetas Sheaffers, a chapelaria Lord, a Mobiloil, e muito mais.

Castro Soromenho foi um jornalista e escritor de percurso muito curioso. Nascido em Moçambique, foi em criança para Angola, veio estudar para Lisboa, aqui se lançou no jornalismo, publicou nos principais jornais e publicações da época. Crítico do Estado Novo, partiu para o exílio em França, foi professor nos Estados Unidos e viveu os seus últimos anos no Brasil. Considerado um escritor angolano de referência, as suas obras de etnografia são ainda hoje de leitura obrigatória.

Este seu artigo sobre a Guiné é meramente divulgativo, ninguém espera encontrar aqui novidades, veja-se logo o arranque:  
“No cabo do Golfo, em jornada no Atlântico africano, sob céu de fogo, estende-se a terra vermelha da Guiné. Fica lá no fundo da boca que o mar cavou, em recortes caprichosos, na terra coberta de vegetação luxuriante – chão raso até às colinas de Bafatá, alteadas a 300 metros no Boé, onde começa o maciço de Futa Djalon, que só ganha caminho de águias, a desdobrar-se em montanhas, na Guiné Francesa. E em frente, pouco além dos lábios vermelhos da terra, 50 ilhas e ilhotas, tufos de verdura, labirintam caminhos de águas negras que os rios vomitam ininterruptamente. Foi ali, na terra húmida e quente, xadrezada por canis e rios, que o destino das guerras e migrações escolheu fronteiras para albergar 17 raças, vindas, com Alá na boca, dos sinos de África”.

Há que gabar a escrita, sim senhor, e provavelmente quem o leu na panorama ia aprendendo muito, a Guiné era uma colónia triste coitada, para ali não se emigrava, só se degredava, e Castro Soromenho exaltava-lhe as belezas e incitava os amantes da caça a vir conhecer a abundante e variada fauna da Guiné.

Faz jus ao sangue derramado na ocupação efetiva, que ele data da seguinte maneira:  
“E só quando o sol espelhou, em toda a terra guineense, a espada de Teixeira Pinto, e a sua bravura entrou na lenda, e Abdul Indjai, o seu melhor colaborador, trocou o alcorão pela bíblia e se enredou em traições à sua raça, para mais tarde regressar ao mesmo seio, já cansado e murcho de sangrar padecimentos, sorvado por azares da guerra, e se rebelou num gesto que lhe deu penas de cativeiro em Cabo Verde – é que o indígena trocou a lança pela enxada”.


Quem o lê, pensa que por golpe mágico se espalhou a pacificação e a civilização triunfou, como ele diz “a certeza do triunfo da civilização da raça branca no país dos africanos”. Agora vencia-se a selva, reverdeceram as lalas de arroz e mancarra, tínhamos a Guiné de porta abertas, e ali a África está toda representada na sua paisagem humana. E sempre a pensar na caça termina assim o seu texto: “Os olhos do turista que vêm do correr do mundo, ante as paisagens da natureza e a humana, belas em toda a Guiné, queda-se em contemplação – e, na sua memória, jamais se apagará esse forte, e belo, e exótico espetáculo”.

Para não deixar dúvidas, a imagem do caçador triunfante junto ao seu magnífico espólio.
Que melhor feitiço africano que aqueles triunfos de caça?

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Nota do editor

Último poste da série de 13 de Junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17460: Recortes de imprensa (88): O nosso amigo capitão Valdemar Aveiro, em Vigo, Galiza, defendendo os pergaminhos da história da pesca do bacalhau ("Faro de Vigo", 10.06.2017)